terça-feira, julho 28, 2020

Saio em férias para tentar evitar o fim do mundo - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 25/07

Nos próximos 15 dias desfrutarei de férias. Nada a ver com descanso. Saio em missão especial. Tentarei deter o Apocalipse. Soube de fonte segura que o mundo começou a acabar pelo Brasil. Você talvez não tenha notado, mas já está acontecendo.

De acordo com o mapa que obtive com exclusividade, a sala fica numa área erma do Além. Na porta, abaixo do número 2020, lê-se: "DJF - Divisão do Juízo Final". Por alguma razão, o primeiro botão pressionado no painel de descontrole foi o do Brasil. Tudo transcorre como planejado.

Se nada for feito, coisas esquisitas começarão a acontecer dentro de duas semanas. Já se sabe o seguinte:

A escuridão apagará a luz do céu de Brasília. O chão se repartirá sob o Palácio da Alvorada, cuspindo das profundezas um ser estranho. Bolsonaro identificará algo de familiar na aparência do visitante. O Apocalipse do capitão terá a cara do Olavo de Carvalho.

"Elegi você pra virar a mesa, não pra ficar embaixo dela, dizendo amém pros milicos e sorrindo pros vagabundos do STF", dirá o ser de aparência olavista, em timbre cavernoso. "Eu te destituo. Condeno-te a mastigar três vezes por dia a cloroquina que Asmodeu amassou. Por toda a eternidade".

Uma chuva de comprimidos cairá sobre os escombros do palácio residencial. E Bolsonaro começará a deglutição. As pílulas lhe perfurarão o cérebro. Seu inferno será engolir toda a cloroquina que o Exército for capaz de fabricar.

Antes de ser sorvido pelo solo, Bolsonaro gritará por socorro. Dois homens descerão do horizonte cavalgando um par de emas. Por um segundo, o presidente se imaginará salvo. Mas logo notará que um sujeito se parece com Rodrigo Maia. O outro tem a calva do Alexandre de Moraes. O gordinho sorri de modo estranho e balbucia: "Deixa que eu chuto". Uma das emas assume a dianteira: "Só depois que eu bicar."

Mourão se apossará do trono. Informado de que um general assumiu o controle do governo civil mais militar da história, o brasileiro se convencerá de que está mesmo diante do fim dos tempos.

De repente, tudo começará a desandar. Paola Oliveira envelhecerá instantaneamente. Silvio Santos acordará com a voz do Lombardi. Paulo Guedes se converterá ao socialismo. William Bonner apresentará o Jornal Nacional de sunga...

Uma onda de suicídios em massa se seguirá ao pronunciamento em que Mourão anunciará em rede nacional suas primeiras quatro decisões:

1) Transformar o Brasil numa monarquia.

2) Conceder ao Zero Um, ao Zero Dois e ao Zero três o título de príncipes honorários.

3) Reconduzir o Weintraub ao posto de ministro da Educação.

4) Entregar a alma ao centrão.

Se tudo correr conforme o planejado, o Brasil amanhecerá deserto numa determinada segunda-feira. O país terá morrido na véspera. Sobrarão apenas duas pessoas: uma jovem militante petista e um blogueiro bolsonarista de meia-idade.

Ela se esconderá no sítio de um amigo, em Atibaia. Ele, na casa de um advogado, também em Atibaia. Ambos serão salvos para poupar trabalho à Divisão do Juízo Final. Avalia-se na sala 2020 que não haverá risco de o Brasil renascer do cruzamento de uma petista com um bolsonarista. Dá-se de barato que os dois brigarão até a morte no instante em que se encontrarem.

Tentarei abortar o Apocalipse, desapertando o botão no painel de descontrole. Se eu não voltar em 15 dias, é porque não consegui evitar que o fim do mundo começasse pelo Brasil.

quinta-feira, julho 23, 2020

Bolsonaro trata Waterloo do Fundeb como vitória - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 23/07


"Alguém quer saber sobre Fundeb aí?", indagou Jair Bolsonaro às margens do espelho d'água do Alvorada. Postados na borda oposta, os devotos do mito tinham várias demandas. Mas ninguém, exceto Bolsonaro, parecia interessado em conversar sobre o fundo de financiamento da educação básica, que a Câmara aperfeiçoara na véspera. "O governo conseguiu ontem mais uma vitória, aprovamos o Fundeb", ele insistiu. "O Senado deve seguir o mesmo caminho."

Para sorte de Bolsonaro, seus adoradores não estavam informados sobre a surra que o governo levara no plenário da Câmara. Do contrário, poderiam imaginar que o vírus lhe tivesse subido à cabeça.

"Uma negociação que levou anos", disse o confinado aos visitantes. De fato, a discussão sobre o Fundeb arrastava-se desde 2015. Intensificara-se no ano passado, no alvorecer da gestão Bolsonaro. Durante um ano e meio, o governo tratou o debate como parte da guerra ideológica que instalou na Educação.

A certa altura, Bolsonaro soou como uma espécie de anti-Napoleão, um imperador se descoroando: "Foi uma votação quase unânime." Ele se queixava desde cedo de ter sido chamado de "derrotado" pela "maldita imprensa".

Bolsonaro esticou a prosa: "Seis ou sete votaram contra." Absteve-se de mencionar que os gatos pingados que se opuseram ao aperfeiçoamento do Fundeb na votação da Câmara são justamente os bolsonaristas mais fieis.

"Se votaram contra devem ter seus motivos", afirmou o capitão, antes de condenar os proto-bolsonaristas a um inusitado isolamento social: "Precisa perguntar pra eles por que votaram contra. Alguns dizem que a minha bancada votou contra. A minha bancada não tem seis ou sete. A minha bancada é bem maior do que isso daí."

A deputada Bia Kicis (PSL-DF), uma das vozes ultra-bolsonaristas que votaram contra a emenda constitucional que vitaminou o Fundeb, foi destituída do posto de vice-líder do governo na Câmara. Não é a primeira destituição. Não será a última.

Bolsonaro vem renovando seu quadro de vice-líderes. Troca aliados de primeira hora por soldados do centrão, tratados como heróis da resistência. Na votação do Fundeb, o deputado Arthur Lira (PP-AL), principal voz do centrão e novo líder informal do governo, tentou adiar a sessão. Foi ignorado pelos próprios pares.

Ficou entendido que a bancada fisiológica pró-Bolsonaro, embora seja potencialmente "bem maior do que isso daí", está acorrentada aos interesses do Planalto por grilhões de barbante.

"A verdade vos libertará", anota o versículo preferido do capitão, extraído do evangelho de João. "A esquerda não engole mais uma derrota", disse Bolsonaro na encenação do Alvorada, vinculando-se a uma mentira.

A emenda constitucional aprovada pela Câmara tornou o Fundeb permanente, elevando de 10% para 23% a fatia da União no fundo. O governo tentou adiar para 2022 a vigência das novas regras. Foi derrotado. Quis transferir 5% do fundo para um novo Bolsa Família, em fase de gestação. Não colou.

Pleiteou a destinação de 5% do fundo turbinado para o ensino infantil. Para conseguir, teve de pagar um pedágio, elevando de 20% para 23% a fatia da União no novo Fundeb. Propôs que a verba do salário dos professores fosse desviada para o pagamento de aposentadorias. Foi ignorado.

"Eu queria dar 200%, mas não tem dinheiro", afirmou o anti-Napoleão do Alvorada. "Então, foi negociado. Passou para 23%, de comum acordo. (...) O PT passou 14 anos no poder e não fez nada..."

A ficha de Bolsonaro demora a cair. Mas a lição a ser extraída pelo presidente da votação que revitalizou o Fundeb é a seguinte: a maneira mais rápida de acabar com a guerra ideológica na Educação é perdê-la.

Juntaram-se no plenário da Câmara para derrotar o governo: o presidente da Casa, Rodrigo Maia, os neo-aliados do centrão e toda a oposição. Ao tentar converter em vitória uma derrota tão acachapante, Bolsonaro transformou os jardins do Alvorada numa Waterloo de hospício, ornamentada por emas.

O ‘lavajatismo’ está órfão - WILLIAM WAACK

ESTADÃO - 23/07

Com os heróis da Lava Jato encurralados, um fenômeno político perde força


A frase que ressoa com força no topo da Procuradoria-Geral da República e entre vários ministros do STF é a seguinte: “A Lava Jato não vai acabar, mas vai acabar o lavajatismo”. Como toda encarniçada luta política, também nesta briga-se, em primeiro lugar, por impor uma narrativa.

A que vigora entre quem tem força política ou posição institucional para enfrentar a “Lava Jato” é a de que a força-tarefa de Curitiba se desenvolveu como grupo político com agenda própria e capacidade de dominar decisões das esferas políticas, nisto incluindo Executivo e Legislativo. Mas, para sorte do País, o grupo de procuradores, juízes e policiais da Lava Jato se perdeu no meio do caminho, e cabe agora dar um jeito nisso.

Os principais expoentes da força-tarefa enxergam exatamente o contrário. Em especial a decisão de terça-feira do presidente do STF de impedir buscas no gabinete do senador José Serra em Brasília – atendendo à queixa do próprio presidente do Senado – foi por eles qualificada como tentativa de “dificultar a investigação de poderosos contra quem pesam evidências de crimes” (Deltan Dallagnol, procurador da força-tarefa).

Era algo já previsto na literatura que consumiram: deixados entregues a si mesmos, sem controles externos (como o do Ministério Público), os políticos só produziriam medidas para se proteger e garantir seus interesses (lícitos ou ilícitos). Desnecessário dizer que, para o grupo da Lava Jato, o STF sempre foi visto como parcialmente entrelaçado aos diversos interesses políticos, incluindo ilícitos.

O grupo de Curitiba faz questão hoje de se distanciar do “lavajatismo”, uma denominação que, no seu mínimo denominador comum, expressa um anseio punitivista que ignora consagrados princípios legais contanto que se peguem corruptos. É difícil entender a eleição de Jair Bolsonaro sem a repercussão social e política do “lavajatismo”, mas seu potencial eleitoral para 2022 é um ponto de interrogação cujo tamanho aumenta à medida que transcorre o tempo desde que o ex-juiz Sérgio Moro – de longe a maior expressão da Lava Jato – deixou o Ministério da Justiça.

Moro embarcou na política aparentemente sem um plano claro. Deixou-se levar pelas circunstâncias de um jogo que ele não dominava e elas o obrigaram ao famoso “salto no escuro” – que foi a saída do governo, uma atitude que hoje parece muito mais de preservação do que de ataque. As armas de Moro para atingir Bolsonaro até o momento revelaram-se pouco contundentes, enquanto as do STF contra ele (onde se arguirá a suspeição do então juiz) ainda surgirão.

Ocorre que as circunstâncias estão fazendo com que ele desenvolva um discurso de candidato, postura que não quer (ainda ?) assumir. Onde é convidado a se pronunciar, Moro começa hoje falando de economia, de melhoria do ambiente de negócios, de segurança jurídica e de reformas estruturantes. Evita qualquer postura que o possa associar a radicalismos do espectro político. Defende “união”, “harmonia” e um por enquanto vagamente definido “centro democrático” como linha de atuação.

Não parece disposto de forma alguma a assumir a herança do “lavajatismo”, na medida em que seus heróis de ontem são hoje figuras encurraladas do ponto de vista político e institucional, e na linha do tempo estão longe ainda de um novo teste das urnas. Parece intuir que só o combate à corrupção e o apego à lei e à ordem não trarão vitória eleitoral, diante de um momento político no qual as profundas consequências da dupla crise econômica e de saúde pública estão apenas começando.

A Lava Jato ainda produz ações de repercussão, como a deflagrada contra o senador José Serra, mas que surgem como eco de um passado tornado rapidamente longínquo diante da percepção de quais são os piores problemas da atualidade. O “lavajatismo”, que era também um ânimo de mudança, está perdendo sua principal referência.

Afundando na armadilha da renda média - ZEINA LATIF

ESTADÃO ´23/07

A educação de qualidade é variável-chave para um país sair da armadilha da renda média


É mais fácil um país pobre tornar-se um país de renda média do que este se tornar rico. Os economistas Homi Kharas e Indermit Gill, do Banco Mundial, identificaram essa dificuldade e a denominaram como “armadilha da renda média” em 2007.

Muitos países conseguiram sair da pobreza por meio de políticas governamentais para elevar o estoque de capital da economia. Foi o caso do Brasil. No entanto, o mesmo receituário não seria suficiente para tornar o país rico, independentemente das restrições fiscais. No século 21 ainda menos, por conta do avanço tecnológico.

As dificuldades são de duas naturezas. A primeira é mais técnica: o investimento em infraestrutura e capital instalado gera crescimento do PIB, mas em intensidade decrescente ao longo do tempo. Ficar rico exige passos além: ganhos de produtividade, o que depende de muitas variáveis.

A segunda dificuldade é política. É necessário um arranjo institucional mais sofisticado – envolvendo a academia, imprensa, órgãos públicos e privados – para se construir consensos sobre políticas pró-crescimento. Boa vontade dos governantes é essencial, mas não basta.

Há um grande consenso entre economistas mundo afora de que a educação de qualidade é variável-chave para um país sair da armadilha da renda média. No entanto, em países de renda média não se nota mobilização de atores políticos nessa direção e tampouco envolvimento da sociedade. No Brasil não é diferente e, para piorar, o debate técnico ainda não está suficientemente maduro.

Nesses países, o setor produtivo é, grosso modo, pouco sofisticado, sendo menos penalizado com a falta de mão de obra qualificada em comparação ao que ocorre em países ricos, que produzem tecnologia e buscam inovação. O que o mobiliza não é a cobrança por educação de qualidade, mas sim benefícios diretos. É o que se vê agora no Brasil com a reação contrária de muitos ao fim da desoneração da folha e à reforma tributária. A elite, que não depende da escola pública, também pouco exerce pressão política.

Como resultado, o desenho de políticas públicas de educação acaba sendo mais influenciado por sindicatos e políticos de viés populista.

É nesse contexto, agravado pela omissão do governo, que foi a aprovado o novo Fundeb. O foco principal do expressivo aumento de recursos foram os gastos com a folha, deixando pouca flexibilidade para gestores escolherem a melhor forma para elevar a qualidade do ensino. Esse tema, por sua vez, ficou praticamente de fora.

Em países pobres, com baixo acesso à escola, é crucial elevar os gastos com educação. O Brasil percorreu esse primeiro percurso, mas não de forma eficaz. Há maior inclusão, mas temos o dobro de taxa de evasão escolar em relação a países parecidos. E não seria correto apontar os salários dos professores como explicação para esse resultado. Segundo o Banco Mundial, o piso salarial dos professores está em linha ao de países com renda per capita similar, havendo evolução bem mais rápida na carreira devido a promoções automáticas, além de a previdência ser mais generosa.

Direcionar mais recursos para abrir vagas e aumentar salários é tarefa fácil e traz resultados e dividendos políticos rapidamente. Difícil mesmo é pular para um segundo estágio de elevar a qualidade do ensino, como fizeram os países ricos, para manter os jovens motivados na escola e prepará-los para a vida. Especialistas apontam a necessidade de afastar professores pouco eficientes, enfrentar sindicatos, treinar professores, revisar currículos e adequar as escolas para a nova realidade tecnológica.

Perdemos a chance de um debate político amparado tecnicamente sobre como melhorar a educação, aprendendo com os casos de sucesso. Nos agarramos a fórmulas fáceis e que deveriam estar superadas.

Será que teremos de esperar o problema educacional começar a prejudicar investimentos de forma visível, como ocorre na questão ambiental, para o debate ficar mais maduro? Por ora, o que estamos fazendo é nos afundar na armadilha.

CONSULTORA E DOUTORA EM ECONOMIA PELA USP

sexta-feira, julho 17, 2020

E o governo militar falha outra vez - REINALDO AZEVEDO

Folha de S. Paulo - 17/07

Voltem para os quartéis e peçam desculpas aos brasileiros e às tropas


A representação à PGR de Fernando Azevedo e Silva, da Defesa, contra o ministro Gilmar Mendes, do STF, apelando à Lei de Segurança Nacional e ao Código Penal Militar, tem o odor inequívoco de república bananeira. É o general que sobrevoou a Praça dos Três Poderes num helicóptero de combate quando, em solo, fascistoides pregavam o fechamento do Congresso e do Supremo.

Os militares decidiram sair dos quartéis para colonizar o governo. A janela se abriu com a eleição de Jair Bolsonaro à esteira da razia provocada pelos desmandos da Lava Jato. O resultado é um desastre de proporções amazônicas. A institucionalidade trincada nos conduziu à terra dos mortos --desmatada e queimada. Já fiz neste espaço, no dia 10 de maio, uma exortação: voltem para os quartéis, soldados! Agora outro convite: chega de autoengano, colegas analistas!

Muitos de nós cometeram o erro de imaginar que os militares graúdos da reserva e da ativa estão com Bolsonaro para conter sua criatividade destruidora. Os fatos desmentem a esperança, que, nesse governo, deve sempre ficar de fora.

Luiz Eduardo Ramos, o general (!) da coordenação política que só agora pede passagem para a reserva, afirmou em entrevista que especular sobre golpe é "ultrajante". Mas fez uma advertência: convém não "esticar a corda". E o que seria esticá-la? Respondeu: "Um julgamento casuístico".

Em nota, presidente, vice e ministro da Defesa alertaram: "As FFAA do Brasil não cumprem ordens absurdas" e "não aceitam (...) a tomada de poder (...) por conta de julgamentos políticos". Nos dois casos, os fardados se colocam como juízes dos juízes. Isso é ultrajante.

Acabou a tutela! A democracia não é uma concessão que militares fazem a civis. A força armada existe para nos proteger, não para nos ameaçar.

Mendes teve a serena ousadia de chamar pelo nome, ainda que num exercício hiperbólico, aquilo a que se assiste no país, segundo o que define o Estatuto de Roma, que orienta os julgamentos do Tribunal Penal Internacional: genocídio.

E o Exército "se associa", verbo empregado pelo ministro, à tragédia porque à frente da Saúde está um general da ativa --Eduardo Pazuello-- cuja incompetência se conta em cadáveres: quase 80 mil.

Para os muitos exigentes em matéria de genocídio: o morticínio em massa tem cor e classe majoritárias: preta e pobre.

E lá veio a voz surda da ameaça em notas e cochichos, a exemplo do malfadado tuíte de 3 de abril de 2018, quando o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, ameaçou o STF caso concedesse o habeas corpus a Lula, o que, por 6 a 5, não aconteceu, contrariando a Constituição. Os militares ganharam balda. Conseguiram, por exemplo, um dos planos de aposentadoria mais generosos do mundo mesmo nesta terra devastada, do genocídio cordial sem hipérbole.

Mendes, na verdade, defendeu a honra do Exército, que não é propriedade dessa geração do oficialato. Como instituição permanente e regular, pertence ao povo. É preciso, se for o caso, preservá-lo do erro de alguns generais que confundem sua pantomima pessoal com a história da Força.

Não haverá golpe, não é mesmo, senhores? A tragédia da Covid-19 e a crise ambiental, que tem a Amazônia como epicentro, são, antes de tudo, desastres da gestão militar. Tornam o país pária no mundo. Golpe em nome do quê? Condecorem Mendes, que não acusou o Exército de praticar genocídio. Ele cobrou que a Força não se associe ao desastre.

Só para lembrar: Mark Milley, chefe do Estado Maior das Forças Armadas dos Estados Unidos e da máquina de guerra mais poderosa da Terra, teve a humildade de se desculpar com o povo americano por ter sido flagrado numa foto ao lado de Donald Trump, em situação política incômoda.

Quem pode se impor militarmente ao mundo se desculpa com seu povo por um ato errado. Quem é ignorado por este mesmo mundo se impõe militarmente a seu próprio povo.

Descolonizem o governo, senhores! Voltem para os quartéis e peçam desculpas aos brasileiros e às respectivas tropas. Como se nota, governo militar não funciona. Com ou sem eleição.

quinta-feira, julho 16, 2020

Desastre anunciado - WILLIAM WAACK

O Estado de S.Paulo - 16/07

O quadro eleitoral americano parece confirmar as previsões para nossa política externa


Profissional de carreira que é, pode-se assumir que o embaixador brasileiro em Washington já cultive contatos com os democratas que provavelmente vão assumir junto com Joe Biden. Talvez áreas do governo como Economia, Infraestrutura, Agricultura, Minas e Energia, além das pastas militares, possam ajudá-lo. O pessoal da área internacional “pura” do atual governo só tem os números da turma ligada a Trump.

Se as eleições fossem hoje Trump estaria fora, e as relações do Brasil com Washington em precária situação. A opção preferencial pela pessoa do Trump feita por Jair Bolsonaro configura-se um desastre de proporções inéditas na história da nossa política externa. Não há exemplo de “alinhamento automático” tão mal conduzido. Mesmo na Guerra Fria o regime militar brasileiro levou nossos negócios em relação aos EUA de forma mais autônoma.

Cristalizaram-se nos últimos dias dois dilemas geopolíticos que se tornaram ainda piores devido ao apego de Planalto a Trump. O primeiro é o fato de que Joe Biden, o candidato democrata que hoje derrotaria Trump apresentou um ambicioso programa de recuperação econômica dos Estados Unidos baseado na “economia verde”, o que inclui a volta dos Estados Unidos ao Acordo de Paris (que o Brasil, macaqueando Trump, maltratou).

Procura jogar a ainda maior economia do mundo numa larga avenida de investimento em energias renováveis, novas tecnologias e provavelmente exercendo ainda maior pressão política e comercial sobre o Brasil e suas políticas ambientais. Biden não vai conseguir fazer o relógio voltar para trás, mas promete retomar muito do “multilateralismo” (“globalismo”, como preferem dizer os bolsonaristas) e restituir parte da importância de agências que Trump fez questão de tentar destruir, como as da ONU (em alguns casos, com implícita colaboração brasileira).

A outra questão geopolítica é a participação da gigante de telecomunicações chinesa Huawei na infraestrutura brasileira do 5G, uma decisão que se aproxima para legisladores e governantes brasileiros, e que já causa notável angústia. O ministro Paulo Guedes resumiu há pouco o problema: “o ideal seria deixar a competição progredir, americanos contra chineses, mas surgiu essa questão geopolítica”. Trata-se da cobrança para o Brasil seguir o mesmo caminho que o Reino Unido, que foi banir a gigante chinesa de telecomunicações.

O 5G vai colocar também a cúpula militar brasileira contra a parede. Nossos militares no momento celebram, e com razão, um entendimento com os americanos que promete aplainar o acesso a tecnologias de ponta na área de defesa. Mas os sinais vindos de Washington são inequívocos: parcerias estratégicas no campo de defesa vão depender do comportamento do Brasil em relação ao uso de tecnologia e equipamentos chineses.

Conter a China é um consenso entre republicanos e democratas nos EUA, com a diferença do mau humor em relação ao Brasil que se pressupõe inicialmente de uma administração democrata – que ainda por cima tem boas chances de conquistar nas urnas em novembro também o Senado. Boa parte do nosso governo acredita que a China precisa comer e não vai retaliar o Brasil, um de seus principais fornecedores de commodities agrícolas. É uma perigosa zona de conforto mental. A China tem condições de nos causar muita dor.

Na figura do general Hamilton Mourão, vice presidente e coordenador das políticas para a Amazônia, o governo brasileiro admitiu no Senado esta semana que a guerra das narrativas está perdida para nós, que o Brasil está na defensiva, e que precisa apresentar resultados ao mundo para “sair das cordas” (Mourão). O que deixa Bolsonaro diante de um problemão formidável de política externa pelo qual só pode culpar a si mesmo.

Fogo na Amazônia e o governo deixa queimar CELSO MING

O Estado de S.Paulo - 16/07

Não há um plano integrado de desenvolvimento para a Amazônia e é muito pouco apenas aumentar o monitoramento, como quer Mourão


Não dá ainda para admitir que o governo Bolsonaro mudou sua postura diante do alastramento das queimadas na Amazônia.

O que há é o reconhecimento tardio e flácido do descontrole sobre o que se passa por lá. O vice-presidente da República, Hamilton Mourão, coordenador de um organismo inoperante chamado Conselho da Amazônia, reconhece que “nossos mecanismos de monitoramento são péssimos”, mas não diz como nem sob que condições nem com que objetivo é preciso passar do péssimo para algo aceitável.

Em todo caso, essa é uma postura diferente porque até agora o governo se limitava a repelir as denúncias internacionais que condenavam a destruição por não passarem, como vem afirmando o presidente Bolsonaro, de tentativas de atropelar a soberania nacional na região ou de justificar práticas de chantagem destinadas a solapar as exportações brasileiras de produtos agropecuários.

Pelo levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a Amazônia teve 20% a mais de focos de queimada em junho deste ano em relação ao mesmo período de 2019 (veja o gráfico). A devastação beneficia grupos que se apropriam do patrimônio nacional e que quase nada acrescentam à renda dos brasileiros.

Depois de ter repelido o quanto pôde as denúncias dos especialistas brasileiros e das autoridades internacionais, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, agora afirma que é preciso “ouvir as críticas” que vêm do exterior, como se não as conhecesse ou como se entendesse que bastará fingir que as ouve para fazê-las cessar.

Até agora, a única política ativa do governo Bolsonaro para a Amazônia se limitou a mobilizar o corpo diplomático para responder às críticas que provêm de todos os quadrantes e, assim, reduzir o desgaste da imagem do País. O resto é deixar rolar e deixar queimar.

A destruição da Amazônia começou a prejudicar os investimentos estrangeiros no Brasil. A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, e o próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, vêm advertindo que a omissão do governo não está apenas corroendo a imagem do País lá fora, mas também cancelando exportações e bloqueando projetos de desenvolvimento por aqui. Também por isso, a aprovação do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia corre sério risco de não se confirmar. O presidente da França, Emmanuel Macron, acaba de manifestar sua oposição à assinatura do acordo.

O pleito do “desmate zero”, como está no manifesto dos ex-ministros da Economia e dos ex-presidentes do Banco Central, deve ser visto como a definição de um ponto de partida. Mas até mesmo para isso é preciso saber o que queremos e para onde queremos ir.

Nos últimos 50 anos, as políticas de governo para a Amazônia se limitaram a objetivos de defesa e de ocupação das áreas fronteiriças, como definidos pelo Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam) e pelo projeto da Calha Norte.

Planos de desenvolvimento da região foram insuficientes ou tiveram graves desvios de finalidade. A Sudam, o sistema de incentivos para investimentos, por exemplo, se transformou em foco de corrupção e em cemitério de iniciativas inviáveis. A Zona Franca de Manaus, que hoje oferece pouco mais de 60 mil empregos diretos e indiretos, carrega o vício original de dar prioridade a investimentos em indústrias, muitas delas artificiais, e de desdenhar de polos mais promissores de desenvolvimento, como o turismo e o aproveitamento racional e sustentável de minérios e demais recursos naturais. Hoje, Manaus é uma cidade em degradação acelerada, como vem denunciando com dor no coração um dos seus mais lúcidos filhos, o escritor Milton Hatoum.

Não há um plano integrado de desenvolvimento para a Amazônia. E, sem saber o que fazer, é muito pouco apenas aumentar o monitoramento, como quer o general Mourão.

Mudanças do vento - ZEINA LATIF

O Estado de S. Paulo - 16/07

Haverá o recrudescimento da atual tendência nacionalista ou uma mudança de rumo?



Como será a ordem econômica mundial no pós-pandemia: haverá o recrudescimento da atual tendência nacionalista ou uma mudança de rumo? Há razões para acreditar no segundo cenário. Afinal, como diz Delfim Netto, “a história é escrita por acidentes”. Acidentes causam inflexões.

A crise global de 2008, fruto de erros de governantes, trouxe muito descontentamento social e despertou sentimentos nacionalistas e antidemocráticos, alimentando políticos de perfil populista.

Nos EUA, como aponta Luigi Zingales, a bronca veio dos que se sentiram deixados para trás, penalizados por desemprego e execução de hipotecas, em meio à visão de que o mercado financeiro, o causador da crise, saíra ileso. Não foi diferente na Europa.

O descontentamento se espalhou entre os países emergentes com maior fragilidade interna, conforme a perda de ímpeto do comércio mundial e o fim do ciclo de commodities reduziram seu ritmo de crescimento. O maior símbolo foi a Primavera Árabe.

Não se pode negar a influência do quadro internacional no Brasil, mas a insatisfação e o apelo ao populismo foram muito mais frutos de nossos erros – a corrupção e a política econômica que causaram a recessão passada.

A crise de 2008 aumentou nos países desenvolvidos o sentimento contra a globalização, apesar do seu impulso a ganhos de produtividade e crescimento mundial. A desigualdade, em trajetória ascendente mesmo antes da crise, por conta da perda de empregos em favor de pares nos países emergentes, se agravou. E da pior forma: a queda da renda dos mais pobres.

Foram os emergentes que mais ganharam com a globalização, principalmente pelo forte crescimento do comércio mundial após a entrada da China na OMC em 2001. A redução da pobreza e o surgimento da nova classe média não foram exclusividades do Brasil.

Alguns acreditam que a pandemia irá exacerbar a antiglobalização, pela busca dos países em reduzir a dependência externa de produtos estratégicos. Algo preocupante, inclusive para a geopolítica, pois o comércio mundial promove a cooperação entre as nações.

No entanto, poderá haver correção de rumo. A falha de populistas em lidar com a pandemia, em contraposição ao sucesso de lideranças liberal-democráticas, poderá enfraquecer a pauta antiglobalização.

Nesse contexto, as eleições nos EUA ganham maior importância. Mesmo sendo a guerra comercial China-EUA um assunto de Estado, e não de governo, a saída de Trump poderá facilitar as negociações. Mais importante, uma postura mais agregadora do próximo presidente poderá ajudar na composição de países avançados com vistas a conter excessos da China.

Não sem razão esses países são críticos à OMC, pois foi dado à China o acesso a mercados do Ocidente, sem cobrar medidas para proteger a propriedade intelectual, fortalecer o estado de direito e dar tratamento equivalente a empresas estrangeiras em seu território.

Uma maior coalizão dos países, incluindo emergentes que desejam a globalização, irá significar um saudável contraponto à China, que expande sua influência.

Enquanto isso, Xi Jinping, a 7 anos no poder, enfrenta questionamentos por conta da forma omissa com que lidou com a pandemia. Desgastado, o líder chinês poderá enfrentar dificuldades para um terceiro mandato em 2022, ainda que a economia se recupere rapidamente.

Os EUA terão oportunidade de retomar a ordem mundial liberal, mas promovendo o compromisso com políticas sociais. Os benefícios do liberalismo precisam ser melhor compartilhados com a sociedade.

Novos ventos poderão trazer uma maior integração de parceiros comerciais tradicionais, afastando o cenário de isolamento e conflito entre as grandes nações.

No Brasil, a captura desses (possíveis) ventos dependerá do surgimento de lideranças políticas de perfil liberal-democrático com capacidade de competir em 2022. Até lá, teremos de lidar com o isolamento político do País na arena mundial e as crescentes pressões externas diante das falhas em lidar com a saúde e o meio ambiente.

Mundo mais complexo, mas não inexoravelmente pior.

Consultora e doutora em economia pela USP

segunda-feira, julho 13, 2020

Lava Jato, que elegeu um presidente, inventa conspiração para eleger outro - REINALDO AZEVEDO

UOL - 13/07


Atenção, leitores!

É mentira que o confronto em curso entre a Procuradoria Geral da República e a Lava Jato faça parte de um esforço do governo Bolsonaro para controlar a força-tarefa. Essa é a versão conveniente que integrantes desta marca publicitária — Lava Jato — inventaram para que ela continue a atuar como ente autônomo, que não presta contas a ninguém.

É mentira que a eventual criação da Unidade Nacional de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado (Unac), que centralizaria forças-tarefa, poderia resultar num órgão com superpoderes policiais, que atuaria ao arrepio de qualquer controle institucional. A verdade está no exato oposto: essa é a realidade que vivemos agora. Hoje em dia, a força-tarefa faz o que lhe dá na telha. Na sua ousadia sem limites, acredita ter autonomia até para doar dinheiro decorrente de multas e acordos de delação a seu bel-prazer, como se os recursos lhe pertencessem.

Estamos diante de uma soma de aberrações. E, mais uma vez, a imprensa — ou setores — pode ter um papel decisivo para que se encontre o bom caminho ou para que se aprofunde o poço um pouco mais.

E que se note: a rapaziada é boa de lobby. A imprensa já está coalhada de artigos — inclusive de esquerdistas (!?) — alertando para o grave risco que estaria correndo o país nesta que seria uma terrível conspiração para o governo Bolsonaro acabar com a independência do Ministério Público Federal. O PT, como maior partido de oposição, está longe do debate, pensando sabe-se lá em quais substantivos celestes...

Vamos ver.

A Lava Jato foi o principal cabo eleitoral de Jair Bolsonaro. A Vaza Jato revelou diálogos de procuradores muito preocupados, por exemplo, com a possibilidade de que o PT vencesse a eleição. A maior estrela do lavajatismo — Sergio Moro — aceitou o cargo de ministro da Justiça, e se considerou, o que já é um absurdo em si, que se tratava do empoderamento da operação. E ninguém se deu conta de um absurdo, entre tantos: um juiz não poderia se confundir com a força-tarefa, é claro!, ou estaria evidenciado que não tinha independência para julgar. E não tinha! Condenou, por exemplo, Lula sem provas. Segue vivo o desafio para que digam em que página da sentença de Moro ela aparece.

A receita desandou. E agora os protagonistas da Lava Jato pularam fora do barco bolsonarista, junto com Moro, cujas ações evidenciam a pretensão de se candidatar à Presidência, o que ele nega, é evidente, para crença de ninguém. Como a relação entre Bolsonaro e a imprensa não é a melhor possível e como a Vaza Jato minou a credibilidade burra e impensada que tinha a operação junto a esta mesma imprensa, então é preciso jogar um fantasma no mercado da política e das ideias.

E qual é? Ao tentar obter os "dados estruturados e não estruturados" de posse das seções da Lava Jato (Curitiba, São Paulo e Rio), o braço da operação na PGR estaria cometendo uma ilegalidade -- é mentira! -- para subordinar a investigação aos interesses do governo Bolsonaro: mentira ainda mais cabeluda. Efeito esperado:
1 - refazer os canais e comunicação entre setores da imprensa e a Lava Jato. Neste fim de semana, assistimos a um verdadeiro festival de boatarias contra o ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo;
2 - descolar-se do bolsonarismo, numa espécie, então, de aliança informal com o jornalismo. Já que Bolsonaro bate muito da imprensa, é preciso deixar claro que a Lava Jato, agora, quer voltar a exibir a sua feição anti-establishment. Também quer fazer parte da frente ampla em favor da democracia, depois de ter ajudado a degradá-la.

Não peçam que os partidários da tese de que a criação da Unidade Nacional de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado subordinaria as forças-tarefa ao governo porque eles não saberão demonstrar sem atravessar a linha que separa a realidade da teoria conspiratória.

Os procuradores continuariam livres para fazer seu trabalho. Por definição, não haveria como o governo meter a mão grande em tal unidade porque seriam muitos os olhos a vigiar a relação. Sujeitas a pressões políticas, convenham, as investigações estão hoje, ou tudo o que a Vaza Jato trouxe a público não bastou para evidenciar a pornográfica intimidade havida entre juiz e procuradores e os procedimentos heterodoxos dos próprios membros da força-tarefa? Diálogos que vieram à luz evidenciaram que os senhores procuradores firmaram parceria, por exemplo, com o FBI ao arrepio das disposições legais. Dallagnol anunciou a um colega que ele mesmo se encarregaria de encaminhar um pedido de extradição sem comunicação prévia ao Ministério da Justiça.

Não caiam nessa conversa. O bolsonarismo nada tem a ver com a necessária reorganização de um modo de combater a corrupção que destrói institucionalidade, empresas e empregos e só fortalece projetos de poder. Como se pode ver. A Lava Jato achou que poderia usar Bolsonaro como barriga de aluguel, e Bolsonaro tentou instrumentalizá-la a serviço de seu próprio projeto autoritário.

Como a coisa não prosperou, agora a Lava Jato ataca o antigo hospedeiro para tentar se manter à margem da lei, conservando o enorme poder que isso implica. Já elegeu um presidente. Agora quer eleger outro.

Talvez a China ajude os EUA a saírem de seu transe psicótico - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 13/07

Depois da queda da URSS, os americanos piraram e o país se transformou num parque temático de tolos


Há algum tempo, Vladimir Putin, presidente da Rússia, disse, com razão, que o fim da União Soviética (URSS) foi uma catástrofe para o mundo.

A URSS equilibrava a geopolítica, mantendo os EUA lúcidos. Depois da queda da URSS, os EUA piraram. Transformaram-se num parque temático de tolos. Hollywood não passaria em nenhum teste de QI. Trump e seus retardados tampouco. Torquemada reina na América.
Ilustração - Ricardo Cammarota

A esquerda soviética era muito melhor do que a americana. Sabia que não há transformação social sem violência política. A esquerda americana é uma forma de neurose obsessiva temática. Gira como uma louca ao redor de gênero, raça e classe social. Nada mais existe além dessa tríade.

O que ela quer é ganhar dinheiro com essa histeria. E os ingênuos são tão alienados que não entenderam algo básico: se as empresas abraçam uma ideia é porque ela é uma mercadoria, se virou publicidade é porque perdeu os dentes, se virou super-herói é porque virou Disney. A esquerda americana é um brinquedo de riquinhos. Um novo “life style”. Orna com horta na varanda.

A “culpa” é da moçada de maio de 1968, os entediados na rive gauche de Paris. Quando descobriram que a revolução bolchevique matava, fizeram xixi nas calças e gritaram: mamãe! Queriam “mudar o mundo”, mas sem sujar as mãozinhas de sangue. Marx diria: humanismo burguês.

Sem a URSS, os EUA se tornaram o grande exportador de todo tipo de obsessão cultural. E de lixo político à direita e à esquerda. Americanos não sabem criticar o capitalismo sem criar algum produto de consumo.

Mas não é válido combater preconceitos? Claro que sim. Mas quem disse que o problema central do capitalismo seja combater preconceitos? O problema central do capitalismo, dito numa linguagem “family friendly”, é ter transformado o mundo numa ópera de tolos.

Se a direita é um bando de gente grossa, racista e burra, a esquerda (sempre mais chique) é um fetiche de jovens ricos e entediados que resolveram mudar o mundo com uma ideia na cabeça e uma câmera na mão. E têm ao seu lado a indústria cinematográfica mundial.

Mas o que isso tudo tem a ver com torcer pela China? Porque espero que ela se transforme na principal economia até 2025. E com isso, quem sabe, talvez a China ajude os EUA a saírem do transe psicótico no qual se encontram. E assim, quem sabe, ajude as democracias a recuperarem sua sanidade mental, descobrindo que a maior parte da população mundial não está nem aí pra democracia, contanto que tenha janta a noite.

A leitura de “Capitalismo sem Rivais, o Futuro do Sistema que Domina o Mundo” (Todavia) de Branko Milanovic, é capital. Para ele muitos países podem seguir o modelo chinês de capitalismo, que ele chama de capitalismo político, por oposição ao capitalismo meritocrático liberal dos americanos e europeus, simplesmente porque o modelo chinês dá conta do recado de tirar gente da pobreza, aparentemente, mais rápido.

Se o capitalismo não tem rivais, a pergunta que faço é: como salvar o mundo da pandemia de tolices que caracteriza o mundo contemporâneo?

Para os fanáticos pela ideia de “novo normal”, diria que a normalidade da geopolítica daqui pra frente será ter um novo ator capaz de mandar os EUA calarem a boca, como os soviéticos faziam no passado.

Não se trata de desprezar a democracia, mas sim de lembrar a ela que a China pode vir a provar que para produzir riqueza não se faz necessário que as pessoas votem nos seus líderes ou tenham múltiplos partidos.

E não se prova a falsidade desta hipótese apenas evocando argumentos deontológicos (isto é, argumentos que lidam com o modo como as coisas deveriam ser eticamente e não como elas de fato são).

As pessoas negociam o direito ao voto se sentirem que outro modo de organizar a política pode melhorar a vida delas. O equívoco comum nas elites das democracias ocidentais é que todo mundo vive numa Dinamarca imaginária.

A China está tirando sua população de uma miséria ancestral na velocidade da luz. E os chineses sabem que não vivem na Dinamarca. Permanecem lúcidos, sabendo o preço das coisas e sem tolices.

Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.

domingo, julho 12, 2020

Sobre aqueles que não mudaram - LEANDRO KARNAL

ESTADÃO - 12/07

Mesmo ante milhares de mortos, há os que insistem que a covid-19 não foi nada, apenas histeria


Opinar é pensar de improviso, baseado em dados por vezes escassos, ora abundantes. Sei algo sobre um assunto, penso (quando o faço) e emito uma sentença sobre aquilo. Isso é minha opinião, ou seja, isso é o que acho verdade diante de algo sobre o qual sei pouco ou mais do que nada.

Mudar de opinião é sinal ambíguo. Pode ser símbolo de quem não tem firmeza ou convicções. Jô Soares desenvolveu, décadas atrás, uma personagem maravilhosa que era a encarnação desse tipo: Múcio. Para quem não se lembra, era daqueles que não querem desagradar a ninguém, logo... concordava com tudo o que lhe diziam. O quadro sempre se passava diante de um diálogo em que opiniões divergentes se cruzavam. De um lado, alguém dizia: vinho tinto, definitivamente! Do outro, a réplica vinha: melhor o branco, sempre! Passando despercebido, Múcio era sempre chamado para funcionar como um fiel da balança e asseverar com quem estava a razão. Pobre coitado! Começava ouvindo os argumentos do defensor dos tintos, que falava sobre taninos, corpo, robustez, inigualável para carnes. Ao fim, concordava com aquilo: “Sim! Tintos, claro. Tintos”. E, quando ameaçava retomar sua marcha, era segurado pelo colarinho pelo outro lado, que, então, lhe explicava o valor de um branco, seu frescor, leveza, acompanhamento inigualável para peixes e pratos suaves. Ao fim da peroração, anuía: “Claro, claro, brancos são superiores!”. Irritando ambos os lados, pressionado para se decidir, buscava o consenso: “Tomemos rosé”.

Na outra ponta de Múcio, está o cabeça-dura, o teimoso. Gente que, diante de evidências concretas, se apega a sua opinião já pronta. Não cede, não muda. Há quem louve seres assim, e chamam a dureza de resolução ou firmeza. De fato, há quem por teimosia tenha ganhado guerras ou acertado na loteria. Mas, para cada vitorioso dessa cepa, há milhões de exemplos de gente chata e recalcada apenas, disposta a morrer em navio com casco furado, jurando que aquilo pode e será consertado com um pouco de breu e de obstinação.

Vivemos a era da opinião. Redes sociais ao alcance de nossos dedos fazem com que eu queira opinar sobre tudo e todos. Sobre a pandemia que nos assolou, não foi diferente. Cansamos de ver Múcios querendo agradar à – olhem a ironia – opinião pública, trocando de convicção sobre o que fazer e como fazer com a frequência com que passamos álcool em gel nas mãos. Ao mesmo tempo, lá estão os que, diante de curvas exponenciais, dados sobre falência de sistemas de saúde e colapso de sistemas funerários, diante de corpos padecendo e milhares de outros sem vida, insistiam que a covid-19 não foi nada, apenas histeria, tempestade em copo d’água.

Não estou demonizando a nossa capacidade de opinar, tampouco reduzindo o mundo a dois tipos de pessoa: Múcios e anti-Múcios.

Porém, argumento que o bom senso nos impele a mudar diante das evidências, que isso é sinal de inteligência. Múcio era carente e apenas desejava se livrar de enrascadas, de falsas diatribes. O acordo, contudo, era, para ele, sobrevivência emocional, não política pública. Anti-Múcios têm, no geral, zero de inteligência emocional e, igualmente, ausência de sabedoria prática.

No começo das notícias do coronavírus, tudo parecia longe e distante, talvez fosse contido ali mesmo na China. Depois, novidades vieram de contaminados em países vizinhos. Tudo bem pensar que estivéssemos sãos e salvos. O vírus já estava na Califórnia nessa época, mas ninguém sabia. Ele então tomou de assalto a Europa e, de lá, importamos o problema. Um caso em São Paulo e foi curado. Problema menor. Eu escrevi um texto bem mais otimista antes de março de 2020. Depois outro, e mais outro, a primeira morte. As evidências estavam ali. Chegamos ao patamar de milhares de mortes por dia. Em uma semana, pereciam mais pessoas da nova doença do que de gripe comum em um ano todo. Só os EUA perderam um, depois dois Vietnãs de americanos.

Mesmo diante disso tudo, houve aqueles que não mudaram. Aqueles que continuaram sua vida, praguejando. Aqueles que não se abalaram. Mantiveram sua opinião sobre o vírus, sobre a ciência, sobre a economia, sobre a política. Diante dessas pessoas, aqueles que não mudaram, escrevo hoje pensando se existe um jeito de convencer quem não se abre a argumentos. Boa semana para 
todos.

As crianças na pandemia - ROSELY SAYÃO

ESTADÃO - 12/07

Diariamente lemos, ouvimos, falamos, assistimos a reportagens e trocamos ideias a respeito da doença provocada pelo covid-19, da gravidade dela e da morte


Nunca a morte – bem como a ideia dela – esteve tão em evidência para nós quanto nestes tempos de pandemia. Diariamente lemos, ouvimos, falamos, assistimos a reportagens e trocamos ideias a respeito da doença provocada pelo covid-19, da gravidade dela e da morte.

Sofrimento e morte: eis os temas que têm ocupado lugar privilegiado em nossos pensamentos. Muitos perderam pessoas próximas, com quem tinham laços de parentesco ou de vínculo de afeto. O sofrimento decorrente dessas perdas tem sido muito intenso e o luto, nada fácil. Afinal, quase todos foram privados do funeral e do enterro, rituais que ajudam a organizar o luto das pessoas. Mesmo quem não perdeu alguém conhecido ou próximo sofre por empatia.

Já lemos opiniões e análises de que as notícias sobre o número de infectados e mortes poderia desumanizar a dor da perda de tantos brasileiros, já que se as informações acabam se transformando em números e estatísticas. Entretanto, nossa humanidade não permite que ignoremos por completo o fato de que o sofrimento, a angústia, a ansiedade e o medo, entre outros, nos rondam neste período de pandemia e não há vacina tampouco tratamento efetivo para a doença.

Nesse panorama, é importante perguntar: como ficam as crianças e os adolescentes nesse contexto? Vale lembrar que todos eles estão com acesso a todas as informações do mundo adulto. Como será que entendem e elaboram essas questões? Como a ideia de morte é percebida? Como responder às perguntas que nos fazem?

Primeiramente, é preciso lembrar que a ideia da morte varia de acordo com o estágio de desenvolvimento da criança, bem como com as experiências já vivenciadas. Por exemplo: uma criança de 4 anos pode não entender a morte no seu real significado, e outra, da mesma idade e mesmo estágio de desenvolvimento, por viver em locais de extrema violência, pode ter um entendimento mais pleno da finitude humana.

Vamos lembrar que a aceitação da morte é difícil até para adultos e que, a partir dessa ideia, as crianças passaram a ser poupadas da ideia da morte, como se isso fosse possível! Muitas famílias não contam aos filhos pequenos sobre a morte de um parente próximo e até criam mentiras para explicar a ausência das pessoas que morreram. Em vez de dizer, por exemplo, “o vovô morreu”, dizem: “o vovô viajou”. No geral, devemos sempre respeitar a criança e dizer-lhe a verdade. Ocultar a morte para evitar sofrimento não ajuda em nada: a criança percebe que há pessoas tristes ao redor e a relação de confiança sofre, então, uma quebra.

Dizer a verdade à criança a respeito da morte pode sofrer variações de acordo com a idade dela. Para as que estão na primeira infância pode ser útil recorrer a alguns mitos. Por exemplo: “vovô morreu e agora está no céu, com as estrelas”, uma fantasia que ajuda a criança a elaborar o conceito.

Crianças maiores já entendem o significado da morte quase como um adulto: “É o fim”, me disse uma garota de 10 anos. E quando essa compreensão chega, em geral chega acompanhada de medo – medo de perder os pais, medo da morte.

Acolher amorosamente esse medo, sem falsas promessas, é o melhor que podemos ofertar. Não podemos garantir que ela não morrerá, mas podemos aquietar o quanto possível essa angústia: “Irei sempre cuidar de você e de sua saúde, da minha também”. Isso dá segurança à criança. E quando eles perguntam o que não sabemos? “Por que as pessoas morrem?”é uma curiosidade frequente. Responder que é “porque toda a vida acaba” é um modo delicado de apontar a finitude da vida.

E os adolescentes? Com eles, a questão é mais complexa porque, em tempos de pandemia, de isolamento físico, de quebra do acesso ao mundo adulto que eles vinham conquistando, a ideia de morte pode acrescentar à ansiedade e à tristeza deles um fator perigoso. Muitos amigos psiquiatras têm relatado a procura de pais de adolescentes que têm falado de ideias suicidas. Nesses casos, é preciso procurar rapidamente um profissional.

No geral, devemos incentivar no adolescente o amor à vida e o cuidado com ela, em qualquer situação, e nunca o desafio da morte.

É PSICÓLOGA

Cloroquina é inútil contra o desgoverno - ROLF KUNTZ

O Estado de S.Paulo - 12/07

Desprezando o direito à vida, Bolsonaro busca reeleição sem nunca ter governado


Não tentem curar despreparo, ignorância, incompetência ou irresponsabilidade com cloroquina. Não vai dar certo, como já foi comprovado no Brasil e nos Estados Unidos. Consumidor, defensor e propagandista desse medicamento, o presidente Jair Bolsonaro já testou positivo para o novo coronavírus, mas continuou testando negativo para as funções de governo. No meio de uma pandemia, o Brasil completou na última sexta-feira quase dois meses sem titular no Ministério da Saúde. No mesmo dia, um novo ministro da Educação, o quarto em pouco mais de um ano meio, poderia ser anunciado. Na véspera, numa de suas lives, o presidente havia tentado mostrar otimismo. “A economia vai pegar”, disse ele, atribuindo a profecia ao ministro da Economia. “Se a economia não pegar, fica complicado. Mas acredito no Paulo Guedes”, acrescentou. Acredita mesmo?

Confiando no ministro, mas nem tanto, na mesma live o presidente voltou a cobrar a reabertura mais pronta das atividades. “Há sinais de retomada na economia, mas precisamos de governadores e prefeitos que comecem a abrir o comércio, caso contrário as consequências vão ser danosas para todo mundo no Brasil”, disse Bolsonaro. A insistência contrasta com seu desinteresse, exibido até recentemente, pelos assuntos econômicos. Como explicar a mudança? Uma súbita iluminação?

Bolsonaro completou seu primeiro ano de mandato com a economia em pior estado do que em 2018. O produto interno bruto (PIB) cresceu apenas 1,1% em 2019, menos que em qualquer dos dois anos precedentes.

No começo deste ano o desemprego, superior a 11%, era pouco menor que o de um ano antes e mais que o dobro da média (5,2%) da OCDE, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. A indústria, depois de alguma retomada em 2017 e 2018, emperrou de novo. Entre novembro de 2019 e março de 2020, a produção industrial de cada mês foi sempre menor que a de um ano antes.

O presidente nunca se mostrou preocupado com esses números – até a pandemia bater no Brasil e começar a discussão sobre como enfrentar os novos problemas. A gravidade da crise sanitária foi reconhecida com algum atraso pelo Executivo federal, mas em seguida houve ações importantes. A política de saúde foi reforçada com mais dinheiro. Além disso, medidas emergenciais foram anunciadas para ajudar empresas pequenas e médias, defender o emprego e socorrer famílias mais vulneráveis. O governo cuidou de realçar os próprios feitos, como se resultassem de iniciativas excepcionais. O autoelogio, porém, foi um tanto exagerado.

As ações anticrise foram positivas, sem dúvida, mas muito parecidas, em aspectos essenciais, com as implantadas em dezenas de países. Dados da OCDE divulgados mostram amplo recurso a medidas fiscais e monetárias de apoio à atividade econômica, ao emprego e às populações mais necessitadas. Com algumas variações, políticas desse tipo foram lançadas em países tão diferentes quanto Noruega, Alemanha, Tanzânia, Costa Rica, Estados Unidos, Indonésia, Argentina, França, Japão, Vietnã, Coreia do Sul, Uganda, República Dominicana, Colômbia, Peru, Paraguai, Malásia, Austrália, Tunísia, México, Índia, Israel e Nova Zelândia.

Com ou sem Bolsonaro teria prevalecido orientação semelhante. Isso em nada reduz o mérito das políticas. Simplesmente as situa numa perspectiva realista. Mas, ainda assim, suas ações têm algumas características particulares.

Em primeiro lugar, é evidente o destaque dado por Bolsonaro a seus objetivos eleitorais. O Brasil teve, nos últimos meses, um presidente em guerra contra os governadores João Doria, de São Paulo, e Wilson Witzel, do Rio de Janeiro, tratados como prováveis adversários na eleição presidencial de 2022. A preocupação política explica também, de modo muito claro, o empenho de Bolsonaro em apressar a reabertura do maior número possível de atividades.

Em segundo lugar, é notória a prevalência dos objetivos políticos sobre as preocupações com a segurança dos cidadãos. Mesmo depois do teste positivo, Bolsonaro continuou minimizando o perigo do coronavírus e, mais que isso, menosprezando o direito à vida. Ele age como se alguns milhares de mortos a mais fossem um preço razoável para apressar a retomada econômica e facilitar sua reeleição. Não se distingue, quanto a isso, de seu líder Donald Trump. Em Tulsa, Oklahoma, mais de 200 casos diários de covid-19 foram registrados duas semanas depois do famigerado comício do presidente americano. Eram menos de 100 por dia antes do evento, segundo o governo local.

Qualquer presidente, dirão boas almas, tem o direito de cuidar de seus objetivos políticos, incluída a reeleição. É verdade. Mas no começo do segundo ano de mandato? E sem ter governado? Desde janeiro de 2019 Bolsonaro cuidou de assuntos como posse de armas, atrapalhou a discussão dos grandes temas, como a reforma da Previdência, deu prioridade a interesses pessoais e familiares. Além disso, tem prestigiado manifestações golpistas. Não se pode, enfim, acusá-lo de ter governado mal. De governo ele jamais cuidou.

Entre dois vazios - BOLÍVAR LAMOUNIER

O Estado de S.Paulo - 12/07

O presidente quer extravasar impulsos narcisistas que não consegue controlar?


Na tradição liberal, a atividade política é entendida como a arte de equacionar os problemas da sociedade com o mínimo possível de confronto e violência. Uma arte que pressupõe o uso do poder do Estado, mas de forma comedida, guiada por um sentimento de proporção.

Em seu primeiro ano de governo, Jair Bolsonaro ignorou solenemente esse ensinamento fundamental da história política ocidental. Orientado, segundo se diz, pelo sábio da Virgínia, ele adotou uma linguagem radical, como se as urnas lhe houvessem conferido autoridade para mudar as próprias bases da sociedade e do sistema político. Como se a maioria eleitoral lhe tivesse outorgado autoridade para fazer o que lhe aprouvesse. Para refazer os fundamentos da economia e liquidar o que denominou “velha política”. Não hesitaria sequer em intervir no campo dos valores e comportamentos, implantando uma nova moralidade.

Por mais críticos que sejamos das estruturas e práticas públicas vigentes em nosso país, salta aos olhos que o bolsonarismo da primeira fase não se deixava pautar por uma perspectiva de comedimento e proporção. Em vez de se acomodar à distribuição de forças e objetivos corporificada na Constituição e nas leis, não disfarçava sua preferência por uma linha de terra arrasada, bem próxima do que o filósofo Bernard Yack denominou o mito da revolução total.

Nem de longe advogo uma opção pelo status quo. Sabemos todos que o Estado brasileiro está desde há muito corroído por interesses patrimonialistas e corporativistas, e pela corrupção sistêmica. Que nossa economia está travada, desprovida de dinamismo, excessivamente fechada e, portanto, incapaz de superar a chamada “armadilha do crescimento médio”. Que nossas desigualdades sociais, em si inaceitáveis, são diariamente reforçadas por um sistema educacional calamitoso. Que nosso sistema político é manifestamente disfuncional. Não há como ignorar ou subestimar a gravidade de tais desafios, mas o imperativo de superá-los terá de ser compatibilizado com o regime democrático, cujos pilares são, como antes argumentei, o comedimento e um sentimento de proporção.

É óbvio que o projeto inicial do bolsonarismo – se assim pode ser denominado – não poderia dar certo. Nenhuma sociedade, e em particular as regidas por regimes democráticos, se deixa dobrar com a facilidade que ele pressuponha. Ele haveria de esbarrar, como esbarrou, na diversidade corporificada nas instituições do Estado e na miríade de grupos e associações existentes no País. Se tais restrições em alguma medida sempre se impõem, mais dramaticamente ainda se impuseram a partir do momento em que o Brasil e o mundo inteiro sofreram o tremendo impacto da covid-19. Incapaz de levar avante o esforço (sem dúvida, louvável) de ajuste nas contas públicas, o governo viu-se forçado a trilhar o caminho inverso, destinando cifras consideráveis ao combate à doença.

Foi assim, forçado pelos equívocos intrínsecos de sua fantasia inicial e pela chegada da pandemia, que o presidente Bolsonaro se viu obrigado a retroceder. Obrigado não só a desistir do combate ao que vagamente denominava “velha política”, mas a trazer uma parte concreta dela – o chamado Centrão – para dentro do Estado. Não só a desistir do combate à corrupção, mas a aliar-se aos que se empenhavam em deter seu ímpeto, levando de roldão os avanços logrados pela Lava Jato. A opção que lhe restou para conservar certa similitude com o personagem fantasioso que inicialmente quis encarnar foi assumir uma conduta irresponsável em relação à pandemia, solapando abertamente a ação dos agentes médicos que lhe fazem frente nos níveis estadual e municipal.

Quanto ao projeto inicial, o passar do tempo não deixa dúvidas. Era um vazio, um oco total. Um buraco negro que só poderia perdurar engolindo toda a luz que em volta dele restasse. Seu fracasso nos arremessou de volta não ao ponto onde nos encontrávamos, uma vez que, bem ou mal, tínhamos uma agenda de reformas razoavelmente bem delineada. Arremessou-nos a um ponto anterior, a uma molécula nefasta na qual o populismo e a irresponsabilidade do presidente se sobrepuseram ao desafio das reformas que cedo ou tarde teremos de enfrentar.

Sabemos todos que, enquanto não dispusermos de um remédio ou de uma vacina eficaz, milhares de vidas continuarão a ser diariamente ceifadas. Que, por ora, o que podemos fazer é observar estritamente o distanciamento e o uso de máscaras. Isolado em suas crenças, na contramão do resto do mundo, Bolsonaro insiste em fazer o oposto: sai à rua sem máscara, aglomera-se com correligionários e chega mesmo a abraçar crianças e bebês. Cria esse espetáculo para propagandear o remédio milagroso que julga ter descoberto. Com que objetivo? Essa pergunta não parece comportar uma resposta racional. Pretende manter-se na crista da onda, de olhos fitos na eleição de 2022? Despreparado para a vida pública e para o cargo que ocupa, quer extravasar impulsos narcisistas que não consegue controlar?

Só Deus sabe.

Cientista político, é sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências

Bolsonaro e o sonho americano - BRUNO BOGHOSSIAN

Folha de S. Paulo - 12/07

Pandemia pode isolar o Brasil e deixar mais distante o ingênuo sonho americano do Planalto


Há um mês, Donald Trump citou o Brasil como exemplo negativo na pandemia. O americano errou tudo o que podia no combate ao coronavírus, mas disse que o país governado por Jair Bolsonaro enfrentava “um momento bem difícil” devido às suas escolhas durante a crise.

A reação do brasileiro ilustrou perfeitamente a postura de um país que escolheu a bajulação como pilar de sua política externa. Bolsonaro mandou um abraço para Trump, afirmou que gostaria de aprofundar as relações com os EUA e disse torcer pela reeleição do colega.

O Planalto recebeu, nas últimas semanas, algumas amostras dos efeitos de sua ingenuidade. O impacto econômico da pandemia, as barbeiragens do governo brasileiro na crise e sua negligência ambiental tornaram a subserviência aos americanos uma ferramenta diplomática inútil.

A torcida de Bolsonaro pelo sucesso de Trump nas urnas em novembro, que já era um erro político, passou a ser uma aposta de risco. Embora o cenário continue incerto, o democrata Joe Biden abriu vantagem nas pesquisas.

Seu partido, que é maioria na Câmara, já deu recados amargos ao brasileiro.

Em junho, o comitê tributário daquela casa, dominado pelos democratas, assinou uma carta em que dizia se opor a “qualquer tipo de acordo comercial com o governo Bolsonaro” devido a seu desrespeito aos direitos humanos e ao meio ambiente. Se o partido levar a Casa Branca, o sonho americano do presidente brasileiro ficará distante.

Mesmo uma vitória de Trump não garante um reforço nessa parceria. Ao mirar a retomada pós-pandemia, o americano retomou seu tom nacionalista, que pode restringir o acesso brasileiro à economia americana.

Em entrevista na última semana, ele disse que “terras estrangeiras roubaram nossos empregos com acordos comerciais horríveis”.

O Brasil pode sair da crise mais isolado. A União Europeia já freou negociações com o Brasil. Até o lunático Rodrigo Duterte, das Filipinas, tenta se distanciar de Bolsonaro.

sábado, julho 11, 2020

Bolsonaro arrasta tornozeleira junto com Queiroz - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 11/07


Imagem: Reprodução/Instagram

Quando escreveu sobre seu sonho de ir embora para Pasárgada, onde era amigo do Rei, Manoel Bandeira imaginou que traduzia o desejo de todos. Não poderia supor que, sob Jair Bolsonaro, a proximidade com o Rei viraria suplício. Amigo do monarca há mais de três décadas, Fabrício Queiroz vive numa anti-Pasárgada.

Queiroz teve de trocar todos os atrativos da terra desejada pelo poeta —ginástica, bicicleta, burro brabo, pau-de-sebo, banho de mar, beira de rio e até a mulher desejada na cama escolhida— por um apetrecho sem nenhum glamour: a tornozeleira eletrônica.

A Pasárgada comandada por Bolsonaro virou uma monarquia sui generis. Nela, reina o medo. Seminus, o Rei e o príncipe Zero Um temem a nudez que seria provocada por uma delação. É esse medo que atenua o drama de Queiroz.

O consolo do amigo tóxico, transferido de uma cela em Bangu 8 para a reclusão domiciliar, é a certeza de nunca estar realmente sozinho. Ainda que sua mulher Márcia não se juntasse a ele, Queiroz estaria com Deus, consigo mesmo e com as sombras de Jair e Flávio Bolsonaro. Dá até para jogar pôquer.

Juridicamente, a liminar que retirou Queiroz da cadeia e ofereceu à mulher dele a opção de interromper a fuga retirou momentaneamente do baralho a carta da delação premiada. Politicamente, o despacho redentor do presidente do Superior Tribunal de Justiça, João Otávio Noronha, acorrentou a Presidência de Bolsonaro na língua de Queiroz.

É como se o presidente arrastasse a tornozeleira junto com o amigo, recitando seu novo slogan: "Silêncio acima de tudo, Centrão acima de todos." Na Pasárgada de Bolsonaro, a perversão inverte posições. O Rei está sujeito à condição humana. Cheio de medo, é solidário nos bastidores.

O risco de delação faz de Queiroz o soberano, não o súdito. Seu silêncio é o privilégio ao contrário. O Rei recebe a graça de não ser desnudado, se for um amigo zeloso.

sexta-feira, julho 10, 2020

Bolsonaro não quer compaixão - RUY CASTRO

Folha de S. Paulo - 10/07

Não será surpresa se, ao se decretar 'recuperado', ele zombar dos que lhe desejaram saúde


Alguns leitores perceberam que há meses não me refiro ao ocupante do Planalto como “Presidente Jair Bolsonaro”. Trato-o como Jair Bolsonaro e dispenso-me do “Sr.” —afinal, ele não se comporta como tal. Basta-me ser compulsoriamente presidido por ele, o que já é suficiente para asco, e isso não implica ter votado ou não em seu adversário —porque há 31 anos não voto em ninguém. A última vez foi no primeiro turno da eleição presidencial de 1989, e meu candidato não chegou ao segundo turno. Antes que me perguntem, informo que não foi o Enéas, embora, se eleito, ele não seria tão nefasto quanto o elemento que hoje dita a destruição do Brasil.

Da mesma forma, ao me referir aos filhos de Bolsonaro, não me ocorre fazer como alguns colegas e tratar um deles, Carlos, por “Carlucho”. É um apelido benigno demais para indivíduo tão perigoso —o mais perigoso dos três que, em nome do pai, controlam o ministério, inspiram a operação das fake news, conspiram contra as instituições, falam grosso com o Exército e comandam o país a partir do porão. O nome “Carlucho” sugere algo vindo da infância e é difícil imaginar os filhos de Bolsonaro tendo infância.

A suposta contaminação de Bolsonaro pela Covid provocou manifestações de “direito à vida” e “pronto restabelecimento” até por seus críticos —mesmo que, no passado, ele tenha expelido votos de infarto e câncer para seus adversários políticos. E que, no próprio dia em que se declarou infectado, tenha debochado da doença, induzido milhões de pessoas a consumir um remédio inapropriado e, num ato de estudada crueldade, negado água potável e proteção às populações indígenas.

Bolsonaro é o primeiro a não querer despertar compaixão. Para ele, assim como o uso da máscara, isso deve ser “coisa de viado”.
Não será surpresa se, ao se decretar “recuperado”, Bolsonaro zombar dos que lhe desejaram saúde.

Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

Casal Queiroz: "amor à primeira vista" de Bolsonaro é hétero. E heterodoxo! - REINALDO AZEVEDO

UOL - 10/07

João Otávio de Noronha, presidente do STJ: ministro concede domiciliar a foragida para que ela possa cuidar do marido. Isso é que é ser um defensor da família tradicional!



Não consta que o presidente do STJ (Superior Tribunal de Justiça), João Otávio de Noronha, seja "terrivelmente evangélico", uma condição que o presidente Jair Bolsonaro andou anunciando como requisito para indicar um nome para o Supremo. Pode não ser necessário. Talvez baste ser terrivelmente..., bem, como dizer?, "terrivelmente heterodoxo".

O presidente já definiu sua relação com o ministro como "amor à primeira vista" — hétero, é claro! Foi o doutor quem decidiu, em passado recente, que o "Mito" não era obrigado a revelar o seu exame para detecção do coronavírus, embora andasse por aí sem máscara... Desta feita, Noronha optou por uma inovação que, a ser mantida, espero que venha, então, a firmar jurisprudência também para pobres e pretos que não sejam amigos do presidente da República.

Explico. No exercício do plantão do STJ, no recesso do Judiciário, Noronha atendeu a pedido da defesa e transferiu Fabrício Queiroz, com prisão preventiva decretada, para a prisão domiciliar. A justificativa é de caráter, vamos dizer, humanitário. Dadas as condições de saúde do preso, que se trata de um câncer, e em face da pandemia de coronavírus, mandou o primeiro-amigo do presidente e das milícias para casa. Até aí, vá lá, dá para condescender. Mas o doutor foi mais longe: também concedeu o benefício da prisão domiciliar para Márcia Aguiar, mulher de Queiroz. Ocorre que ela é uma foragida.

Na noite desta quinta, antes de saber a que fundamentação apelara Noronha para tomar a decisão, brinquei no programa "O É da Coisa", da BandNews FM: "Que é? O Fabrício está indo para a domiciliar porque está doente. E a mulher? É para cuidar dele?"

No Brasil destes tempos, a verdade quase sempre está com a ironia, com o humor, com a piada. Sim, a razão alegada para relaxar o regime de prisão de uma foragida foi exatamente esta: "por se presumir que sua presença ao lado dele [do marido] seja recomendável para lhe dispensar as atenções necessárias".

Ministro fofo! Defende o amor, a tradição e a família.

A prova de que Queiroz não precisa da mulher para obter os devidos cuidados está numa mensagem publicada nas redes por uma de suas filhas, Nathalia:
"Estou indo te buscar, meu pai! E você vai ter o abraço de todos os seus filhos que estão cheios de saudades e tanto te amam e sabe o homem incrível que você é!".
Para Noronha, pelo visto, não basta!

HETERODOXIA
É claro que estamos diante de uma, digamos, heterodoxia, para empregar palavra elegante. Creiam: se Noronha tivesse posto Fabrício em liberdade, suspendendo a preventiva de ambos, a decisão seria menos exótica. Afinal, o ministro poderia discordar das razões da preventiva -- embora eu ache que os requisitos estão presentes.

Se é admissível a razão humanitária para enviar Fabrício para a domiciliar, estender o benefício à mulher, uma foragida, sob o pretexto de que tem de cuidar do marido doente, é puro exercício do direito criativo. Se fugir é uma das alternativas que tem alguém com prisão decretada — e, uma vez capturado, não vejo por que se deva agravar a sua condição —, é certo que não faz sentido conceder um benefício a quem se negou a cumprir uma determinação judicial. Não se entregar, em si, não é crime, e não há por que haver punição adicional. Premiar a fuga é de trincar catedrais!

A propósito: quantos são os pobres de tão pretos e pretos de tão pobres no Brasil que, neste momento, estão em prisão preventiva, tendo em casa filhos, mães e mulheres doentes, em situação de necessidade e que, à diferença de Fabrício ou de Márcia, não são investigados pela Polícia nem foragidos?

CONDIÇÕES
Noronha, o amor à primeira vista de Bolsonaro, impôs algumas condições para a prisão domiciliar de Fabrício e mulher:
- uso de tornozeleira eletrônica;
- não manter contato com investigados, exceto pessoas da família;
- não usar telefone e entregar aparelhos de celular, laptops e tablets.

TAPETÃO
É a segunda decisão favorável dada pelos tapetões da Justiça ao, digamos, grupo que reúne Flávio e Fabrício. No último dia 25, a 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio aceitou, por dois votos a um, pedido de habeas corpus de Flávio e concedeu a ele foro especial.

Com a decisão, o processo que investiga a "rachadinha" no gabinete do agora senador migrou das mãos do juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal, para o Órgão Especial do TJ, colegiado composto por 25 desembargadores.

A decisão contraria frontalmente jurisprudência do Supremo. Entendo que não há possibilidade de o caso não voltar para as mãos de Itabaiana.

ENCERRO
A decisão de Noronha traz um outro elemento oculto a indicar atrasos diversos e combinados. O ministro nem se ateve a Márcia Aguiar como sujeito de direitos e deveres. Ela é um apêndice do marido. Parece que, não fosse a condição de saúde dele, que o ministro entende passível de domiciliar, ela não obteria o benefício.

Nessa perspectiva, até como ser à margem da lei, a mulher há de ser tratada como apêndice e cuidadora do marido.

E Bolsonaro? Vamos ver. Ele só descobriu a democracia como um valor depois que Fabrício foi preso. Sentiu a batata assar, como se diz em Dois Córregos. Se achar que o amigão e o filho vão se safar de uma punição, talvez seu apreço pelas instituições volte a cair.

Elite empresarial aperta Bolsonaro para conter descaso ambiental - BRUNO BOGHOSSIAN

FOLHA DE SP - 10/07

Produtores viram a boiada passar por 18 meses e agora cobram preço alto do governo


Na campanha de 2018, o empresariado deu um cheque em branco a Jair Bolsonaro. Durante um encontro com presidenciáveis daquele ano, um representante do lobby da construção civil reclamou que as leis de preservação da natureza eram "uma parafernália". Sob aplausos, o candidato prometeu "vencer os problemas ambientais" se fosse eleito.

Nenhum patrão pode se dizer surpreso com as ações do governo nessa área. Os produtores sabiam que a devastação prejudicaria a reputação do Brasil e faria mal aos negócios. Ainda assim, eles preferiram apostar num presidente que queria afrouxar restrições e carregava um ministro ultraliberal como amuleto.

Um ano e meio depois, essa parceria passou a ameaçar o caixa das empresas. Em junho, investidores que administram mais de R$ 20 trilhões avisaram que podem retirar seus ativos do país se não houver medidas sérias contra o desmatamento.

Apesar do alerta, auxiliares de Bolsonaro fizeram pouco caso. Em vez de trabalhar contra a destruição, decidiram tratar o problema como uma questão de marketing. Culparam a imprensa e planejaram gastar dinheiro em propaganda no exterior.

O governo só se mexeu depois que empresários de peso emparedaram publicamente o Palácio do Planalto. Numa carta ao vice-presidente, Hamilton Mourão, 38 executivos cobraram medidas concretas para frear o desmatamento e as queimadas.

No grupo estão integrantes do agronegócio, de mineradoras e de outros setores. Alguns aplaudiram a eleição de Bolsonaro e sua política ambiental. Agora, dizem ter dificuldade de entrar em mercados estrangeiros por causa da devastação.

Para responder, o governo anunciou a proibição de queimadas por 120 dias. Também pediu dinheiro a investidores para ampliar a preservação, embora o Ministério do Meio Ambiente tenha destruído um fundo bilionário que tinha esse propósito.

A elite empresarial viu a boiada passar por 18 meses, até perceber o custo do descaso. Agora, o preço para Bolsonaro também pode ser alto.

Bruno Boghossian
Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).

Um banqueiro caminha na esteira do Brasil - VINICIUS TORRES FREIRE

Folha de S. Paulo - 10/07

País precisa de governança e trocar gasto ruim por saúde e investimento, diz executivo



A situação é meio desesperadora, mas o país vai ter uma folga de um ano para se organizar, diz o ex-presidente de um grande banco. A contragosto, fala por quarenta minutos enquanto caminha na esteira. Não quer dar entrevista porque não quer se meter na confusão em que está o país.

Que “folga” é essa? A taxa básica de juros deve ficar negativa por uns dois anos, pois a economia está deprimida e as taxas mundiais devem ajudar, também negativas, isso se o país não fizer besteira. O banqueiro refere-se ao fato de que a Selic, definida periodicamente pelo Banco Central, está menor do que a inflação e assim deve ficar pelo menos até fins 2021.

Que “besteira” o país faria? O governo gastar mais. Só isso, basta manter o “teto”? Não, esse é o mínimo, o fundamental (evitar o gasto), para que o país não comece a explodir no ano que vem. O detonador da explosão seria o sinal de que a dívida pública vai continuar a crescer sem limite, o que provocaria alta de juros, do dólar e desorganização geral das expectativas.

Para o banqueiro, algum aumento de imposto será inevitável, no mínimo para financiar algum programa de renda básica, pois “muita gente” vai ficar na pobreza e sem emprego por “muito tempo”. Mas o aumento de imposto financiaria então despesa extra, que está para bater no “teto” constitucional. Não é contraditório? O banqueiro diz então que se pode fazer uma concessão provisória em 2021, como no caso do estado de calamidade deste ano, desde que exista um programa profundo de ajuste fiscal.

No mais é “reforma, reforma, reforma”, rapidamente. Isto é, mudança nos impostos “inacreditáveis”, nas leis de falência e garantias e na regulação do investimento, além de redução “pesada” de gastos com servidores e redução e congelamento dos reajustes da previdência, também nos estados e municípios.

É preciso “trocar o gasto” para o governo investir mais, pois o setor privado sozinho não vai fazer muita obra necessária de infraestrutura, afirma, e porque “está ainda mais claro” que é preciso melhorar o sistema de saúde, evitar destruição ambiental e dinheiro para pesquisa científica e tecnológica. Haveria um “monte de gasto horrorosamente ineficiente” em saúde e educação, mas “talvez” ainda falte mesmo dinheiro.

Quem tocaria tal programa? “Esse é o problema”, diz o banqueiro, para quem o governo não tem capacidade executiva, política ou de coordenação de expectativas. Rodrigo Maia, presidente da Câmara, “fazia um pouco esse papel, mas não podia tudo, não é presidente”, perdeu força e não pode ser reeleito.

“Melhor não ter impeachment, impeachment nunca é bom, confusão política desse nível é sinal de falta de maturidade e civilidade no país”, mas as “investigações” e a “popularidade” é que definiriam o destino de Jair Bolsonaro. Acha que não acontece nada neste ano, por causa da epidemia, das eleições e da “indefinição dos políticos” de como agir em relação a Bolsonaro.

Se houver processo de impeachment, 2021 estaria “perdido” e sabe-se lá o que pode vir daí. O que fazer, então? O banqueiro diz que não sabe, que não é político. Mas está óbvio, diz, que Bolsonaro precisa mudar “180 graus” e é preciso haver um acordo geral para montar uma “governança” para o país.

E os bancos na crise? Estão “sólidos” e “ajudam no que podem”. Mas bancos emprestam e empresários investem quando acham que o país vai crescer e que não vão ser “espoliados”, “é simples assim, o resto é fantasia".

Esperando o japonês da Federal - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 10/07

Bolsonaro poderá encrencar-se se ministro conseguir emplacar sua tese


O ministro da Justiça, André Mendonça, diz que pedirá a abertura de um inquérito para que eu seja investigado por violação ao artigo 26 da velha LSN dos tempos dos militares, que imaginávamos já ter ido para a reserva.

Não sei bem o que há a investigar. Acreditava que o texto falasse por si só. Mas vou colaborar, prestando esclarecimentos. O artigo foi escrito na manhã do dia 7/7, num processador Word. Eu me encontrava sobre o deck da piscina sem nenhuma companhia que não a de uma incontrolável matilha de cães. Ah, o computador era um Dell.

É preciso muita criatividade jurídica para ver na minha coluna original alguma calúnia ou difamação, que é o que possibilitaria o uso do artigo 26. E o ministro Mendonça, sempre cioso de agradar ao patrão, deveria ser mais cauteloso. Se conseguir emplacar sua tese de que desejar a morte de alguém é crime, então seu chefe poderá encrencar-se. Bolsonaro, afinal, torceu pela morte de Dilma, “infartada ou com câncer”, e defendeu o fuzilamento de FHC.

Fui bem mais gentil com o presidente do que ele fora com seus predecessores. Afirmei textualmente que sua vida tem valor e que sua perda seria lamentável. O ponto é que, no consequencialismo (assim como na República, se levássemos seus princípios a sério), seu valor não é maior do que o de qualquer outra vida.

Assim, se estamos convencidos de que as atitudes negacionistas de Jair Bolsonaro dão causa a um excesso de óbitos na pandemia, torcer por seu desaparecimento é não só lógico como ético, na perspectiva consequencialista.

Quando o problema é apresentado de forma abstrata, sem o nome Bolsonaro, como ocorre na literatura dos dilemas morais (“trolleyology”), a maioria das pessoas não pestaneja antes de puxar uma alavanca que sela o destino de uma pessoa para salvar a vida de um número maior de indivíduos. E eu não acionei nenhuma alavanca. Até onde sei, o vírus é indiferente a meus desejos.

Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".

Após cerco a gabinete do ódio, Carlos Bolsonaro avalia se mudar para EUA ou Brasília



Após cerco a gabinete do ódio, Carlos Bolsonaro avalia se mudar para EUA ou Brasília

Ofensiva faz vereador, filho do presidente, anunciar ‘vida nova’

Jussara Soares e Camila Turtelli, O Estado de S.Paulo

10 de julho de 2020 | 05h00




BRASÍLIA - A ofensiva contra o “gabinete do ódio” obrigou a ala ideológica do governo a rever a estratégia de atuação para sobreviver e voltar a influenciar nas decisões do Palácio do Planalto. Diante do cerco imposto por inquéritos do Supremo Tribunal Federal (STF) e, mais recentemente, pela punição do próprio Facebook, o presidente Jair Bolsonaro tem se distanciado dos bolsonaristas mais radicais em uma tentativa de “pacificar para governar”. O movimento, no entanto, desagrada ao filho mais próximo do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), que nesta quinta-feira, 9, expôs a contrariedade no Twitter.

Carlos, o mais influente do clã Bolsonaro nas redes sociais, disse estar vivendo “um novo movimento pessoal”, sem especificar a que se referia. “Aos poucos vou me retirando do que sempre defendi. Creio que possa ter chegado o momento de um novo movimento pessoal. Estou cagando para esse lixo de fake news e demais narrativas. Precisamos viver e nos respeitar”, escreveu.

A publicação ocorreu um dia depois de o Facebook ter removido uma rede com 73 contas falsas ligadas ao presidente, a seus filhos e aliados. A investigação da plataforma indicou o assessor especial da Presidência, Tercio Arnaud Tomaz, como um dos responsáveis por movimentar perfis. Tercio é homem de confiança de Carlos, de quem foi assessor na Câmara de Vereadores no Rio e atuou na campanha eleitoral de Bolsonaro.

Ao lado de José Matheus Salles Gomes e Mateus Matos Diniz, também assessores da Presidência, Tercio integra o “gabinete do ódio”. A existência do núcleo que alimenta a militância digital bolsonarista com um estilo beligerante nas redes sociais foi revelada pelo Estadão em 19 de setembro do ano passado.

O revés envolvendo Tercio foi o estopim para Carlos anunciar o seu afastamento. A interlocutores, ele tem afirmado que está decidido a não concorrer à reeleição para vereador no Rio. E, ao mesmo tempo, estuda a possibilidade de morar no Texas, nos EUA, onde tem amigos. Carlos também não descarta a possibilidade de viver em Brasília para ficar mais perto do pai, embora as recentes divergências sobre os rumos do governo o obriguem a se afastar do Planalto.

“A onda agora está para dizer que as páginas da família Bolsonaro, de assessores que ganham dinheiro público para isso promovem o ódio. (...) Me apontem um texto meu de ódio ou dessas pessoas que estão do meu lado. Apontem uma imagem minha de ódio, no meu Facebook, dos meus filhos. Não tem nada”, disse Bolsonaro, nesta quinta, em sua primeira transmissão ao vivo após a ação do Facebook.

Em tom enigmático, Carlos avisou aos opositores que “surpresas virão”, em outra publicação no Twitter. “Ninguém é insubstituível e jamais seria pedante de me colocar neste patamar! Todos queremos o melhor para o Brasil e que ele vença! Apenas uma escolha pessoal pois todos somos seres humanos! Seguimos! E surpresas virão! Não comemorem, escória”, disse ele.

Bolha. Assessor especial de Assuntos Internacionais da Presidência, o olavista Filipe Martins, por sua vez, tem usado as redes para pedir união à base bolsonarista. “Saiam da bolha em que nos metemos. Sejam persuasivos. Expliquem o que está acontecendo, mostrem o que está em jogo e convençam mais pessoas a lutar ao nosso lado”, apelou Martins, em 28 de junho.

Em conversa com um parlamentar do Centrão, nesta semana, Bolsonaro indicou que seguirá na estratégia de evitar o confronto com outros Poderes. Na noite desta quinta, uma edição extra do Diário Oficial da União trouxe a substituição dos vice-líderes do governo que apostavam no embate por deputados do Centrão. Saíram Carlos Gaguim (DEM-TO), Daniel Silveira (PSL-RJ), José Rocha (PL-BA) e Otoni de Paula (PSC-RJ). No lugar deles entraram Diego Garcia (Podemos-PR), Aloísio Mendes (PSC-MA) e Maurício Dziedricki (PTB-RS), além de Carla Zambelli (PSL-SP). Silveira afirmou que não pretende ficar quieto. “Mas tem momentos que é bom você submergir”, afirmou.

Deve-se rastrear o dinheiro público no ‘gabinete do ódio’ – EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 10/07

Auditoria no Facebook alerta sobre o financiamento de crimes cometidos pelo bolsonarismo na rede social


O inquérito aberto no Supremo sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes, para investigar a origem de fake news e ameaças contra a Corte e seus juízes, sempre preocupou os Bolsonaro. Ao sair do governo, o ex-ministro Sergio Moro disse que o presidente se referiu a esses temores em pressões que fez para interferir na Polícia Federal, o braço operacional nesses inquéritos. A instalação da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito no Congresso sobre o mesmo tema é outro motivo de medo, a ponto de Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) ter tentado, sem sucesso, que o Supremo suspendesse a CPMI.

Não deviam imaginar que o perigo mais imediato estava em uma auditoria interna pedida pelo Facebook a um centro independente de pesquisa no meio digital, com implicações legais, o DRFLab, de Washington, e que levou a rede social a anunciar quarta-feira que estava desmontando extensa malha de 88 páginas e contas controladas pelo entorno do presidente Jair Bolsonaro. Era o “gabinete do ódio”, denunciado no final do ano na CPMI pela deputada Joice Hasselmann, ex-líder do governo no Congresso, ex-aliada próxima dos Bolsonaro.

O estudo encomendado pelo Facebook confirma a denúncia, cita operadores de contas e páginas falsas criadas para reverberar as bandeiras bolsonaristas, a fim de dar a impressão de haver uma militância maior do que a real, e ainda implica, além dos filhos do presidente — um senador, Flávio, um deputado e um vereador, Carlos, de cujos gabinetes saíram operadores do esquema — o próprio Jair Bolsonaro.

Impossível que não soubesse que um assessor direto, Tercio Arnaud Tomaz, é quem dispara, ou disparava, o gatilho, certamente do próprio Palácio do Planalto, contra adversários como Sergio Moro, Wilson Witzel e outros muitos. Além de provavelmente também orquestrar campanhas antidemocráticas e disseminar desinformações sobre a epidemia da Covid-19, um dos assuntos prediletos do presidente. No arrastão feito pela auditoria também vieram parlamentares bolsonaristas.

Fica exposto o uso de dinheiro público na alimentação da rede criminosa, porque há verbas de gabinetes de parlamentares e até do presidente usadas para manter esta máquina em funcionamento. O levantamento deste desvio de dinheiro do contribuinte deve ser mais uma tarefa nesta fase de investigação sobre os Bolsonaro e aliados.

Uma característica do bolsonarismo, como de outros agrupamentos radicais, é a síndrome da perseguição. Mas agora não podem se dizer vítimas. Porque o WhatsApp, também do Face, acaba de suspender dez contas do PT, do lado ideológico oposto ao do bolsonarismo, por estarem operando disparos automatizados de mensagens. Nesses casos, o Facebook não entra no mérito do conteúdo do que está sendo distribuído, mas na forma como a distribuição é feita, que já denuncia a má-fé.

Sob pressão no mundo por não ter os devidos cuidados com o que transita em sua rede global, Mark Zuckerberg e seus diretores têm contratado pesquisas para ajudá-los na defesa da empresa, que enfrenta boicotes de anunciantes por servir de plataforma de ódios. Desconectar contas fantasmas usadas por robôs e similares é bem-vindo e precisa ser rotina. No caso brasileiro, o país está com o lucro adicional de ver desvendada uma organização voltada à difamação e ao golpe.

Advogado de Queiroz exibe uma ótima pontaria - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 09/07


A defesa de Fabrício Queiroz poderia ter recorrido contra a prisão do seu cliente desde o dia 18 de junho, quando o faz-tudo dos Bolsonaro foi encarcerado. Preferiu esperar pelo início do recesso do Judiciário, em 2 de julho, para atravessar um habeas corpus tóxico na mesa do presidente do Superior Tribunal de Justiça, João Otávio de Noronha, um magistrado com quem Jair Bolsonaro diz manter uma relação especial. "Foi amor à primeira vista", disse o capitão, em abril.

Se fosse protocolado antes do recesso, o pedido de liminar cairia nas mãos de Félix Fischer. Relator da Lava Jato e do caso da rachadinha na Quinta turma do STJ, Fischer é um magistrado temido por onze em cada dez réus. No plantão, a encrenca deslizou para o colo de Noronha, cuja decisão será posteriormente submetida a Fischer e à turma.

Noronha enviou Queiroz do ambiente inóspito de uma cela no presídio carioca de Bangu 8 para o conforto da prisão domiciliar. Fez melhor: estendeu o refresco a Márcia Aguiar, mulher do operador da rachadinha de Flávio Bolsonaro. Ela nem chegou a ser presa. Foragida, vai direto do esconderijo para o aconchego do domicílio —sem o inconveniente de uma escala no xilindró. Foi condenada, por assim dizer, a um convívio compulsório com o marido.

O magistrado acatou o argumento do advogado Emílio Catta Pretta. Alegou-se que Queiroz, às voltas com um câncer, corria risco de contrair Covid-19 na cadeia. A reclusão domiciliar foi estendida à mulher dele sob o argumento de que o marido precisa de atenções especiais.

Ao desviar de Félix Fischer, o doutor Cata Preta revelou-se um bom advogado. Ao mirar em Noronha, exibiu ótima pontaria. Todos saem aliviados do episódio, exceto Noronha. O advogado celebra o êxito de um artifício. Queiroz e Márcia postergam os pensamentos sobre delação. O amor de Bolsonaro sai fortalecido. Quanto a Noronha, por mais que argumente ter decidido conforme suas convicções, não se livrará dos comentários maledicentes.

Torço para Bolsonaro viver e pagar por seus crimes - REINALDO AZEVEDO

FOLHA DE SP - 10/07

Quero que o presidente responda pelos crimes tipificados no Código Penal e na lei do impeachment


André Mendonça, ministro da Justiça, já confundiu crime com liberdade de expressão. Assim, não me surpreende que confunda liberdade de expressão com crime.

Há menos de um mês, passou a mão na cabeça de delinquentes que dispararam fogos de artifício contra o Supremo, simulando um ataque armado. Agora, quer enquadrar Hélio Schwartsman, articulista da Folha, na Lei de Segurança Nacional porque este afirmou em artigo que torce para que Jair Bolsonaro morra em decorrência da Covid-19.

Eu não torço. Quero que responda pelos crimes tipificados no Código Penal, na lei 1.079 e no Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional para punir indivíduos, não países, por crimes de guerra, de genocídio, de agressão e contra a humanidade.

No dia seguinte ao ataque ao STF, o ministro divulgou uma nota simpática aos agressores: “Devemos agir por este povo, compreendê-lo e ver sua crítica e manifestação com humildade. Na democracia, a voz popular é soberana.” Chamava “povo” aos lunáticos golpistas e reconhecia a soberania da súcia sobre a Constituição. Eram dias anteriores à prisão de Fabrício Queiroz, marco da conversão de Bolsonaro à democracia. Aposto que a ida do primeiro-amigo do presidente e das milícias para a prisão domiciliar vai baixar o índice de apreço do ogro pelas instituições.

Mendonça tratava crime como liberdade de expressão e ainda convidava o agredido a um mea-culpa. E quer agora enquadrar Schwartsman no artigo 26 da Lei de Segurança Nacional, o que, além de evidenciar a sua falta de credenciais democráticas, levanta suspeita sobre a sua sanidade jurídica. A referida disposição pune crimes de calúnia e difamação contra presidentes de Poderes. Desejar a morte de alguém pode não ser fofo. Mas calúnia e difamação não é. A acusação é tão exótica que nem errada chega a ser.

Para que o autor do texto representasse ameaça ao presidente, forçoso seria que tivesse algum comando sobre o coronavírus. Não tem. O troço vitima, a gente vê, gregos e troianos, guelfos e gibelinos, gênios e idiotas, insanos e insanáveis. Patógenos não têm moral nem fornecem uma aos doentes.

O artigo de Schwartsman é o mais equivocado que já saiu de sua pena inteligente.

O autor apela à ética consequencialista para explicar a sua torcida. Pode-se resumir assim: o comportamento de Bolsonaro contribui para espalhar a doença e, pois, a morte. Se a Covid-19 o matasse, vidas seriam poupadas. E é bom notar que o articulista não fez arminha com os dedos, mirando o presidente.

O consequencialismo é matéria controversa. A sua principal fragilidade está na abolição dos princípios em favor da eficácia. Ocorre que aquele que tem o poder de fazer escolhas não detém o monopólio do bem universal, e tais escolhas, medidas apenas pelo resultado, podem ser um atalho para a barbárie, ainda que supostamente iluminista.

Não terá o próprio Bolsonaro sido “consequencialista” a seu modo quando fez reiterados flertes ao morticínio em massa, alegando que a paralisação da economia geraria mais estragos do que a própria doença? A diferença entre as duas proposições pode estar apenas no preço a pagar pelo alegado bem a ser alcançado: o jornalista tratou da morte de um homem que resultaria na salvação de milhares. O presidente preferiu apostar na morte de milhares para, segundo diz, salvar os empregos.

Sou um anticonsequencialista. No direito, por exemplo, o consequencialismo —que já chegou ao Supremo— tem produzido desastres em série. Não raro, relativiza-se a letra da lei em favor de uma noção de eficácia que resulta em solipsismo e desordem. Maquiavel nunca escreveu que os fins justificam os meios. Deve ter sido obra de algum candidato a tirano. O que o meu anticonsequencialismo me diz é que os meios qualificam os fins.

A tese de Schwartsman é ruim, mas, obviamente, não é criminosa. Ocorre que Mendonça não sabe a diferença entre crime e liberdade de expressão e entre liberdade de expressão e crime. E só por isso é ministro de Bolsonaro.

Reinaldo Azevedo
Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.

Missão impossível - ELIANE CANTANHEDE

ESTADÃO - 10/07

Difícil convencer investidores de boas ações e intenções do Brasil no meio ambiente


Com Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Ricardo Salles (Meio Ambiente) sentados à mesa e deitando falação, como os investidores internacionais podem acreditar em boas intenções e ações do Brasil na defesa da Amazônia e das comunidades indígenas? Araújo ironiza a defesa do ambiente como “climatismo”, “coisa da esquerda”. Salles sofre uma repulsa geral por só pensar em “passar a boiada”. E o presidente Jair Bolsonaro acha tudo isso uma bobajada que atravanca o progresso.

Assim, há dúvidas quanto ao resultado da reunião de ontem do vice Hamilton Mourão, Tereza Cristina (Agricultura), Araújo e Salles com grandes investidores. No mundo de hoje, que governos, empresas e financiadores arriscam suas marcas apostando em países que desmatam, queimam, desrespeitam comunidades ancestrais? (E cultura, educação, saúde...)

É difícil e constrangedor pedir recursos a estrangeiros (ontem) e ao grande capital nacional (hoje) se... os R$ 33 milhões do Fundo da Amazônia estão mofando no BNDES, só 0,7% dos R$ 60 milhões da Operação Verde BR2 foram usados e o ministro do Meio Ambiente é alvo da Justiça, MP, Ibama, ICMBio e da torcida do Flamengo.

É difícil e constrangedor dizer que vai tudo bem, obrigada, se o desmatamento da Amazônia cresce há 13 meses seguidos e isso significa, como todo o mundo, literalmente, sabe, devastação no ato e queimadas depois. Sem falar de Cerrado, Mata Atlântica e das pujantes riquezas naturais brasileiras, ameaçadas por ideologia, ignorância e achismos.

É difícil e constrangedor reclamar de “uma visão distorcida” do mundo sobre o meio ambiente no Brasil, como já reclamou Bolsonaro na reunião do Mercosul, já que é o próprio presidente que manda os fiscais do Ibama descumprirem as leis e deixar os desmatadores em paz.

É difícil e constrangedor, também, explicar que Bolsonaro esperou se eleger presidente para punir o fiscal do Ibama que o multou por pescar em área proibida, demitiu o presidente do Inpe porque não aceitava os dados do desmatamento, tem ideias apavorantes para Abrolhos, Angra dos Reis e Fernando de Noronha e orienta seu governo a “passar a boiada” – como disse Salles na reunião de 22 de abril, referindo-se a leis e regras flexibilizando a proteção ambiental.

É difícil e constrangedor, ainda, jurar de pés juntos para o grande capital nacional e estrangeiro que o governo brasileiro se preocupa realmente com as comunidades indígenas e quilombolas, se o presidente acaba de vetar medidas de preservação da vida e das reservas, como fornecimento de água potável, cestas básicas e itens de higiene durante a pandemia. Argumento: a lei aprovada no Congresso não especificou as fontes de recursos? Ah, bem! Tudo explicado.

Por fim, é difícil e constrangedor explicar a proposta para escancarar as reservas indígenas para todo o tipo de exploração – mineral, agrícola, pecuária, até turística. Tudo isso, porém, pode ser explicado com uma única frase, do então ministro da Educação na histórica reunião ministerial de 22 de abril: “Odeio o termo ‘povos indígenas’, odeio esse termo. Odeio o povo cigano. Quer, quer, não quer, sai de ré”. Deveras educativo.

Só não é difícil, apesar de profundamente constrangedor, ver a imagem do Brasil esturricando pelo mundo afora, alvo de perplexidade de líderes democráticos, sociedades, parlamentos, empresas, mídia, chargistas e organismos internacionais. O “soft power” construído ao longo de décadas vira pó, deixando uma triste pergunta no ar: quanto tempo vai demorar para nosso País recuperar, não apenas investimentos e boa vontade do capital internacional, mas sobretudo a imagem, credibilidade e simpatia de todo o mundo?