terça-feira, março 31, 2020

O ganha-ganha de Bolsonaro - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 31/03

Bolsonaro é parte — grande — do problema; um agente para o agravamento do drama


Vi muita gente boa, não faz tanto tempo, dizer que o perfil de louco rompedor, de irresponsável trombador, era o necessário — finalmente o gatilho — para dar um tranco no Brasil e fazer o país avançar para as reformas liberais de que o Estado precisaria. Nunca acreditei nisso. Reformas estruturais dependem de estabilidade, de um chão de previsibilidade. Condições impossíveis se é — se sempre foi — o próprio presidente da República, de resto um líder sindical da ativa, com histórico golpista, a principal usina de traumas, de cismas.

Jair Bolsonaro é Jair Bolsonaro. Sempre foi. Por três décadas expôs sua natureza no Parlamento, não raro se comportando como um sociopata. Ai está. Ninguém se pode dizer surpreso.

De toda maneira, o tempo — a chance — de reformar o Estado passou. O perfil do presidente, no entanto, continua o mesmo. E não é o de um mero maluco beleza que abriria caminhos ao liberalismo econômico; mas o de um populista autoritário, centralizador, cujo reacionarismo tem por ar a forja artificial de conflitos, e cuja a natureza rompedora, inegável, só abre picadas para desguarnecer progressivamente a democracia liberal. Repito: um golpista em busca da (de fazer a) ocasião. Uma real ameaça em tempos excepcionais.

Aqueles românticos que acreditaram que esse sujeito — alguém que reage, tanto mais se acuado, cindindo e radicalizando — poderia liderar o país num amplo e profundo programa reformista agora decerto são os que creem que esse elemento poderá dirigir os esforços brasileiros de enfrentamento de uma crise mundial sem precedentes. Este sujeito: o que há três semanas — atacando a Justiça Eleitoral —afirmou ter provas (jamais apresentadas) de que a eleição de 2018 fora fraudada.

Chega de ilusão. Bolsonaro é parte — grande — do problema; um agente para o agravamento do drama. Jamais será solução. Dá mostras disso diariamente, como quando ameaça a ordem pública — investindo num choque de desobediências civis — ao aventar um decreto que desmobilizaria trabalhadores da quarentena determinada por governadores e recomendada pelo seu Ministério da Saúde. Choque de desobediências civis — resultando em caos social: uma possível ocasião para o golpista.

Atenção ao jogo de Bolsonaro. O que temos hoje mais proximamente do que se esperaria de um estadista no comando da empreitada contra a Covid-19 senão o ministro Mandetta? E o que faz o presidente ante a gestão técnica segura — referencial — do auxiliar senão desqualificá-lo e desautorizá-lo pública e seguidamente? É investimento na confusão absoluta, em estímulos de comunicação contraditórios — que geram insegurança.

Coisa alguma exemplifica melhor a mentalidade bolsonarista do que, num momento de crise, o presidente fabricar uma oposição dentro do próprio gabinete de crise. Ou alguém tem dúvida de que é isso que Bolsonaro faz? É um jogo, assim ele crê, de ganha-ganha: faz de seu ministro — que prega o distanciamento social — um oponente, uma escada para que possa apontar histerias e mostrar sua preocupação com a economia popular; mas o mantém no governo de modo a capitalizar-lhe os feitos caso a atuação do Ministério da Saúde, em parceria com os governadores, resulte no controle da epidemia.

O presidente da República é um — a palavra é esta — covarde: enquanto desdenha da gravidade da doença e dinamita todos os indicativos de responsabilidade sanitária, empurrando os desprovidos de plano de saúde às ruas justamente para respirarem o pico de contágio, aposta em que as ações restritivas dos governadores deem certo para que então possa bradar que estava correto e que a Covid-19 fora mesmo superdimensionada. Isso é Jair Bolsonaro; e esse, o seu ganha-ganha caso a epidemia seja domada.

Para dar vazão à guerra cultural absoluta que lhe dá discurso, conseguiu plantar entre nós — num triunfo da linguagem populista — a existência da oposição saúde pública (que seria valor elitista) versus saúde econômica (valor popular).É a armadilha à qual nos atraiu. A vida das pessoas contra, ora, a vida das pessoas. Um novo confronto artificial, nova arapuca para colisão institucional, que estabelece como antagônicas demandas complementares. De um lado, os alarmistas da prevenção que evitaria o colapso dos SUS, representados pelos governadores. De outro, ele, Bolsonaro, preocupado com o sustentodo pobre. Tudo somente narrativa — para o fim autocrático.

O presidente se move mesmo, se espalha, em todas as direções — e assim se move a favor do estado de anomia. O jogo de ganha-ganha na versão em que a tragédia se impõe. Muitos mortos. Muitos desempregados. Corpos empilhados. Falta de alimentos. Saques. Ingovernabilidade. Radicalização. O acirramento de uma crise — para cujo agravamento concorreu —como justificativa para medidas de exceção.

Bolsonaro foi para o all-in. As fichas somos nós. O vírus não joga.

Mandetta encara Bolsonaro - REINALDO AZEVEDO

UOL - 31/03

Mandetta encara Bolsonaro: não se demite; chefe que faça besteira por conta




Jair Bolsonaro e Luiz Henrique Mandetta durante conversa com a Frente Nacional de Prefeitos sobre o combate ao coronavírus. Presidente não conseguiu arrastar ministro para a sua tese tresloucadaImagem: Foto: Isac Nóbrega/PR


O ministro Luiz Henrique Mandetta caiu em desgraça do coração de Jair Bolsonaro. O presidente exigia dele que endossasse a sua tese tresloucada, e única no mundo, de fim de qualquer quarentena para impedir a expansão do coronavírus, com o confinamento, sabe-se lá como, apenas dos idosos. O ministro, obviamente, recusou o "brasilicídio" defendido por Bolsonaro, o que destruiria, adicionalmente, se sobrevivesse ao vírus, a sua carreira de político e sua reputação de médico. Mandettra continua a defender o isolamento social. Mais: já disse a Bolsonaro que não vai pedir demissão. Se o chefe quiser, que o demita.

Aquele a quem alguns ainda chamam "Mito" decidiu, então, submeter o ministro da Saúde a rituais de humilhação a que já havia exposto auxiliares diretos e fieis que caíram em desgraça, como Gustavo Bebianno e general Santos Cruz, ambos demitidos, respectivamente, da Secretaria-Geral da Presidência e da Secretaria do Governo, depois de fritura vergonhosa e de prova escancarada de deslealdade... do chefe. Eram dois neófitos da política, sem traquejo

Não é o caso de Mandetta. Pessoa experimentada, com trânsito no Congresso, conexões com o empresariado e apreço da bancada ruralista, ele não depende da vontade de Bolsonaro para existir politicamente. E tem se comportado de maneira correta na crise, fazendo a articulação, que Bolsonaro se nega a fazer, com pesquisadores, médicos, governadores e parlamentares. Sua abordagem técnica do problema rendeu-lhe, por óbvio, espaço no noticiário. Condescendeu com o chefe e fez uma crítica abjeta à imprensa no sábado. Desculpou-se nesta segunda. Sigamos.

Mandetta não pôs em prática a orientação de Bolsonaro, que corresponderia a uma espécie de homicídio em massa. O "capitão", como alguns o chamam, não gosta de ser contrariado. Alimenta, parece, um sentimento pelo seu auxiliar que fica num território muito perigoso entre o ciúme e a inveja. Tudo indica que vê surgir não uma resposta técnica para o coronavírus, mas uma ameaça à sua própria liderança. Aí cabe a pergunta: qual liderança? Só se for aquela do tresloucado que sai pregando bobagens por Ceilândia e Taguatinga e que ameaça os governadores com um decreto de volta à normalidade que, se baixado, seria fulminado pela Justiça.


Mas Bolsonaro quis mostrar quem manda. Determinou que as coletivas diárias sobre o combate ao coronavírus sejam feitas agora no Palácio do Planalto, não mais no ministério da Saúde. E assim se fez. Mandetta será apenas um dos ministros a falar. Outros estarão presentes. Nesta segunda, antecederam-no os titulares da Casa Civil, Infraestrutura, AGU, Defesa e Cidadania. Ninguém tinha nada de novo a falar. Só então a palavra foi concedida ao titular da Saúde.

Como não nasceu ontem, o ministro teve de mandar os devidos recados: a Bolsonaro, aos presentes, à imprensa e ao conjunto dos brasileiros. Não vai mudar a sua abordagem. Mais de uma vez, defendeu a necessidade da quarentena, apoiando explicitamente o trabalho dos governadores e da imprensa. Disse:
"A Saúde é um norte, um farol. Enquanto não temos uma resposta mais cientificamente comprovada, a Saúde vai falar 'para e vamos evitar contágio'. Isso não é a Saúde ser boa ou má, estar certa ou estar errada. Isso é nosso instinto de preservação".

O mal-estar se explicitou quando lhe dirigiram uma pergunta sobre sua eventual demissão. Para espanto de todos, o general Braga Netto, chefe da Casa Civil, tomou o microfone e se antecipou: "[Quero] deixar claro para vocês: não existe essa ideia de demissão do ministro Mandetta. Isso está fora da cogitação no momento".

Espirituoso, mas ciente do que se passava ali, o próprio ministro emendou, de modo irônico: "Vamos lá, em política, quando a gente fala 'não existe', a pessoa já fala 'existe'."

Estavam previstas oito perguntas. Ao ouvir a quarta, sobre as andanças de Bolsonaro pelo Distrito Federal, a mesa imediatamente se levantou e deu a coletiva por encerrada. Assim trabalha o presidente da República. Ele já confessou estar com "o saco cheio de Mandetta". O que o leva a se indispor com o seu ministro da Saúde, que vem fazendo um trabalho correto, do qual ele próprio poderia ser um beneficiário político? Já explicitei aqui a alma profunda de Bolsonaro: o seu prazer em ser odiado — e, pois, em odiar também — é muito superior ao seu eventual prazer de ser amado. E cada vez menos pessoas o amam. Eis aí o que pode ser um eventual traço de recuperação da saúde, mental ao menos, em meio a tanta morbidade...

A pedra no caminho - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 31/03

Graças a seu comportamento irresponsável, Jair Bolsonaro começa a conquistar um lugar jamais ocupado por um presidente brasileiro, o de vilão internacional

O presidente Jair Bolsonaro foi reconhecido pela revista norte-americana The Atlantic como “o líder mundial do movimento de negação do coronavírus”. Já a revista britânica The Economist chamou Bolsonaro de “BolsoNero”, numa alusão à lenda de que o imperador Nero tocava harpa enquanto Roma ardia em chamas. E o presidente brasileiro foi o único chefe de Estado citado nominalmente pela The Lancet, uma das principais publicações científicas do mundo, em editorial crítico às respostas de muitos governos à pandemia, especialmente aqueles que “ainda precisam levar a ameaça da covid-19 a sério”.

Assim, Bolsonaro, graças a seu comportamento irresponsável, começa a conquistar um lugar jamais ocupado por um presidente brasileiro – o de vilão internacional. Nem mesmo o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, idolatrado por Bolsonaro, persistiu em sua costumeira arrogância diante do avanço dramático da epidemia, rendendo-se à necessidade de prorrogar o isolamento social, mesmo ante o colossal custo econômico dessa medida.

Aparentemente, contudo, Bolsonaro não se importa de ser visto como pária. Ao contrário: decerto feliz com a notoriedade global subitamente adquirida, na presunção de que isso lhe trará votos, insiste em desafiar abertamente as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS), adotadas pelo Ministério da Saúde e por governadores e prefeitos de quase todo o Brasil. No domingo passado, o presidente passeou por Brasília, visitando zonas comerciais, pedindo que a vida volte ao normal e cumprimentando simpatizantes que se aglomeravam em torno dele – escarnecendo, assim, de reiteradas recomendações de seu próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.

Como se isso não bastasse, Bolsonaro ainda postou em sua conta oficial no Twitter vídeos e imagens que atestavam sua descarada irresponsabilidade. Ao fazê-lo, conseguiu outra proeza: tornou-se o primeiro presidente brasileiro a ter postagens suspensas pelo Twitter, por negar ou distorcer orientações das autoridades sanitárias na luta contra uma epidemia. O Twitter, aparentemente disposto a conter o vírus da desinformação, já havia feito o mesmo em relação a postagens do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, e do chanceler Ernesto Araújo.

O temerário passeio de Bolsonaro por Brasília – apenas um dia depois de o ministro Mandetta ter enfatizado a necessidade do rígido isolamento social, pois, do contrário, “vai faltar atendimento para rico e para pobre” – demarcou definitivamente a fronteira que separa o presidente do resto do mundo civilizado. Bolsonaro hoje só governa o território habitado por seus fanáticos devotos.

Nesse país de valentões, em que a ciência e a razão são tratadas como inimigas, o presidente diz que “é preciso enfrentar o vírus como homem, pô, e não como moleque” – e, no léxico bolsonarista, “moleque” é quem defende quarentena contra a epidemia, para salvar vidas e evitar o colapso do sistema de saúde. Já “homem” é ele, o presidente, que repta o bom senso e escancara sua demagogia ao cogitar de acabar com o isolamento social por decreto: “Estou com vontade, eu tenho como fazer, estou com vontade: baixar um decreto amanhã” para permitir a volta ao trabalho de quem precisa “levar o leite dos seus filhos, arroz e feijão para casa” – ou seja, todo mundo. Se milhares de pessoas morrerem por falta de atendimento médico em decorrência dessa irresponsabilidade, “paciência”, disse o presidente, pois, afinal, “um dia todos vamos morrer”.

Não à toa, o governador de São Paulo, João Doria, pediu aos paulistas que ignorem Bolsonaro: “Não sigam as orientações do presidente, ele não orienta corretamente a população e, lamentavelmente, não lidera o Brasil no combate ao coronavírus e na preservação da vida”. Já o ministro Mandetta, desautorizado tão escandalosamente pelo presidente da República, pediu paciência à sua humilhada equipe e, conforme apurou a jornalista Eliane Cantanhêde, do Estado, citou para seus comandados o poema No Meio do Caminho, de Drummond – aquele do verso “No meio do caminho tinha uma pedra”.