quinta-feira, fevereiro 22, 2018

Mandado coletivo, uma falsa polêmica - RAUL JUNGMANN

O Globo - 22/02


Tome-se por hipótese que uma investigação policial identificou em determinado prédio residencial o cativeiro em que sequestradores mantêm reféns. A polícia, no entanto, não sabe em que apartamento estão o bandido e suas vítimas. Pede, então, ao juiz um mandado que lhe permita vistoriar todo o prédio para localizar o esconderijo e salvar vidas.

Esse é o fundamento de um mandado coletivo de busca e apreensão, que tanta celeuma causa há dias, apesar de ser utilizado desde 2012, ainda que não tenha produzido jurisprudência específica. O recurso pode ser essencial em algumas circunstâncias para a conclusão de um trabalho de inteligência e investigação, depende de concessão judicial e não constitui regra, mas exceção. Não obstante, é alvo de questionamentos que o condenam por antecipação, na suposição de que será utilizado ao bel-prazer da autoridade policial, quando e onde bem entender.

Antes de mais nada, é preciso enfrentar a hipocrisia intelectual que, à semelhança dos traficantes nas favelas, coloca os inocentes como escudo de suas teses para aparentemente defendê-los (sem mandato para tal) de um instrumento que os favorece e que só pode ser utilizado com autorização judicial, caso a caso. Valem-se da topografia carioca, de morros e asfalto, para condenar os mandados em comunidades cuja característica é de habitação geminada, comumente utilizada pelos traficantes — não raro à força — para esconder seus arsenais de armas e drogas, dificultando a ação da polícia.

Outros argumentam que a intervenção federal, pelo fato de ser exercida por um general, ameaça os direitos humanos e, mesmo, as vidas de inocentes, pobres e oprimidos em ambiente em que só o traficante é livre.

Como se a intervenção já não configure uma reação máxima do governo federal a um cenário de violência fora de controle, em que milhares de inocentes morrem — agora até mesmo no útero, agravando estatísticas maiores que as de guerras em curso no mundo.

E como se os milhões de habitantes que vivem em comunidades sob o controle do tráfico não estejam espoliados nos seus direitos constitucionais mais elementares, entre os quais o de ir e vir e o de votar livremente.

A intervenção veio resgatar a ordem democrática, e sua decretação cumpriu os preceitos constitucionais que a regem — e dentro deles se manterá.

Foi uma decisão político-administrativa, amplamente aprovada pelo Congresso Nacional e restrita ao aparelho de segurança estadual.

Sabe-se que o Rio não centraliza as preocupações apenas por suas estatísticas de violência, mas pela dominação de territórios pelo crime que faz vigorar suas próprias “Constituições”, inclusive determinando quais candidatos podem ali fazer suas campanhas.

Tem-se aí um Estado paralelo com representação parlamentar e, portanto, com prerrogativa para indicações políticas na estrutura pública, porta de passagem da criminalidade para o Estado.

Entre outros objetivos, a intervenção visa a romper as cadeias de transmissão entre áreas do setor público com o crime organizado, sendo o mandado judicial um entre tantos instrumentos legais para legitimar as ações policiais em qualquer área — e não só nas comunidades mais pobres.

Tratar instrumento judicial como demofobia, para além da rima, pode soar uma demagogia que nos aprisiona em uma falsa polêmica.

Ajuste fiscal: o debate necessário na campanha eleitoral - ADOLFO SACHSIDA

GAZETA DO POVO - PR - 22/02

Não podemos repetir 2014, quando uma “presidenta” que jurava não ser necessário o ajuste fiscal conduziu o país à maior crise econômica de sua história


“O fato de que muitos políticos de sucesso são mentirosos não é exclusivamente reflexo da classe política, é também um reflexo do eleitorado. Quando as pessoas querem o impossível, somente os mentirosos podem satisfazê-las.” (Thomas Sowell)

De acordo com o Índice de Liberdade Econômica da Heritage Foundation, em 2018, o Brasil tirou nota 7,7 no quesito “saúde fiscal”, em 100 pontos possíveis. Sim, você leu certo: o Brasil não conseguir chegar a míseros dez pontos em 100 possíveis nesse item. O Rio de Janeiro é o carro-chefe da situação fiscal brasileira, já atrasa salários e só não está insolvente graças a recursos do Tesouro Nacional. Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Rio Grande do Norte caminham para a mesma situação. Diversos outros estados e municípios adotam manobras fiscais duvidosas para continuarem honrando seus compromissos. Na União, a situação não é muito diferente: pesados déficits vem pressionando cada vez mais a dívida pública. A conta vai chegar em 2019.

Votar em quem promete o impossível lhe dará em troca a eleição de um político mentiroso

Ajustar as contas públicas é uma necessidade. Deixemos claro um ponto: qualquer um que argumente pela não necessidade do ajuste fiscal está mentindo. O leitor pode discordar sobre como realizar o ajuste fiscal, mas de maneira honesta é impossível argumentar que as contas públicas estejam em ordem.

O debate fiscal é a discussão que precisa aparecer nas eleições desse ano, seja nas disputas por cargos no Executivo, seja nas eleições para deputados e senadores. Governadores precisam debater como farão o ajuste fiscal em seus respectivos estados; deputados e senadores precisam se posicionar sobre as medidas de ajuste que irão apoiar; e os candidatos a presidente precisam deixar claro como farão o ajuste fiscal e, por óbvio, como irão ajustar as contas da Previdência Social.

Políticos devem deixar claro se irão realizar o ajuste fiscal por meio de aumento de tributos, se irão cortar despesas (e quais despesas irão cortar), ou por qual combinação dessas alternativas pretendem ajustar o orçamento público. Precisam deixar claro se irão dar reajustes ao funcionalismo público, se irão contratar mais funcionários ou se irão tentar enxugar a folha de pagamento. Fundamental se posicionarem sobre a reforma da Previdência e sobre os programas públicos que serão mantidos ou encerrados.

Não existe mágica aqui: toda solução apresentará dor e custos. Não se trata de prometer benesses, mas sim de oferecer soluções viáveis para o problema fiscal ao menor custo social possível. E o eleitor é parte central do processo: votar em quem promete o impossível lhe dará em troca a eleição de um político mentiroso. Sejamos responsáveis: o debate fiscal honesto precisa marcar as eleições de 2018. Caso contrário, repetiremos 2014, quando uma “presidenta” que jurava não ser necessário o ajuste fiscal conduziu o país à maior crise econômica de sua história.

Adolfo Sachsida é doutor em Economia e especialista em tributação e contas públicas.

Cristiane Brasil sai, mas o precedente fica - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR

GAZETA DO POVO - PR - 22/02

Com o recuo do PTB, fica consagrado o perigoso entendimento que permite interferências indevidas do Poder Judiciário em atos de competência exclusiva do chefe do Poder Executivo


O impasse sobre a nomeação da deputada federal Cristiane Brasil (PTB-RJ) para o Ministério do Trabalho, terminou. O PTB, “dono” da pasta, nesse peculiar arranjo que caracteriza o “presidencialismo de coalizão” brasileiro, recuou e já procura outro nome para ser confirmado pelo presidente Michel Temer. A ala ligada a Roberto Jefferson, pai de Cristiane, quer efetivar o interino Helton Yomura, mas outros petebistas são refratários ao nome, inclusive Ronaldo Nogueira, o ex-titular da pasta. A dificuldade de emplacar um deputado estaria no fato de que quase todos eles querem disputar algum mandato nas eleições de outubro, e por isso precisariam deixar o ministério em pouco tempo.

Mas o nome do novo titular é o que menos interessa quando se discute as implicações do recuo petebista no arranjo institucional brasileiro: criou-se um perigoso precedente que dá ao Judiciário o poder de atropelar o Executivo em nomeações que, como diz a Constituição em seu artigo 84, são competências privativas do presidente da República.

Desfere-se um golpe decisivo contra as prerrogativas do presidente da República
Em primeiro lugar, há de ser dito que, em uma República decente, Cristiane Brasil jamais seria considerada para um ministério. Mas sólidos critérios morais na escolha dos ocupantes da Esplanada dos Ministérios são algo que tem passado longe do Planalto, nesta gestão e nas anteriores. Ainda assim, o caso de Cristiane Brasil, com seus processos e acordos na Justiça do Trabalho, nem de longe configurava o atentado à moralidade que foi alegado por Leonardo Couceiro, da 4.ª Vara Federal de Niterói (RJ), o primeiro a conceder uma liminar suspendendo a posse marcada para 9 de janeiro. Condenações na Justiça do Trabalho são algo tão frequente no país – situação para a qual também contribuíam o engessamento da legislação antes da reforma trabalhista e o viés de setores da magistratura – que apenas uma minoria daqueles que já assinaram alguma carteira de trabalho na vida passaria incólume a esse escrutínio. De maneira nenhuma isso seria uma circunstância inabilitante. Isso sem mencionar que, anteriormente, dois juízes já tinham negado pedido semelhante, alegando a necessidade de preservar “a própria forma de funcionamento da República”, nas palavras de Ana Carolina de Carvalho, da 1.ª Vara Federal de Magé (RJ).

O governo perdeu todos os recursos no Tribunal Regional Federal da 2.ª Região, mas reverteu a decisão no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Por fim, ainda durante o recesso judicial, a presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, provocou nova reviravolta e suspendeu novamente a posse de Cristiane, que estava prestes a ocorrer depois da decisão do STJ. Na semana passada, Cármen Lúcia manteve a suspensão e ainda decidiu que a competência para analisar o caso era do STF, não do STJ.

Com o recuo do PTB, parece pouco provável que o plenário do Supremo julgue o caso; assim, para todos os efeitos o entendimento adotado daqui em diante será o que prevaleceu até agora: o de que o Judiciário pode, sim, barrar nomeações com base no critério da moralidade. Ressalte-se que não estamos falando de casos em que a ilegalidade está na própria nomeação – como ocorreu quando Dilma Rousseff tentou fazer de Lula seu ministro da Casa Civil, em evidente desvio de finalidade –, mas de casos em que um magistrado julga que certa pessoa é moralmente inepta para assumir um cargo ministerial. Desfere-se um golpe decisivo contra as prerrogativas do presidente da República. “Não entendo possível que a disfunção no funcionamento de um dos poderes possa ser substituída por decisões judiciais. Caso contrário, seria possível a impugnação de quaisquer nomeações por desafetos políticos ou por questões ideológicas, o que criaria grande insegurança na administração da coisa pública”, completou a juíza Ana Carolina de Carvalho. É até onde as consequências do caso de Cristiane Brasil podem nos levar.

A OIT e a reforma trabalhista - JOSÉ PASTORE E DAGOBERTO L. GODOY

ESTADÃO - 22/02
Provocados por uma denúncia da CUT, um comitê de técnicos apresentou duas críticas à reforma

Provocados por uma denúncia da CUT, um comitê de técnicos nomeados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), sem poder deliberativo, apresentou duas críticas à reforma trabalhista do Brasil no Report of the Committee of Experts on the Application of Conventions and Recommendations, 2018.

1. O Comitê entendeu que a prevalência do negociado sobre o legislado, consagrada pela Lei 13.467/2017, é contrária ao objetivo de promover negociações coletivas livres e voluntárias, constante da Convenção 98 da OIT. Essa crítica demonstra um total desconhecimento da realidade brasileira. A nova lei reafirmou como inegociáveis 30 direitos garantidos pela Constituição e abriu a possibilidade de se negociar livremente 15 direitos, determinando que o negociado seja respeitado pela Justiça do Trabalho. Trata-se, portanto, de uma inegável valorização da negociação coletiva, como querem a citada Convenção e o artigo 7.º, XXVI da Constituição Federal do Brasil.

2. Outra crítica foi que o Brasil violou as Convenções 98 (de novo) e 154, que teriam por princípio admitir a negociação coletiva tão somente para estabelecer condições mais favoráveis do que as leis. Neste ponto, não há equívoco, e sim um erro de leitura, porque nenhum dos artigos daquelas Convenções estabelece a exigência aludida. Mesmo porque a expressão “mais favoráveis” é de entendimento vago e subjetivo, pois os trabalhadores podem preferir, por exemplo, trocar o pagamento da hora in itinere por um aumento de salário (o que, aliás, tem sido feito no Brasil, de forma legal, e com o respaldo até mesmo do Supremo Tribunal Federal).

Enfim, os técnicos daquele Comitê não perceberam o importante passo que o Brasil deu para o fortalecimento da negociação coletiva, ao instalar um regime que contempla empregados e empregadores com proteção e liberdade. Ou seja, eles continuam com a proteção da Constituição e da CLT e ganharam a liberdade de negociar, a seu próprio juízo, 15 direitos antes inegociáveis. Por exemplo, os que quiserem podem negociar um horário de refeições de 30 ou 40 minutos – diferentemente do que estabelece a CLT (60 minutos), enquanto permanecem, para os que não quiserem, os 60 minutos garantidos por lei. É a proteção com liberdade.

Nesse sentido, a reforma trabalhista do Brasil se assemelha à da França, realizada em 2016-17: naquele país, a lei continua fixando em 35 horas a jornada semanal. Mas, se as partes quiserem trabalhar 40 ou 42 horas, basta negociarem o valor da hora extra; se não quiserem, continuará valendo a jornada de 35 horas.

É preciso esclarecer que o referido Report expressa tão somente a opinião pessoal dos técnicos que o assinam e não a da Organização Internacional do Trabalho e nem mesmo a da Comissão de Aplicação de Normas da OIT, órgão, este sim, dotado de poderes para deliberar e levar propostas ao Plenário da Conferência Internacional do Trabalho. Acreditamos que esta comissão, por seus conhecimentos e imparcialidade, terá o devido cuidado e evitará incorrer no erro de mal interpretar a reforma trabalhista do Brasil. Mesmo porque, como todo organismo internacional, a OIT está obrigada a respeitar a soberania dos Estados-membros e os seus diplomas legais, sempre que cunhados democraticamente, tal como ocorreu com a Lei 13.467/2017, discutida em dezenas de audiências tripartites, aprovada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, e sancionada pelo presidente da República, nos termos da Constituição Federal.

* SÃO, RESPECTIVAMENTE: PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO E ADVOGADO, FOI REPRESENTANTE DO BRASIL NA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO

Qual o público para mentiras nas redes? - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 22/02

3 em 5 eleitores trocam mensagens pela internet, local de risco de epidemia de mentiras

QUASE 60% dos brasileiros com mais de 18 anos usam a internet para trocar mensagens de texto, voz ou vídeos. Ou seja, 60% do eleitorado pode conversar sobre a eleição nessa mistura de praça pública e correio virtuais cheia de vírus.

Pode também fazer propaganda de injúria, calúnia, difamação ou outras mentiras, ditas "fake news". No total, 63% dos maiores de 18 usam a internet.

É o que se pode depreender de números divulgados nesta quarta-feira (21) pelo IBGE, com dados da Pnad Contínua referentes a 2016. Haverá um tico mais de gente conectada até a eleição.

O dado tem algum interesse político, claro, embora genérico. Além de ler e propagar besteira, falsidades ou crimes contra a imagem nas redes insociáveis, muita gente faz corrente particular de calúnias nos serviços de mensagens, em tese indetectáveis pela polícia e pela Justiça. Em tese, embora seja difícil mesmo pegar organizações criminosas de difusão de informação criminosa em redes sociais.

É muita gente? Um terço do eleitorado está fora da conversa virtual ou desconectada por falta de meios. Mas nem todos estarão fora do alcance do tiroteio de mentiras. Por outro lado, não se sabe quase nada do que fazem os outros 60%.

Há pessoas que utilizam meios de informação quaisquer com grande frequência ou intensidade (usuários pesados) e há uso esporádico desses serviços. Há quem não trate de política, há quem seja vacinado contra mentiras etc. Menos ainda se sabe como os candidatos vão montar ou expandir seus serviços de mensagens individuais.

De menos incerto, confirma-se que a incidência de uso da internet aumenta entre os mais bem-postos nas escalas sociais, o que pode ter alguma implicação política. Os mais pobres podem ser mais influenciados por campanhas de TV e cara a cara, se também não forem envolvidos pela nuvem tóxica.

Usa mais a internet quem tem mais anos de escola e emprego melhor (o IBGE não apresentou dados por níveis de renda). Para pessoas com dez anos de escola ou menos (sem ensino médio completo ou menos), 47% usam a rede; entre quem tem ensino médio ou mais, 89% (essa conta é feita com base na população com mais de dez anos).

Quanto mais pobre a região, menor a incidência de usuários. Mesmo entre estudantes, a divisão digital é gritante, além de deprimente. Cerca de 81% dos estudantes usam a internet: 75% na rede pública, mais de 97% nas escolas privadas.

Entendidos em campanha dizem que campanha face a face, de porta em porta, pode ajudar a rebater mentiras eleitorais, o que favorece quem tem meios de difundir cascatas (ou até ideias!) à moda antiga (comício, cabo eleitoral etc.). Pode haver mais vacinas, porém.

Por exemplo, difundir a ideia de que inventar ou repassar calúnia, injúria e difamação pode levar o cidadão responsável à Justiça. Em vez da falação inócua e vaga sobre cidadania da publicidade de outras eleições, os tribunais eleitorais, TSE e TREs, poderiam explicar o crime. Algumas prisões ajudariam também.

Se não vivêssemos nesta selva ainda mais piorada de incivilidade política e lambança institucional, os candidatos poderiam fazer um acordo de propaganda contra a mentira política extrema. Mas isso é assunto para colunas de humor. Uma piada.

Ruim com ela, pior sem ela - CORA RÓNAI

O GLOBO - 22/02
A incompetência do Estado é justificativa para comportamento coletivo cada vez mais selvagem no Rio

Como quase todo mundo da minha geração, eu também cresci sem saber nada sobre a Índia. As escolas pouco ou nada ensinavam sobre o outro lado do mundo; cada qual que descobrisse por si o que lhe interessava. Passei a maior parte da vida familiarizada com os clichês habituais — pobreza, yoga, gurus, vacas sagradas. Por causa do movimento da não agressão de Gandhi, e da sua figura ascética, imaginava uma terra de grande paz, e levei um choque quando comecei a ler a sério sobre o país. Como assim, mais de um milhão de mortos durante a partição? Como assim, intolerância religiosa? E estupros? E assassinatos? Onde ficava a não violência nisso? Eu não tinha parado para pensar que é preciso muita violência para dar origem a um movimento de não violência: não seria numa aldeia dinamarquesa ou num cantão suíço que alguém teria essa ideia.

Desde que entendi isso, passei a entender muita coisa. Uma ficha tão simples, que demorou tanto a cair na minha cabeça.

Hoje, no Rio, somos todos especialistas em segurança pública.

Todos nos consideramos aptos a palpitar sobre a intervenção, sobre o que deve ser feito e como e quando. E o pior é que, de certa forma, somos todos abalizados. Convivemos com a falta de segurança desde sempre, já estivemos todos ou quase todos sob a mira de armas, já vimos o exército entrar e sair da cidade inúmeras vezes, achamos a coisa mais normal ver um carro da polícia circulando com canos de fuzis saindo pelas janelas, enquanto a tiragem lá dentro conversa despreocupadamente. Desenvolvemos habilidades e estratégias, criamos e consultamos aplicativos e rezamos para voltar vivos para casa, mesmo quando somos ateus.

Ao mesmo tempo, incorporamos a violência de uma forma bizarra. O exemplo mais extremo é a naturalidade com que aceitamos a contravenção na direção das escolas de samba, e as suas relações incestuosas com o poder. Participamos de corpo e alma dos desfiles, optando por não lembrar como são financiados. Mas essa complacência vai além do carnaval, e está presente o ano inteiro no nosso cotidiano de malandragem, no absoluto desprezo que devotamos às regras básicas da cidadania: pequenas coisas que não matam ninguém, mas que compõem um coquetel tóxico de incivilidade.

Entrar na fila, respeitar a sinalização? Ora, imaginem. O barzinho que funciona até altas horas na zona residencial é bacana, o barulho da praça que não deixa ninguém dormir é sinal de alegria, o bloco que invade o aeroporto aos berros é apenas contestador porque grita “Fora Temer!”, e gritar “Fora Temer!” é sinal verde para qualquer transgressão. Pichação é manifestação de inconformismo e não deve ser reprimida, quebrar equipamento público é válido, destruir canteiros e jardins não é nada porque, afinal, o mundo é cruel.

A violência e a incompetência do estado, inquestionáveis há décadas, servem no Rio como justificativa para um comportamento coletivo cada vez mais antissocial e selvagem, uma espécie de buraco negro da cidadania. Como o Estado não faz a parte dele, achamos razoável que a população não faça a sua, sem perceber para onde nos leva essa espiral de desordem.

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Há dias não faço outra coisa a não ser ouvir sobre a intervenção, conversar sobre a intervenção, ler sobre a intervenção. Alguma coisa tinha que ser feita no nosso estado desgovernado, e afinal alguma coisa foi feita; por isso, em princípio, não sou contra ela, ainda que as suas intenções sejam questionáveis. Mas ou ela é para valer, e vai em cima da polícia e dos verdadeiros chefões das quadrilhas, ou não vai adiantar nada: ou ela desmantela a estrutura corrompida da segurança no Rio de Janeiro, ou logo teremos, além da violência do dia a dia, um exército desmoralizado. E ou ela se faz para todos, respeitando igualmente toda a população, ou vai criar uma situação injusta e insustentável. É uma cartada perigosa, um band-aid em cima de uma ferida que só uma longa cirurgia resolverá.

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O Rio virou um estado tão sem-vergonha que o presidiário Sérgio Cabral sequer se deu conta de que estava fazendo uma confissão de culpa ao pedir transferência de Curitiba, alegando que, com a intervenção, o sistema carcerário ficará por conta do governo federal. Que cara de pau.

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Do Facebook: “Imagina uma mulher sozinha à noite em casa porque o marido trabalha à noite e com duas filhas ela ser obrigada a abrir a porta e entra mais de dez homens armados e falar que não vai fazer nada só dormir e esta mulher se trancar no quarto com as filhas e ela ter que acalmar as filhas para não chorar e as meninas ficarem vomitando de nervoso e passarem a noite toda trancadas com medo sem saber o que poderia acontecer e pela manhã só ouvir a porta batendo e sair pra ver se já foram embora e ver que tudo que tinha que já era pouco biscoitos leite suco danone tudo que podia ser comido eles comeram e a pessoa não saber se na noite seguinte eles voltariam ou na outra.”

Rebelião sindical contra a reforma trabalhista - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 22/02
A resistência à modernização das relações de trabalho leva sindicatos a desrespeitarem o Congresso e a agirem como se o imposto sindical ainda existisse

O momento por que o país passa, com necessidade de ajustes nos gastos públicos, apresenta vários exemplos de como grupos de privilegiados na sociedade, dentro e fora do Estado, reagem com vigor ao risco de perdas necessárias à estabilização da economia e à modernização do sistema produtivo.

A reforma da Previdência é caso evidente, pelo tamanho e características do problema, bem como pelas resistências corporativistas. O sistema como um todo precisa ser atualizado para uma nova realidade demográfica, de crescente parcela de idosos, com expectativa de vida em ascensão — uma boa notícia —, sem que o fluxo de entrada de jovens no mercado de trabalho, novos contribuintes do INSS, financie o aumento dos gastos com aposentadorias e benefícios. Resultado, déficits.

Há, ainda, a enorme disparidade entre a aposentadoria do assalariado do setor privado e do servidor público, em favor deste, injustiça que grupos organizados do funcionalismo não admitem que seja eliminada. É o que está à espera do novo presidente.

No âmbito das relações trabalhistas, a resistência de castas é mais grave, porque sindicatos driblam a reforma no que se refere à extinção do imposto sindical, uma excrescência, substituído por contribuições espontâneas. Os dirigentes sindicais cometem uma ilegalidade.

Sancionada a reforma em julho, desde então chegou formalmente ao fim a tunga daquele imposto, equivalente, por ano, a um dia de trabalho, fosse a pessoa sindicalizada ou não.

Era um dinheiro fácil — em 2016, R$ 2,9 bilhões —, gasto sem qualquer controle, um convite à roubalheira. E casos de desvios já foram relatados pelo jornalismo profissional.

Quando surgiu no sindicalismo e na política, no final da década de 70, o metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva combatia essa ordem varguista: era contra o imposto sindical e o monopólio regional. Ou seja, a impossibilidade de haver dois sindicatos por base. Eleito presidente, mudou de ideia e ainda reservou milhões do imposto para as centrais (CUT, Força Sindical etc.).

A reforma — como desejava o Lula dos anos 1970 — força o sindicato a prestar bons serviços aos filiados, para que eles aceitem contribuir. Os sindicatos precisam ter de fato representatividade.

Mas, em vez disso, como revelou reportagem do GLOBO, têm realizado assembleias de quórum desconhecido e aprovado “contribuições” que, em alguns casos, chegam a ser mais elevadas que o extinto imposto sindical. Na representação dos metalúrgicos de São Paulo, por exemplo, ela corresponde a 3,5 dias de trabalho, mais que o triplo do imposto.

É nisto que deu este aparato corporativista monstruoso instituído no getulismo da ditadura do Estado Novo, com pedigree fascista. Sindicatos de trabalhadores e patronais estão ligados ao Estado, eterno tutor, e têm até Justiça própria.

Os interesses criados por esta máquina são tão fortes e autônomos que sequer obedecem ao Congresso, como demonstra esta resistência inconcebível a seguir as novas regras trabalhistas. O Ministério Público e a Justiça precisam agir.

O pragmatismo petista - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 22/02

Lideranças petistas dão sinais de que caminham para a “terceira fase” de uma espécie de luto político que se abateu sobre o partido: a negociação


Passado quase um mês da acachapante condenação de Lula da Silva em segunda instância pelo Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), em Porto Alegre, as lideranças petistas dão sinais de que caminham para a “terceira fase” de uma espécie de luto político que se abateu sobre o partido: a negociação.

Certo de que a defesa de uma eventual candidatura do chefão petista à Presidência da República este ano não se presta mais do que a manter acesa a chama da militância, um grupo restrito formado por parlamentares, dirigentes partidários e líderes de movimentos sociais já discute um plano de ação para o caso da prisão de Lula da Silva, que pode se concretizar tão logo sejam julgados os embargos de declaração oferecidos por sua defesa ao TRF-4. Estima-se que este julgamento ocorra em março.

Se na superfície prossegue a cantilena do lawfare – a suposta perseguição política por meio de instrumentos jurídicos – com o objetivo de tirar o “grande líder popular” da disputa eleitoral por “interesses das elites”, nos bastidores os próceres petistas já dão como certa a ausência da foto de seu líder nas urnas em outubro e tratam de tocar a vida.

No plano de ação que se discute no bunker petista estão previstas as estratégias eleitorais a serem adotadas no momento em que for confirmada a inelegibilidade de Lula: a convocação de manifestações de rua em seu favor – há quem defenda até a montagem de um misto de acampamento e barricada em frente à residência do ex-presidente em São Bernardo do Campo – e uma batalha de comunicação na internet.

O planejamento não se restringe ao caso da inelegibilidade, um fato consumado à luz da Lei da Ficha Limpa. As lideranças petistas já trabalham com a possibilidade de prisão de Lula, como demonstra o passo a passo a ser adotado logo após a sua eventual decretação, tratado à boca pequena entre os colaboradores mais próximos.

De acordo com um desses colaboradores, ouvido pelo Estado, Lula não deverá ser um “preso dócil”. Uma vez encarcerado, “vai dar trabalho” para seus carcereiros. Caso decida se comportar assim no cumprimento de uma pena imposta ao fim de um processo no qual lhe foram asseguradas todas as garantias de defesa, resta esperar que sejam cumpridas as determinações da Lei de Execução Penal para os casos de apenados que se “rebelam” na cadeia. Mas é grande a probabilidade de isso não passar de mais um aceno para a militância.

Petistas propõem a espetacularização de uma eventual prisão de Lula sugerindo que o ex-presidente faça uma greve de fome na cadeia, hipótese que ele já descartou. Outros propõem que sejam organizadas “caravanas” diárias para visitar o preso e, assim, propagar suas mensagens para fora da cadeia. Lula, o evangelista.

Fato é que todas essas ações demonstram que, aos poucos, os petistas começam a se movimentar para além das questões que envolvem o seu líder máximo, agora um condenado pela Justiça. Lula da Silva passou a ser um ativo tóxico do PT, a ponto de comprometer seriamente o desempenho do partido nas eleições de 2018, ao contrário do que possa ser dito publicamente.

Não por acaso, aliados do ex-presidente no Nordeste – região onde Lula da Silva tem seus maiores índices de apoio – já ameaçam rever alianças políticas que foram acordadas com o petista antes de sua condenação pelo TRF-4. Aliás, tal comportamento também diz muito sobre estes “aliados”, entre eles os senadores Renan Calheiros (MDB-AL), Eunício Oliveira (MDB-CE) e Armando Monteiro (PTB-PE). Para evitar a debandada, o próprio Lula tem procurado essa turma para negociar a manutenção das alianças mesmo que ele não seja o candidato do PT.

Poucas são as chances de os acordos prevalecerem porque o que move aqueles caciques são os interesses paroquiais que, ao mesmo tempo que os mantêm no poder há décadas, mantêm a região no atraso. Neste contexto, até um político popular como Lula se torna prescindível quando passa a ser um obstáculo. Em certa medida, é a mesma reflexão que passa a rondar o PT.