quarta-feira, junho 24, 2020

A trincheira do farol - LEANDRO KARNAL

ESTADÃO - 24/06

O vendedor dos cruzamentos é um termômetro rápido que daria inveja a muitos especialistas


As grandes corporações possuem departamentos de marketing, gestores de estratégia, pensadores sofisticados que acompanham as mais recentes Ted Talks sobre tendências estudadas em Harvard e Yale. Por vezes, imagino, deveriam abrir mais o vidro do carro parado em um sinal na esquina das grandes cidades do Brasil. Nonsense?

O vendedor dos cruzamentos é um termômetro rápido que causaria inveja a muitos especialistas. Ele mede com precisão o “humor” do mercado e do consumidor. O tempo nublou? Nuvens pesadas anunciam tormenta? Capas de plástico e guarda-chuvas surgem nas mãos laboriosas do ambulante. Choveu e os mosquitos se multiplicaram? Raquetes elétricas serpenteiam entre os espelhos retrovisores. Joga o Corinthians? Preto e branco se espalham entre bandeiras, camisetas e bolas customizadas. O homem talvez tenha time em casa, o vendedor da rua tem público e mercado: pode estar de verde no dia seguinte.

O dia termina e os carros voltam da sua jornada. O ágil mercador identifica veículos dirigidos por homens. Chega e oferece um buquê de rosas pronto e bonito. Sugere levar algo para a esposa. O empresário pensa na boa ideia e, por amor ou culpa, compra em rápida negociação. O tempo é curto. Não é a barganha elaborada e ritualística de um tapete no Grande Bazar de Istambul. A leitura do rosto e da intenção do comprador deve ser mais ágil do que o diligente turco com o kilim nas mãos. Tudo deve ser resolvido no prazo máximo de um minuto. Terminado o tempo, o sinal abre e o cliente foge.

Horários de fome do meio da tarde? “Larica” espalhando sua influência na metrópole? Surgem frutas em bandejas e até casquinhas crocantes acompanhadas de um sorriso. Cajus enfileirados causam impacto visual. O notável é que as comidas são oferecidas pelo mesmo ambulante que, uma hora antes, empunhava mapas. Sim, vendem-se peças cartográficas nas esquinas! Enrolados ou abertos, apelam a pessoas mais velhas que os usaram na escola. Talvez aquele senhor septuagenário compre para dar ao neto. Também provável que o adolescente presenteado agradeça com educação e pense que tem um aplicativo mais prático no seu celular para aprender Geografia.

Quando é seguro, deixo o vidro aberto nas esquinas. Escuto e aprendo. Sou chamado de “doutor”, “campeão”, “grande”, “bacana” e recebo um sorriso embebido em treino de palco urbano. Vender é esbanjar simpatia. Frases de impacto, gestos marcados e eficazes: tudo ajuda naquela luta instantânea. Um autônomo de farol poderia dar cursos muito instrutivos para uma pós-graduação em técnicas de venda.

Há espaço para a criatividade empreendedora. As pessoas comuns vendem garrafas plásticas de água. O empreendedor original se veste de garçom. Por quê? A camisa branca, a calça preta, a gravata-borboleta e a pochete com dinheiro trocado (ok, ninguém é perfeito) agregam rápida identificação com uma personagem confiável. Quem faz propaganda na televisão ou foto publicitária sabe que o consumidor necessita identificar uma enfermeira ou professora em segundos rápidos. O estereótipo é eficaz. O público precisa conhecer em um olhar quem é e o que vende. A personagem vende muito mais.

Todo trabalho honesto é digno. Eu substituí meu azedume de outrora pela tentativa de ver e aprender. Ali andam, rápidos, seres humanos lutando para sobreviver, como eu. Apenas algumas coisas me irritam muito: crianças usadas para esse fim. Sabendo que somos mais simpáticos ao vendedor mirim, constato, em pleno horário escolar, os pequenos passando entre os carros. Em geral, mais adiante, gordos progenitores descansam sob uma sombra. Nunca compro de menores e ainda reafirmo forte: “Você deveria estar na escola”. Uma única vez parei o carro e fui vociferar contra um senhor (pai?) que colocava três meninas vendendo. É perigoso fazer o que eu fiz, mas o fato me tira do cercadinho da razão.

Há mais ambiguidades no comércio que estou tratando além da exploração do mundo infantil. Há produtos sem nota fiscal, contrabando frequente, controle de qualidade inexistente, condições sanitárias claudicantes com a comida oferecida, falta de licenças ou alvarás e uma concorrência com aquele comerciante que, na sua loja, paga impostos altos para ter o direito que o da rua obteve gratuitamente. A concorrência é real e marcada pela desigualdade. A informalidade é um imperativo que deve crescer ainda mais na crise atual.

Aprendi algo novo conversando com vendedores. Nem sempre, ao lado do seu carro, está um autônomo que vende seus produtos. Por vezes, há um chefe por detrás dele. Alguém que tem capital para comprar mais, organizar, trazer o vendedor e constituir um novo tipo de empresário. Assim, sem nenhum amparo trabalhista, surgem formas de ocupação que geram recursos para alguém bem distante daquele sorridente ser humano ali presente.

Por fim, com suas genialidades e ambiguidades, temos algo a aprender observando mais e conversando mais. Independentemente de tudo, um ser humano merece sempre nossa simpatia por estar ali, de pé, lutando. Para mim ou para você, muitas vezes, chama-se importunação. Para ele, sempre, intitula-se sobrevivência. Compro pouco, mas tento ver que existe alguém. Ser invisível é um castigo enorme para quem tem pressa em comer. O farol é a trincheira de uma guerra difícil e sorridente. É preciso ter esperança e um pouco de empatia em momentos bicudos como o atual.

Uma visão de dentro do governo - MÍRIAM LEITÃO

O Globo - 24/06

Ministros admitem que o presidente comete erros, mas discordam mais da forma do que do conteúdo. Ecoa no governo previsão feita por Mandetta


A visão de dentro do governo Bolsonaro é de que o ex-ministro Abraham Weintraub prejudicava muito. O presidente o defendia, mas a maioria dos ministros civis e militares o define com palavras como “doido” ou “idiota”. Esse último ato teria dado a impressão de que o presidente arquitetou um plano contra uma lei americana, me disse um ministro. Bolsonaro é criticado por suas declarações, mesmo por pessoas que estão próximas, mas ao mesmo tempo o presidente convenceu a equipe de boa parte das suas teses, como a de que o Supremo estaria invadindo prerrogativas do Executivo.

Mais um ruído está marcado para acontecer com o pedido, ontem, feito pela Polícia Federal ao decano Celso de Mello para ouvir o presidente no inquérito que investiga a suspeita de interferência na PF. Há uma expectativa de que Bolsonaro responda por escrito. Mas o ministro Celso de Mello, em decisão recente, conforme escrevi aqui no dia 7 de maio, registrou seu entendimento de que o presidente, o vice-presidente, os presidentes da Câmara e do Senado têm essa prerrogativa, pelo artigo 221 do Código de Processo Penal, mas apenas quando são testemunhas. O decano escreveu: “Caso estejam na condição de pessoas investigadas ou acusadas não terão acesso a tal favor legal.” Sendo assim, Bolsonaro seria ouvido presencialmente.

No entorno do presidente o que se diz é que o ministro Celso de Mello deveria ser impedido de continuar à frente desse inquérito depois de ter sido divulgada a mensagem dele fazendo comparação entre o clima na Alemanha, no período que antecedeu ao nazismo, e o Brasil atual.

Quando se conversa com integrantes do governo é possível ouvir críticas ao presidente, mas mais à forma do que ao conteúdo. Acham que Bolsonaro não deveria ter feito as afirmações dando a impressão de que arquiteta um golpe, como o “está chegando a hora” ou a declaração feita na manifestação em frente ao QG do Exército, em Brasília, de que “as Forças Armadas estão conosco”. Mas há um forte apoio entre os ministros militares e civis à interpretação de que houve invasão da prerrogativa do Executivo, no caso do veto à nomeação de Alexandre Ramagem, por exemplo.

Hoje, na verdade, essa é a menor das preocupações. Há outros fantasmas rondando o Planalto. Um deles, o inquérito das fake news. Mas o de preocupação mais imediata é o da prisão do Queiroz, ainda mais tendo sido na casa do então advogado de Flávio e do presidente. O que se fala no governo sobre esse episódio é que esse é um problema de Flávio Bolsonaro e não de corrupção do governo Bolsonaro. Difícil separar, até porque a família sempre teve os mesmos códigos, as mesmas convicções e os mesmos métodos. Queiroz sempre foi homem de confiança do pai, antes de ser o chefe de gabinete do filho. A presença frequente de Frederick Wassef no Planalto e no Alvorada mostra que não há separação fácil neste caso.

Na questão da pandemia, o entendimento no entorno do presidente é que ele tem razão de se preocupar com a economia, porque será uma grande tragédia em termos de quebradeira de empresas e de desemprego. A flexibilização, no entanto, só pode ocorrer — me disse um ministro — se for com protocolos corretos. Mas ouvi críticas às declarações do presidente de que era uma “gripezinha”. Até porque ainda ecoa internamente a previsão feita pelo ex-ministro Mandetta.

— Ele disse, quando ainda estava no governo, que em junho nós teríamos 50 mil mortos. Eu achei que ele estava exagerando — admitiu um ministro.

A avaliação interna é que o auxílio emergencial foi muito mais importante para o país, para as famílias e para as economias dos estados, do que o governo consegue comunicar. Chegou retorno inclusive de governadores da oposição, do Nordeste, das vantagens do auxílio. E por isso defende-se a sua extensão, mas em valor menor. Dizem que foi uma boia lançada no meio de uma tempestade no mar. Ela não pode ser retirada de repente, mas o país não tem capacidade fiscal de manter o mesmo valor. Claro que os ministros mais próximos do presidente criticam a imprensa. Ela é, segundo me disse um ministro, parcial, exagera as más notícias e dá pouco destaque às boas. Contudo, a avaliação é de que o presidente erra mantendo esse clima de permanente confronto.

Descarbonários - MERVAL PEREIRA

O Globo 24/06

O próprio setor agropecuário terá que certificar a produção, assumir um compromisso de moratória de queimadas


O que o governo Bolsonaro acusava de “ecoterrorismo” acabou se concretizando. O aumento do desmatamento e a política de direitos humanos em relação aos povos indígenas provocaram carta de um grupo de investidores internacionais, que gere US$3,75 trilhões, a seis embaixadas brasileiras na Europa, além de Estados Unidos e Japão.

Nela, advertem que o que classificam de “desmantelamento” de políticas ambientais e de direitos humanos poderá levar empresas expostas a eventual desmatamento em suas operações no Brasil e cadeias de fornecedores a enfrentar dificuldade crescente para acessar os mercados internacionais.

Essa preocupação não é por desinformação, como quer o presidente Bolsonaro, mas pelo excesso de informações, pois como diz a presidente do partido Rede Sustentabilidade, Marina Silva, a mais importante líder ambientalista do país, “os satélites não mentem”.

Ela teme que a situação se agrave com a União Europeia se juntando aos Estados Unidos na questão ambiental com o democrata Joe Biden derrotando Trump nas próximas eleições presidenciais. Há poucos dias, Marina participou de um webinar organizado em parceria com a Climate Alliance, a Rainforest Foundation Norway e a Society for Threatened Peoples, com deputados do parlamento europeu Kathleen Van Brempt e Anna Cavazzini, representantes de povos indígenas e de ONGs dedicadas aos direitos humanos e ao clima, intitulado “Como a Europa pode apoiar o Brasil na atual crise humanitária e ambiental?”

Marina fez uma ressalva: “Nem todo setor produtivo pode ser colocado na mesma vala comum”. E nem o governo brasileiro representa hoje a maioria do povo. Na webinar, ela falou sobre a necessidade de ajuda internacional ao país, e ontem me detalhou a proposta.

Pela gravidade da situação, avalia que será preciso tomar “medidas de emergência”, e como o governo não merece confiança, esta tarefa terá que ser cumprida pelo próprio setor agropecuário: certificar a produção, assumir um compromisso de moratória de queimadas, um programa de baixo carbono e rastreabilidade, tudo com marcos temporais e supervisionado por um comitê de acompanhamento da sociedade civil.

Alfredo Sirkis, que foi coordenador da campanha presidencial de Marina Silva, marca essa luta ambiental com o lançamento de um novo livro, em versões ecologicamente corretas: e-book, audiobook e impressão sob encomenda. Um dos fundadores do Partido Verde brasileiro há 35 anos, depois de ter sido vereador, secretário municipal, deputado Federal, Alfredo Sirkis hoje preside o Centro Brasil do Clima, que representa a fundação do ex-vice-presidente dos Estados Unidos e Prêmio Nobel da Paz Al Gore.

“Descarbonário” é uma bela sacada semântica que relembra seu livro de memórias guerrilheiras “Os carbonários”, lançado há 40 anos, e sua crença atual, a necessidade de descarbonizar o planeta. A narrativa se encerra na última semana de 2018, quando entregou, na qualidade de secretário executivo do Forum Brasileiro de Mudança do Clima, ao então presidente Michel Temer, o documento “Mudanças Climáticas: riscos e oportunidades para o Brasil”.

Hoje, o antigo carbonário define-se como “centro radical” e rejeita cabalmente a esquerda autoritária, leninista ou populista, e a direita reacionária ou fascistoide”. Ele, que foi vereador e deputado federal ao lado de Jair Bolsonaro, considera que, por perceber que uma parte dos ambientalistas era de esquerda, “em sua sesquipedal desinformação, passou a catalogar a questão ambiental e climática na “caixinha” do comunismo e a se identificar com todo grupo de atividade devastadora que avalia como progresso: grilagem, garimpo ilegal, invasão de terras indígenas, poluição.”

Desenvolveu uma antipatia visceral “por uma causa cujos pioneiros, ironicamente, foram ilustres militares, como o marechal Candido Rondon, o major Francisco Archer ou o almirante Ibsen de Gusmão.

Para Alfredo Sirkis, é besteira frequentemente repetida dizer que a mudança climática ameaça o planeta. “Quem está seriamente ameaçado é o Homo sapiens habitante do planeta”, que pode ter “como sina a de outras espécies dominantes no passado, como os dinossauros”.

Um ano perdido - VERA MAGALHÂES

O Estado de S.Paulo - 24/06

Fuga de Weintraub é símbolo final de desastre da Educação na pandemia


A fuga canhestra de Abraham Weintraub do País e seu desembarque caricato em Miami foram o apogeu de uma gestão daninha na Educação.

O pior ministro da Educação que o Brasil já teve se despediu com um bilhete em papel de pão, um abracinho no presidente e uma banana para o País. Para poder entrar nos Estados Unidos, se valeu de uma fraude ao Diário Oficial, mais um expediente que vai se tornando rotina no governo coalhado de ilegalidades de Jair Bolsonaro.

Antes de mais essas cenas de pastelão, no entanto, o dono da cachorrinha Capitu entregou um ano perdido, em que os alunos não foram apenas expostos aos riscos para a saúde física e mental decorrentes da pandemia, mas à completa falta de perspectiva para seu futuro escolar graças à inépcia do Ministério da Educação.

Depois de, por pura birra, tentar obrigar alunos do Ensino Médio a fazer o Enem sem ter aulas, ou tendo sido jogados de paraquedas num ensino à distância com mais buracos que a superfície da Lua, e ser forçado a recuar pela Justiça e pelo Congresso, Weintraub simplesmente desligou as operações.

Não houve, por parte do MEC, uma diretriz sequer de retomada a Estados e municípios de como planejar a retomada das aulas, e a que tempo.

Além disso, o ministério, que já era um ator tardio e secundário na discussão do financiamento da educação básica a partir do ano que vem, se esqueceu deliberadamente do assunto.

O ministro-clown preferiu gastar seus últimos dias à frente da pasta conspirando contra a democracia, confraternizando com milicianos golpistas, tentando impor às universidades federais reitores biônicos e exterminar as políticas de ação afirmativas adotadas para franquear o acesso à pós-graduação a negros, indígenas e deficientes.

Numa calamidade sanitária, empenhou toda a sua energia na destruição, na apologia ao golpismo, à obsessão de fechar portas àqueles para os quais a Educação deveria ser uma ponte para o futuro.

O estrago é tão indisfarçável que Bolsonaro, que também não está nem aí para a Educação, tem de cobrar dos candidatos a ministro um plano para a volta às aulas, já que a equipe que o fujão deixou não tem nada a apresentar, ao que parece.

As consequências recaem sobre alunos de todos os ciclos, de todo o País e das redes pública e privada. E a borduna, como sempre, vai bater mais forte na cabeça dos mais pobres. As iniciativas municipais e estaduais de ensino à distância são um conjunto irregular e fake, em que uns saíram levemente na frente e outros não conseguiram nem se organizar três meses depois.

Não há compensação possível, por exemplo, para alunos de universidades federais cujas instituições nem tentaram implementar ensino à distância. Jogados em casa, muitas vezes sem acesso a entretenimento ou cultura, esses alunos questionam se o plano que haviam traçado para o próprio futuro ainda fará sentido após a pandemia ter varrido perspectivas acadêmicas, empregos e cadeias produtivas inteiras.

Os pais dos estudantes de escolas e faculdades privadas podem até ter a ilusão de que as aulas online supriram esse buraco, mas basta acompanhar um dia da rotina de alunos jogados diante de telas que jogam conteúdos incompatíveis com a nova realidade para saber que isso é conversa mole para cobrar mensalidade integral.

Cabe a esses pais e estabelecimentos se entenderem, mas no caso da Educação pública a responsabilidade é dos governantes. É urgente que o MEC exume o fantasma Weintraub e assuma um mínimo de articulação de estratégia educacional. E governadores e prefeitos têm de deixar de pensar em reabrir shoppings e focar em dar a pais e alunos um protocolo responsável para redução de danos de um ano perdido.

Governo suspendeu multa de R$ 27 milhões a consórcio com empresa da ex-mulher de Wassef

O GLOBO - 24/06


Punição aplicada pela Dataprev em 2018 foi revista na gestão Bolsonaro

Juliana Dal Piva


RIO — O governo federal suspendeu em 15 de março do ano passado uma multa de R$ 27 milhões aplicada a um consórcio de empresas contratado em 2014 mas que não entregou os serviços previstos pela Dataprev, a Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência, vinculada ao Ministério da Economia. Entre os membros do consórcio multado está a Globalweb Outsourcing, que possui como fundadora e presidente do conselho de administração a empresária Cristina Boner Leo, ex-mulher de Frederick Wassef, advogado da família Bolsonaro. A Dataprev diz que o caso ainda está em análise e nega interferência política na decisão.

Contratada por R$ 17 milhões para estruturar um sistema de tecnologia para a Dataprev até 2015, com prazo prorrogado primeiramente para 2016, o consórcio MG2I não havia entregue o serviço até abril de 2018, ainda no governo Michel Temer, conforme relatado em documento da Divisão de Gestão e Fiscalização Administrativa de Contratos do Dataprev, assinado pela servidora Luciana Lopes Bon no dia 6 daquele mês.As mudanças nas decisões da Dataprev Foto: Reprodução

No documento, a Dataprev faz relato do atraso na entrega dos serviços e informa ao consórcio que, “devido aos constantes descumprimentos contratuais retratados”, o órgão havia decidido “rescindir o contrato unilateralmente, assim como suspender o direito de licitar e de contratar de todas as empresas participantes deste consórcio”.

Além disso, a Dataprev comunicou a aplicação de uma multa de R$ 27,1 milhões. O valor foi calculado levando em conta o valor do contrato, o não cumprimento dos prazos e o fato de o consórcio ter recebido até então R$ 1,7 milhão sem entregar os serviços.

No dia 15 de março do ano passado, já no governo Bolsonaro, o Diário Oficial da União registrou que a Dataprev e o consórcio MG2I “acordam pela suspensão de comunicação de rescisão e da aplicação de sanções contratuais previstas na CE/DGFC nº 428/2018”, e que o contrato foi prorrogado até outubro deste ano.

Quando o governo Bolsonaro publicou o acordo, Frederick Wassef já era advogado do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) na investigação sobre a suspeita de “rachadinha” no antigo gabinete de Flávio na Alerj. Wassef viveu em união estável com Cristina Boner Leo desde 2011 e diz estar separado dela há dois anos. No dia da prisão do ex-assessor de Flávio Fabrício Queiroz, na casa do advogado em Atibaia (SP), Wassef estava na casa de Cristina, em Brasília. Além de ter Cristina na diretoria, a Globalweb possui Bruna Boner Leo, sua filha, como sócia.

Rescisão unilateral

O texto do setor de Fiscalização de Contratos da Dataprev justifica a multa e rescisão ao dizer que havia um “percentual de conclusão extremamente baixo, mesmo passados 19 meses do prazo”. O consórcio venceu o pregão em 2014 e tinha como prazo para a entrega dos serviços 21 de julho de 2015. Três aditivos foram feitos para que o serviço fosse concluído até setembro de 2016, o que não tinha ocorrido em abril de 2018, quando a Dataprev optou pela rescisão.

Procurada para explicar como conseguiu o acordo publicado em março de 2019, a Globalweb informou, por nota do CEO Pedro Rondon, que o consórcio negociou o acordo durante o ano de 2018 e apenas “o processo burocrático de validação jurídica e assinatura do aditivo se estendeu até fevereiro de 2019, com publicação no Diário Oficial em março de 2019”. Segundo ele, não houve “qualquer interferência política do governo Bolsonaro, dado que a decisão foi tomada exclusivamente com base nos planos de ação e implantação apresentados pelo consórcio”. O GLOBO solicitou os documentos da negociação, mas eles não foram fornecidos.

A Globalweb alega que os atrasos ocorreram porque, após a contratação e início das atividades, houve mudanças nas especificações do sistema. De acordo com a empresa, o pedido de rescisão unilateral foi uma surpresa e que, após o acordo, “uma nova solução que atende totalmente o edital foi apresentada”, com um novo prazo para conclusão.

Procurada, a Dataprev informou inicialmente em nota que “sob nova gestão, em 14 de março de 2019, a Diretoria Executiva da Dataprev, em razão do histórico de sucessivos atrasos na execução contratual, desde a sua assinatura, decidiu por, novamente, suspender a execução do contrato”. E acrescentou que, caso a análise do caso encontre irregularidades, a multa será aplicada.Segundo o Portal da Transparência no site da Dataprevi, contrato do consórcio MG2I segue vigente Foto: Reprodução

Alertada de que a data mencionada era a véspera da publicação no D.O. que suspendia a multa e retomava o contrato, a Dataprev se retificou e afirmou então que a nova suspensão do contrato se deu no dia 30 de abril de 2019. O GLOBO não encontro registro público, no Diário Oficial, dessa nova suspensão. Além disso, o portal da transparência no site da Dataprev indica o contrato como “vigente”.

A Dataprev afirma ainda que todas as decisões da atual diretoria baseiam-se em análises e critérios técnicos.

Procurado, o advogado Frederick Wassef não retornou.

Se o comunismo ameaça capitalismo nativo, nosso maior comunista é Bolsonaro - REINALDO AZEVEDO

UOL - 24/06

Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente. Saída de Bolsonaro é um pouco mais demorada. Depredador ambiental tem de cair já. Para o bem do agronegócio e do país


O melhor que o capitalismo brasileiro poderia fazer em favor de si mesmo e do povo seria demitir Jair Bolsonaro. Mas isso não é coisa, se acontecer, que se faça da noite para o dia. Então, por ora, para se preservar de uma encrenca monumental, o país tem de botar na rua o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Já não se trata mais de um risco. A questão chegou ao nível das advertências — e, pois, das ameaças: no caso, é a civilização ameaçando a barbárie, o que não deixa de ser um momento raro na história da humanidade.

A verdade inequívoca é que a política ambiental é a principal fragilidade do Brasil quando este é submetido aos olhos do mundo que interessa. Na toada em que a coisa vai, investimentos externos tendem a ignorar o país, e o setor mais virtuoso de sua economia, o agronegócio, pode sofrer sucessivos golpes em razão da estupidez que reina na área.

A referência da antipolítica ambiental do atual governo não é preservação do meio ambiente somada às virtudes do agronegócio de ponta. Tomam-se medidas para agradar madeireiros ilegais, invasores de terras indígenas e pistoleiros disfarçados de empreendedores rurais.

OS FUNDOS
Nesta segunda, 29 fundos de investimentos que administram a bagatela de US$ 4,1 trilhões (R$ 21,6 trilhões) enviaram uma carta a sete embaixadas brasileiras -- EUA, Japão, Noruega, Suécia, Dinamarca, Reino Unido, França e Holanda -- pedindo uma reunião para discutir o desmatamento na Amazônia.

Esses fundos acompanham o que acontece no país em detalhe. O documento especifica até número de expedientes legais que regularizam invasão de área pública e exploração de terra indígena e, ora vejam!, fazem referência explícita àquela intervenção indecorosa de Salles da reunião ministerial macabra do dia 22 de abril.

Segundo o texto, as "declarações recentes do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que usou a crise da Covid-19 a fim pressionar pela desregulamentação ambiental", são um exemplo de "ameaça da desregulamentação das políticas de defesa do meio ambiente e dos direitos humanos no Brasil".

PARLAMENTARES EUROPEUS
Na quinta, dia 18, Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, recebeu uma carta de 29 integrantes do Parlamento Europeu que manifestam a sua preocupação com o que veem como uma escalada no país contra o Meio Ambiente.

Os digníssimos integram a Comissão de Ambiente e comitês que tratam de agricultura e comércio exterior. Sem a concordância, entre outros, do Parlamento Europeu, não existe acordo Mercosul-União Europeia. Vai ver é precisamente isso o que querem os lunáticos que se dizem antiglobalistas. Vai ver o comércio internacional é prejudicial aos tradicionais valores do nosso povo, não é mesmo?

Também nesse caso, a situação é acompanhada com lupa. Os eurodeputados citam como perigo ao meio ambiente e aos direitos humanos o PL 2.633, que trata da regularização de terras públicas invadidas; o PL 3.729, que muda regras de licenciamento ambiental, e o PL 191, sobre extração mineral em terras indígenas.

E, claro!, também nesse caso, Salles, que envergonhou o Brasil na mais recente Cúpula do Meio Ambiente, é apontado como uma ameaça — o que, de resto, ele de fato é. Os parlamentares europeus pedem que seus congêneres brasileiros "ajam para manter e restaurar as leis e a estrutura necessária para proteger as florestas brasileiras e os direitos dos povos indígenas".

ENTIDADES
A terceira iniciativa é mais do que um puxão de orelha. Trata-se de uma ação prática. Cinco entidades internacionais de defesa do meio ambiente e dos direitos humanos -- ClientEarth, Fern, Veblen Institute, FIDH e Fondation pour la Nature et l'Homme -- apresentaram uma queixa à ombudsman da União Europeia pedindo a suspensão das tratativas do acordo do bloco com o Mercosul até que a questão ambiental no Brasil seja devidamente debatida.

Eis aí: sob o pretexto de combater o comunismo e o globalismo, o governo Bolsonaro é hoje a maior ameaça ao capitalismo no Brasil, muito especialmente a seu setor mais dinâmico, o único que não foi à breca com a crise do coronavírus: o agronegócio.

Os fundos de investimento chegam a citar nomes de empresas brasileiras que já estão sendo prejudicadas pela má reputação da política ambiental. E má reputação justificada. Também nessa área, o governo Bolsonaro mais se ocupou em destruir as políticas que estavam em curso do que em construir alternativas virtuosas.

O Brasil tem uma bancada ruralista numerosa e influente. Cabe a seus membros decidir se apostam no fortalecimento do agronegócio ou se dão sustentação a uma política que ampara a pistolagem no campo, ameaçando as exportações brasileiras e os investimentos.

MST? Não representa risco nenhum ao agronegócio. O nome do perigo, hoje, com reputação internacional já firmada, é mesmo Ricardo Salles. Que seja removido como medida imediata possível. Ou o país quebra a cara. Se o comunismo é mesmo uma ameaça ao capitalismo brasileiro, como querem os malucos, o maior comunista da nossa história se chama Jair Bolsonaro.

Caça acuada, caçadores em vigília - ROSÂNGELA BITTAR

O Estado de S.Paulo - 24/06

Os fatores que sustentam a mudança de rumo estão em plena ebulição


Aparentemente, há fatos e indícios demais que justificam o afastamento do presidente Jair Bolsonaro. O consenso na política, porém, é de que o cenário ainda exige cautela. A caça foi avistada, está acuada, mas ainda não pode ser alcançada.

Os fatores que sustentam a mudança de rumo estão em plena ebulição. Apenas a reeleição, que Bolsonaro sempre considerou favas contadas, está fora de cogitação. Sucumbiu junto com os milhões de vítimas da covid-19 e dos desempregados por ela. Ainda há quem acredite na reabilitação do candidato nesses próximos dois anos e pouco, mas estes são raros.

Ninguém mais discute, porém, se o presidente resistirá até o fim do mandato. A dúvida é sobre como vai sair, se pela impugnação da chapa no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ou pela deposição via Congresso, o impeachment. Para os dois desfechos ainda não existem as condições necessárias, em provas, perdas de apoio, enfraquecimento político.

A novidade atual é a troca de posição das probabilidades. A impugnação no TSE, que até há duas semanas era vista como a hipótese mais fácil, perdeu favoritismo. A equação se inverteu.

Duas razões se destacam para a desistência desta aposta. A cassação eleitoral padece de provas incontestáveis. Robôs espalhando notícias falsas, com formação de rede do ódio e seus efeitos decisivos na eleição, são provas “tênues” politicamente, questões áridas e técnicas, de difícil compreensão, até mesmo para os juízes da corte eleitoral.

A impugnação da chapa tornou-se menos palatável. Também, pelo longo tempo que se passou desde a eleição e a extensão da punição ao general Hamilton Mourão, vice-presidente, que não assumiria o poder. Está prevalecendo, no momento, o argumento oposto ao de um grupo da oposição que prefere esta saída exatamente para se livrar de Mourão. Mas já não é a mais realista.

Não por temor de um levante militar. Como mostrou reportagem de Tânia Monteiro, no Estadão, na segunda-feira, o chamado poder militar, representado pelos 11 comandantes que têm o controle das tropas, não tem gabinete no Palácio do Planalto. Atingir Mourão na derrubada de Bolsonaro pode ser um passo em falso e desnecessário.

Quanto ao impeachment, há muita coisa para se imaginar, mas ainda pouca coisa a ver.

A pandemia impede que os líderes e negociadores realizem reuniões. Ninguém articula deposição de presidente da República via internet. Bolsonaro está sendo favorecido justamente pela avassaladora e cruel doença que renegou, desprezou e ironizou. A pandemia da covid-19 tende a manter a política sob pressão até o fim do ano, no mínimo.

Por isto, a análise de pedidos de impeachment é considerada sem viabilidade no momento. Depois das eleições municipais, quem sabe?

A imagem do presidente dificilmente se reerguerá. Foi contaminada pelos piores símbolos do seu governo: os apoiadores presos por atos antidemocráticos, os empresários periféricos financiadores da baixaria, os advogados saídos de becos de arranjos. A tradução do governo, hoje, são as Saras, os Queiroz, os Hangs, os Wassefs.

Estão apenas no começo as investigações sobre os escândalos da “rachadinha”, do gabinete do ódio e dos atos que pedem a volta do AI5.

A equipe econômica pioneira já começou a se dissolver. Até quando o ministro da Economia resistirá?

O presidente fez um cálculo objetivo ao apostar todas as suas fichas no Centrão, alimentado pelos melhores cargos políticos, como os Ministérios das Comunicações, possivelmente o da Educação, os bem nutridos Fundos de financiamento da Educação e da Saúde.

Com este arsenal, o Centrão entra forte na campanha municipal. O que fará depois, são outros quinhentos. Se o cofre a proteger estiver vazio, enfraquecido, isolado, o grupo embarcará, como é de sua natureza, na expectativa de poder futuro.

Brasil: o destino de nunca ser liberal - CRISTIANO ROMERO

Valor Econômico - 24/06

Aqui, liberalismo e liberal são palavras demonizadas


Uma das palavras mais demonizadas do nosso vocabulário é "liberalismo". Sim, o vocábulo, porque, no fundo, não importa discutir seu significado real, a ideia, a doutrina ou o modelo de funcionamento de uma economia. Na Ilha de Vera Cruz, mesmo nas universidades, lócus por definição do debate de ideias, não se vai muito longe na discussão do tema. Ora, por quê? Porque o liberalismo econômico, nos ensinam os livros didáticos desde a tenra infância, é coisa de capitalista selvagem, empresário malvado e banqueiro usurpador, assim como de duas categorias cuja existência, para os anti-liberais, dispensa adjetivos: os investidores da bolsa de valores e os investidores estrangeiros.

A história nos conta por que somos assim, desde as capitanias hereditárias, a forma encontrada pelo já decadente reino de Portugal de ocupar esta imensa "ilha", antes que alguém o fizesse.

"Descoberta" em 1500, Cabrália só começou a ser realmente colonizada 34 anos depois, quando D. João III dividiu o território à régua _ sem levar em consideração os acidentes geográficos que costumam demarcar cidades, Estados e até países _ em 15 capitanias. Como o reino estava falido, cada área foi concedida a um donatário que tivesse recursos para ocupar e administrar a sua área, que não lhe pertencia, mas a Portugal.

A ocupação era urgente porque franceses vieram aos baldes, nas três primeiras décadas de existência da América Portuguesa, depenar a vasta Mata Atlântica para extração de pau-brasil, madeira resistente usada na fabricação de móveis, instrumentos musicais e, ainda, no tingimento (vermelho) de tecidos. Antes das capitanias, funcionaram as feitorias, um monopólio concedido pelo reino português aos exploradores e comercializadores de pau-brasil. Mais adiante, em 1550, os franceses tentaram tomar a pulso parte da Ilha de Vera Cruz do domínio português...

Os donatários das capitanias começaram a desenvolver a lavoura de cana de açúcar e a produção de açúcar, principal produto da colônia dali em diante e por mais de dois séculos. Ali, criou-se a ignomínia que nos caracteriza como sociedade: a escravização de indígena e de africanos. No tempo das feitorias, os índios faziam o trabalho pesado de derrubar as árvores de pau-brasil, mas, em troca, recebiam bugigangas europeias dos feitores. Era um tipo de escravidão, mas esta só foi posta em prática oficialmente com o início do plantio de cana-de-açúcar. À medida que o cultivo da cana foi avançando, o tráfico de africanos escravizados na colônia de Portugal nas Américas cresceu exponencialmente. Como se sabe, apenas em 1888, quase quatro séculos depois, a escravidão foi abolida no Brasil, o último país do Novo Mundo a fazer isso. Tarde demais.

Este país habitado hoje por 210 milhões jamais conseguiu superar as capitanias hereditárias (cartórios), as feitorias (monopólios), a escravidão (a forma mais perversa de não se reconhecer no outro, obstáculo intransponível para o florescimento de uma nação). Grosso modo, esses elementos sempre estiveram presentes na forma como nossa economia funciona. A história nos ensina que grupos específicos, minoritários quando comparados ao conjunto da população, dividem entre si os sempre parcos recursos do Estado.

A tradução moderna e contemporânea do modelo de formação econômica e política está, por exemplo, no poder autóctone da burocracia estatal _ que, isolada em Brasília, goza de privilégios, como o direito absoluto à estabilidade no emprego, e toma decisões em seu próprio benefício ao arrepio da sensatez e da opinião de quem lhe paga os salários. Revela-se, também, na manutenção sob o guarda-chuva do Estado de um sem-número de empresas estatais, periodicamente flagradas malversando recursos públicos em prol de interesses de empresas privadas.

Nossa herança maldita se manifesta na inaceitável tolerância do Estado com a existência de monopólios e de setores com elevado grau de concentração. Este não só provoca ineficiências na economia como um todo, mas representa também uma ameaça à própria democracia. Nos regimes democráticos, têm enorme vantagem sobre os outros os detentores de poder econômico e informação. Esses ativos são comumente usados nas disputas de poder e não raramente de maneira desonesta. A razão disso é simples: a posse dessas vantagens gera assimetrias que podem desequilibrar a luta política e, assim, fragilizar a democracia.

O atraso secular se traduz, ainda, na concessão, pelos governantes, de uma miríade de incentivos fiscais (que reduzem a capacidade da União, dos Estados e municípios de investir onde são mais necessários, ou seja, em educação e saúde) a grandes companhias, que têm acesso a crédito bancário e ao mercado de capitais. Ao mesmo tempo, é negada aos pequenos empreendedores e empresas qualquer forma de ajuda. Ao contrário das grandes companhias, as pequenas têm que buscar crédito no mercado, onde os juros são muito mais altos.

Por, não se deve esquecer que a nossa (de)formação histórica aparece, com nitidez desconcertante, na convivência cínica das elites (todas) com vergonhosos indicadores de violência (60 mil homicídios por ano), pobreza (50 milhões de miseráveis), desigualdade (1% da população detém 28,3% da renda, enquanto os 50% mais pobres ficam com 13,9%) e de qualidade da educação (no país onde se destacam tantos especialistas nessa área, entra ano, sai ano, e nossos adolescentes ocupam sempre as últimas colocações do Pisa, programa da OCDE que mede e compara o desempenho de estudantes de dezenas de nações em provas de matemática, ciências e língua pátria.

Nada disso tem qualquer relação com o liberalismo econômico. É justamente o oposto. Na verdade, neste imenso pedaço de terra, ideias liberalizantes jamais frutificaram. Não há liberais de verdade por aqui. No fundo, o liberalismo - concebido por Milton Friedman - é uma utopia. A saga continua...

A quitanda está abandonada - ELIO GASPARI

O GLOBO/FOLHA DE SP - 24/06

É necessário que o presidente se associe à administração


Hoje completam-se dois meses da saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça. Parece que foram dois anos. De lá para cá, no meio de uma epidemia, caíram dois ministros da Saúde e escafedeu-se o da Educassão. Isso, esquecendo-se da novela de Regina Duarte. O czar da Economia está atordoado, prestes a abandonar a emenda constitucional que aliviaria as finanças de estados e municípios. Do outro lado do balcão há mais de um milhão de pessoas infectadas pelo coronavírus e 12 milhões de desempregados.

Desde o dia em que assumiu a Presidência, Jair Bolsonaro sabe que precisa respeitar a primeira Lei de Delfim Netto: “Tem que abrir a quitanda às nove da manhã com berinjelas para vender a preço razoável e troco na caixa para atender à freguesia.”

Entra-se na quitanda e lá discutem-se as prerrogativas do Judiciário, o silêncio de Fabrício Queiroz, o paradeiro de sua mulher, a fidelidade de Frederick Wassef e as virtudes da cloroquina. Berinjelas? Só quando se souber o que será colocado no lugar do PróBrasil, aquele ex-Plano Marshall. Troco? Só quando o gerente e o caixa chegarem a um acordo a respeito do valor do auxílio para os “invisíveis”. O secretário do Tesouro está de malas prontas.

Depois de encrencar com meio mundo, Bolsonaro diz que a imagem do Brasil “não está boa” porque há muita desinformação. Está ruim porque seu governo ampara os agrotrogloditas que dificultam os negócios de empresas competitivas e até mesmo a vida de sua ministra da Agricultura, obrigada a apagar incêndios da Europa à China. Nas palavras do presidente da Cargill, a maior exportadora de soja e milho, “é preocupante ver oficiais do governo insultando nosso principal cliente”. Se a quitanda está emperrada por desinformação, ela vem do governo. Em agosto de 2019, quando começaram as trapalhadas do governo, o empresário Blairo Maggi avisou: “O governo não fez nenhuma mudança aqui internamente, não facilitou a vida de ninguém, no entanto, estamos pagando um preço muito alto. Acho que teremos problemas sérios. Não tem essa que o mundo precisa do Brasil”. Maggi conhece todos os cantos da quitanda, é um dos maiores produtores de grãos do país, foi senador, ministro da Agricultura e governou Mato Grosso.

Esticando cordas, o capitão atrapalhou até a vida de parte de sua base de apoio nas Forças Armadas. Cumpriu uma escrita fracassada, confundindo generais de palácio (reservistas, em muitos casos) com generais de quartéis.

Nos últimos dias, de Bolsonaro e de sua família partiram mais elogios a Fabrício Queiroz e ao doutor Wassef do que a todos os seus ministros. Assef e Abraham Weintraub foram os únicos colaboradores a quem se deu direito a uma saída honrosa. Ela foi negada a Sergio Moro e a Luiz Henrique Mandetta. A audácia do breve Nelson Teich construiu-lhe na saída uma honra que a entrada no ministério não lhe havia concedido.

É compreensível que os Bolsonaro queiram se dissociar dos milicianos com quem se meteram, mas é necessário que o presidente se associe à administração. Seria boa ideia ouvir a canção de Carlos Lyra:

“Vou pedir ao meu babalorixá/ Pra fazer uma oração pra Xangô/ Pra pôr pra trabalhar gente que nunca trabalhou.”

Chegam contas da destruição da Amazônia - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 24/06

Pedido de explicações a embaixadas é o primeiro passo rumo a boicotes a exportações brasileiras de alimentos


O conselho que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, deu na reunião ministerial de 22 de abril a seus colegas de governo, de aproveitarem que as atenções estavam voltadas à epidemia do coronavírus para derrubar regulações e fazer “a boiada passar”, piorou a já danificada imagem do Brasil perante empresas globais de comercialização de commodities alimentícias e grande fundos de investimento que atuam neste setor. Aquela participação de Salles na reunião não passou despercebida a grandes operadores no comércio internacional e a fundos de investimento que participam de empresas deste ramo. Mas mesmo sem a divulgação do vídeo a situação não estaria melhor.

Muito antes de 22 de abril, o avanço do desmatamento e das queimadas na Amazônia, na fase inicial do governo do novo presidente, já confirmou ser alto o risco Bolsonaro para este segmento de gestão de grandes negócios com alimentos e matérias-primas em geral, cada vez mais pressionado por seus acionistas a ter um comportamento responsável do ponto de vista ambiental e de direitos humanos.

Carta aberta enviada segunda-feira a embaixadas brasileiras em oito países — seis na Europa, Estados Unidos e Japão — manifestando preocupação com a velocidade do desmatamento no Brasil e com a desmontagem de políticas ambientais e de direitos humanos, leia-se, índios — pediu reuniões virtuais com os embaixadores para abordar o assunto. O grupo que subscreve a carta administra ativos de US$ 3,75 trilhões ou o equivalente a R$ 20 trilhões. A preocupação é com o risco de as empresas que controlam e que atuam na produção e/ou comercialização de alimentos brasileiros passem a ter dificuldades de acesso aos grandes mercados.

O ministro Ricardo Salles, como todo bolsonarista, é contra o “globalismo” — mesmo que não diga. Esquece que, com dificuldades para exportar carnes e grãos, caso ocorram os boicotes no exterior devido ao descontrole ambiental e o descuido com as reservas indígenas, o Brasil terá ainda mais dificuldades para sair da recessão que chega no vácuo da Covid-19. E sem uma agricultura moderna, dependente da globalização, o governo Bolsonaro ou qualquer outro terá enormes dificuldades para manter as contas externas em dia e a inflação sob controle.

Este tipo de reação não ocorre apenas a partir de grupos empresariais. Na sexta-feira da semana passada, a Comissão Europeia, braço executivo da União Europeia, pediu sugestões de uma estratégia mais incisiva para impedir a chegada de produtos oriundos de regiões de desmatamento da Amazônia ao comércio de todos os países do bloco.

Em risco imediato está a maior parte das exportações de commodities agrícolas. Em um ano e meio de governo, Bolsonaro abala vantagens que o Brasil conquistou em meio século de investimentos e esforços. Também haverá dificuldades na venda de títulos de dívida brasileiros. Bolsonaro prefere explicar tudo como fruto de “desinformação”. É o contrário: o boicote pode vir porque não faltam informações.

O bandido Adriano e a famiglia Bolsonaro - JOSÉ NÊUMANNE

ESTADÃO - 24/06

MP do Rio desvenda relações promíscuas entre ex-faz-tudo de Flávio e milícia carioca


As patranhas que envolvem o escândalo no gabinete do senador Flávio, primogênito do presidente Jair Bolsonaro, quando era deputado estadual começam na denominação íntima da prática criminosa investigada pelo Ministério Público (MP) do Rio: “rachadinha” ou “rachid”. Para chamar delitos por sua gravidade real urge usar nomes com que os define o Código Penal: peculato (uso de dinheiro público para proveito pessoal), corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Os seis anos da Operação Lava Jato familiarizaram o brasileiro com o que se faz em Casas Legislativas do País por parlamentares de todos os entes federativos e sem exceção de legendas. Ou seja, contratar por vencimentos superiores à média servidores dispensados do expediente e obrigados a entregar parte do que ganham aos empregadores.

O filhote 01 do fundador da “nova política” é acusado de chefiar malfeitores que atuaram em seus quatro mandatos na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Conforme o MP do Rio, cuidava disso o ex-subtenente da Polícia Militar (PM) fluminense Fabrício Queiroz, preso numa operação conjunta das Polícias Civis do Rio e de São Paulo com autorização do juiz Flávio Itabaiana e supervisão da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Esta se tornou necessária pelo expediente a que recorreu o dono da casa, onde foi encontrado o acusado, de pôr na parede a placa do escritório de advocacia Wassef & Sonnenberg (nome da cidade polonesa de um campo de concentração nazista e sobrenome da prima e sócia). Imagens do vídeo produzido pelas autoridades revelam a associação entre tirania, representada por um cartaz referente ao AI-5, sigla com que se sintetiza a ditadura militar, e a Máfia, simbolizada pelo boneco de Tony Montana, personagem do filme Scarface, gângster cruel da Chicago da Lei Seca.

A biografia profissional do dono do imóvel que serviu de cativeiro ao protagonista do escândalo acrescenta a essas referências a atuação do ex-advogado do presidente da República e de seu filho senador em denúncias de infanticídios. Frederick Wassef era devoto da seita satânica Lineamento Universal Superior (LUS), liderada por Catarina de Andrade, autora do livro Deus, a Grande Farsa, acusada e inocentada por falta de provas do desaparecimento de dois garotos de 6 anos em Guaratuba (PR), em 1992. Ele também advogou para Catarina, indiciada como mentora intelectual de 18 homicídios de meninos com idades entre 8 e 14 anos, de 1989 a 1993, no Pará e no Maranhão. Segundo os autos, os assassinatos faziam parte de um ritual de “magia negra”. Desses, cinco corpos não foram encontrados, três sobreviveram mutilados e 11 foram assassinados e castrados em Altamira (PA).

Wassef, que se jacta de ter dado ao deputado Bolsonaro a ideia de se candidatar à Presidência, obteve liminar do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, paralisando por seis meses as investigações financeiras do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) para beneficiar Flávio e outros. Mas o plenário anulou seus efeitos. Com isso foi retardada, mas não impedida a investigação do MP do Rio, que contém imagens de Fabrício pagando boletos de escolas das filhas e mensalidades de planos de saúde do chefe na Alerj.

O inquérito resultou na prisão preventiva do ex-companheiro de pescarias do presidente na casa do ex-advogado da famiglia Bolsonaro, desnudando a relação de Fabrício com o capitão Adriano da Nóbrega, chefão da milícia do Rio das Pedras e do Escritório do Crime. O depósito de mais de R$ 400 mil em dinheiro vivo do miliciano na conta do ex-faz-tudo do 01 soma-se agora às manifestações de simpatia do presidente e do senador pelo criminoso executado na Bahia. Jair, então deputado federal, prestigiou seu julgamento por homicídio e ordenou que o filho o condecorasse com a Medalha Tiradentes na cela onde vivia. Flávio ainda manifestou seu apreço por Adriano à época de sua morte, ocasião em que Fabrício se disse muito triste por ter perdido um amigo.

Embora peculato, corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa sejam tipificações penais muito graves, elas não são comparáveis à conexão com milícias, grupos mafiosos que espoliam comunidades pobres e matam quem atravessar o seu caminho. Nunca foi secreta a generosidade com que o presidente e o senador transformaram seus gabinetes em associações assistencialistas de familiares “desamparados” de milicianos, empregando-os sem exigir que trabalhassem. Foi o caso de Raimunda Veras Magalhães, mãe de Adriano. Outra beneficiária da caridade com chapéu alheio (dinheiro público) do clã presidencial, Márcia Aguiar, mulher de Fabrício, é agora foragida da Justiça.

Com mais de 1 milhão de casos e de 50 mil mortos pela covid-19, aos quais o presidente Jair Bolsonaro nunca deu a mínima atenção, tratando a pandemia como um “resfriadinho”, a crise sanitária e a depressão econômica são usadas por líderes das instituições democráticas como pretextos para não fazerem o que urge ser feito: fora, Bolsonaros. Fazem o que de pior pode acontecer com o Brasil.

JORNALISTA, POETA E ESCRITOR

Salve-se quem puder - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 24/06

Presidente confirma que não compreendeu a dimensão da crise que lhe coube administrar


O presidente Jair Bolsonaro disse que o governo não tem como pagar mais duas parcelas de R$ 600 de auxílio emergencial para os trabalhadores que sofreram drástica perda de renda em razão da pandemia de covid-19. Segundo Bolsonaro, “a União não aguenta outro (pagamento) com esse mesmo montante”. Desse modo, o presidente confirma que não compreendeu a dimensão da crise que, quiseram os fados, lhe coube administrar.

Nenhum chefe de Estado digno do cargo que ocupa poderia sequer imaginar a hipótese de deixar à própria sorte milhões de concidadãos que repentinamente se viram privados de quase tudo por motivos alheios à sua vontade. E esses motivos não cessaram - muito ao contrário, como mostram os terríveis números do avanço da doença no País.

Para Bolsonaro, contudo, é preciso ter “responsabilidade”. E por “responsabilidade” o presidente entende que é a preservação das contas nacionais à custa da penúria de seus concidadãos.

Isso, numa hipótese benevolente, mostra que o presidente não entendeu nem seu papel na condução do País nem o risco que correm seus desafortunados governados. Já numa hipótese menos benevolente, pode-se especular, dada a insistência de Bolsonaro no erro mesmo diante de inquestionáveis evidências, que haja aí algum propósito político inconfessável - como, por exemplo, o de atribuir a governadores, muitos deles seus desafetos, a responsabilidade pela privação que afeta milhões de eleitores.

Afinal, desde sempre o presidente insiste, como tornou a fazer agora, que “talvez tenha havido um certo exagero no trato dessa questão”, referindo-se à imposição de isolamento social nos Estados, medida que desacelerou brutalmente a economia. O consenso entre todos os que prezam a ciência e não a irresponsabilidade é o de que esse, afinal, é o custo de salvar milhares de vidas e que cabe aos governos encontrar maneiras de mitigar os efeitos econômicos.

O auxílio emergencial é uma dessas maneiras, e uma das mais importantes. Seu custo integra o chamado “orçamento de guerra”, que dá ao governo liberdade de gastar o que for necessário para enfrentar a crise, sem as amarras fiscais do Orçamento regular e enquanto durar o estado de calamidade pública - que originalmente vai até o fim do ano.

Ou seja, o presidente não tem razão quando invoca o risco de insolvência da União como pretexto para deixar de pagar o auxílio emergencial no atual valor. “É exagero de quem diz isso”, afirmou, com razão, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ao comentar a observação do presidente. “O governo não pode esperar mais para prorrogar o auxílio. A ajuda é urgente e é agora”, enfatizou o deputado, que defende o pagamento dos R$ 600 por mais dois ou três meses, enquanto o governo estuda pagar mais duas parcelas, mas com valor inferior - especula-se algo em torno de R$ 200 ou R$ 300.

Em vez de tratar do auxílio emergencial como uma questão puramente fiscal e de tentar transformar a pandemia em ativo eleitoral, Bolsonaro - que, nunca é demais lembrar, é também presidente do comitê de gestão da crise criado junto com o “orçamento de guerra” - deveria empenhar-se para que esse auxílio chegue a quem precisa desesperadamente dele. Deveria assumir a coordenação dos esforços para lidar com a doença e com o impacto econômico. Deveria lamentar por cada um dos mais de 50 mil mortos nessa tragédia. Assim faria um estadista.

Mas Bolsonaro sempre preferiu fazer pouco da doença, dos doentes e dos que cuidam deles, investindo as energias nacionais em debates inúteis sobre remédios miraculosos e sobre supostas fraudes nos números de mortos para prejudicá-lo. Desfez-se de dois ministros da Saúde porque estes se recusaram a avalizar seus devaneios e segue dizendo que “não podemos deixar que o efeito colateral do tratamento da pandemia”, isto é, a paralisia econômica, “seja mais danoso do que a própria pandemia” - como se o fechamento de fábricas fosse mais grave do que a morte de milhares de cidadãos. Para Bolsonaro, cabe a seus desafortunados governados encontrar maneiras de sobreviver como puderem à pandemia, porque, se depender da disposição do presidente, o máximo que os milhões que correm o risco de ficar sem auxílio emergencial ouvirão de seu governo é: “E daí?”.