terça-feira, dezembro 06, 2022

Ruptura democrática - DENIS LERRER ROSENFIELD

 ESTADÃO - 05/12/22

Líderes autoritários ou até totalitários podem utilizar instrumentos democráticos para imporem formas de governo a serviço de seus próprios desígnios



O título pode surpreender! Há rupturas da democracia que se fazem segundo instrumentos democráticos, de modo que as aparências são mantidas, enquanto os pilares de um regime assentado na liberdade são abalados. Eleições, por exemplo, tanto podem ser um meio de alicerçar a democracia, como de fragilizá-la, o que ocorre quando se tornam ferramentas de políticos autocráticos. Lideranças autoritárias ou, inclusive, totalitárias podem se utilizar desses instrumentos para imporem formas de governo a serviço de seus próprios desígnios.

Hitler conquistou o poder democraticamente, fazendo uso de um artigo da Constituição de Weimar que lhe permitia, em determinadas circunstâncias, governar por decretos. O artigo em questão já havia sido utilizado dezenas de vezes por governos anteriores social-democratas, de modo que tinha a aparência de uma mera medida corriqueira. Ato subsequente, passou a perseguir oposicionistas, eliminando fisicamente adversários e, mesmo, amigos, aí incluindo lideranças militares, como o ex-chanceler Kurt von Schleicher e o comandante das SA, Ernst Röhm. Deu-se ao luxo de convocar eleições que eram meros referendos à sua liderança, proibindo qualquer oposição partidária e fazendo uso intensivo da censura. As massas o aclamaram.

Hugo Chávez, aclamado pela esquerda latino-americana e brasileira, seguiu o mesmo caminho. Conquista o poder democraticamente, passando a governar por meio de decretos e referendos que confirmavam sua liderança. Se o referendo lhe era desfavorável, não o seguia e logo convocava um outro, até conseguir impor a sua vontade. Deste modo, foi calando progressivamente os meios de comunicação, até o seu completo silêncio. O Congresso foi também aparelhado por etapas, até lhe ser totalmente submisso. Milícias paramilitares vieram a controlar toda a população, com o uso da violência e o assassinato de manifestantes. O Supremo foi subjugado, tornando-se um mero avalizador de seus atos. Os militares foram cooptados por intermédio do uso intensivo da corrupção. A burla foi completa.

O Brasil está saindo de um período em que as instituições democráticas foram postas à prova, embora o atual presidente e o seu movimento assegurassem fazer o contrário. E o fizeram, paradoxalmente, dizendo defender a democracia e as liberdades. Não foram poucas as tentativas de, progressivamente, criar um ambiente propício a um golpe de Estado, com o questionamento ostensivo das urnas eletrônicas e do sistema eleitoral. Prova nenhuma foi apresentada, mas inúmeras vezes disse o presidente que não seguiria os resultados das eleições se suas pretensões não fossem atendidas. Na verdade, para ele valia apenas o seguinte: em caso de vitória sua, a democracia funcionaria; em caso de derrota, a democracia não teria sido seguida. Simples assim o absurdo de tal colocação.

O resultado das eleições foi-lhe adverso. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), como é de sua exclusiva competência, atestou a lisura do processo e validou toda a apuração, dando vitória ao ex-presidente Lula. Lideranças responsáveis, inclusive de partidos aliados, como o ministro Ciro Nogueira, que assegurou o gabinete de transição, e o deputado Arthur Lira, que reconheceu imediatamente o resultado do pleito, seguiram igual rumo. Os militares, no estrito cumprimento de seu dever, seguem a Constituição, afastando-se de qualquer tentativa golpista. É apenas de lamentar que generais do alto comando estejam sendo denegridos por companheiros de farda ao serem considerados como militares melancias, verdes por fora e vermelhos por dentro. Seguir a Constituição, para pessoas que assim se tornam indignas, seria uma atitude de esquerda. Disparate total.

No entanto, o ministro Alexandre de Moraes, atuando como defensor da Constituição, tem sido considerado como um bode expiatório. Soube ele compreender, ao contrário de seus críticos, que momentos excepcionais, em que a democracia está em risco, exigem medidas excepcionais. Não se pode confundir a aparência de seguir a democracia com sua subversão. Não caiu neste tipo de armadilha armada por bolsonaristas. No momento em que decidiu arquivar um pedido fake, golpista, do PL, contestando o resultado das eleições, não hesitou em lhe impor uma pesada multa por litigância de má-fé. Não cabia, aqui, nenhum tipo de tergiversação, sob pena de tais investidas se repetirem com o intuito de impedir a posse do novo presidente eleito ou sua governabilidade futura. A multa impõe um limite.

Da mesma maneira, não se pode considerar como democráticas manifestações em frente de quartéis e em rodovias exigindo uma intervenção militar. É meramente contraditório. Dizem eles: ou há intervenção ou continuaremos nos manifestando e, em casos mais extremos, impedindo o direito de ir e vir em ruas e estradas, mediante o uso de violência. Os seus autores e financiadores devem ser, sim, responsabilizados, pois democracia não significa liberdade para delinquir. Uma democracia que não reconhece limites caminha para o seu fim.

PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS.

domingo, outubro 02, 2022

Carta a Bolsonaro: não ouse dar um golpe - JAMIL CHADE

UOL - 02/10/2022 


Senhor presidente,

Em janeiro de 2019, poucos líderes internacionais imaginavam que a destruição que o senhor promoveria seria tão profunda, perversa e dolorosa no Brasil. Mas, curiosamente, já sabiam que não deveriam compartilhar a mesa ao seu lado. Naquele mês, no Fórum Econômico Mundial de Davos, o senhor teria um almoço com os anfitriões, que também convidavam todos os líderes presentes para um encontro fechado.

Quando duas dessas lideranças mundiais se deram conta com o senhor também tinha sido convidado, uma delas combinou que fariam de tudo para encontrar um local bem distante do senhor. Mesmo que tivesse de trocar a plaquinha com os nomes que o protocolo havia posto para a disposição dos convidados. "Deus me livre sentar ao lado dele", confessou uma delas.

Quando entraram, as duas descobriram que não eram as únicas que tinham pensado nisso e, como num jogo, parte da cúpula mundial se divertia com o pavor de ter de passar uma refeição ao seu lado.

Naquele mesmo dia, o senhor esbarrou com Tony Blair, num dos corredores de Davos. Sem saber o que fazer, ele aceitou uma foto ao seu lado. Mas assim que ela foi divulgada, a assessoria do ex-primeiro-ministro do Reino Unido teve de dar explicações diante do constrangimento e das críticas que ele recebeu.

Horas depois, o senhor seria entrevistado por um grande jornal americano. Ao sair do encontro, a experiente jornalista estava em choque diante dos absurdos que ela ouviu.

Anos depois, numa outra cúpula, ouvi uma conversa entre Angela Merkel e um grupo de líderes europeus. Ao debater uma proposta, a alemã advertiu ao grupo que "os brasileiros teriam problemas" com tal ideia que seria submetida à consideração da comunidade internacional. Ela, porém, foi interrompida por outro chefe de governo que brincou: "os brasileiros têm um problema ainda maior". Todos riram.

Vou contar aqui um segredo: eles se referiam ao senhor.

Ninguém me contou. Eu vi com meus próprios olhos como no G20 em Roma, em 2021, o senhor sequer sabia quem eram os líderes ao seu lado. E eles faziam questão de virar as costas. Basta perguntar a Olaf Scholz.

Ninguém me contou. Eu vi como embaixadores estrangeiros na ONU debochavam das decisões que o senhor mandava aos diplomatas brasileiros.

Ninguém me contou. Eu vi como, no auge da pandemia, a cúpula da OMS chamava o senhor de "louco".

Ninguém me contou. Eu vi como diplomatas brasileiros pediram licença médica, afastamento ou foram para países insignificantes para não ter de servir à destruição que o senhor promoveu.

Com a mais alta liderança palestina, numa certa ocasião, um dos principais nomes de Ramallah me explicou que jamais imaginaria que um país com tal ativo de simpatia no mundo poderia passar por uma transformação tão profunda.

Pelos serviços de mensagens no celular, chanceleres estrangeiros debocham do senhor ao me escrever e torcem para um final de seu mandato.

No Parlamento Europeu, o senhor é tratado abertamente como "irresponsável" e "neofascista". No Senado americano, seu nome é sinônimo de ameaça à democracia.

Na França, o governo deu ordens para dificultar ao máximo qualquer acesso de seus representantes aos canais de diálogo com uma das maiores economias da Europa.

O senhor e seus apoiadores podem achar que diplomacia é ir a coquetéis e sair na foto ao lado de gente importante. Mas não é nada disso. Política externa é política pública e instrumento de desenvolvimento social. Destruir essa arma é prejudicar a parcela mais pobre da população, não os ricos.

O último grande constrangimento que o senhor promoveu foi usar um funeral de estado para fazer campanha eleitoral, para o espanto de todos. Mas esse não foi o único caso. Com o falecido Shinzo Abe, o senhor ensaiou uma piada fora de lugar. A sala ficou em silêncio por alguns segundos. Até que o japonês, politicamente, decidiu rir. E todos respiraram aliviados.

Desprezado pelas grandes democracias, o senhor apenas foi recebido por pessoas que foram obrigadas a fechar o nariz para conseguir atingir algum objetivo estratégico com o Brasil.

Sim, o Brasil conta no mundo. E por isso a eleição neste domingo também conta.

Escrevo essa carta ao senhor com uma mensagem que o senhor já ouviu da CIA e de governos estrangeiros: respeite os resultados das urnas.

Não existe outra alternativa. Ridicularizado, o senhor apenas tem o apoio —interessado— de líderes de extrema direita, de governos autoritários ou daqueles que querem justamente o enfraquecimento da democracia ocidental.

Se o senhor optar por contestar o voto, a urna, o TSE e o sistema eleitoral brasileiro, estará jogando o Brasil num de seus momentos mais perigosos e aprofundando o isolamento do país no mundo. Para grande parte do mundo, o senhor é um bufão. Mas um bufão perigoso.

O senhor armou milhares de pessoas em três anos, com mentiras e balas. O senhor destruiu pontes e criou inimizades com alguns dos nossos principais parceiros comerciais. Há um consenso na opinião pública internacional de que o senhor faz parte de uma das aberrações do século 21 e reflexo do colapso moral de nossa geração.

A história não poupará o senhor. Isso já é um fato. Mas se a opção for por um golpe, ganharemos um capítulo ainda mais trágico e a certeza mundial de que o futuro foi uma vez mais adiado para o Brasil.

Algumas de suas decisões jamais serão reparáveis. Como trazer de volta milhares de brasileiros que foram assassinados por uma gestão criminosa da pandemia? Como restabelecer o isolamento de indígenas que viram suas terras roubadas?

Agora, ao bombardear a eleição, o senhor está também minando a confiança da sociedade em um sistema que tantos morreram para que fosse estabelecido na América Latina: a democracia.

Não ouse. Somos muitos e não aceitaremos. O mundo, que o despreza, tampouco aceitará.

Viva a democracia,

Jamil

segunda-feira, agosto 22, 2022

Saúde mental é uma das grandes fronteiras do capital neste século - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 22/08/22

Cada vez mais haverá jovens medicados, alunos diagnosticados e seguros de saúde mais caros


A saúde mental é uma das grandes fronteiras do capital neste século 21. Mas isso não quer dizer que todos os profissionais da área sejam picaretas, como pode pensar os apressados de plantão.

Isso significa que, do ponto de vista de quem faz uso de profissionais de saúde mental, você, enquanto usuário —e pode ser aqui uma pessoa física ou uma instituição—, começa a duvidar quando esse profissional diz que é preciso "investir" em saúde mental. Porque não sabe se ele está pensando cientificamente ou financeiramente, a partir do ponto de vista de um fornecedor —ele— do mercado de bens e serviços em saúde mental. Difícil?

Sim, difícil, bem mais difícil do que pensa nossa vã filosofia. Sim, hoje há um mercado de bens e serviços em saúde mental. Ele inclui profissionais como psicólogos, psiquiatras, psicopedagogos e instituições e empresas organizadas por esses profissionais para oferecer tratamentos e formação de mais profissionais em escolas, clínicas —enfim, bens e serviços gerais do mercado de saúde mental.

E, é claro, quando o assunto é um mercado, falamos também em marketing disso tudo. Logo, há ainda profissionais de marketing, publicidade, mídia, redes sociais, escrita, jornalismo. Todos eles podem ser "players" nesse mercado de saúde mental.

Inclui também diagnósticos de todos os tipos que assolam as escolas e as famílias nos tempos contemporâneos. E, não esqueçamos, agrega ainda a gigantesca indústria farmacêutica e seus remédios.

Aqui vale um parêntese. Não se trata de sair xingando a indústria farmacêutica. Lembre que ela nos deu vacinas e longevidade em geral. Trata-se de entender, antes de tudo, que ciência não é um lugar cheio de monges-cientistas que trabalham porque são pessoas especialmente voltadas ao bem do mundo, mas que a ciência é a indústria farmacêutica —as universidades só decolam de fato quando têm apoio do capital desse setor, na imensa maioria dos casos.

A ciência sempre foi vocacionada a ser uma indústria porque custa caro. Dito isso, voltemos ao tema: a saúde mental como fronteira do capital.

Cada vez mais haverá jovens medicados, alunos diagnosticados, pais desesperados —aliás, este é um dos motivos latentes para a decisão dos jovens de não terem mais filhos— e seguros de saúde cada vez mais caros. Enfim, uma enorme rede que reúne inúmeros "players" do mercado de saúde mental.

Aliás, uma das formas de você identificar quando um segmento da sociedade se transformou numa fronteira do capital é quando ele começa a gerar demandas de bens e serviços crescentes e acumulados, como é o caso em questão hoje.

As escolas, hoje imobilizadas entre alunos, professores, pais pagadores de mensalidades e a emergente judicialização das relações entre colégios e esses pais, terão que investir dinheiro na formação específica de corpos docentes, já que elas, as escolas, foram alçadas à categoria de parceiras nos cuidados com a saúde mental —que hoje só piora— dos seus alunos matriculados.
Escolas com mensalidade abaixo de R$ 1.000 crescem na crise

A análise desse sintoma histórico e econômico deve ser também feita num plano que diferencie os vários "players" desse mercado emergente.

Do ponto de vista dos profissionais, os psiquiatras de sucesso, saídos das marcas acadêmicas públicas em medicina, tendem a ser o elo mais poderoso da cadeia.

Não é à toa que se tornou comum psiquiatras ignorarem tratamentos psicoterapêuticos em andamento e indicarem colegas seus aos pacientes, a fim de eliminar a concorrência mais frágil da cadeia, que são os psicólogos.

Na verdade, os psicólogos, em geral, são os "varejistas" desse mercado, recebendo pagamento por hora de trabalho. A psiquiatria é um elo importante nessa ciranda da indústria farmacêutica, já que detém o poderoso discurso médico em suas mãos e canetas.

Pais e escolas, ambos em pânico, cada vez mais infantilizados diante do poder do discurso médico e científico, adoram ver filhos e alunos medicados.

É sempre mais seguro ter o aval do médico. Se der pau, ele será importante para outro elo dessa cadeia: o advogado. Não há saída no horizonte. Só vai piorar a violência do capital no mundo da saúde mental.

sexta-feira, junho 17, 2022

É coveiro, sim - RUY CASTRO

FOLHA DE SP - 17/06

O mundo inteiro, agora, sabe quem é Bolsonaro


Em 2020, no auge da Covid, Jair Bolsonaro preferia passear de jet ski a visitar os hospitais abarrotados e solidarizar-se com os profissionais que arriscavam a vida. Enquanto brasileiros morriam por falta de oxigênio, Bolsonaro imitava uma pessoa lutando para respirar. Já então eram-lhe oferecidas vacinas, que ele desprezava em função da cloroquina. E, quando os cemitérios tiveram de abrir covas rasas para comportar milhares, ele celebrou essa tragédia com uma frase: "E daí? Não sou coveiro".

Agora Bolsonaro terá de ser coveiro. Está diante de dois mortos que o mundo não deixará insepultos: o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips. Queira ou não, são seus mortos, assassinados pelos exploradores, traficantes e pistoleiros a quem ele entregou a Amazônia. Por "ele", leiam-se Bolsonaro ele mesmo, seu cínico vice-presidente Hamilton Mourão, presidente decorativo do Conselho Nacional da Amazônia, e o ex-ministro Ricardo "Boiada" Salles.

Bruno e Dom foram mortos a tiros, esquartejados, possivelmente incendiados e enterrados na floresta. Não se sabe a que se reduziram seus corpos —ou "remanescentes humanos", como foram chamados pelas autoridades. É insuportável imaginar que dois seres humanos, até há pouco na plenitude de suas forças e virtudes, sejam neste momento material de laboratório e, pior ainda, em Brasília, não muito longe do homem que os responsabilizou pela própria morte chamando-os de "aventureiros" e "excursionistas".

Seja o que tiver restado deles, mesmo que uma unha, terá de ser entregue às suas famílias e sepultado
—Bruno, aqui mesmo, e Dom, quem sabe em seu país. Era o que Bolsonaro mais temia: a prova física do crime. A partir de agora, ninguém mais, em qualquer parte, poderá dizer que o desconhece.

Os coveiros da Covid eram heróis. O coveiro da Amazônia pode ser chamado de muita coisa —você escolhe.

quinta-feira, abril 28, 2022

Atenção, empresas, a litigância climática está chegando - RODRIGO TAVARES

FOLHA DE SP - 28/04

Processos em tribunal contra empresas que violem metas associadas às alterações climáticas devem crescer no Brasil


Ao abrir uma filial de uma empresa no Brasil, um conhecido banqueiro brasileiro sobreavisou-me: "poupe em tudo, menos nos advogados". A judicialização das atividades corporativas, juntamente com a hiperburocratização e a tributação visigótica, são o tripé cambaleante onde assentam as empresas brasileiras.

Mais de 60 milhões de ações envolvendo empresas tramitam no judiciário brasileiro, sobretudo de cunho trabalhista, civil (contratos e indenizações) e relacionadas ao Direito do Consumidor. Um CEO brasileiro tem que conhecer tão bem o chão da fábrica quanto o chão do fórum da sua comarca.

É um cenário que se agudizará com a litigância climática, uma ferramenta a ser usada pela sociedade civil para obter a responsabilização das empresas e dos governos na agenda do clima. Ainda que as primeiras ações judiciais datem da década de 90 na Austrália e EUA, foi com a vitória histórica em 2021 de um grupo ambiental contra a Shell –em que um tribunal holandês ordenou que a empresa estabelecesse o corte de 45% das suas emissões de carbono até 2030– que se abriu um novo capítulo. Foi a primeira vez que o poder judicial de um país obrigou uma empresa a se alinhar ao Acordo de Paris.

No dia de hoje, segundo a LSE, existem 548 casos em curso em tribunal contra empresas ou entidades públicas por violações associadas às alterações climáticas. No Brasil são 18, incluindo uma ação cautelar de quatro associações não governamentais –Agapan, Ingá, Coonaterra-Bionatur e Ceppa– contra uma empresa de mineração por violação das regras de licenciamento ambiental "frente à grave situação de emergência climática".

Mas no país ainda não há registo de casos semelhantes ao da Shell. E falta ativismo jurídico por parte da sociedade civil. Em Portugal, a semana passada, um grupo de 12 jovens, composto principalmente por advogados recém-graduados e estudantes de Direito, criou a associação Último Recurso. Publicamente, apresentaram como sua missão colocar o Estado português e a empresa de energia Galp em tribunal, acusando-os de serem os principais responsáveis pela crise climática no país.

Em declarações à coluna, a direção da associação salienta que a base legal dos processos deriva "da responsabilidade civil (por violação de direitos subjetivos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos), dos deveres fiduciários, dos riscos financeiros e dos direitos humanos". Ou seja, a base legal é ampla e multidisciplinar. A questão dos direitos humanos ocupa um espaço importante porque a ONU reconheceu há poucos meses que o meio ambiente limpo, saudável e sustentável é um direito humano fundamental.

Mas é mais fácil um trabalhador processar uma empresa pela simples falta de pagamento de horas extraordinárias do que uma associação processar uma corporação por contribuir para o aquecimento global e operar a crédito no planeta, afetando milhares. A associação espera "resistência dos tribunais" dada a "propensão algo conservadora das decisões jurisdicionais", acrescida pela "falta de preparação da magistratura portuguesa para lidar com quesitos ambientais e climáticos," afirmam Mariana Gomes (presidente), Beatriz Cunha (vice-presidente) e Pedro Marques (tesoureiro), por email.

Tanto no Brasil paulista quanto no Portugal lisboeta, o mundo corporativo opera em espaços de confiança e camaradagem. Os jovens advogados portugueses alertam para o fato de que muitas das empresas carbónicas "estão profundamente inseridas no status quo, cuja sustentabilidade é reconhecida por estruturas e organizações também integradas nesse status quo." Para superar a crise climática é, por isso, necessário "deixar para trás o business as usual."

Jovens portugueses têm pedigree nesta área. Em 2020, quatro crianças e dois adolescentes, com idades entre os 8 e os 21 anos, foram os autores de uma ação que deu entrada no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, contra 33 Estados, incluindo o português, pela falta de ações concretas para reduzirem as emissões de gases com efeitos de estufa.

O ordenamento jurídico brasileiro, à semelhança do europeu, também permite a litigância climática.

A Lei da Política Nacional da Mudança do Clima (lei 12.187/09); o Acordo de Paris, ratificado pelo Brasil em setembro de 2016; o entendimento do STF sobre o alcance jurídico do artigo 225 da Constituição Federal de 1988, que determina que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, cabendo à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações; o Código Florestal Brasileiro; e uma constelação de regras associadas ao Direito Ambiental, ao Direito do Consumidor e à Responsabilidade Civil instigam as empresas e o poder público a cumprirem objetivos de mitigação ou adaptação climática.

Apesar do papel indutor de organizações internacionais como a ClientEarth ou a Global Action Network (Glan), levar a emergência climática para dentro dos tribunais acarreta custos difíceis de suportar por jovens juristas ativistas. A própria Último Recurso não tem financiamento externo e irá contatar "fundações, organizações e doadores privados" para angariar recursos.

Mas que doadores privados? Se a maior parte dos filantropos brasileiros ou portugueses são empresários, não há o risco de haver conflitos de interesse? Não poderá um empresário, pelo charme da filantropia, ser tentado a financiar ações contra a concorrência? E poderão recursos públicos da União Europeia, o maior financiador da agenda climática do mundo, ser disponibilizados para a sociedade civil processar governos, incluindo os próprios membros da UE?

O caminho será árduo, mas é imparável. Se nos últimos anos o STF tem sido exortado a interferir no poder executivo para evitar calamidades políticas, também serão os tribunais a estimularem os executivos de empresas a cumprirem regras para evitarmos catástrofes ambientais.

Rodrigo Tavares
Fundador e presidente do Granito Group; professor catedrático convidado na NOVA School of Business and Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial, em 2017

sábado, janeiro 22, 2022

A última dança - GUSTAVO POLI

O GLOBO - 22/01

Desde 2019, Arrascaeta, Everton Ribeiro, Bruno Henrique e Gabigol são sinônimo do melhor futebol praticado no país


Arrascaeta, Everton Ribeiro, Bruno Henrique e Gabigol Foto: Alexandre Vidal / Flamengo


O fantástico “Get Back”, documentário de Peter Jackson sobre os Beatles, termina com o famoso show do quarteto no terraço da gravadora Apple. No asfalto da Londres de 1969, pedestres e transeuntes olham pra cima em busca de um rock and roll que não sabem de onde vem. Ninguém sabe direito o que está acontecendo. O que acontecia era apenas a última apresentação dos Fab Four de Liverpool. John, Paul, George e Ringo jamais tocariam juntos ao vivo de novo.

A apreciação do momento histórico é um prazer de difícil fruição. Raramente temos a percepção de viver o instante espetacular. Em geral, só percebemos ter vivido algo atemporal anos depois. Faço esse preâmbulo todo porque — com o perdão da heresia — me lembrei de um quarteto que corre o risco de fazer sua última turnê em 2022.

Desde 2019, quando Jorge Jesus ajeitou a partitura, Arrascaeta, Everton Ribeiro, Bruno Henrique e Gabigol são sinônimo do melhor futebol praticado no país. Tudo bem que 2021 terminou mal. Problemas físicos, convocações e desacertos levaram o Flamengo a perder Brasileirão, Libertadores e Copa do Brasil. E hoje já há quem diga que Paulo Sousa, o novo treinador luso, curte Pedro e pode querer encaixá-lo no onze titular.

Será? É possível — Pedro é ótimo jogador. E, se for assim, talvez a era já tenha terminado. E daqui a 20, 30 anos... streamers farão reacts, vídeos ou hologramas sólidos no metaverso para lembrar dos quatro do Urubu. Faz parte — bandas se separam, o futebol é dinâmico. Mas a torcida aqui é para que Giorgian, Gabriel, Bruno e Everton tenham uma última dança. Afinal, o que eles fizeram nos últimos três anos, especialmente em 2019 e 2020, merece toda sorte de aplauso.

Foi com eles, e por causa deles, que Jesus conseguiu encaixar a pressão ofensiva pós-perda que revolucionou o ludopédio tupi. Foi com eles, e por causa deles, que o Flamengo se transformou no melhor time da década brasileira. Arrascaeta é um gênio de pequenos espaços, que prestidigita mais do que joga. Everton é um cruzamento de formiga com cigarra, um operário criativo. Bruno Henrique, um furacão de intuição impressionante. Gabigol, artilheiro frio e ao mesmo tempo passional, une carisma a uma rara percepção de jogo (repare o leitor como ele raramente fica impedido). Individualmente são ótimos — mas juntos entram no proverbial outro patamar do filósofo BH.

Os Beatles continuaram produzindo beleza quando separados, mas não chegaram perto do que fizeram em grupo. O mesmo vale para os quatro rubro-negros que, em vidas separadas, chegaram a brilhar entre Cruzeiro e Santos, mas nada parecido com os discos de ouro que ganharam no Flamengo: três estaduais, dois brasileiros, uma Recopa, uma Supercopa e uma Libertadores.

Toda analogia que envolva o quarteto de Liverpool carrega um misto de heresia com hipérbole. Claro, a genialidade no campo de futebol é de outra natureza — e se fossemos pensar em hierarquia os Beatles só seriam comparáveis a algo como a Laranja de Cruyff ou à Seleção de 70. Mas não importa se Arrasca, Gabigol, BH e Everton são Beatles, Paralamas, Oasis ou Nação Zumbi. Importa a chance de apreciar talento histórico em tempo real.

Até porque um dia, adaptando as palavras de um certo beatle, o sonho vai acabar.