sexta-feira, abril 24, 2020

Moro não se demitiu, emitiu uma sentença condenatória contra Bolsonaro - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 24/04


Dizer que Sergio Moro pediu demissão do cargo de ministro da Justiça é muito pouco para traduzir o que aconteceu em Brasília no final da manhã desta sexta-feira, 24 de abril de 2020. Moro não se demitiu, ele se reinvestiu na condição de juiz para emitir uma sentença contra Jair Bolsonaro. Condenou o presidente pelo crime de tramar o uso político da Polícia Federal para abafar investigações, inclusive inquéritos que correm no Supremo Tribunal Federal.

Desde o início da crise do coronavírus, quando Bolsonaro começou a conspirar contra si mesmo de forma mais intensa, o país receava que surgisse uma encrenca terminal, capaz de empurrar a conjuntura para o caos. Temia-se o aparecimento de um fato que justificasse o uso do ponto de exclamação que se escuta quando as pessoas dizem "não é possível!" Pois bem, o sinal foi dado.

A saída de Moro, chutando a porta, ficará gravada no enredo da tragicomédia em que Bolsonaro transformou a sua Presidência como um marco da derrocada. De agora em diante, tudo é epílogo para o capitão. Na prática, Moro cancelou a primeira posse de Bolsonaro. Sua despedida marca a reinauguração do governo. O presidente é o mesmo, só que virado do avesso.

Ao esmiuçar as conversas antirrepublicanas em que Bolsonaro lhe disse que desejava aparelhar a Polícia Federal para anestesiar os inquéritos que rondam o clã presidencial, Moro arrancou da cena o cordeiro antissistema que prevaleceu na campanha de 2018. Materializou-se na sentença do agora ex-ministro um lobo sistêmico que aparelha a PF e negocia com a alcateia corrupta do centrão uma a blindagem política contra o derretimento do seu mandato.

Moro como que retirou do baralho de Bolsonaro a carta da reeleição. Acomodou no lugar o curinga do impeachment. Içado ao primeiro escalão do governo como símbolo do combate à corrupção, Moro ofereceu no seu último ato no ministério farto material para o enquadramento de Bolsonaro no crime de responsabilidade. Deu a Bolsonaro uma aparência de sub-Lula ao realçar que nem mesmo os governos do PT ousaram converter a PF num órgão companheiro.

Ao informar que vai ao mercado à procura de emprego, Sergio Moro declarou que continuará à disposição do país. Com a popularidade na casa dos 50%, contra cerca de 30% atribuídos ao agora ex-chefe, Moro deixou no ar o aroma de um flerte com as urnas de 2022. Bolsonaro criou um pesadelo do qual terá dificuldade para despertar.

Política macabra - RUY CASTRO

Folha de S. Paulo - 24/04

No Brasil real, os cemitérios se preparam para os terríveis próximos dias



"Sem leitos suficientes nos hospitais, os doentes eram amontoados no chão das enfermarias e nos corredores. Muitos morriam antes de ser atendidos. Os hospitais foram fechados às visitas e, nos enterros, só se permitia a presença dos mais próximos. Os velhos rituais —velório, cortejo e sepultamento— ficaram impraticáveis. Viam-se carros transportando caixões com tábuas mal pregadas, indicando que tinham sido feitos às pressas. Começou a faltar madeira para os caixões e gente para fabricá-los.

"As pessoas morriam e seus corpos ficavam nas portas das casas, esperando pelos caminhões que deviam transportá-los. Os motoristas os recolhiam na calçada e os atiravam nas caçambas, como se fossem sacos de areia. Às vezes descobria-se que alguém dado como morto ainda respirava. Era liquidado ali mesmo, a golpes de pá, mas houve casos de enterrados vivos.

"Nos necrotérios, os corpos jaziam empilhados por dias, sobre as mesas de mármore ou no chão. Os recolhidos nas ruas, sem identificação, eram despejados em valas comuns ou incendiados. Os coveiros também começaram a morrer. O Exército e a Cruz Vermelha os substituíram como voluntários e, por toda a cidade, armaram-se hospitais emergenciais e postos de atendimento. Etc.".

Os parágrafos acima não são um relato da vida —e da morte— neste momento em Manaus e em outras cidades do Brasil, onde o número de mortes pela Covid-19 já começou a dobrar a cada semana. Mas poderiam ser. Eles estão no prólogo de meu livro "Metrópole à Beira-Mar — O Rio Moderno dos Anos 20", recém-lançado, e que começa com a gripe espanhola matando 15 mil pessoas no Rio em menos de 30 dias, em 1918.

Nesta semana, irritado, Jair Bolsonaro disse que não é coveiro. Não é mesmo. Os coveiros brasileiros são heróis. Enquanto ele faz política, os cemitérios se preparam para os terríveis próximos dias. Só ontem foram 407 mortes.


A posse do verdadeiro Bolsonaro - BRUNO BOGHOSSIAN

Folha de S. Paulo - 24/04

Ameaça a Moro, isolamento de Guedes e acordo com centrão revelam sua essência política



Jair Bolsonaro nunca foi um defensor fervoroso do combate à corrupção. Jamais empunhou a bandeira do liberalismo econômico e tampouco conseguiu sustentar a retórica da nova política. Depois de fingir ser o que não é por mais de um ano, ele parece ansioso para inaugurar seu verdadeiro governo.

Nos últimos dias, o presidente se sentiu poderoso o suficiente para apunhalar Sergio Moro, esvaziar Paulo Guedes e rasgar seu discurso antissistema. Ao ameaçar substituir o chefe da Polícia Federal, escantear o ministro da Economia de um plano de investimentos públicos e negociar um arranjo com os partidos do centrão, Bolsonaro muda sua lógica de sobrevivência no poder.

O presidente sugere estar disposto a trocar o lustro dos superministros e o apoio do eleitorado lavajatista por uma atitude autossuficiente. Sobraria apenas um político de carreira, defensor da intervenção estatal na economia e afeito a manobras para blindar seus aliados.

Bolsonaro testou os limites do próprio poder ao nadar contra a corrente na crise do coronavírus e apostar na demissão de Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde. Agora, ele contraria Moro, Guedes e uma fatia de sua base eleitoral para fazer suas vontades em outras áreas.

O alvo mais recente foi o ministro da Justiça, que já se tornou uma peça de decoração no governo. Foi atropelado pelo chefe uma dezena de vezes e precisou avisar que pediria demissão se Bolsonaro tirasse do comando da PF um aliado seu que andava incomodando o Palácio do Planalto. O barulho da notícia balançou o presidente.

Com mais desenvoltura, Bolsonaro vai dando de ombros para a aura liberal que Paulo Guedes emprestou para sua campanha e esquece ter dito, há menos de dois anos, que os chefes do centrão eram “a nata do que há de pior no Brasil”. Agora, eles poderão fazer parte de seu governo.

O presidente pode ter disfarçado mal, mas manteve o personagem por algum tempo. Agora, o Bolsonaro original de fábrica quer tomar posse.

Bolsonaro ataca as torres gêmeas - MÍRIAM LEITÃO

O GLOBO - 24/04

Em 24 horas, o presidente Bolsonaro atacou os dois principais pilares do seu governo: os ministros Moro e Paulo Guedes

Os dois pilares do começo do governo Bolsonaro eram o ministro Sergio Moro e o ministro Paulo Guedes, e nas últimas 24 horas ele atacou os dois. Ameaçou demitir o diretor da Polícia Federal sabendo que isso provocaria uma crise com Moro e mandou organizar um plano de retomada econômica sem Paulo Guedes. O que quer Bolsonaro? Encontrar-se consigo mesmo. Ele nunca foi um ativista anticorrupção, usou a bandeira por interesse eleitoral. Ele nunca foi um liberal na economia, fingiu ser por interesse eleitoral.

Bolsonaro disputou a eleição brandindo bandeiras estrangeiras à sua essência, por oportunismo político. Tanto Moro quanto Guedes se deixaram usar. Nenhum dos dois desconhece a verdadeira natureza de Bolsonaro, mas eles fizeram cálculos ao entrar no governo. Guedes achava que convenceria o presidente de que o liberalismo levaria a um crescimento forte e, portanto, ao sucesso econômico. E político. Moro tornou-se ao longo da Lava-Jato um conhecedor profundo do submundo da política e sabia que, quando deputado, Bolsonaro esteve no mesmo partido de alguns dos seus réus. Guedes sempre quis ser ministro da Economia e implantar o seu projeto porque estava convencido que saberia fazer melhor do que os seus antecessores “social-democratas”, como os define a todos. Moro sempre quis ser ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

Moro se tornou um novo Mandetta, ou seja, um ministro cuja demissão não é uma questão de “se”, mas de “quando”. O presidente Bolsonaro sempre recua quando há uma reação forte às suas decisões, mas depois dá o troco.

Era previsível que Bolsonaro apontaria suas baterias contra a Polícia Federal neste momento. Muitas ameaças pesam sobre a cabeça da família Bolsonaro e todas elas passam pela PF: a investigação do submundo das fakenews e dos ataques sórdidos aos supostos adversários políticos feitos pelo gabinete do ódio comandado pelo vereador Carlos Bolsonaro, a investigação sobre o que se passava no gabinete do então deputado Flávio Bolsonaro, onde o ex-capitão do Bope e miliciano Adriano da Nóbrega teve influência e emprego para a mãe e a ex-mulher. E, para culminar, o inquérito aberto a pedido da PGR sobre as manifestações antidemocráticas. O procurador-geral - que também tem sonho antigo por uma cadeira no Supremo - tentou ao máximo blindar o presidente, apesar de ele ter sido o grande inspirador e animador do ato que pedia o fechamento do Congresso e do Supremo. Mesmo com a blindagem da PGR, o inquérito pode chegar a pessoas ligadas a Bolsonaro, política ou pessoalmente. Por isso, o movimento óbvio que Bolsonaro faria era o que sempre quis: tentar controlar a Polícia Federal.

Moro sairá do governo, quando sair, com o peso de silêncios demais. Nos últimos dias, por exemplo, diante do ataque direto do presidente Bolsonaro às instituições, endossando com sua presença em ato com bandeiras anticonstitucionais, ele nada disse. Deveria. O Ministério da Justiça é o mais antigo do Brasil e é o que faz a ligação entre os poderes. Se ele não viu, foi mais um caso de cegueira deliberada. E era um bom motivo para defender princípios e valores. Afinal, foi durante anos membro da magistratura. Deveria saber a gravidade de se defender um Ato Institucional que rasga a Constituição.

A situação de Guedes é diferente. Aquele plano que foi apresentado como o depois da pandemia é apenas um borrão e o ministro da Casa Civil faz mesmo a coordenação dos outros ministérios. É que no governo Bolsonaro Onyx Lorenzoni nunca foi capaz de exercer esse papel. O general Braga Netto tem mais habilidade. O problema é que o primeiro esboço do plano tem aquele ar de um PAC mal feito.

Foi Guedes quem levou o convite de Bolsonaro a Moro para integrar o governo. Aos dois, o presidente disse que daria carta branca. Era mentira. Nenhum dos dois teve autonomia. Guedes tem uma lista grande de derrotas nas suas bandeiras. Nem a reforma Administrativa ele conseguiu tirar da mesa do presidente. Moro também tem uma coleção de derrotas e chegou na crise de ontem não tendo sequer uma sombra do projeto que disse que realizaria no governo. Guedes sabe que quando militares e o presidente da Fiesp se encontram, como ontem, para discutir um plano econômico, não há espaço para o seu projeto liberal.

(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)

'Plano Marshall', cloroquina econômica - VINICIUS TORRES FREIRE

Folha de S. Paulo -  24/04

Projeto nem existe nem tem dinheiro, mas já é atacado por críticas liberalóides

Não existe “plano estatal” do governo para fazer a economia andar se e quando passar a epidemia. Não existe plano Jair Bolsonaro de “resgate do Estado”. Não existe um programa baseado na “retomada do investimento público”. Não existe um programa baseado na “retomada do investimento público”.

Algum plano de reativação econômica será necessário, no entanto. Quem, de antemão, faz campanha liberaloide para dinamitar a ideia já pode apresentar suas projeções de como e quando a economia vai se recuperar da depressão só com investimento privado. Vai ser o caso de um morto que tenta se levantar puxando os cabelos.

Ainda que se gastassem R$ 16 bilhões extras por ano, até 2022, o plano mal existiria como “resgate do Estado” ou mesmo com medida de estímulo relevante.

Essa estimativa de despesa pública extra, que deve ser apresentada na reunião ministerial desta sexta (24), é café pequeno perto das necessidades da economia arruinada.

O Ministério da Economia vai cair matando na proposta dos “pragmáticos”: Braga Netto (Casa Civil), Rogerio Marinho (Desenvolvimento Regional) e Tarcísio de Freitas (Infraestrutura).

Esse dinheiro seria pouco até para reanimar aquele país que, antes da epidemia, se arrastava ao ritmo de crescimento de 1% ao ano, desde 2017. R$ 16 bilhões equivalem a uns 5% do gasto extra do governo federal, até agora, para aliviar a ruína em curso.

No entanto, a mera e vaga sugestão de que será necessário um programa de reativação econômica causa as reações estereotipadas de costume.

“É o PAC”, “é Dilma 3”, eram as piadas tolas. É acabar com o “ajuste fiscal”. Que ajuste? Mesmo sem epidemia, teríamos déficit até o Dia de São Nunca de Tarde. “O investimento terá de ser privado." Que investimento? Aquele que não aparecia até fevereiro de 2020?

Ataca-se um espantalho oco (essa tolice de “Marshall”) sem discutir um fracasso executivo e econômico (reformas microeconômicas e fiscais) e sem que se pense como se vai tirar o país da pior depressão da história de que se tem registro.

Para começar, antes de falar em reconstrução, mal se tomaram as medidas de economia de guerra: 1) fabricação de equipamentos e financiamento da saúde; 2) proteção de micro, pequenas e médias empresas, que fecham aos montes; 3) fazer o crédito fluir para as empresas mais remediadas.

Restaurantes, serviços pessoais, entretenimento, esporte, turismo, aviação, entre outros, serão setores que, com sorte, mal e mal sairão da tumba.

A retomada será lenta porque haverá milhões de baixas, desempregados e falidos, porque os cuidados com a epidemia devem criar ineficiências e porque a confiança e as poupanças estarão no chão ou debaixo da terra.

Alguém pode argumentar que, com descontrole da doença e um morticínio grande, se pode criar imunidade em massa, um país livre para ser reaberto e passear sobre cadáveres.

Um plano de reativação da economia ou de colocar dinheiro certo em obras certas é complexo. Vem dando errado pelo menos desde 2010. Bancar essa conta é difícil, mas achar que a dívida será paga com décadas de controle de gasto, apenas, parece hipótese heroica, para dizer o mínimo. Algum financiamento monetário do governo (“imprimir dinheiro”) pode ser em parte inevitável e é incerto que cause inflação.

Como fazê-lo é questão para economistas. Achar que voltaremos, sem mais, a esse passado recente (de resto fracassado) de ajuste e se recusar a pensar um problema catastroficamente novo é brincar com o risco de convulsão social e política, além de obnubilação intelectual.

A maldição do capitão - WEILLER DINIZ

Fundação Astrojildo Pereira - 23/04


A nostalgia é o insondável sentimento da recusa ou negação do tempo, do espaço ou de ambos. É o sempre querer estar alhures, desejar retroagir. A república brasileira do século XXI é uma sentença esmaecida da nossa ancestralidade. Depois de 5 séculos, ao menos 5 cruéis e pesadas heranças nos agrilhoam ao passado colonial: a inexperiência de administradores, a descontinuidade de projetos, pandemias, a autonomia das capitanias em relação ao poder central, além de um desonroso e obscuro sebastianismo.

Após o ‘achamento’, em 1500, o Brasil amargou 30 anos de completo abandono pela coroa portuguesa. A ambição e entusiasmos concentravam-se nas Índias de Vasco da Gama. Durante 3 décadas de descaso, o país esteve entregue a saqueadores, mercenários, náufragos, traficantes, contrabandistas de pau-brasil e malfeitores de toda ordem. São os nossos primórdios. Terra de ninguém e reles ilha do desdém. A mais pesada das heranças lusitanas, o acaso, mais uma vez, nos pariu.

A embarcação francesa “Peregrina” foi, casualmente, pilhada em um entreposto comercial com toneladas de pau brasil, peles de animais, algodão e aves silvestres. Féria de meses de pirataria francesa em domínios portugueses, o Brasil. Rapinagem e tratados diplomáticos desprezados pela França, coagiram Portugal a colonizar o Brasil para abortar o dreno das riquezas. “Era o prenúncio de tempos sombrios”, pontuou o escritor Eduardo Bueno em “Capitães do Brasil”.

Em meio ao surto de uma pandemia dizimadora – a peste negra que matou D. Manuel, o Venturoso – inaugurou-se o arrendamento brasileiro, a leste de Tordesilhas e, com ele, iniciou-se nossa desventura. Foram rabiscadas 15 donatarias ou capitanias. Os aquinhoados – começo do compadrio e pioneiros do nepotismo – foram escolhidos em conchavos e lobbies junto aos amigos do rei, D. João III. A nobreza, infantes, condes e duques desdenharam a cortesia ultramarina. Aqui desembarcaram, majoritariamente, aqueles de mais baixa patente. Das 15 extensas faixas de terra, 12 foram dadas a capitães e parentes. Alguns jamais pisaram em suas posses.

O colapso do modelo expropriatório não tardou. O fracasso das capitanias foi outro pesado legado. Os capitães não tinham aptidão ou vocação para administrar. Eram íntimos das armas, do conflito, da beligerância e da morte. Administrativamente eram inexperientes, despreparados, desinteressados e sem projetos para desenvolver as propriedades. À exceção de duas capitanias, os capitães naufragaram em terra firme. Uma das heranças mais perversas – as sesmarias – nos amaldiçoaram para a eternidade. É o DNA do modelo latifundiário, da escravidão, monocultura e estratificação social.

Os capitães tinham poderes absolutistas em suas posses. Administrativamente podiam explorar as riquezas, doar as sesmarias e cobrar impostos; politicamente faziam as próprias leis com poder de escravizar; judicialmente tinham o poder de prender, arrebentar e matar. As leis eram circunscritas aos limites geográficos das capitanias. Cada estado forjava sua lei. A Coroa – ávida pelos 10% dos capitães e o quinto de 20% das riquezas minerais – desprezava o barril de pólvora na iminência de explodir em razão dos conflitos internos. A alternativa ao descalabro foi o centralismo da administração em 1548, com o 1 governo-geral.

A anarquia colonizadora ocorreu em meio ao sebastianismo ou mito sebástico. Um fenômeno de tola crendice popular envolvendo o falecimento de rei português, D. Sebastião, “O Desejado”. Morto em uma batalha na África e sem localização do corpo, disseminou-se um movimento messiânico de salvação através do renascimento do rei. A espera do ressurgimento do mito salvador se espalharia pelo mundo.

Jair Bolsonaro é o atual capitão da donataria. É um peregrino que gosta de predicações golpistas, sabota a ciência e tem desvarios monárquicos absolutistas. É a síntese do Brasil colônia: atrasado, belicoso, primitivo, desprezado pelo mundo e condenado a ruína. A estreiteza para gerir o Brasil é notória e antecede a pandemia. Não apresentou projetos ao país e troça com o diversionismo incensado por abjetas criaturas do rei e o gabinete do ódio. O esvaziamento político, derivado da inépcia, levou o capitão ao isolamento, como no período pré-colonial.

A federação vem sendo redesenhada por travas do Supremo Tribunal Federal. Os estados – como no Brasil colônia – tocam autonomamente a proteção sanitária a despeito do charlatanismo presidencial. As comichões autocráticas, típicas dos capitães de outrora, são democraticamente rechaçadas pelas instituições e o isolamento vai se transformando em confinamento. O débil sebastianismo também é indesejado e será exorcizado. Tampouco conseguirá restaurar os poderes absolutistas dos seus antepassados capitães.

Na guerra planaltina, ninguém merece ganhar; todo mundo tem de perder - REINALDO AZEVEDO

FOLHA DE SP - 24/04

Senhores de Brasília são de fino trato 'no tocante' à grana, mas não à moral


Jair Bolsonaro resolveu lutar por seu mandato sob gerenciamento dos fardados do Planalto. Provocou desastres novos ao combater o isolamento social praticando isolamento político. Tentou uma cartada no domingo. Foi a última no gênero.

Deu uma de vivandeira e foi aos bivaques bulir com os granadeiros. Em frente ao QG do Exército, em Brasília, conclamou os militares da ativa a sustentar seu autogolpe. Levou como troco uma banana. Se tentarem impichá-lo segundo os rigores da lei, vai cair. Na palavra de um fardado graúdo, “o Brasil tem uma Constituição, e o artigo 79 assegura a posse do vice”. E agora?

Assistimos a uma espécie de “Feios, Sujos e Malvados” do “andar de cima”, pedindo licença a Elio Gaspari. Recomendo, diga-se, o filme de Ettore Scola para ocupar os dias de quarentena. Os senhores de Brasília em questão são de bem mais fino trato “no tocante” à grana, mas não à moral.

Fosse um filme, não há empatia possível; fosse uma luta, teríamos de torcer pelo impossível: um empate, com a derrota de todos —aí já é filme de Tarantino. Bolsonaro quer Sergio Moro fora do Ministério da Justiça? Desde o segundo mês de governo. Percebeu o apetite do doutor pelo poder. O tabaréu tem as suas próprias aspirações no terreno da extrema direita. Sempre foi uma questão de tempo.

Torcer por Moro? Ah, não! Vejam o comportamento desse senhor na crise. Inventou o oportunismo da ausência. Nunca as lentes da lei foram tão necessárias como agora, com o vírus tendendo a relativizar todos os absolutos legais e até constitucionais. Cadê? Quando vieram me falar sobre sua possível saída, reagi: “Mas ele ainda é ministro?”

Desde sempre, Bolsonaro sabe que seu auxiliar só espera o chefe se estabacar para subir no palanque e liderar o fel da súcia. Um confronto só depende da hora. O empate é o resultado justo. Mas há economia...

Alguém com o senso de realismo que Paulo Guedes não tem deve ter advertido Bolsonaro que seu ministro não dispõe de plano de voo para o pós-crise. A luta estúpida em torno da compensação do ICMS aos estados indica um estágio irreversível de alienação.

Eis que o “dispositivo militar” do presidente aparece com o tal plano Pró-Brasil. Trata-se de uma nova versão do PAC de Dilma Rousseff até na pretensão de tocar obras que atravessem mandatos. Surgiu um keynesianismo de farda para se contrapor ao “liberalismo Simca Chambord” de Guedes —em que pobre não cabe.

Pouco ou nada se sabe a respeito do plano, a começar da autoria. Se Guedes ficar, vai ter de engolir uma agenda que não é sua em nome da tentativa de reeleição do presidente. Reacionários travestidos de liberais estão em prantos. Mas esperem: afinal, que alternativa o ministro apresentou para a crise? De novo, o empate é um resultado justo.

Bolsonaro foi malsucedido com os granadeiros. Se não quer cair, que tente arrumar ao menos 144 deputados na Câmara para se livrar do impeachment. O “Mito” foi à caça. As credenciais do comprador determinam a qualidade da coisa adquirida. Não consegue conviver com Rodrigo Maia, mas pode encontrar em Arthur Lira, Roberto Jefferson, Valdemar Costa Neto e patriotas afins a tábua de salvação.

Este Congresso lhe deu a reforma da Previdência, incluindo a dos militares, com plano de carreira, privilégio que não teve nenhum antecessor seu. Na crise do coronavírus, presenteou-o com a PEC do Orçamento Paralelo. Não cobrou quase nada, a não ser um pouco de compostura.

O presidente preferiu testar o autogolpe. Falhou. Os militares palacianos pediram licença —não impuseram porque a escolha segue sendo de Bolsonaro— para governar o país e deixaram por sua conta conquistar aos menos aqueles 144 deputados. Acho que Lira, Jefferson e Costa Neto podem fazer isso por ele.

Depois de Bolsonaro ter testado o velho modo de fazer nova política, vamos ver como se sai com o novo modo de fazer velha política. E Moro? Enquanto escrevo, fica como o crocodilo às margens daquele rio no Quênia, à espera de abocanhar o gnu.

Reinaldo Azevedo
Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.

Fazendo água - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO - 24/04

Quanto mais popular, pior para o ministro. E troca da PF é salvar amigos e perseguir inimigos?


Uma sensação cresce a cada dia, a cada semana: o governo Jair Bolsonaro está fazendo água por todos os lados, depois que o presidente escancarou suas fragilidades, tomou atitudes despropositadas na pandemia, passou a prestigiar atos ostensivamente golpistas e, não satisfeito, partiu para o ataque contra as estrelas do próprio governo, uma por uma. Isso é hora de espicaçar o ministro Sérgio Moro?

Quanto mais popular, pior para o ministro. Luiz Henrique Mandetta caiu da Saúde, Moro cansou de ser desautorizado, Paulo Guedes está sendo atropelado depois que a pandemia trouxe para a arena a velha guerra entre “liberais” e “desenvolvimentistas”. Outra que começa a periclitar é Tereza Cristina, da Agricultura, que apanha de bolsonaristas na internet e está cansada dos desaforos de Ernesto Araújo, Abraham Weintraub e Eduardo Bolsonaro contra a China – fundamental para sua pasta e para o País.

Ernesto Araújo, Weintraub e Eduardo Bolsonaro são os ideológicos cheios de prestígio no Planalto. Moro, Guedes e Tereza Cristina, como Mandetta, estão em outra categoria: não assumiram cargos no governo para seguir Olavo de Carvalho e guerrear contra uma suposta escalada comunista interplanetária. Entraram para trabalhar por suas áreas, para pôr em prática o que sonham (certo ou errado) que é melhor para o País. Pois é. Não basta.

Nessa gangorra, caem Mandetta, Moro e Guedes, sobem Roberto Jefferson, Valdemar Costa Neto e Arthur Lira, líderes do Centrão que prometem qualquer coisa para ter seus carguinhos e favores, inclusive perseguir o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. As portas do Planalto se escancaram para eles e se fecham para a Lava Jato, abandonada sucessivamente desde a campanha de 2018.

Moro chegou ao governo como troféu, mas tem um problema de origem: a popularidade. Como ele tem a audácia de ser mais popular e querido do que o “mito”? E tome de engolir sapos! Ele passou a estabelecer limites quando apoiou Mandetta na defesa do isolamento social para conter o coronavírus, mas o principal foi se recusar, primeiro, a demitir o diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo, em 2019, e agora a aceitar o apadrinhado por Eduardo Bolsonaro para a PF.

No olho do furacão está o Rio de Janeiro, onde Jair Bolsonaro e a família fazem política. Não faltam operações e investigações da PF no Estado, inclusive nas bases eleitorais do clã presidencial. Daí eles não descansarem enquanto não puserem alguém “de confiança” na PF em Brasília e no Rio.

É estranho, inclusive, que o presidente tenha derrubado com uma canetada três portarias que atribuíam ao Exército o controle e o monitoramento de armas de civis. Ao estilo “quem manda sou eu”, o presidente alegou, pela internet, que elas eram contrárias a um decreto de sua lavra.

A surpresa com a decisão de Bolsonaro extrapolou as fronteiras do QG do Exército e chegou à PF, que também considerava as portarias importantes no combate a milícias e ao crime organizado. Aliás, o estoque de munição para civis passou de 50 para 200 por arma em janeiro e na quinta-feira, 23, em portaria da Defesa e da Justiça, pulou para 550 por mês. Quem tem arma vai ter muito, mas muito mais, munição. Inclusive milicianos.

Bolsonaro conseguiu escantear e mudar o nome do Coaf, mas no caminho entre ele, Moro e PF, persistem investigações que resvalam nos filhos do presidente: sobre Fabrício Queiroz, atos golpistas e fake news e podem chegar ao “gabinete do ódio”, que, do Planalto, tritura ou pinica reputações de adversários e críticos de Bolsonaro. Foi assim com Mandetta, é com Tereza Cristina e piora a cada dia contra João Doria, Wilson Witzel e, principalmente, Rodrigo Maia. Será que troca da PF é para isso, salvar amigos e perseguir inimigos?

A tripla traição de Bolsonaro - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 24/04

Em uma semana, três dos principais grupos de eleitores foram traídos


A concretizar-se a saída do ministro Sergio Moro do governo, Jair Bolsonaro terá, em menos de uma semana, traído três dos principais grupos de eleitores que garantiram sua ascensão à Presidência.

Os primeiros atingidos foram aqueles que inadvertidamente acreditaram no discurso antissistema do capitão reformado. Bastou a palavra "impeachment" circular mais livremente para o governo buscar o apoio de figuras como Roberto Jefferson, Waldemar da Costa Neto e Arthur Lira, uma espécie de tríade de ferro do establishment venal que a campanha bolsonarista jurara banir da política.

A turma que achou que Jair Bolsonaro seria capaz de conduzir uma agenda de reformas liberais, que resolveria o grave problema fiscal brasileiro, caiu do cavalo no meio da semana, quando o general Walter Braga Netto (Casa Civil) anunciou um plano de reativação da economia que vai na contramão de tudo o que o ministro Paulo Posto Ipiranga Guedes sempre defendeu. Guedes nem tentou esconder que não concorda com o programa.

Agora foi a vez de o eleitorado lava-jatista quebrar a cara, com a possível demissão do juiz que condenou Lula e boa parte dos políticos e empresários que se fartaram nos esquemas de corrupção identificados na administração petista.

É claro que nunca fez sentido acreditar em nenhum dos três eixos da campanha de Bolsonaro. Ele sempre integrou o pior do establishment da política brasileira, nunca foi um liberal na economia e só aderiu à grita anticorrupção por oportunismo. Uma pluralidade dos eleitores brasileiros, no entanto, resolveu apostar nessas fabulações —e o país se lascou.

Até poderíamos louvar o choque de realidade como algo didático no processo de educação do eleitorado —como foi a descoberta de que o PT também roubava. O problema é que a dupla emergência, sanitária e econômica, não é um bom momento para experimentarmos com um governo totalmente desarticulado.

Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".

Moro no impasse - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 24/04

Caso tenha que pedir demissão, Moro só tem uma saída política: cair atirando, para manter sua popularidade


O presidente Jair Bolsonaro está fazendo movimentos bruscos como se estivesse tentando desmontar um esquema que objetiva tirá-lo da presidência da República. Mesmo que esse esquema só exista na sua cabeça conturbada, e na de seus filhos.

Suas ações são muito semelhantes às de presidentes que acabaram impedidos de continuarem seus mandatos, como Collor ou Dilma. Tudo começa e termina com a difícil relação com o Congresso. Como Collor, eleito por um partido nanico, o PRN, decidiu governar sem o apoio de uma base parlamentar.

Quando tudo já estava perdido, com denúncias de irregularidades de todos os lados, ele tentou se aproximar do Congresso com acordos de última hora e montando um ministério de notáveis para lhe dar credibilidade. O ministerio funcionou tão bem que seus integrantes atravessaram a crise política sem macular suas biografias. Mas o apoio do Congresso não veio, e Collor caiu.

Dilma, que passou seu primeiro mandato gastando o crédito de popularidade que seu mentor Lula deixou de legado, herdou também o escândalo do petrolão e, unindo corrupção e incompetência, caminhou para o patíbulo.

Tentou ainda distribuir cargos aos parlamentares que teoricamente formavam sua base de apoio, mas já não havia escapatória. Interessante notar que Lula montou uma super base partidária, justamente com o propósito de evitar o impeachment, mas a base era de vidro e se quebrou na primeira oportunidade.

Bolsonaro vai pelo mesmo caminho, embora não exista nenhum processo de impeachment a ameaça-lo, apenas no mundo virtual em que vive, fora da realidade. Ainda mais agora, em meio a uma pandemia. Mas Bolsonaro começou a caçar seus potenciais adversários de 2022, disposto a acabar com superministros, ou com a ala técnica de seu ministério, fortalecendo a ala ideológica e seus pares militares.

Foi-se Luiz Henrique Mandetta, que havia se transformado em superministro pela atuação no combate à Covid-19. O liberaLismo de Paulo Guedes anda em baixa.
Até mesmo a ministra da Agricultura, Teresa Cristina, uma unanimidade, está sendo perseguida pelas milícias digitais. Talvez o segredo de toda crise seja essa, a unanimidade. Ministros com boa aceitação popular são alvos das redes sociais, não são confiáveis ao núcleo duro do bolsonarismo. Muitos militares também não, e pode acontecer com eles o mesmo que já aconteceu com Santos Cruz, por exemplo, derrubado por uma campanha de Olavo de Carvalho.

O guru da família Bolsonaro, aliás, acha que os militares, de maneira geral, são inconfiáveis. Mas há outra razão, tão ou mais forte, para que o presidente Jair Bolsonaro tenha a Polícia Federal na alça de mira: é ela que investiga as denúncias contra seu filho, senador Flávio Bolsonaro, e ao mesmo tempo o gabinete do ódio, origem as fake News disparadas nas redes sociais sob a coordenação de outros filho, o vereador Carlos Bolsonaro.

A irritação de Bolsonaro chegou ao máximo com o diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo, quando soube que, a pedido do Supremo Tribunal Federal (STF), ele manteria no novo inquérito sobre as manifestações antidemocráticas aberto pelo Procurador-Geral da República a mesma equipe que já investigava o inquérito de fake news, ambos tendo como relator o ministro Alexandre de Moraes.

O ministro da Justiça, Sérgio Moro, reage, ameaçando demitir-se, por sentir que perderá o poder que tem, e sobretudo o poder que acham que tem. Provavelmente não conseguirá nomear o próximo diretor-geral, nem evitar que uma substituição política seja feita.

Moro não tem nem a saída de fazer um acordo com Bolsonaro para ir para o Supremo Tribunal Federal na vaga de Celso de Melo pois, além de esse escambo ferir definitivamente sua imagem política, não há como acreditar na palavra de Bolsonaro.

Tanto Moro quanto Bolsonaro meteram-se em um impasse de difícil solução. Se for para deixar que Moro indique o próximo diretor-geral da Policia Federal, por que Bolsonaro fez tamanha confusão? Será que seu problema é pessoal com Mauricio Valeixo? Claro que não.

Se Moro aceitar a saída de Valeixo, mesmo que indique o novo diretor-geral da PF, estará desmoralizado. Caso tenha que pedir demissão, só tem uma saída política: cair atirando, para manter sua popularidade e, sobretudo, sua credibilidade. Se sair e se retirar para um magistério no exterior, por exemplo, terá feito um mau negócio ao trocar o papel de juiz da Lava Jato pelo ministério da Justiça.

Chavismo de direita - NELSON MOTTA

O GLOBO - 24/04

Parece um método chavista cercar-se de generais

Tempo de horror em que os dois únicos assuntos nacionais são coronavírus e Bolsonaro. Parece que nada mais interessa. Está chato. Todo mundo escreve sobre as mesmas coisas. Desculpem, mas...

Lembrei-me de um filme de Kurosawa chamado “Homem mau dorme bem”, um grande ataque do mestre ao capitalismo. É sabido que Bolsonaro dorme pouco e mal, com um revólver na cabeceira, é natural que acorde cansado e mal-humorado. É quando fala suas maiores besteiras.

Depende do que tenha sonhado. Qual é o seu pior pesadelo? Ser impichado, o Queiroz contar tudo e Flávio ser preso, ou a depressão econômica? Ele é do tipo que não hesitaria em provocar uma guerra civil para se manter no poder, ou salvar um filho da cadeia. Mas o Exército o conhece bem, desde que o expulsou por planejar botar bombas em quartéis. Não pela democracia, por aumento de salário.

Pior é se fazer de louco, achando que todo mundo é burro, dizendo que não precisa dar um golpe porque já está no poder, fingindo que não existe o autogolpe, o parlamentar, e o golpe gradual de Hugo Chávez, o pior exemplo possível, que deu no que deu. Parece um método chavista cercar-se de generais, que não só o ajudariam como subordinados, mas também botariam as tropas na rua num eventual impeachment.

O próximo passo seria transformar suas milícias virtuais em armadas, como as chavistas, para “defender a democracia”? A coragem em um teclado não é a mesma diante de um fuzil. Robôs não usam fuzis, são virtuais, uma forma de autoengano em que quem paga sabe que as milhões de mensagens de apoio não são verdadeiras e estão pregando para convertidos. Só servem para espalhar fake news, terrorismo digital.

Todo dia ele diz que representa 57 milhões de pessoas que votaram nele, “nós somos a maioria”. Eram. Hoje mais de 10 milhões de seus eleitores se dizem arrependidos. E seu governo tem só 33% de apoio. Um terço não é a maioria. Não basta para ganhar nada, mas pode convulsionar o país. Quantos votariam nele hoje? E, mais importante, contra quem?

Pró-Brasil, um arremedo de plano - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 24/04

É indispensável programar a retomada econômica, mas planejamento vai muito além de improvisação para servir a um projeto de reeleição


Desorganizado, perdido e rachado por desentendimentos internos, o governo promete um programa de recuperação econômica baseado em grandes obras. Devem ser investidos R$ 250 bilhões por meio de concessões e parcerias público-privadas e R$ 50 bilhões com recursos públicos, segundo o ministro-chefe da Casa Civil, general Walter Braga Netto. A decisão foi anunciada em entrevista coletiva no Palácio do Planalto sem a presença de qualquer integrante do Ministério da Economia. O general, segundo se informou, coordenará o programa, batizado de Pró-Brasil.

As gavetas da Casa Civil podem até conter um plano econômico, mas nada parecido com isso foi apresentado na entrevista. Poucos pontos ficaram claros e nenhum deles é positivo. O coordenador pode ter, como se comenta, apoio de colegas militares, mas a opinião da equipe econômica pouco tem pesado. Mais que intrigante, isso é inquietante. Não é próprio de governos normais.

Mas há mais que isso. Em reunião anterior à entrevista, o ministro da Economia, Paulo Guedes, defendeu a preservação das âncoras fiscais, como teto de gastos. Defensores do plano já falam, no entanto, em ultrapassar o teto, a proibição constitucional de gastar mais que a soma do ano anterior corrigida pela inflação. Recorrer a um critério especial, o da calamidade pública, poderia ser uma saída, mas isso seria justificável?

Essa decisão poderia ser vista como sinal de abandono da seriedade fiscal. “Nada está descartado”, respondeu o presidente Jair Bolsonaro quando a imprensa lhe perguntou sobre uma possível flexibilização do ajuste fiscal já prometido e iniciado antes do surto da covid-19. A promessa de acerto das contas públicas é muito mais, no entanto, que um assunto interno do governo ou parte de um discurso dirigido ao eleitorado.

A gestão das finanças oficiais influencia a classificação de risco do País. Afeta as condições de financiamento do Tesouro e até a nota de crédito de grupos privados, mesmo daqueles mais sólidos. O presidente Jair Bolsonaro talvez ignore também esses fatos. Mas cidadãos mais informados, incluídos os membros da equipe econômica, sabem disso. O mercado pode aceitar o afrouxamento fiscal para ações de emergência, no enfrentamento de uma pandemia e de seus piores efeitos econômicos. Mas seu julgamento poderá mudar, e provavelmente mudará, quando tiver de analisar um programa de recuperação pós-covid-19.

Uma piora da avaliação de risco poderá resultar em juros mais altos. Não adiantará, então, cobrar do Banco Central uma política monetária mais branda. Afinal, quem financia o déficit fiscal e dá suporte ao endividamento público é o mercado. Terão os formuladores e defensores do Pró-Brasil considerado, ou mesmo lembrado, esse prosaico fato da vida?

Há, no entanto, outros pontos obscuros no esboço de programa anunciado pelo general Braga Netto. Qual a segurança quanto aos R$ 250 bilhões dependentes de concessões e de parcerias público-privadas? No mesmo dia do anúncio do Pró-Brasil, o secretário de Desestatização do Ministério da Economia, Salim Mattar, informou o adiamento de várias operações: “Neste ano acreditamos que não haverá clima para venda de ativos”. A meta de arrecadar R$ 150 bilhões em 2020 é, portanto, irrealizável.

Mas também privatizações previstas para 2021, como as dos Correios, da Codesp e da Telebrás, estão sendo reprogramadas para 2022. Além disso, segundo o secretário, as vendas de participações da União e do BNDESPar em empresas privadas é ainda mais incerta, por causa da má condição das bolsas de valores. Apesar disso, o coordenador do Pró-Brasil parece acreditar em clima para investimentos de R$ 250 bilhões por meio de concessões e parcerias público-privadas.

É indispensável, sim, programar a retomada econômica, com início neste ano e aceleração a partir de 2021. Mas planejamento econômico é algo mais sério e vai muito além de improvisações para servir a um projeto de reeleição. Há conhecedores do assunto em Brasília, no mercado e na academia. Por que não ouvi-los?

Tragédia de erros - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 24/04

Governo lança plano obscuro de obras e exibe dados enganosos sobre epidemia


Como se o país tivesse tempo a perder, o governo Jair Bolsonaro conseguiu produzir incerteza e controvérsia em torno de um rascunho de programa de obras públicas para o período pós-pandemia.

Acalentada pela ala militar do Planalto, a ideia suscitou nos corredores brasilienses alusões ao Plano Marshall, o gigantesco socorro econômico concedido pelos EUA aos aliados europeus após o desfecho da Segunda Guerra.

Diante de referência tão estrambótica, auxiliares do ministro Paulo Guedes, da Economia, trataram de dar declarações para recordar que o governo federal vive —há pelo menos cinco anos— sob regime de severa restrição orçamentária.

O tema acabou por centralizar as atenções na entrevista coletiva concedida na quarta (22) por integrantes do primeiro escalão envolvidos no enfrentamento da crise do coronavírus —cuja atração principal deveria ser, em tese, a primeira participação do novo ministro da Saúde, Nelson Teich.

Muito pouco, porém, se pôde descobrir a respeito do tal programa. Seu expositor, o general Braga Netto, chefe da Casa Civil, foi mais claro ao dizer o que ele não é: “Não existe nenhum Plano Marshall”.

Fora isso, soube-se que a propositura ganhou o nome de Pró-Brasil e terá a missão de concluir obras públicas ao longo de três anos, com investimento de R$ 30 bilhões, montante muito modesto para as dimensões do Orçamento —em 2019, com toda a penúria de primeiro ano de governo, investiram-se R$ 56,6 bilhões.

Ao fim e ao cabo, nem se entendeu a necessidade do anúncio precoce de um programa embrionário, quando há providências mais urgentes a serem tomadas, nem se desfez a impressão de que os militares pressionam contra a agenda liberal e fiscalista conduzida pela equipe de Paulo Guedes, não representada na entrevista.

Não foi a única trapalhada do evento, contudo. O estreante Nelson Teich, sem o desembaraço do antecessor diante do microfone, aventurou-se a dizer que o Brasil apresenta uma das menores taxas de mortes por Covid-19 do mundo, se considerada a população.

A comparação, além de usar números duvidosos e deixar de lado a subnotificação, foi feita com países que passam por estágios mais avançados da epidemia.

Notava-se o esforço geral em imprimir um tom mais positivo à comunicação de governo, complementado por um esdrúxulo apelo do general Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, por boas notícias na imprensa. Servir a Bolsonaro é, de fato, uma árdua missão.


Bolsonaro cria instabilidades e eleva custo da crise - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 24/04

Choque com Moro e abalo de Guedes mostram presidente enredado na própria inépcia para conduzir a nação na pandemia


Jair Bolsonaro está aumentando o custo da crise para a sociedade em meio a uma pandemia histórica. O presidente escolheu se transformar num vetor de instabilidade e converteu o governo numa usina de crises. O resultado é óbvio: quanto maior o nível de conflito, mais alto tende a ser o preço a ser pago por 211,4 milhões de brasileiros para emergir do caos econômico e social provocado pelo vírus.

Nas últimas semanas ele se empenhou em tumultuar as perspectivas de uma governança ainda que precariamente estável ao abrir confrontos com governadores estaduais, demitir um ministro, Luiz Henrique Mandetta (Saúde), e agir claramente para desidratar outros dois, Sergio Moro (Justiça e Segurança) e Paulo Guedes (Economia).

O choque com Moro e o abalo de Guedes se enquadram na moldura de um presidente aparentemente enredado na própria inépcia para conduzir uma nação sob grave crise, que avança para completar uma década em recessão, neste ano em nível sem precedentes, e nos últimos dez dias registrou aumento de 150% no número de mortes na pandemia.

Sem plano coerente e consistente para o país, Bolsonaro circunscreve suas ações à receita que aplicou com êxito na campanha eleitoral de 2018, a da aposta na multiplicação de conflitos em todas as direções.

É legítima sua aspiração à reeleição em 2022, assim como a busca por amparo parlamentar a todo custo. O problema está na sua incapacidade sucessivamente demonstrada de distinguir os limites entre Estado e governo, assim como entre o papel de um presidente e o de candidato potencial em futuras eleições.

A exposição da discórdia com o ministro da Justiça obedece a um padrão visto recentemente no caso do ministro da Saúde e reproduzido, mais uma vez, na promoção de um plano de resgate econômico para “trinta anos” — incoerente, para se dizer o mínimo —, ao qual se opõe abertamente o Ministério da Economia.

No caso do desentendimento com Moro há o agravante do motivo. Bolsonaro tenta há tempos substituir o diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, pessoa de confiança do ex-juiz. Assim como parece não arquivar a ideia de tirar a Segurança Pública do ministro da Justiça, para deixá-lo sem a PF. O interesse do presidente pela Polícia Federal cresce à medida que surgem ou avançam investigações no entorno do clã Bolsonaro. Agora, é o inquérito recém-aberto no Supremo, para investigar os subterrâneos das manifestações antidemocráticas, como as de domingo, de que Bolsonaro participou. Não se trata de uma preocupação republicana.

Hoje, a partir dos sinais emitidos pelo Palácio do Planalto, a única certeza possível é a de que o presidente da República não sabe o que fazer diante dessa inédita crise e, por isso mesmo, usa o recurso de fazer política do confronto, multiplicando conflitos em proporção e velocidades só comparáveis à disseminação do novo coronavírus.