sábado, maio 02, 2009

DORA KRAMER

O voto obtuso

O ESTADO DE SÃO PAULO - 02/05/09

Livre para decidir se participa ou não de eleições, em novembro do ano passado o cidadão norte-americano escolheu reagir ao baixo-astral pós W. Bush votando. Ficou horas em pé nas filas quilométricas, produziu um comparecimento às urnas como há muito não se via, uma típica ação afirmativa.

Se o voto nos Estados Unidos fosse obrigatório – como insiste a maioria dos países sul-americanos em contraposição ao restante do planeta –, talvez o negativismo acumulado na era Bush tivesse resultado na pregação em prol do voto nulo.

Navegando fundo nas asas do hipotético, nesse caso é possível que fosse agora Sarah Palin, a simplória vice-presidente republicana, e não Barack Obama, o sestroso presidente democrata, o centro das atenções nas comemorações dos 100 dias do novo governo nos EUA.

No Brasil de escândalos intermináveis, o ambiente é de universo em completo desencanto com a política. Terreno fértil para a semeadura das campanhas em defesa do voto nulo. Comprovadamente inúteis, uma tolice à qual político algum – decente ou indecente – dá a menor importância.

Serve para dar vazão a protestos, mas não tem serventia alguma para alterar coisa nenhuma no atrasado cenário da política brasileira.

Se em 2010 houvesse uma quantidade absurda de votos nulos não aconteceria nada. O assunto seria debatido por uns dias chegar-se-ia a duas ou três conclusões sobre a despolitização do brasileiro, a desmoralização da política e neste aspecto, dias piores viriam, pois o Congresso daí resultante certamente seria pior que o anterior, vale dizer, o atual.

Raciocinemos: supondo que uma campanha pelo voto nulo consiga um volume significativo de adeptos, em tese seriam os mais interessados no processo gente com capacidade de indignação e, portanto, imagina-se, potencial de discernimento.

Esses ficariam de fora. Iriam ao voto por obrigação e fariam uma farra da indignação, teclando bobagens nas urnas, invalidando votos.

Como só contam os válidos para efeito de eleição, participariam da escolha, aqui também em tese, os mais permeáveis à manipulação. Estes cumpririam direitinho o compromisso obtido mediante as embromações de sempre.

O Parlamento produzido a partir disso obviamente teria uma grande chance representar majoritariamente o voto “inconsciente” em detrimento daqueles deputados e senadores cujos compromissos com a opinião pública é que lhes garantem os mandatos.

Conclusão: o voto nulo ajuda o atraso, cuja presença é garantida por meio da obrigatoriedade do voto.

Se o eleitor indignado quer mesmo mexer com os brios dos políticos, sacudir a roseira e caminhar no sentido da tomada da consciência, o instrumento mais eficaz seria a cobrança pelo voto facultativo.

Esta mudança, sim, apavora os políticos. Tanto que o voto obrigatório é uma quase unanimidade. Usa-se o argumento de que, “no atual estágio” (note-se, “atual” há décadas) do país, o voto facultativo só favoreceria as elites, pois deixaria de fora o eleitor menos mobilizado, mais despolitizado.

Uma falácia, cuja real intenção é assegurar uma reserva de mercado de votos. Sem a necessidade de atuar na mobilização positiva do eleitor.

Ademais, se a referida “elite” significa o que há de melhor em termos de pensamento político em contraposição às conhecidas ações da arraia-miúda, escória mental e espiritual, palmas para a nata da política.

Esta, pelo menos, tem nome a zelar, reputação a preservar, muito a perder e precisar pensar duas vezes antes de prevaricar.

Entulho

Em sua defesa da manutenção parcial da Lei de Imprensa – no tocante ao direito de resposta – o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, a certa altura do julgamento perguntou em nome do que se justificava a revogação: “Só no fato de ter sido criada pelo regime militar?”

Principalmente nesse fato. Como, de resto, resumiu em seu voto a ministra Cármen Lúcia: “O ponto de partida e chegada da lei é garrotear a liberdade de expressão.”

Não tivesse sido essa a intenção, não teria a Lei de Imprensa nascido exatamente sob a ditadura.

Quanto ao exemplo citado por Gilmar Mendes – cujos donos foram injusta e moralmente massacrados pela conjunção de erros da polícia e da imprensa – o massacre não teria sido, como de fato não foi, evitado por obra daquela lei agora extinta.

O episódio é uma mancha no trabalho da imprensa brasileira que paga até hoje o preço. Onde mais dói: na credibilidade.

O descalabro foi cometido por um grupo de repórteres de São Paulo, incensados por um delegado e avalizados pelos respectivos editores. Mas o castigo foi generalizado, com razão, porque a lição nesses casos deve ser apreendida coletivamente.

A existência da lei nunca serviu para corrigir esse tipo de coisa. Sua permanência só prolongaria a convivência do Brasil com resquícios da concepção autoritária.

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