sábado, julho 04, 2009

BETTY MILAN

REVISTA VEJA

Betty Milan

Um soldado até o fim

"O medo da rejeição é pernicioso. Foi contra esse medo que Alain Emmanuel Dreuilhe lutou até morrer. Seu livro Corpo a Corpo, publicado em 1987, é uma obra-prima. Ele declarou guerra ao vírus da aids, chamando-o de invasor e comparando-o ao Exército nazista"

O significado da soropositividade depende da história e do repertório de cada um. Existe o soropositivo que é levado a refletir sobre a existência. Como o escritor Caio Fernando Abreu, que, antes de morrer de aids, nos legou a frase: "A condição humana é inocente". Mas existe também o que se vale da soropositividade para satisfazer um gozo masoquista. Como o leitor que escreveu para o Consultório Sentimental, minha coluna eletrônica em VEJA.com.

Ele diz ser gay e não ter problema com isso. Só com o fato de ser soropositivo. A cada encontro amoroso, por medo de ser rejeitado, hesita em contar a verdade ao parceiro. Depois o perde por outro motivo. Cria um conflito e o namoro termina. Essa história triste não para de se repetir e, por isso, faz pensar no masoquismo.

O medo da rejeição é pernicioso. Foi contra esse medo que Alain Emmanuel Dreuilhe lutou até morrer da doença. Seu livro Corpo a Corpo, publicado em 1987, é uma obra-prima. Ele declarou guerra ao vírus da aids, chamando-o de invasor e comparando-o ao Exército nazista. Opôs-se vigorosamente à descrença dos médicos na possibilidade de resistir e denunciou a estigmatização dos homossexuais. Mostrou que o inimigo não é tanto o vírus quanto as fantasias a ele associadas e o isolamento a que estas condenam.

Todd Davidson/Getty Images


No livro, Dreuilhe conta que, ao ser tomado pela depressão, foi procurar um psicanalista – e, no decorrer da análise, encontrou as suas metáforas guerreiras. Passou a raciocinar como um estrategista, saindo da condição de vítima para a de combatente. Só escreveu sobre a sua dor para se defender. Como se entoasse uma ária marcial contra o vírus da aids. Como se seu corpo fosse a França ocupada pelos alemães.

O vírus, segundo ele, afeta menos a imunidade do que a confiança. E a falta de confiança resulta em culpa. Ela ronda não apenas o doente de aids como o de câncer. Aids e câncer são palavras que desnorteiam, marcam e fazem perder a razão. Quem é infectado pelo vírus da aids ou tem câncer precisa analisar-se para enfrentar a doença e, assim, se tornar um combatente. Como Dreuilhe, que não só escreveu Corpo a Corpo, mas tudo fez para difundir a obra. Foi traduzido em várias línguas e publicado em 1989, no Brasil, onde o controle do sangue para transfusão ainda era precário.

Ao saber que eu havia escrito um artigo sobre ele, Dreuilhe me enviou uma carta de agradecimento na qual propôs um encontro em Nova York, onde morava. Eu teria ido se, pouco antes da data prevista, não tivesse recebido uma segunda carta, em que ele se despedia anunciando a morte próxima.

Ele teve a delicadeza de preparar os amigos e os que se associaram à sua causa. Deixou uma eterna saudade de gente como ele. Generosa consigo mesma e com os outros. Capaz de resistir à doença e ensinar a fazer o mesmo. Dreuilhe escapou das trincheiras do masoquismo.

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