terça-feira, junho 23, 2009

ARNALDO JABOR

O amor entre as santas e as loucas

O GLOBO - 23/06/09

Como já contei nos artigos e no filme que estou fazendo, tudo era pecado nos anos 50. Eu tinha uns doze anos e ouvia duas correntes de teoria sexual: a do Bené,- o pipoqueiro e seu fiel assistente Alfredinho, o aleijado, que me ensinavam coisas como "toda mulher dá, menos as mal cantadas" ou então a teoria dos jesuítas sobre a pureza das santas virgens.

Assim, dividi as mulheres em dois grupos : as "inatingíveis" e as "sem -vergonha". De longe, eu era um fauno e, de perto, um romântico melancólico. Vivia de binóculo na casa de meu avô, olhando mulher nua nas janelas ou no cinema vendo Maria Antonieta Pons, a rumbeira de coxas inefáveis, la no balcão do cine Alaska, em sôfregos pecados.

Por outro lado, as meninas que eu amava não "existiam" - elas flutuavam diante de mim como "dulcineias" impossíveis.

Simone era morena, linda, tinha um queixo com covinha e se recusava a dançar; Norma fez cara de nojo, quando eu falei "I love you" e saiu contando para todo mundo; Miss Baby era uma mulher de 40 anos que dançara no cassino da Urca e ria de meu tremor; Ciomara deu para me chamar de "pirralho"; Terezinha se fantasiava de odalisca e cantava (não para mim): "E" com esse que eu vou, dançar até cair no chão...".

Essas eu amava, com clara vocação para "pierrot apaixonado" , para desgosto de Bené e Alfredinho que já me olhavam desconfiados, correndo eu o risco de sair da categoria de "babaca" para a terrivel legião dos "veados", já que eu nunca pegava nos peitinhos de nenhuma, contrariamente a meu amigo e rival Cabeção que, veridicamente ou não, se gabava até de sodomias perpetradas em alunas do colégio Jacobina. Amor, sonho e lagrimas eram para as meninas impossíveis. Sexo, vícios solitários eram dedicados à grande Angelita Martinez que dançava na TV Tupi ou à Virginia Lane na "Revista do Radio".

Meu pai era da Aeronáutica e, nessa época, a grande crise politica pela morte do major Rubens Vaz estava no auge. "Mar de lama", "mar de lama" era o que se ouvia no radio, na voz do Carlos Lacerda, na briga da UDN contra o governo de Getúlio. "Mar de lama" me soava como o Mangue, parecia com os pecados que me atraíam, como as historias de Alfredinho, que contava da freira que ele teria comido, no hospital de sua paralisia infantil.

Foi ai que apareceu a Daisy, que não era nem piranha nem santa.

Até mesmo o experiente Bené não soube como classificá-la, quando ela chegou na carrocinha de sapato alto, muito pintada, pedindo pipoca doce e cantando para si mesma o baião "Kalu", sucesso da famosa Dalva de Oliveira. Ela era pálida e tremula, tinha os olhos muito negros e separados, por cima de uma grande boca onde tremia um esgar de deboche, um riso contido, como se ela conversasse com alguem dentro de si mesma. Meus mestres de sexo ficaram embaraçados. Daisy morava sozinha com o pai, um medico triste e vermelho, apertado num terno negro, com "pince-nez" pendente do bolso. Era viuvo, espirita e tratava de doentes, ali na própria casa onde tinha consultório.

Daisy me siderou. Fiquei absolutamente apaixonado em segundos, a ponto de Bené me olhar com preocupação. Daisy tinha uma inquietude que eu nunca vira em ninguém. Seu jeito etéreo, seu flutuar de louca davam-lhe uma magia que virava a vida em reles cotidiano rasteiro, inferior ao mundo fabuloso que ela parecia habitar. Era mais velha do que eu e me dizia frases enigmáticas que ela lia de um diário de capa roxa cheio de desenhos, enquanto eu ficava afogado em seus olhos. "Este vestido é francês; era da minha mãe, etiqueta Jacques Fath, este leque era da minha avó que foi amante do senador...".

Um belo dia, ela me levou para sua casa escura onde o pai atendia doentes. Entrei por um corredor cheio de retratos de uma mesma mulher, sua mãe morta, que o pai ampliara, desconsolado na viuvez de luto fechado. A esses retratos, seguiam-se outros, de pessoas fora de foco, com nuvens brancas saindo de suas bocas, pairando em volta de suas cabeças, como algodão. "E" o ectoplasma, a matéria da alma", me dizia Daisy, "o espirito delas, fotografado por papai".

Daisy, muito agitada e encostando-se em mim, perguntou se eu já vira "espíritos" e disse que, se eu esperasse do lado de fora do consultório, eu teria uma "revelação do além", mas que eu só poderia entrar quando ouvisse musica lá dentro. Fiquei no corredor escuro, olhado pelos retratos da mãe de Daisy, em muitas poses, ou triste ou sorrindo e (lembro-me) ao lado do pai, de "tailleur" e chapéu no Pão de Açúcar.

De repente, começou uma musica dentro do consultório creio que era Francisco Alves: "...na caricia de um beijo". Entro de coração disparado. Na sala escura, Daisy estava deitada na mesa de consulta do pai, com quatro velas acesas em volta, com o vestido da mãe aberto ate a cintura e e os seios nus, dourados pela luz das velas. Com os olhos fechados, ela fingia não respirar. Eu, em pânico, sussurrava: "Daisy...acorda! Vem gente!...".

Não sei se ela me puxou ou se eu mesmo mergulhei entre seus seios, beijando-os e deslizando meu rosto por seu corpo até o ventre, numa fortíssima excitação que faria inveja a Bené e Alfredinho. E foi assim que fui surpreendido pela imensa gritaria das empregadas no corredor, invadindo a sala, aos gritos de "Dr. Getulio se matou!!" Os rádios davam em edição extraordinária o suicídio do homem, com um tiro no peito ensanguentado.

"O presidente morreu!", gritavam. A cozinheira soluçava no avental. Fugi correndo sob a voz trágica do repórter Esso.

No dia seguinte, com o mar de povo envolvendo o caixão de Getulio, eu só via o corpo branco de Daisy, flutuando sobre as multidões.

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