domingo, setembro 18, 2016

Tumulto da travessia - MÍRIAM LEITÃO

O Globo - 18/09
A Lava-Jato vive mais um momento delicado, dos muitos que viveu. A força-tarefa está sendo criticada pela maneira como apresentou a denúncia contra o ex-presidente Lula. Ele reagiu em tom político e desafiou que provassem a acusação de receber benefícios de empreiteira e comandar o esquema da Petrobras. O MP o chamou de chefe máximo da “propinocracia". Lula disse que é um perseguido político.

A força-tarefa do MP precisa sustentar o que disse com tanta ênfase, sobre ele ser o chefe do esquema de corrupção. A delação de Delcídio divulgada na sexta-feira foi mais um elemento para fortalecer essa ideia. A retórica forte é o terreno de Lula, e não deve ser o do MP. O ex-presidente comparou-se a Tiradentes e disse que só perde no Brasil para Jesus Cristo, mas não explicou fatos bem mais atuais e terrenos, como os gastos da OAS para armazenar seus bens.

A semana foi vertiginosa. Eduardo Cunha foi cassado por um placar que prova que seu poder era efêmero. Só dez votaram com ele. O ex-advogadogeral da União saiu acusando o governo de querer abafar a Operação. Querer todos eles querem, de um lado e do outro da briga política nacional. Mas não está ao alcance deles. O governo tem vontade de livrar-se da operação, mas não tem esse poder. A troca do advogado-geral da União não para investigações. O movimento anticorrupção no Brasil já ganhou dinâmica e atravessou o ponto de não retorno. A cerimônia de posse da nova presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, foi um eloquente ato em defesa do combate à corrupção.

Existem ameaças à Lava-Jato. Elas vêm de projetos que tramitam no Congresso. Além disso, há dúvidas sobre como votará a nova composição da Segunda Turma do STF, e qual será o entendimento definitivo do Supremo sobre a prisão de condenados em segunda instância. Isso tudo tem mais reflexo no processo do que supostas conspirações do executivo ou bravatas de Lula.

Os criminosos sempre agiram em rede. A novidade agora é que os que combatem o crime também se associaram. Um exemplo veio da operação Greenfield. Na CPI dos fundos de pensão, juntaram-se para entender, desvendar e explicar os crimes financeiros vários órgãos, CVM, Previc, Banco Central, Receita Federal, TCU, Polícia Federal. Desta forma, foi mais fácil entender a engenharia financeira que tirou dinheiro dos fundos de pensão das estatais nos Fundos de Investimento em Participações. Os FIPs são uma modalidade de crédito do cada vez mais sofisticado mercado brasileiro. Não são eles que devem ser combatidos, mas sim as fraudes montadas em alguns deles. Foi preciso unir a expertise de vários órgãos para entender.

O Ministério Público atua em redes locais e internacionais, em contato com autoridades de outros países, nos quais os criminosos tentam esconder o resultado do furto. Toda essa tecnologia do combate ao crime não se desmonta pela vontade de um governo. Simplesmente está além das possibilidades do executivo parar as investigações no MP, neutralizar a ação da Polícia Federal, desfazer os laços que se formam entre instituições públicas.

Mesmo assim, o exemplo histórico da Itália mostra que a corrupção tem capacidade de autorregeneração. É por isso que estão tramitando propostas perigosas no Congresso. Foi por meio de novas leis que os corruptos italianos se protegeram.

Os políticos com prerrogativa de foro ainda não foram julgados, há muita decisão dependendo do Supremo Tribunal Federal e, neste momento, mudou a composição da Segunda Turma, a que julga a Lava-Jato. A ministra Cármen Lúcia saiu para ser a presidente e para o seu lugar foi o ministro Ricardo Lewandowsky. Muitas decisões foram tomadas por 3 x 2. Agora esse número pode se inverter em favor dos réus. Se a decisão do STF for de revogar o entendimento recente de que a partir da condenação em segunda instância o réu passa a cumprir a pena, os alvos da Lava-Jato respirarão aliviados.

Sim, riscos existem, mas não são os óbvios. Não basta a vontade do governo e não basta os petistas vestirem vermelho, como Lula convocou, para se interromper o círculo virtuoso no qual o país já entrou. O Brasil está decidido a combater a corrupção, e vivemos agora os tumultos dessa travessia.

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