terça-feira, outubro 30, 2007

ARNALDO JABOR
ESTADÃO 30/10/07

MULHER DE PADRE VIRA MULA-SEM-CABEÇA

Eu tinha dez anos. Havia no colégio onde eu estudava um padre que era querido pelas crianças; ele fazia mágicas, com rara habilidade. Nos recreios, ficava cercado de meninos vendo ovos saírem de suas orelhas, moedas tiradas da boca, flores explodindo em buquês entre seus dedos magros e enrugados. Ele tinha também um teatro de bonecos. Disse-me: ''''Vem até meu escritório ver as marionetes novas.'''' Fui. O padre parecia nervoso e começou a criticar meu cabelo, despenteado, eriçado. Pegou um pente e me penteou com mãos trêmulas e de repente me agarrou e me deu um beijo na boca. Fugi em pânico até a saída, onde meu pai me esperava no carro e, apavorado, não disse nada. Só contei em confissão a um outro padre, que fingiu não entender bem e senti que ele sabia do vício do colega, mas que mudou de assunto como se a pedofilia fosse um mal inevitável, para a manutenção do celibato. Comecei a entender ali que, além do bem e do mal, do pecado e da virtude, havia também um corporativismo espiritual defendendo práticas escusas de congregações.Quando vejo essa polêmica em torno do padre Júlio Lancellotti, se ele é ou não culpado (que sei eu?) , lembro-me que no colégio de padres onde estudei, desde a entrada dos alunos havia um desfile de velada pedofilia. O reitor se postava vestido em negra batina na porta do longo corredor e duas filas de alunos entravam, beijando-lhe as mãos estendidas como oferendas de santidade, e até hoje me lembro do vago cheiro de sabonete e cuspe na mão desse reitor.Tudo era sexo no colégio; essa palavra terrível estava em toda parte, como uma ameaça vermelha; o diabo nos espreitava até detrás das estátuas de Santa Tereza em êxtase, nas coxas dos anjinhos nus, nos seios fervorosos das beatas acendendo velas.Eu vi o diabo em toda parte, naquele colégio: rostos angustiados, berros severos e excessivos nas aulas, sentia no ar uma exasperação repressiva da sexualidade que talvez seja o ponto fraco da Igreja Católica hoje em dia. O desespero da castidade enlouquecia os noviços. Eu me lembro de alunos do seminário (uma das alas do colégio) se extenuando, pálidos, em ginásticas torturantes para matar o desejo. Eu via. Eu via as mães dos alunos, lindas, com seus penteados e decotes imitando a Jane Russel ou Ava Gardner, fazendo charme para os padres enlouquecidos pela castidade obrigatória. E eu me perguntava: ''''Meu Deus... por que padre não pode casar?''''Um dos padres mais ferozes nos ameaçava com o fogo eterno, se nos masturbássemos ou, como diziam, se praticássemos o ''''vício solitário''''. Como era triste esse nome que nos descrevia a todos. ''''Se vocês se masturbam, são iguais ao Hitler, pois matam na solidão dos banheiros, milhões de pessoas que poderiam viver...!!'''' Ou seja, além de não comermos ninguém, ainda nos sentíamos genocidas em holocaustos de banheiro, indo para o inferno, onde queimaríamos para sempre, condenados por uma reles punhetinha, por toda a eternidade.Lembro-me que ele descrevia a eternidade da seguinte forma:''''Imaginem que o planeta seja um grande diamante, o metal mais duro do universo. De cem em cem anos, um passarinho vem voando e dá uma bicadinha na Terra. O dia em que a Terra for toda esfarinhada pelas bicadinhas do pássaro, nesse dia, acaba a eternidade.'''' E eu sofria, me esvaindo nos banheiros, pensando naquele passarinho que bicava o mundo, enquanto eu acariciava o outro medroso passarinho se preparando para uma vida de medos. Agora, estou escrevendo um filme onde contarei isso tudo.O prazer era um crime. A partir daí, tudo ficava manchado de culpa; a alegria era falta de seriedade, a liberdade era um erro, as meninas eram seres inatingíveis com seus peitinhos e bundinhas. Quantas dores senti mais tarde na vida, pelo cultivo destes ensinamentos, que transformavam a mulher em perigo. A pedofilia na Igreja é conseqüência direta do celibato. A sexualidade, força máxima da vida, uma vez esmagada, vira uma máquina de perversões. Claro que esse padre Lancellotti não estava trancado em clausuras, nem parece ter se preocupado muito com votos de castidade. A pedofilia em colégios, instituições e orfanatos deve ser muito maior do que se pensa. Padre com amante no interior é mato. Mulher de padre vira mula-sem-cabeça, sabemos todos. Hoje, que o mundo virou uma incessante paisagem de bundas e seios nus, de pornografia na publicidade, que nos espreita no trânsito, na TV, cada vez fica mais absurdo esse imenso exército de deprimidos, lendo as Playboys no escuro dos conventos. É minha idéia de inferno, os padres se masturbando nas clausuras.Uma das grandes desvantagens da Igreja Católica, perante outras religiões, é esse celibato delirante. Sei que falo inutilmente, que é dificílimo mudar regras milenares, principalmente com este papa burocrático, implacável, com seus olhos duros e cruéis... Estão diminuindo muito as vocações para seminaristas, que buscam a religião pela fome ou por um lugar social.Rabinos casam, pastores protestantes casam, budistas ''''do it'''', hindus ''''do it'''', mesmo muçulmanos ''''do it''''. A idéia de castidade, do ''''crime sexual'''', vai gerando um atraso em cascata em relação a problemas modernos, como o homossexualismo, o aborto, o controle da natalidade, etc... Enquanto os pentecostais botam pra quebrar em bailes ''''gospel'''', em shows de Jesus Funk, a Igreja Católica vai mergulhando na Idade Média e supostamente gerando absurdos como talvez seja esse caso do Lancellotti, onde parece que rola até corrupção financeira com pedofilia e má administração pública e de ONGs - o que eu chamaria de uma ''''pedo-política''''. Tem de ser repensada esta anomalia do celibato. Acho que está na hora de uma ''''teologia da libertação sexual''''.