terça-feira, maio 14, 2019

O Brasil no Caminho da Servidão - VINÍCIUS MONTGOMERY DE MIRANDA

INSTITUTO LIBERAL

Ao longo da história, em diferentes civilizações, há inúmeros registros de escravaturas. Em geral, as disputas dos povos por terras férteis, animais e fontes de água resultavam em batalhas, nas quais ao oponente vencido era reservado o papel de escravo, como espólio de guerra. No Império Romano, a estratégia de conquistar novos territórios resultava no aumento do contingente de escravos, que realizavam diversas tarefas domésticas ou produtivas, além de pagarem tributos ao império. O status social dos senhores de escravos era medido pela quantidade de serviçais que possuíam, e estes eram considerados bens, despojados de direitos e com severas restrições de liberdade. Eventualmente era permitido que possuíssem seus próprios bens, mas sua subsistência, em essência, dependia do favor de seu senhorio.

No auge do império sua extensão territorial alcançou cerca de cinco milhões de quilômetros quadrados, com população de quase 70 milhões de habitantes, sendo 20% escravos. A partir do século IX, com a decadência do Império Romano e as invasões bárbaras, surge o feudalismo como nova organização econômica e política da Europa. Sua economia era fundamentada na agricultura de subsistência, no escambo e no trabalho servil. Em troca de proteção militar e pelo uso da terra, os servos eram obrigados a se sujeitar aos nobres e pagar tributos. Não havia incentivo para o aumento da produção, nem para as inovações tecnológicas que pudessem gerar prosperidade, uma vez que todo excedente de produção era apropriado pelo senhor feudal. A exiguidade das relações comerciais era absoluta e a liberdade de iniciativa praticamente inexistente. Assim, até a Idade Média, a qualidade de vida era presumidamente bastante precária. Muitos sucumbiam diante de doenças, a alfabetização era deficiente e custosa e a alimentação escassa em proteínas. A expectativa de vida não passava de 30 anos e a renda per capita média anual rondava a casa dos US$ 600.

As Cruzadas, nos século XI e XII, quebram o isolamento dos feudos e levam a Europa a um novo nível de trocas comerciais. O comércio de especiarias, tecidos finos e outras utilidades domésticas atrai camponeses para a vida nos burgos – que eram vilas fortificadas -, estimulando a divisão do trabalho e a especialização da mão de obra, ainda que de maneira muito tímida. Os burgueses se ocupavam predominantemente de trabalhos artesanais e do livre comércio. Entretanto, a utilização de moedas nas trocas comerciais e o fomento comercial entre as cidades em formação, e delas com o Oriente Próximo, criam novas oportunidades de trabalho e atraem ainda mais camponeses para as cidades. Surgem as universidades, a pesquisa científica e os primeiros avanços tecnológicos na produção de alimentos. A propagação do conhecimento deixa de ser exclusividade da Igreja e a melhoria nas condições de vida faz a população crescer rapidamente. Contudo, problemas climáticos, que afetaram a agricultura, a Peste Negra, que dizimou mais de um terço da população europeia – grande parte composta de camponeses -, e as guerras dos séculos XIV e XV produzem escassez e fome. As camadas sociais inferiores passam a sofrer com o excesso de trabalho e com a majoração da carga tributária em benefício da nobreza. Irrompem diversas rebeliões populares e novas levas de servos abandonam os feudos em busca do trabalho assalariado nas cidades.

A formação dos Estados Nacionais, a expansão do comércio e a ascensão da burguesia abalam de vez o sistema feudal, de modo que a Europa da segunda metade do século XV se revela bastante distinta daquela da baixa idade média. O incipiente capitalismo comercial fomenta uma espiral de crescimento, amparada na geração de lucros e realimentada pelos novos investimentos, que multiplica o nível de atividade econômica. O ciclo de prosperidade e o crescente acúmulo de capitais permitem a expansão dos experimentos científicos e sucessivas ondas de pequenas inovações que se renovam até o eclodir da Revolução Industrial, em meados do século XVIII. Não obstante a evolução econômica experimentada pela Europa, ocorrem também importantes transformações políticas que sustentam o impulso econômico.

Na Inglaterra, a destituição do rei Jaime II, na Revolução Gloriosa de 1688, e a Declaração dos Direitos (Bill of Rights), que limitava os poderes do monarca, além de ampliar a liberdade civil e de expressão, reforçam o direito de propriedade e fortalecem o Parlamento britânico. Esses fatos geram uma estabilidade institucional que é decisiva para o advento da Revolução Industrial. Então, o trabalho artesanal é gradativamente substituído pela produção industrial mecanizada, que resulta em um aumento de produtividade sem precedentes na história da humanidade. A diversificação da mão de obra e a fragmentação das atividades laborais acentua o ganho de eficiência produtiva, tornando a atividade econômica muito mais complexa e vibrante. A redução dos custos de manufatura permite a universalização do consumo e a formação de poupança. O capitalismo industrial se espalha pela Europa e América do Norte, envolvendo também os países periféricos que passam a fornecer-lhes alimentos e matérias-primas. A independência dos Estados Unidos, em 1776, ajuda a consolidar os ideais de liberdade individual e os valores judaico-cristãos que são os alicerces do progresso e desenvolvimento das nações ocidentais.

Compreender essa evolução histórica da economia – que fez a renda per capita média mundial saltar para aproximadamente US$ 15 mil e a expectativa de vida para mais de 72 anos nos dias atuais – permite entender que alguns elementos são fundamentais para destravar o ciclo de prosperidade e bem-estar dos povos: a liberdade civil, que permite a cada indivíduo fazer suas escolhas e se utilizar de suas habilidades e talentos para produzir bens e serviços demandados pela sociedade, além de se beneficiar; a estabilidade institucional que reduz os riscos de investimentos e estimula a inovação tecnológica e as novas descobertas; o estado de direito que garante respeito às normas e aos direitos fundamentais (direito à vida e direito de propriedade), inclusive pelos mandatários políticos, com limitações do poder constituído; e os valores ocidentais destacados por Warraq no livro Why the West is the Best, a saber: o racionalismo, o auto criticismo, a busca desinteressada pela verdade, a separação entre Igreja e Estado, a força da lei e a igualdade de todos perante ela, a liberdade de consciência e de expressão e os direitos humanos e a democracia liberal. Somente esse conjunto de princípios assimilados por sucessivas gerações permite que cidadãos das nações ocidentais vivam em liberdade e alcancem a plenitude de seu potencial, não importando sua raça, credo ou suas preferências. Da mesma forma, nações não ocidentais que adotam esses princípios – caso da Coreia e do Japão – têm experimentado transformações invejáveis no nível de satisfação de seus povos.

Outro caso interessante de sucesso socioeconômico é o da Austrália. Seu ex-primeiro-ministro Tony Abbott causou polêmica, em 2015, ao afirmar, sob protestos da oposição trabalhista, que havia uma superioridade da cultura ocidental. O fato é que, após as reformas liberais nos anos de 1990, o país passou a apresentar uma performance econômica impressionante. São nada menos que 28 anos sem recessão, com aumento de renda, redução do desemprego e evolução dos indicadores sociais. A receita para tamanho êxito é a mesma que o Brasil e vários países da América Latina e do mundo subdesenvolvido simplesmente se recusam a aprender: gestão fiscal austera, redução da burocracia, redução de barreiras comerciais, desregulamentação do mercado de trabalho, crédito farto e barato, qualificação da mão de obra e a menor interferência estatal possível no ambiente de negócios. Ou seja, nada do protagonismo estatal que costuma ocorrer nas nações de desenvolvimento tardio.

Por isso, o economista e filósofo Frederich Hayek afirma que o sistema de concorrência existente na economia liberal é o único em que o enriquecimento depende exclusivamente do indivíduo e não do favor do poder constituído. Para Ludwig von Mises, o marxismo, que é a origem do insucesso das economias pouco desenvolvidas, é consequência da interpretação errônea de Karl Marx para a derrocada do sistema feudal. Marx não teria percebido que o movimento liberal, que surgiu com o fim do feudalismo, e posteriormente, com a Revolução Industrial, era a abolição da desigualdade entre servo e senhor, perante a lei, e por isso achava que o capitalismo era ainda mais desvantajoso para os trabalhadores que a servidão feudal. A realidade, porém, é incontestável. Da Rússia à Venezuela, do Camboja à Tanzânia, todos os países que apostam no coletivismo colhem inflação, desemprego, estagnação, escalada da violência, desabastecimento, fome e morte.

Depois de tantas décadas de progresso e aumento do bem-estar produzido pela supremacia dos valores ocidentais em todo o mundo, o movimento marxista percebeu que a luta contra o capitalismo não seria bem sucedida no campo econômico e militar, mas sim no campo moral e cultural. Dessa forma, Horkheimer e os expoentes da Escola de Frankfurt entenderam que para revolucionar a economia em direção ao socialismo era necessário minar a moral que sustenta a cultura ocidental e o conservadorismo. Nascem, então, o marxismo cultural e seus subprodutos – o movimento progressista e o politicamente correto -, que silenciosamente deveriam solapar as três instituições independentes do Estado: a Família, a Igreja Cristã e a Escola. Na visão neomarxista esses são os pilares do ocidente reacionário. Assim, colocar a culpa na sociedade pelos crimes praticados por menores e traficantes, distorcer a realidade ao invés de reportá-la, aceitar a corrupção de agentes estatais, se o objetivo for distribuir renda, ou rebelar-se contra a autoridade do pai e do professor, passam a ser considerados comportamentos absolutamente normais na estratégia revolucionária. Nem todos, porém, assistem inertes a essa corrosão dos valores tradicionais. Articulistas como Rodrigo Constantino, entre outros, mostram que os progressistas têm se aproveitado da liberdade de expressão, que somente o ocidente garante aos seus cidadãos, para atacar os preceitos que até aqui permitiram à humanidade uma vida um pouco mais equilibrada e saudável diante das tragédias, conforme muito bem examinado por Jordan Peterson no best seller 12 Regras para a Vida.

Não é por acaso, portanto, que o país do futuro estacionou no pelotão dos países de renda média. Fatores históricos que semearam o patrimonialismo no serviço público, a insistência no Estado como protagonista da economia, o desenvolvimentismo e a política de empresas campeãs nacionais, além de doses crescentes da mentalidade anticapitalista na mídia, nas escolas, no meio artístico e na formação jurídica, criaram um cenário perfeito para a supremacia do marxismo cultural. Ainda que muitos sequer consigam enxergar a conexão do antipatriotismo, do ambientalismo xiita, do feminismo e de outras pautas progressistas com a economia, a realidade é que o coletivismo enferrujou as engrenagens do desenvolvimento brasileiro. Abriu-se espaço para o assistencialismo nos moldes bolivarianos e a defesa despudorada dos privilégios do setor público. A corrupção, o ativismo ideológico e jurídico e a insensibilidade dos poderosos diante do aumento do desemprego, da pobreza e da violência, nada parece ser suficiente para despertar o país do pesadelo de sua trajetória rumo à servidão. Por isso, a tributação escorchante e a restrição da liberdade de iniciativa fazem o Brasil do terceiro milênio parecer uma sociedade feudal com duzentos milhões de patos sustentando os privilégios da nobreza palaciana. Entretanto, a história mostra que não existe estabilidade para tal arranjo. Se não houver uma reorganização do sistema a tempo, certamente sua entropia o levará a um rompimento, com consequências imprevisíveis.


Vinícius Montgomery de Miranda -Formação em Engenharia Elétrica na Universidade Federal de Itajubá.
MBA em Gestão Financeira na UNITAU.
Mestre em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Itajubá.
Professor no INATEL e na FAI (Santa Rita do Sapucaí).

A obscenidade da emoção - GUSTAVO NOGY

GAZETA DO POVO - PR
13/05


Já faz tempo que me incomodam os apelos a manifestações emotivas nos programas de televisão e nas matérias jornalísticas. Que o jornalismo de entretenimento viva de sentimentalismo predatório, estamos acostumados; que isso tenha se transformado numa imposição, não deveríamos nos acostumar.

Repórteres entrevistam sobreviventes de tragédias, pais que perderam filhos, filhos que perderam pais, moças estupradas, moços estupradores, cachorros levados pela enchente, pobres-diabos em geral, para saber deles o que estariam sentindo. Para arrancar deles a cárie sem anestesia. Como se naquele momento fosse possível sentir outra coisa que não tristeza, desamparo, raiva, medo, solidão, vergonha.

Ultimamente, a tentativa de explorar as emoções e as fragilidades vai se tornando ainda mais teatral. Quando não há emoções, inventamos as emoções, porque emocionar é preciso. Não é raro que celebridades, subcelebridades – e, por exemplo, jogadores como Neymar – finjam dores que deveras não sentem, apenas porque sim, apenas porque faz parte desses nossos tempos simular até a dor verdadeira. Precisamos de uma versão extrema, exacerbada, circense, daquilo que sentimos.

Nem sempre o sentimento autêntico é bonito de se mostrar. É como o beijo de verdade, ou mesmo o sexo: não é bem-feito, arrumado, coordenado e plástico como nos filmes. Então inventamos um sentimento postiço, que se sobrepõe ao sentimento genuíno ou a sentimento nenhum. O que importa é o que parece acontecer, não o que acontece. Porém, algo tem de acontecer. Precisamos de audiência, precisamos interagir com o distinto público, explorar as emoções verdadeiras ou fabricar outras, vender o peixe, capitalizar as lágrimas, extrair o siso, forçar o riso.

Ontem, depois do jogo entre Santos e Vasco, aconteceu um desses casos que deveriam envergonhar até os seixos da praia de Santos.

O time da Vila Belmiro venceu por 3 a 0. O primeiro gol aconteceu em virtude de falha técnica – em português: frango – do goleiro Sidão. Ele tem uma carreira conturbada, cheia de altos e baixos, mais cheia de baixos que de altos, e falhou novamente.

Ocorre que a Rede Globo tem de arrumar essas promoções para seduzir a audiência, e a deste ano é a seguinte: o amigo internauta, com toda a imemorial sabedoria de quem nasceu depois do bug do milênio, escolhe, por votação, o “craque do jogo”, e o felizardo craque do jogo ganha, ao sair de campo, um troféu mixuruca para segurar a porta.

Pois o amigo internauta, com a empatia de um agente da SS, teve a brilhante ideia de eleger justamente Sidão, o pior em campo, como o melhor em campo. Resultado: Sidão ganharia o troféu.

Eu assistia ao fim da partida, incrédulo. Torci, implorei, rezei para que os responsáveis pela transmissão tivessem bom senso, suspendessem a entrega do prêmio e esclarecessem: “O amigo internauta quis brincar hoje, e elegeu o Sidão, que teve dia infeliz, como o craque. Então não entregaremos o troféu desta vez”.

Explicação razoável, decente, justa.

Mas não. Devemos fustigar a dor alheia, custe o que custar. Temos uma dor autêntica aí com a qual trabalhar, não percamos a oportunidade, custa caro inventar uma dor cenográfica. Enfiemos o ferrinho de dentista no nervo alheio, porque, afinal de contas, é alheio mesmo, quem se importa? O amigo internauta não pode ficar sem sua ração estragada para engolir.

Ao sair de campo, uma constrangida repórter – constrangida, porém cumpridora de deveres – abordou o goleiro. Perguntou do jogo, sem querer saber do jogo, pois logo questionou seu desempenho. Sidão admitiu a o erro, e mais: admitiu que foi responsável pela derrota do time.

Ainda assim, a constrangida repórter – constrangida, porém cumpridora de deveres – disse ao goleiro que ele ganhava o prêmio por ter sido escolhido o… craque do jogo. A cumpridora de deveres parece ter se emocionado, mas fez o que lhe mandaram fazer.

E o goleiro seguiu vagaroso, “de mãos pensas”, amparado por um colega.

O amigo internauta, agente da SS virtual, que a essa altura terá urrado como a besta que é e sempre será, pôde enfiar na boca sua cota de ração estragada, beber seu gole de cerveja quente, e esquecer que esqueceu nalgum canto da vida a compaixão necessária, sem nem mesmo avaliar o que perdera."

As estrelas e a sarjeta - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 14/05

Se cortamos no financiamento das artes, então estamos lutando para quê?


Um dia disseram a Winston Churchill que era preciso cortar os custos do financiamento das artes. A Inglaterra estava em guerra. A guerra é um negócio caro.

Churchill recusou. E terá respondido: se cortamos no financiamento das artes, então estamos lutando para quê?

O filósofo Peter Singer discorda do velho Winston. A propósito da reconstrução de Notre-Dame, Peter Singer e um seu discípulo, Michael Plant, vieram argumentar que o dinheiro doado pelos ricos para a reconstrução da catedral deveria ser usado para combater a pobreza. ("How Many Lives Is Notre-Dame Worth", Project Syndicate).

Nas 24 horas seguintes ao fogo, foi possível juntar € 1 bilhão em donativos. As estimativas dos especialistas apontam para uma reconstrução que custa € 300 milhões a € 600 milhões. Donde, quantas vidas de pobreza não poderiam ser salvas pela totalidade desse bilhão?

Curioso. Para uma alma não utilitarista (como a minha), esses valores seriam um bom pretexto para um compromisso: pagava-se a catedral e depois, com o dinheiro remanescente e com a concórdia de todos, era possível passar às questões humanitárias.

Pelos vistos, Singer e Plant não gostam de compromissos. É tudo ou nada. E a catedral? A catedral deveria ficar em ruínas para sinalizar a virtude dos contemporâneos.

Li o texto com interesse. Se o problema pudesse ser resumido a uma simples questão matemática —tiramos daqui, entregamos mais além— nada haveria a objetar. Infelizmente, o mundo é mais complexo do que Singer imagina.

Deixemos de lado algumas objeções básicas, como a ideia de que o dinheiro pertence sempre a alguém; e que esse "alguém" tem toda a legitimidade para o usar como entende.

Deixemos também de lado a evidência dolorosa de que, se o pensamento utilitarista de Singer pudesse ser aplicado retroativamente, as nossas cidades, as nossas bibliotecas, as nossas salas de concertos ficariam vazias como desertos.

O que me impressionou no texto foi a redução da nossa humanidade à sua dimensão mais básica. Ou, inversamente, a ideia de que a arte e a beleza ocupam sempre um lugar secundário em qualquer existência.

Fato: quando temos fome, os anseios da alma podem esperar. Mas, quando olhamos para a história da nossa civilização, as necessidades do corpo e da alma nunca foram entendidas como mutuamente excludentes.

O filósofo Roger Scruton, que vale sobretudo pelos seus textos sobre estética (opinião pessoal), explica isso em documentário que aconselho. O título é revelador: "Why Beauty Matters".

Durante 2.500 anos, a necessidade de beleza nunca esteve em causa: a beleza era o sinal de um mundo superior que se revelava na temporalidade dos homens; e, a partir do iluminismo, uma fonte de conhecimento que permitia aos homens serem melhores do que meras bestas.

Essa visão redentora do belo acabou por perder-se com o "desencantamento do mundo" moderno. Como explica Scruton, os valores passaram a ser justificados pela sua utilidade mais contábil. O que não é útil não vale nada. Consequências?

Sim, a escassez de beleza retira aos seres humanos uma das fontes mais importantes de consolação moral e espiritual. "Todos estamos na sarjeta", escrevia Oscar Wilde, "mas alguns de nós estão olhando para as estrelas." De que vale viver na sarjeta quando se apaga essa luz no céu?

Mas existe uma segunda privação: uma privação intelectual e até política. Quando tudo se reduz a mera contabilidade de secos e molhados, como suster conceitos intangíveis como "liberdade" ou "democracia"? Como alimentar qualquer ideal superior que precisa sempre da cultura e da arte para ganhar forma e voz?

Ironicamente, o utilitarismo progressista de Peter Singer é bastante semelhante ao filistinismo reacionário de quem defende menos verbas para cursos de humanidades e mais foco em áreas que geram "retorno imediato ao contribuinte".

Em ambos os casos, presenciamos o triunfo do utilitarismo raso, a defesa do rebaixamento do horizonte humano, a transformação do pensamento em adereço menor e até dispensável.

Usar 1 bilhão de euros para combater a pobreza teria efeitos imediatos mas circunstanciais, que se esgotariam rapidamente no tempo. Usar metade dessa verba para reerguer Notre-Dame é dar resposta à pergunta de Churchill. Se não defendemos o que de melhor os homens fizeram ou pensaram, estamos a lutar para quê?

A essa eu respondo: para nada.

João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa

Por que favorecer a mulher com uma menor idade de aposentadoria? - CECILIA MACHADO

FOLHA DE SP - 14/05

Melhor seria colocar cada objetivo, Previdência e política social, em suas diferentes competências

Restam poucas dúvidas sobre a necessidade de uma reforma no sistema previdenciário para garantir um orçamento mais equilibrado, que libere recursos para políticas sociais em vez de privilegiar uma parcela da população de maior renda.

No centro da discussão está a melhor forma de fazê-lo. A atual proposta reconhece que uma margem importante de ajuste é o aumento da idade mínima para aposentadoria, mas o faz de forma diferenciada entre os gêneros: 62 anos para mulheres e 65 para os homens.

Se a Previdência levasse em conta apenas os cálculos atuariais, equalizando contribuições e benefícios, tal regra causaria estranheza, uma vez que a expectativa de vida das mulheres no Brasil é de 79 anos, e a dos homens, de 72 anos, segundo dados do IBGE. Por esse argumento, nada mais natural que a idade mínima de aposentadoria para as mulheres fosse maior que a dos homens.

O que ocorre, na verdade, é que a nova regra se propõe a manter a execução de políticas sociais dentro do sistema previdenciário. Um argumento comum é que a mulher possui jornada dupla, quando considerado o trabalho doméstico que executa em seus lares.

De fato, dados da Pnad de 2016 mostram que a mulher dedicam em torno de 21 horas semanais ao trabalho doméstico, e os homens, apenas 11 horas.

Mas, ao aceitarmos o argumento de que a Previdência deve ser usada para fazer políticas sociais, em especial fazer compensações a grupos demográficos em desvantagem no mercado de trabalho, abrimos a possibilidade de tratamento diferenciado a algumas outras importantes categorias que, no projeto atual, não estão sendo contemplados, por exemplo a população negra e parda.

É sabido e extensamente documentado que a participação dos negros no mercado de trabalho é bastante diferenciada: sua taxa de ocupação e salários são menores que os dos brancos, além de estarem mais expressivamente concentrados no setor informal, que não os qualifica em tempo de contribuição para o sistema previdenciário.

Ainda na mesma linha de raciocínio, a idade diferenciada por gênero assume que a jornada dupla de trabalho é fenômeno homogêneo e usual para todas as mulheres no país. Não é.

A realidade de uma mulher branca, com educação superior, casada e sem filhos, em termos de oportunidade de trabalho e renda, é completamente distinta da realidade da solteira, só com a educação básica, negra e com filhos, que, com altíssima probabilidade, está sujeita à jornada dupla. Não há justificativa razoável para tratar de forma igual grupos tão diferentes de mulheres.

Por que favorecer a mulher com uma menor idade de aposentadoria? Melhor seria colocar cada objetivo, Previdência e política social, em suas diferentes competências, em vez de contemplá-las conjuntamente.

Soma-se ao argumento o fato de que regras diferenciadas por gênero reforçam o estereótipo de que de fato as mulheres são mais responsáveis pelas tarefas domésticas. Ou seja, se a regra determina aposentadoria precoce para a mulher por causa do trabalho doméstico, nada mais natural que as tarefas domésticas continuem sendo feitas em sua maior parte por mulheres.

Além disso, uma aposentaria antecipada para as mulheres diminui os investimentos que as firmas e os próprios trabalhadores fazem em uma relação trabalhista. Dessa forma, oportunidades de trabalho, treinamentos e promoções são tanto menores quanto menor o horizonte de tempo do retorno a tais investimentos.

A diferenciação entre os gêneros na regra previdenciária transborda para diversas outras esferas, como na divisão de trabalho doméstica e no próprio mercado de trabalho.

Se o legislador buscasse promover igualdade de gênero de forma ampla e irrestrita na economia, deveria fazê-lo também na regra de aposentadoria do sistema previdenciário, reconhecendo que talvez as mulheres queiram as mesmas oportunidades e benefícios que os homens têm na sociedade.

Cecilia Machado
Economista, é professora da EPGE (Escola Brasileira de Economia e Finanças) da FGV

O bolsonarismo na prática - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 14/05

Há necessidade permanente de cultivar confrontos e cevar crises


Não se pode analisar o governo Bolsonaro sem examinar a natureza ressentida do bolsonarismo — o desejo de forra contra o inimigo fabricado. Trata-se de dimensão fundamental, talvez mesmo aquela que amalgame os sentimentos disruptivos que decidiram a eleição de 2018.

Note-se que o ataque à universidade pública ora em curso não raro vem de gente formada pela universidade pública — contradição que é uma das marcas distintivas do rancoroso.

Abraham Weintraub, ministro da Educação, bolsonarista de primeira hora, é um ressentido. Vélez Rodríguez também o é, mas um desapetrechado para tocar a agenda de corrosão institucional. Sob a lógica reacionária que ora dirige o presidente, Weintraub, um executivo do desmonte, burocrata cujo rancor se mostra operacional, é escolha correta para o ministério, consistente com aquilo que o bolsonarismo sempre — e sem esconder — pregou para a educação pública por meio da máquina estatal: nunca um corpo com o qual mover um programa positivo de reformas sobre os tantos e tão graves problemas que há, especialmente no ensino fundamental, mas uma estrutura aparelhável dentro da qual promover a tal guerra cultural.

O bolsonarismo também depende do “nós contra eles”. É preciso ter clareza sobre a essência do projeto de poder bolsonarista e a forma como se desenvolve — para o que o Ministério da Educação é a superfície perfeita, ali onde se pode fetichizar as figuras, logo facções, do estudante vítima indefesa de doutrinação ideológica (que derivaria de um comando central comunista) e do professor prosélito esquerdista que, sob ordens do partido, corrompe inteligências e multiplica desinformados.

A compreensão desse esquema binário — forja de conflitos — é crucial ao entendimento de que há, hoje, dois ministérios da Educação: um, o público, de todo inerte e incapaz de tocar adiante a mais modesta política pública, para prejuízo de crianças e jovens os mais pobres; e o interno, um cupinzeiro no cio, aquele em que se trava a eterna guerrilha, a que mobiliza as tropas, contra os inimigos inventados, os agentes do establishment (militares incluídos), incrustados no Estado para defender os aparatos que transformaram escolas e universidades em fábricas de analfabetos petistas.

É dessa batalha fantasiosa havida dentro do ministério que emerge, para alguma expressão do ministério de fora, o senso de “balbúrdia” que explica o anúncio — para posterior recuo — do bloqueio arbitrário em parte do orçamento de um punhado de universidades federais. Weintraub não retrocedeu em seguida porque pressionado pela reação da sociedade. Diria mesmo que ele não voltou atrás, sendo ambos os movimentos — o avanço e o recuo — produtos de cálculo tipicamente bolsonarista: de início, um afago discricionário à militância cujo ódio bebe ainda melhor o sangue que jorra de poucas mas representativas cabeças, como a da UFF; depois, ante a previsível resistência, o comunicado que anula a arbitrariedade que resultara na seleção original de afetados para estender o contingenciamento de recursos, também arbitrariamente (porque sem qualquer critério), a todas as universidades — o que terá sido sempre o objetivo.

Vélez Rodríguez era um péssimo ministro — como o é Weintraub, conforme grita a inação do ministério. Não caiu porque ignorasse as funções do cargo e as responsabilidades da pasta, mas porque incapaz de desdobrar o projeto bolsonarista de desidratação de tudo quanto possa ser identificado como musculatura institucional razoavelmente autônoma — no caso da educação, claro, a universidade.

Ressalto, então, um ponto relevante, outro entre os caráteres do bolsonarismo a respeito do qual tenho escrito: a necessidade permanente de cultivar confrontos e cevar crises como semeadura para a própria subsistência. Não nos iludamos. Nenhum bolsonarista — tanto mais um antigo professor universitário — bloqueia dinheiros de universidades, no tranco, sem saber exatamente onde e por que mexe; para que mexe. Sim, é o que quero dizer: a ação espera — quer, deseja — o contragolpe; se violento, tanto melhor.

Seria o cenário dos sonhos bolsonaristas, a mais límpida maneira de sustentar o terceiro turno em que encontra seu ar: provocar a reação do que seja facilmente designado como extrema esquerda, de preferência com greves, com protestos destrutivos nas ruas, tudo quanto possa projetar polarização e ser caracterizado como movimento paralisador de um país já paralisado, e que sublinhe os que se manifestam como aqueles que, agindo em defesa de interesses pessoais e mesquinhos, jogariam contra o país, a turma que não quer ver o Brasil dar certo — o paraíso caótico, o estado de conflagração, por meio do qual o bolsonarismo, em campanha constante, melhor consegue falar, sem intermediários, à população.

Lembre-se, leitor, da revolta dos caminhoneiros e de como o bolsonarismo a instrumentalizou. Tem método.

Em Brasília, esqueceram do futuro - JOSÉ CASADO

O GLOBO - 14/05

Poucos ali se mostram preocupados com a existência de 13 milhões de desempregados


Humanos seguem para Marte no final da próxima década, anuncia a Nasa. Nessa época, a Universidade de Durham, no Reino Unido, começa a usar moléculas motorizadas, dirigidas pela luz, para perfurar individualmente células cancerosas, e destruí-las em 60 segundos.

Esses experimentos poderão ser acelerados pela novidade da IBM: um chip capaz de guardar um bit de informações num único átomo — do tamanho da moeda de um centavo — vai reter dados em volume similar ao da biblioteca musical da Apple.

Visto de Brasília, esse panorama global pautado pela fusão de tecnologias, bem como suas consequências sobre a produção, o emprego e as políticas públicas, parece distante da vida real, muito além da Via Láctea.

No Palácio do Planalto prevalece a crença de que só o atraso leva ao futuro. São raras as exceções, entre elas a equipe empenhada em retirar o Estado dos escombros fiscais.

O Judiciário se desnorteou, com um Supremo visto como adversário ou parceiro de frações políticas, como define o pesquisador Conrado Hübner.

Já o Congresso dá prioridade à vingança contra a Operação Lava-Jato.

O futuro sumiu da Praça dos Três Poderes. Poucos ali se mostram preocupados com a existência de 13 milhões de desempregados quando há milhares de vagas não preenchidas em grupos como Cyberlabs. Não se vê aflição com a dependência tecnológica, nem para facilitar a inovação em empresas como a Raízen, que extrai energia da biomassa suficiente para abastecer o Rio por um ano, ou a Embraer, que projeta, com a Uber, um carro voador elétrico.

Na asfixia política produzida em Brasília, não sobra lugar no futuro imediato para gente como Gabriel Liguori desenvolver um gel a partir de células de um paciente para criação de um coração artificial, impresso em 3-D e aplicável em transplantes. Ou ainda, para uma empresa de cartão de crédito eletrônico como a de Henrique Dubugras, 23 anos, e Pedro Franceschi, 24, que já disputa mercado com a Amex. Ambos celebram o primeiro US$ 1 bilhão da Brex, uma década antes da viagem humana a Marte.

Derrotas em série - HÉLIO SCHWARTSMAN

Folha de S. Paulo - 14/05

Está cada vez mais claro que o governo Bolsonaro não terá maioria no Legislativo


Uma das primeiras perguntas que se fez sobre o governo de Jair Bolsonaro é como ele agiria para obter maioria no Legislativo. A resposta, que vem ficando mais clara a cada semana, é que ele não a terá.

Até aqui, a administração perdeu todas as votações relevantes que enfrentou no Congresso. Está prestes a ver desfeitos até mesmo alguns pontos da medida provisória nº 870, baixada no primeiro dia do novo governo, que reorganizou os ministérios e outros órgãos federais. Se há algo que o Legislativo sempre concedeu a presidentes eleitos, é a prerrogativa de desenhar como preferissem a estrutura com a qual trabalhariam.

Em condições normais, poderíamos cravar como próxima de zero a probabilidade de uma administração assim fraca no âmbito do Legislativo aprovar uma reforma impopular como é a da Previdência. Mas nós definitivamente não vivemos tempos normais.

Prefeitos e governadores já se aproximaram o bastante do abismo para constatar que, sem refrear os gastos com aposentadorias e pensões, as contas públicas se tornarão inadministráveis. Essa percepção está chegando aos parlamentares. O mais provável, portanto, é que uma versão desidratada da reforma proposta pela equipe econômica venha a ser aprovada, apesar da falta de empenho do presidente, que passa sempre a impressão de ser instintivamente contrário às mudanças.

Como Bolsonaro já deu todas as indicações de que não alterará seu estilo de gestão, a pergunta relevante passa a ser se a aprovação de uma reforma da Previdência basta para assegurar a sobrevivência do governo.

A resposta é que dependerá do desempenho da economia. Se a revisão do sistema previdenciário trouxer a chuva de investimentos e contratações com a qual sonham alguns empresários, Bolsonaro termina tranquilamente o mandato e pode até ser reeleito. De minha parte, acho difícil. Reequacionar a Previdência é condição necessária, mas não suficiente para destravar o crescimento.

Da inutilidade da compra de certificados - FERNÃO LARA MESQUITA

O Estado de S.Paulo - 14/05
A Constituição dos Miseráveis é o marco da independência do País Oficial do País Real



O problema do Brasil é a total independência do País Oficial em relação ao País Real. Tudo o mais é nada perto disso. A sobrevida desse País Oficial desenhado como uma privilegiatura depende dessa independência. Eles sabem que estarão mortos quando o País Real renascer. Daí ano perdido para nós ser ano ganho para eles. Já vamos em duas “décadas perdidas” desde que o País parou. Mas ele vem desacelerando desde 1988, quando a privilegiatura plantou o marco da sua independência do Brasil, que foi a Constituição profeticamente chamada “dos Miseráveis”, hoje um compêndio de 250 artigos e 80 emendas, todos menos um especificamente desenhados para anular a soberania do povo que o primeiro dos seus Princípios Fundamentais afirma.

O Brasil anda perdido. Além do que já está pronto para o consumo, só importa do mundo que funciona as obsessões que o tédio e as doenças correlatas da abundância lhe infligem: os ódios de raça, de gênero, de religião e seus subdepartamentos; as deformações alimentares, os vícios, o ridículo. O componente conspiratório pesa menos do que parece. O canal preferencial dessa linha de contaminação é a arte, a escola e a imprensa vira-latas. O professor, o artista e o jornalista vira-latas integram um grupo autorreferente que vive de chamar mediocridade de talento e vício de virtude (e, claro, de transformar o pertencimento ao grupo em verbas públicas e privilégios vitalícios). Tudo referir a esses temas, o preço a pagar pelas graças recebidas, são a “credencial de modernidade” com a qual se sentem autorizados a retrucar com “carteiradas” qualquer argumento racional em contrário. Conjecturar sobre o que e como fazer para mudar a nossa realidade, como outros pedaços mais humildes da humanidade fizeram, não é, para eles, “aprender”, é aceitar a acusação de “lacaio”, condição que todos, aliás, estão treinados para assumir de bom grado desde que seja do feitor certo.

A elite empresarial de boa-fé, imersa nesse processo de deseducação, “compra certificados” de progressismo criando cursos de capacitação e empreendedorismo em favelas e comunidades quilombolas, espalhando bandeiras do Brasil pelas ruas, financiando candidaturas de quem tope receber vagos cursos de honestidade na política... Para ser exato, não sabe o que fazer. Quer, como a maior parte dos outros brasileiros de boa-fé, até os políticos, plantar aqui o resultado das profundas reformas feitas pelas sociedades “de sucesso” sem antes passar por elas.

Não é que nossas elites não acreditem na liberdade. Nunca a experimentaram. Não sabem o que é. Por isso morrem de medo dela. Não têm a menor ideia de como “a desordem” que a liberdade cria trabalho para impulsionar o crescimento, o empreendedorismo, a inovação. Com os dois pés nos estágios mais básicos do mandonismo – positivista no caso da elite política, da revolução industrial no da empresarial –, nenhuma aceita com naturalidade a submissão ao povo e à alternância no poder político, uns, e à “destruição criativa” e à alternância no poder econômico, os outros. Consciente ou inconscientemente, trabalham todos contra a mudança ao tratar de proteger o povo dele mesmo, porque não existe mudança possível antes da mudança da fonte de legitimação do poder.

Em toda a parte os salários mais altos atraem as maiores ambições, os mais dispostos a tudo e, no sentido darwiniano da expressão, os mais aptos. Cria-se então uma elite que trata de perpetuar-se comprando a melhor educação, a melhor informação, a melhor medicina. Nos EUA, do final dos 70 em diante, o setor financeiro, de instrumento acessório do desenvolvimento se foi transformando, ele próprio, “no” poder, tão estratosférico foi o nível a que chegaram os salários. Depois da crise de 2008 metade do governo passou a “emanar”... do Goldman Sachs. Os americanos “pés-duros”, porém, contam com poderosas defesas contra isso. Além da Constituição mais sólida do planeta, copiaram há mais de cem anos, quando estiveram tão podres quanto estamos hoje, o remédio que os suíços inventaram há mais de 700 (isso mesmo, desde 1291!) para transformar escravos em senhores que os fez a maior renda per capita e o povo mais educado do mundo. O mesmo que os japoneses adotaram a partir de 1945, os coreanos desde 1954 e que o resto do mundo que funciona vai copiando hoje.

O Estado brasileiro paga os maiores salários relativos do planeta. Tão altos que fora dele só restaram miséria e brejo. A disputa de poder – o político e o econômico – dá-se, por isso, exclusivamente pelo controle do Estado. Mas nas nossas condições de extrema fragilidade a elite que se reveza no poder não se apropriou apenas do governo, apropriou-se da própria Constituição, que transformou no instrumento incontestável da sua autorreprodução.

O único ponto fraco do “Sistema” é a ilegitimidade que a morte à míngua da economia nacional põe, agora, numa evidência impossível de abafar. O único inimigo capaz de derrotá-los é a força que a opinião pública apenas começa a desconfiar que tem e usa, ainda, a esmo, sem foco, como uma adolescente estabanada. A vitória só virá se e quando entender que, sendo o jogo institucional, é preciso definir quais instituições se fazem necessárias para reverter dawinianamente o processo darwiniano com que se defronta. O que é preciso exigir para transformar em fator decisivo de fracasso o que antes era fator decisivo de sucesso do inimigo, e deixar que a natureza, agora através de um filtro de seleção positiva, faça o resto.

O povo brasileiro perde todas porque não tem representação no País Oficial. “Democracia representativa” é uma hierarquia em que os representados mandam e os representantes obedecem, mas o Brasil não dispõe dos instrumentos capazes de criar uma. Isso só é possível se e quando o sistema eleitoral permite saber quem, exatamente, representa quem, e o representado traído pode demitir no ato o representante traidor.

O resto – todo o resto – é “me engana que eu gosto”.

Bolsonaro ou Moro, um dos dois está mentindo descaradamente - RANIER BRAGON

FOLHA DE SP - 14/05

Vaga no STF teria sido objeto de compromisso entre presidente eleito e o então juiz?


Na ficção, Sergio Moro brilha em “O Mecanismo”, a versão romanceada da Lava Jato, cuja segunda temporada acaba de sair na Netflix. Na vida real, o ex-juiz protagoniza atualmente o episódio “O Compromisso”, não menos interessante.

Jair Bolsonaro não poderia ter sido mais claro: disse ter firmado com Moro o compromisso de indicá-lo à primeira vaga que surgir no Supremo Tribunal Federal, a mais alta corte do país, provavelmente em 2020.

O ministro da Justiça também foi assertivo: sem nem pedir a tradicional vênia, desmentiu o chefe imediatamente, dizendo que não colocou nenhuma condição —como indicação ao STF— para abandonar 22 anos de toga e ingressar no governo.

Façamos então a carinha do emoji com a mão no queixo e olhar intrigado. Quem está mentindo e, mais importante que isso, por quê?

Dificilmente alguém —que não os dois ou quem testemunhou a conversa— terá resposta. E viva a nova política, quando ou presidente ou seu ministro está mentindo descaradamente e cada um deles sabe exatamente quem é e por qual razão.

Bolsonaro levou para seu governo um auxiliar dito “indemissível”, hoje seu ministro mais bem avaliado. Que outra brilhante solução haveria, então, que não a de retirar do jogo um concorrente em 2022 despachando-o para debaixo de uma nova toga?

Do ponto de vista de Moro, o ex-juiz vem passando por percalços no Congresso e tenta olimpicamente se desviar de temas que vão do Queirozgate aos infames decretos bangue-bangue. Parece ter assumido o Ministério do Não É Comigo.

Para sua carreira jurídico-política, não resta dúvida de que há dois horizontes: o STF ou a vaga de Bolsonaro. Logo, não seria de bom tom excluir de cara um desses cenários. Além do mais, a confirmação do “compromisso” mobilizaria por antecipação tropas contrárias e daria mais substância à percepção de que ele conduziu a Lava Jato com alguns objetivos políticos bem delineados.

Quem está mentindo? E por quê? Com a palavra, Bolsonaro e Moro.

Inventando problemas inúteis - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S.Paulo - 14/05

É extemporânea a discussão sobre quem será indicado ao STF. Além de desgastar Sérgio Moro, Bolsonaro deteriora sua própria imagem como governante.


Desde que assumiu a Presidência da República, Jair Bolsonaro comentou mais de uma vez sua inadequação para o cargo que ocupa. No mês passado, por exemplo, ele disse: “Não nasci para ser presidente, nasci para ser militar”. Diante dessa sua percepção, seria muito oportuno que, ao menos, o presidente Bolsonaro se esforçasse para não criar novas dificuldades para o País e para o governo – e, por que não dizer, para si mesmo. No entanto, ele parece indiferente a essa preocupação, fazendo afirmações que geram problemas adicionais e, consequentemente, mais desgastes, novas perdas de energia e necessidade de contínuos esclarecimentos.

Em entrevista à Rádio Bandeirantes no domingo passado, o presidente Bolsonaro deu a entender que, no momento em que convidou o então juiz de primeira instância Sergio Moro para ser ministro da Justiça, teria feito um acerto a respeito de uma futura indicação ao Supremo Tribunal Federal (STF). “Eu fiz um compromisso com o Moro, porque ele abriu mão de 22 anos de magistratura (para assumir o Ministério). Eu falei ‘a primeira vaga que tiver lá (no Supremo) está à sua disposição’”, disse o presidente Jair Bolsonaro.

É absolutamente extemporânea a discussão sobre quem será o próximo indicado ao STF. A princípio, a próxima vaga estará disponível apenas em novembro de 2020, com a aposentadoria compulsória do ministro Celso de Mello, em razão da idade.

Como se não houvesse outros problemas a serem enfrentados, o presidente Jair Bolsonaro adiantou uma questão que exigirá uma decisão sua apenas daqui a um ano e meio. Além disso, o comentário deixou o ministro Sergio Moro em situação delicada, pois o presidente Bolsonaro deu clara indicação de que houve uma relação de troca com o futuro ministro da Justiça: ele abandonava um capital – inclusive financeiro – de 22 anos em troca de uma futura indicação por vaga no Supremo. Coisas assim foram examinadas, à farta, na Operação Lava Jato.

No dia seguinte à entrevista do presidente Bolsonaro, durante palestra em Curitiba, Sergio Moro falou sobre o convite para o Ministério da Justiça. “Ele (Jair Bolsonaro) foi eleito, fez o convite, fui até a casa dele no Rio de Janeiro. Nós conversamos e nós, mais uma vez publicamente, eu não estabeleci nenhuma condição. Não vou receber convite para ser ministro e estabelecer condições sobre circunstâncias do futuro que não se pode controlar”, disse o ministro da Justiça. E assim, para o bem da República, esperamos que tenha sido.

Sergio Moro ainda declarou: “Quando surgir a vaga (para o STF), isso vai ser discutido, antes não”. Seria muito conveniente para o País que o presidente Bolsonaro tivesse essa mesma disposição de respeitar os tempos de cada decisão, sem adiantar problemas. Como se fosse um assunto a ser debatido na semana que vem, Jair Bolsonaro disse na entrevista de domingo: “Eu vou honrar esse compromisso com ele (Sergio Moro) e, caso ele queira ir para lá, será um grande aliado, não do governo, mas dos interesses do nosso Brasil dentro do STF”.

Quando age assim, o presidente Bolsonaro não prestigia o ministro Sergio Moro e tampouco o fortalece no cargo. A rigor, ele desgasta um importante integrante do primeiro escalão do seu governo, dando a entender que, com o convite, havia também a promessa de um benefício futuro. Há menos de um mês, o ministro Sergio Moro declarou que “ir para o STF seria como ganhar na loteria”.

Além de desgastar o ministro Sergio Moro, o presidente Jair Bolsonaro deteriora sua própria imagem como governante. Com urgentes problemas a serem enfrentados – a reforma da Previdência, sendo o mais importante e decisivo agora, é apenas um destes desafios –, o presidente Jair Bolsonaro revela ter frágil percepção das prioridades do País. Quem tem visão clara das metas da administração pública e sabe das dificuldades que terá de enfrentar para realizá-las não inventa extemporaneamente problemas que consumirão suas já escassas energias.

A fala de Jair Bolsonaro ainda alimenta inquietações no restante de sua equipe, que certamente subtrairão muito da já pequena eficácia de seu governo: se o presidente Bolsonaro trata assim, gratuitamente, o seu “superministro” Sergio Moro, o que será capaz de fazer com os outros?


Perdão com sensatez - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 14/05

Com atraso, STF interrompe série de equívocos em torno de indulto natalino


Mais de um ano depois, o Supremo Tribunal Federal restabeleceu alguma racionalidade na celeuma provocada pelo indulto de Natal assinado pelo ex-presidente Michel Temer (MDB) em dezembro de 2017.

Por 7 votos a 4, os ministros concluíram que o chefe do Executivo tem a prerrogativa de estabelecer as regras para o perdão de condenados —e, logo, o decreto editado por Temer não feria a Constituição.

Tal entendimento singelo dispensaria maiores análises e debates, não fosse o furor ativista do aparelho jurídico-policial do país.

É fato que o indulto daquele ano incorreu em generosidades um tanto inconvenientes, em especial por partirem de um governo enredado em suspeitas de corrupção. O texto permitiu libertar condenados que tivessem cumprido um quinto da pena —qualquer que fosse ela— e previu até remissão de multas.

Nota-se, de todo modo, que a liberalidade das regras vinha crescendo nos últimos anos. Até meados da década passada, o benefício contemplava apenas condenados a menos de seis anos de prisão que já tivessem cumprido ao menos um terço da pena.

Em 2010, o limite subiu a 12 anos; em 2016, exigiu-se o cumprimento de um quarto da punição. O indulto passou a incomodar a força-tarefa da Lava Jato, para a qual havia indulgência em excesso para criminosos do colarinho branco.

Com esse ponto de vista, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, recorreu ao STF contra o decreto de 2017. Argumentou-se, afrontando a sensatez, que a medida —listada na Constituição entre as competências do presidente da República— invadia atribuições do Legislativo e do Judiciário.

A então presidente da corte, Cármen Lúcia, suspendeu a validade de trechos do diploma. Em março do ano passado, a invencionice chegou ao cúmulo quando o relator do caso, Luís Roberto Barroso, decidiu mudar a redação do texto.

A sucessão de erros poderia ter acabado em novembro, quando em julgamento seis ministros do Supremo votaram pela validade do decreto. Luiz Fux, porém, apresentou um pedido de vista com aparência de manobra protelatória.

Entende-se, é claro, a repulsa da opinião pública à corrupção e à impunidade. Entretanto o combate a tais mazelas por meio de casuísmos não apenas se mostra ineficaz a longo prazo como compromete a credibilidade das instituições.

A prática do indulto se ampara em razões humanitárias e no princípio de que condenados por faltas menos graves, tendo cumprido parte da pena e não representando ameaça, podem ser reintegrados à sociedade. Dada a superlotação dos presídios, onde facções criminosas recrutam mão de obra, trata-se de providência racional.

Idealmente, para esta Folha, a legislação deve evoluir para privilegiar, tanto quanto possível, o uso de penas alternativas, desde que rigorosas o bastante para gerar o necessário efeito dissuasivo.

O “mito” acima de todos - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 14/05

Guedes, Moro e militares do governo precisam ser contidos, para que se destaque a liderança pessoal de Bolsonaro


O tripé de credibilidade do governo está sob fogo cerrado da ala radicalizada do bolsonarismo, com o aval, quase sempre indireto, do próprio presidente, convencido pelo filho tuiteiro Carlos e por seu guru esotérico Olavo de Carvalho, de que enfraquece-lo é fortalecer um governo populista de comunicação direta com os cidadãos através das novas mídias sociais.

É através delas que guru e seguidores desencadeiam sua guerra particular contra quem possa ameaçar o “mito”. Em recente tuíte, Carlos explicita esse temor ao dizer que os elogios ao “ótimo” Paulo Guedes visam enfraquecer seu pai. Foi assim também com o vice-presidente Hamilton Mourão, uma reserva de bom senso em meio ao caos do governo, identificado pelos radicalizados como querendo se transformar em um contraponto a Bolsonaro.

Tudo é feito premeditadamente, uma loucura aparente, com muito método. Os superministros Paulo Guedes, da economia, e Sérgio Moro, da Justiça, e os militares que fazem parte do governo, precisam ser contidos como forças políticas, para que se destaque a liderança pessoal de Bolsonaro.

O governo foi montado sobre um projeto populista que pretende transferir ao presidente, e a mais ninguém, os êxitos alcançados, desde o combate ao crime e à corrupção, até uma eventual melhoria da economia. E a visão do presidente e sua turma geralmente não combina com as de seus principais assessores, pois objetivam fazer um governo sem limitações institucionais, com resultados imediatos.

Não é por acaso, portanto, que, sempre que pode, Bolsonaro lamenta ter que fazer a reforma da Previdência, defende os velhinhos e os pobres, que supostamente estariam sendo prejudicados pelos estudos da equipe econômica, promete ações que não se coadunam com a economia restritiva, quase de guerra, defendida pelo ministro Paulo Guedes, como reajustar a tabela de Imposto de Renda pela inflação. Ou interferir no preço do diesel.

Também no combate ao crime organizado e à corrupção, fundamento para o então juiz Sérgio Moro estar em seu ministério, o presidente tem uma visão simplista que não leva à estruturação de um programa efetivo como o que pretende Moro. Quem imaginava que a presença de Moro no governo seria uma garantia de que excessos seriam contidos, já tiveram, ele inclusive, demonstrações de que há situações em que a ideologia fala mais alto.

Permitir que cada cidadão possa ter quatro armas em casa, e não duas, como sugeria Moro, é exemplar dessa postura. Ampliar as possibilidades de porte de arma, também. Quando foi divulgado o decreto sobre posse de armas, Moro fez questão de frisar que não se tratava de porte.

Agora, teve que engolir o decreto, de que tomou conhecimento pouco antes de ser divulgado. A falta de empenho do governo para manter o Coaf no ministério de Moro é também indicativa de que Bolsonaro é capaz de abrir mão de propostas coerentes, mas secundárias para o projeto político populista.

Da mesma maneira, sua dubiedade em relação aos ataques aos militares mostra que, ao contrário do que se imaginava, estava interessado apenas na aura de credibilidade que dão ao seu ministério, não nas suas ponderações ou posturas democráticas, garantidoras da estabilidade.

Houve quem temesse que tantos militares juntos favorecessem uma situação institucional precária, que levasse ao famoso “autogolpe”. O que se vê é, ao contrário, os militares se transformando em garantidores das liberdades democráticas, enquanto os bolsonaristas radicalizados os atacam.

Moro, de candidato natural à presidência da República na sucessão de Bolsonaro, passou a ter que engolir sapos enquanto faz hora para ir para o Supremo Tribunal Federal. Foi essa a mensagem implícita da fala de Bolsonaro, ao dizer que a primeira vaga que abrir no STF será dele. Transformou-o em um subalterno sem grandeza, substituível, o que até agora parecia impensável.

Moro está sendo vítima de ataques de dentro do Congresso, porque é visto como perseguidor de político, e no governo, de pessoas que não gostam da ideia de que, sem ele e sem o ministro da economia, Paulo Guedes, o governo Bolsonaro acabaria.

A ala radicalizada do bolsonarismo joga com outra hipótese, a de que a liderança política do “mito” dispensa avalistas. O único “super” é ele mesmo, cujo aval vem das ruas. O “mito” acima de todos.