segunda-feira, outubro 30, 2017

Resgate do trabalho escravo - DENIS LERRER ROSENFIELD

O GLOBO/O ESTADÃO - 30/10


Quando expressões do tipo ‘dignidade humana’ são empregadas a torto e a direito, elas revelam apenas uma ausência de precisão


Palavras iludem; palavras esclarecem. Palavras produzem concórdia; palavras produzem discórdia. Tudo depende do significado que a elas atribuímos e do propósito a que almejamos.

A recente portaria do Ministério do Trabalho, relativa a uma maior precisão na definição do trabalho escravo, é um exemplo de como uma discussão que deveria ser técnica, vê-se eivada de tergiversações ideológicas. Para alguns, que se caracterizam pela má-fé, o presidente Temer e o seu ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, procurariam restabelecer o trabalho escravo no país, quando, na verdade, visam a combatê-lo com armas precisas, dentre as quais o significado mesmo das palavras.

A imprecisão da legislação a respeito, assim como a sua utilização, fez com que tenham sido poucas as pessoas efetivamente condenadas e presas pelo que se considera como trabalho análogo a escravo. Se a atual legislação fosse eficiente, se os auditores, fiscais, promotores e juízes do trabalho tivessem feito verdadeiramente o seu trabalho, seriam muitos, provavelmente, os que se encontrariam atrás das grades.

Em vez disso, temos uma campanha midiática concernente a empresas que supostamente estariam utilizando trabalho escravo, vindo a fazer parte de uma lista “suja” do Ministério do Trabalho. Lá são obrigadas a ficarem dois anos, não tendo acesso a créditos públicos, mesmo que tenham sanado as eventuais falhas assinaladas. São “condenadas” e “punidas”, embora não tenham passado por um verdadeiro processo jurídico.

Quando fala-se de resgate de trabalho escravo, pensa-se em pessoas que teriam sido resgatadas do que se poderia considerar como uma espécie de escravidão moderna. Pode isto ocorrer ou não, dependendo dos casos. O que não pode é o arbítrio tomar o lugar de um verdadeiro julgamento. Ora, é o que acontece quando o conceito de trabalho análogo a escravo é definido em termos de trabalho degradante. Vejamos alguns exemplos.

Em abril de 2011, na cidade de Campinas, uma empresa sofreu um auto de infração por ter deixado “de dotar os chuveiros de suporte para sabonete e cabide para toalha”. Foi lavrado um documento, constatando-se “condições degradantes a que foram submetidos os trabalhadores da empresa, que culminou com o resgate de 63 deles para as cidades de origem”. Ou seja, “condições degradantes”, incluídas na definição de trabalho escravo, são, então, consideradas em termos de ausência de suporte para sabonete e toalha, vindo a resultar no desemprego de 63 pessoas, devolvidas a seu lugares de origem. Em nome da defesa do trabalho “digno”, foram desempregadas!

Em outro auto de infração, a empresa teria deixado de “providenciar para que os locais destinados aos extintores de incêndio tivessem sido assinalados por um círculo vermelho ou por uma seta larga, vermelha, com bordas amarelas”. Note-se que uma mera ilicitude trabalhista, facilmente sanável, vem a ser identificada a “condições degradantes”, às quais os empregados teriam sido submetidos. Novamente, o mesmo linguajar, segundo o qual os trabalhadores teriam sido “resgatados” e retornados às suas cidades de origem. O que pode bem significar resgaste, palavra associada a uma operação especial destinada a liberar pessoas de uma situação de servidão ou de degradação física? Se esse fosse o caso, tratar-se-ia de uma missão impossível, por falta completo de objeto.

Outros exemplos poderiam ser dados no que diz respeito a “condições degradantes” e “jornada exaustiva”, inviabilizando tanto empresas quanto o emprego de pessoas. Uma legislação mais precisa permitiria diferenciar o que é próprio a ilícitos trabalhistas, puníveis com as multas correspondentes, do que seria o efetivo trabalho escravo, com cerceamento da liberdade, retenção de documentos, escravidão por dívidas e efetivas condições degradantes. Desta maneira, o combate ao trabalho escravo poderia ser efetivamente realizado, vindo a extinguir esta barbárie que ainda perdura.

De nada adianta o recurso a princípios que, de tão genéricos e abstratos, a tudo servem, o que significa dizer que servem para nada. Quando expressões do tipo “dignidade humana” são empregadas a torto e a direito, elas revelam apenas uma ausência de precisão e definição de quem as utiliza. Tal expressão presta-se a tantos significados quanto os sujeitos que as utilizam, vindo a perder o seu propósito de moralidade que nela está embutido. Para conceitos serem aplicados juridicamente, devem eles ser precisos, sob pena de tornaram-se meros instrumentos demagógicos.

A discórdia nasce do uso arbitrário e ideológico de conceitos. A concórdia de sua precisão e, também, da boa-fé dos interlocutores. O ministro Ronaldo Nogueira, dada a celeuma suscitada, colocou-se na posição de quem sabe e pretende negociar, anunciando um aprimoramento dessa portaria, visando a corrigir eventuais distorções e incompreensões. Duas visitas à procuradora-geral, dra. Raquel Dodge, foram realizadas, tendo por objeto o entendimento.

Conforme noticiado pelo próprio Ministério Público, a procuradora-geral teria feito sugestões, como a de tornar o acompanhamento da Polícia Federal aos auditores uma tarefa própria de uma Polícia Judiciária. Assim, os empresários infratores seriam objeto de Boletins de Ocorrência, instaurando, em uma nova delegacia especializada, um processo efetivamente criminal. Criminosos seriam definitivamente punidos. A resposta do ministro, por sua vez, foi a de acatar esta proposta, além de outras que eventualmente vierem a ser negociadas.

A ministra Rosa Weber, por seu lado, concedeu uma liminar sustando a vigência desta portaria. Espera-se que o Supremo não venha, mais uma vez, a fazer parte do problema em vez de sua solução. Uma República faz-se pela harmonia de seus Poderes, em uma colaboração que tem como finalidade maior o aprimoramento geral das instituições. Se, em vez disso, tivermos um mero tiroteio ideológico, é o próprio bem comum que é a primeira de suas vítimas.
 

Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul

A traição original - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 30/10

Lula da Silva poderia ter conduzido o País rumo ao benfazejo destino que antes era apenas sonhado. Mas, na encruzilhada da História, fez sua opção. Traiu o Brasil e os brasileiros

Uma característica bastante lembrada do sr. Lula da Silva - que muitos ingênuos chegam a considerar um “talento político” do ex-presidente - é a desfaçatez com que ele procura se desvencilhar de membros de seu mais íntimo círculo relacional sempre que, por imposição das circunstâncias, eles venham a representar um embaraço às suas pretensões de poder, estas postas sempre à frente de quaisquer laços que venham a ser estabelecidos com o ex-presidente, sejam pessoais ou políticos.

O caso mais recente desse esquecimento seletivo de Lula envolve a presidente cassada Dilma Rousseff, alguém que simplesmente não existiria na vida político-eleitoral não fosse a ação direta de seu inventor.

Diante do desastre que foi a passagem de Dilma Rousseff pelo Palácio do Planalto, cuja irresponsabilidade no trato das contas públicas, a frouxidão no combate à inflação, a profunda recessão econômica e o desemprego representam um legado indefensável até mesmo para os padrões do Partido dos Trabalhadores (PT), a presidente cassada vem sendo sistematicamente tratada como um estorvo pelo chefão e pelo partido que com ele se confunde.

Em recente entrevista ao jornal espanhol El Mundo, Lula da Silva disse que os eleitores de Dilma Rousseff “sentiram-se traídos” em virtude da agenda econômica adotada por ela após a vitória na eleição presidencial de 2014, agenda esta diametralmente oposta ao discurso da candidata durante aquela campanha.

“Houve uma decisão do governo de fazer o ajuste (fiscal). Quando o governo anunciou o ajuste, no final de dezembro (de 2014), o governo jogou fora a base social que tinha eleito o governo. As pessoas se sentiram traídas”, disse o ex-presidente.

Ora, é o caso de indagar por que “as pessoas se sentiram traídas”. O descalabro econômico que marcou o primeiro mandato de Dilma Rousseff, cassada por ter cometido crime de responsabilidade, impunha a adoção de uma dura política de ajuste fiscal a partir de seu segundo mandato, sob pena de paralisar o País e, assim, arruinar o plano engendrado por Lula da Silva para manter seu partido no poder durante décadas.

É importante lembrar que o próprio ex-presidente Lula, o mesmo que agora critica a tentativa de ajuste em jornais estrangeiros, fez enfáticas gestões com Dilma Rousseff para que esta substituísse a sua equipe econômica, nomeando para cargos-chave do governo profissionais de mercado que são publicamente conhecidos por suas posições em defesa da austeridade fiscal, o que contrastava com a política de gastos descontrolados que marcou as gestões lulopetistas e levou àquele estado de absoluto descontrole que uma campanha eleitoral mentirosa escondeu dos brasileiros.

Longe de qualquer sinal de contrição, as críticas de Lula da Silva à sua antecessora são movidas tão somente por seus interesses eleitorais, se não como o candidato do PT à Presidência na eleição de 2018 - o que hoje depende de uma decisão do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4) -, como um possível cabo eleitoral em defesa do “legado” petista.

Por mais que tente, Lula da Silva não pode se desvencilhar de seu verdadeiro legado desde a ascensão do Partido dos Trabalhadores ao poder central, em 2003: uma profunda recessão econômica e a instalação de um sistema de corrupção sem precedentes na História do País, engendrado para submeter o Estado ao serviço do partido e de seu projeto de poder, além, é claro, de garantir uma próspera existência a seus próceres à custa do dinheiro público.

Tido como o primeiro operário a chegar à Presidência da República, favorecido por uma base de apoio popular e congressual sem precedentes, além de ter a seu favor a conjuntura internacional, Lula da Silva, caso inspirado por bons desígnios, poderia ter conduzido o País rumo ao benfazejo destino que antes era apenas sonhado. Mas, na encruzilhada da História, fez sua opção. Traiu o Brasil e os brasileiros.

Na boleia da dívida pública - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 30/10

Lá por 2022 o passivo do Tesouro Nacional poderá estar controlado, mas isso deverá envolver muito mais que o esforço da atual equipe do Executivo


Caminhão sem freio e dívida pública sem controle são prenúncios de desastre. Por isso, conter a dívida brasileira é uma das prioridades do governo desde a mudança no Palácio do Planalto, no ano passado. Por enquanto, o empenho vai dando resultado, como confirmam os números acumulados no ano, mas o trabalho à frente é longo e complicado. O presidente Michel Temer encerrará seu mandato, no fim do próximo ano, sem ter arrumado completamente o passivo do Tesouro Nacional. Mas, se o esforço der certo, entregará ao sucessor contas públicas em melhor estado e com risco muito menor de uma catástrofe. Isso dependerá tanto do Executivo como da base parlamentar, porque a arrumação das finanças federais, a partir de agora e nos próximos anos, dependerá de importantes medidas legislativas, a começar pela reforma da Previdência.

No mês passado o estoque da dívida pública federal atingiu R$ 3,43 trilhões, com aumento de 0,79% em relação ao valor de agosto. Pelo programa oficial, no fim do ano o valor devido pelo Tesouro deverá ficar na faixa de R$ 3,45 trilhões e R$ 3,65 trilhões.

A expectativa é terminar 2017 com o estoque dentro do intervalo definido no Plano Anual de Financiamento (PAF), disse há dias o coordenador-geral de Operações da Dívida Pública, Leandro Secunho. O pessoal da Fazenda tem conquistado alguns pontos importantes. Exemplo: o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) devolveu em setembro R$ 33 bilhões ao Tesouro. Isso é a maior parte da devolução acertada para este ano, de R$ 50 bilhões. Os R$ 17 bilhões restantes devem ser pagos até 15 de novembro.

Os pagamentos do BNDES representam uma pequena parcela do total devido pelo governo central, mas contribuem para a melhora da composição das contas. Uma fatia do valor pago ao Tesouro – R$ 15 bilhões – foi entregue na forma de títulos. O cancelamento desses papéis diminui o estoque da dívida. A parte paga em dinheiro serve para eliminar operações compromissadas do Banco Central (BC).

Durante anos, a partir de 2009, o Tesouro se endividou para ampliar a capacidade de operação do BNDES. Foram emitidos cerca de R$ 500 bilhões em títulos, transferidos ao banco. Esse endividamento sobrecarregou o Tesouro e agravou as condições das contas públicas. Mas o esforço resultou em benefício de um número restrito de empresas, com pouco ou nenhum efeito em termos de crescimento econômico geral. O Produto Interno Bruto (PIB) pouco cresceu nos primeiros anos de mandato da presidente Dilma Rousseff e em 2015 e 2016 o País enfrentou a pior recessão registrada nas contas nacionais.

Outro avanço recente foi a redução do peso dos juros. O custo médio da dívida acumulado em 12 meses caiu de 10,62% em agosto para 10,47% em setembro. Mas, apesar disso, a dívida aumentou e continuará aumentando. Ainda por alguns anos, a receita federal continuará insuficiente para custear o funcionamento do governo, permitir algum investimento e, além disso, cobrir os juros vencidos no ano e, talvez, amortizar o principal.

Enquanto isso, algumas condições se deterioram. A parcela da dívida com vencimento em 12 meses passou de 16,32% em agosto para 17,22% em setembro. De um mês para outro o prazo médio dos títulos diminuiu de 4,37 para 4,34 anos.

A gestão da dívida no dia a dia é parte de um grande esforço de reconstrução das contas. A tentativa de contenção do gasto público é limitada, inevitavelmente, pela rigidez do Orçamento federal. A recuperação da economia, ainda moderada, começou a beneficiar a arrecadação de impostos e contribuições nos últimos dois meses. Receitas atípicas, como as prestações iniciais da nova renegociação de créditos fiscais em atraso, têm ajudado. Mas o governo ainda terá de se esforçar para chegar ao fim do ano com um déficit primário – isto é, sem a conta de juros – no limite de R$ 159 bilhões. Lá por 2022 a dívida poderá estar controlada. Mas isso deverá envolver muito mais que o esforço da atual equipe do Executivo.