domingo, julho 06, 2014

90 minutos - MARTHA MEDEIROS

ZERO HORA - 06/07

A primeira Copa que recordo com clareza foi a de 1970, eu tinha oito anos. Assisti a todos os jogos do Brasil sentada no chão, lugar de criança. O sofá era reservado aos mais velhos (pai e mãe entrando na casa dos 30, uns fósseis), então a mim restava o parquet, que era bem limpinho.

Lembro que eu torcia, vibrava, não parava quieta, e esse não parar quieta incluía levantar e ir até o banheiro, depois ao quarto para escrever alguma coisa no diário, passar na cozinha para pegar um suco e uma bolacha Maria, voltar à sala, ver mais um pouco do jogo, e então dar uma descidinha até ali na rua para ver se tinha alguém com quem brincar, não tinha, voltar, assistir ao jogo mais um pouco, de novo ir ao quarto para ver se tinha tema para entregar na segunda-feira e, se tivesse, fazê-lo, e então voltar à sala a tempo de ver o Carlos Alberto fechando a goleada de 4 a 1 contra a Itália e o Brasil levantando a taça Jules Rimet.

Hiperativa? Não, isso nem existia. E também não era por causa do desconforto do chão que eu me levantava de tempos em tempos para me distrair com outras coisas. É que jogo de futebol, naquela época, demorava uma eternidade. Jogo de futebol durava umas quatro horas e meia no tempo regulamentar. Pensando bem, acho que cinco horas. Ou seis. Jogo de futebol engolia todo o domingo.

Quando o pai saía para o estádio com meu irmão, eu e minha mãe íamos a uma sessão dupla de cinema, depois dávamos uma passadinha na casa da vó, tomávamos um lanche no Joe´s e, quando voltávamos para casa, ligávamos o radinho e o jogo deles ainda estava no primeiro tempo.

Quando o pai dizia “hoje tem jogo”, eu ia para o sítio dos primos em São Sebastião do Caí, brincava, brincava, brincava e, quando voltava para casa, o juiz ainda não tinha apitado o fim da partida.

Jogo de futebol era algo tão longo, tão extenso que parecia iniciar-se na quarta e terminar na quinta, dava tempo de o edifício em obras ao lado do nosso ficar pronto, alguém podia se submeter a uma cirurgia no cérebro durante uma semifinal que receberia alta antes da decisão por pênaltis.

Dizem que jogo de futebol sempre durou 90 minutos. Imagina se caio nessa.

É só comparar com os jogos de hoje. O time dá o pontapé inicial, eu vou rapidinho até o micro-ondas para ver se a pipoca ficou pronta e quando volto para a frente da tevê os jogadores já estão trocando de camisetas com os adversários e cumprimentando o juiz. O jogo começa às 13h, eu tiro a mesa, vou escovar os dentes e, quando retorno para a sala, o Galvão Bueno e a Patrícia Poeta já estão dentro da noite escura mostrando a reprise dos gols.

Tudo anda muito ligeiro, antes nada terminava. Noventa minutos durava uma vida. Mas agora, pelo visto, quem está durando uma vida sou eu.

A elite branca - JOÃO UBALDO RIBEIRO

O GLOBO - 06/07

Como já deve ter previsto o pugilo de bravos que me lê com assiduidade, de novo as Parcas me fizeram a grande maldade de marcar para anteontem (tempo de vocês, este domingo) o jogo com a Colômbia, mais uma vez impossibilitando que eu leve o resultado em conta. Eu pelo menos podia ter conversado com a Sociedade Interamericana de Imprensa, a fim de ver se ela pressionava a Fifa para corrigir a grave injustiça e mudava a tabela, mas é tarde. E, se eu houvesse feito a besteira de escrever, como cheguei a pensar, que o jogo tinha sido moleza, como sempre acontecia com o freguês Chile? Teria quebrado a cara, como quase quebro no boteco, quando pulei na hora em que, já no fim da prorrogação, o Chile botou aquela bola na trave e dei com a testa na tabuleta que anunciava o chope em promoção. Esqueçamos, esqueçamos.

O jeito é voltar-me para os últimos acontecimentos extra-Copa. Quase todos eles se relacionam com o edificante espetáculo democrático deste ano de eleições. Lá e cá, por todo o País, como que se ouvem gritinhos pressurosos pululando nos ares - cadê o meu, cadê o meu, tenho que me fazer, tenho que me fazer! - enquanto estadistas e líderes se digladiam no embate inflamado de ideias, planos e projetos de ascensão pessoal e grupal e os partidos se empenham por caracterizar nitidamente suas posições, embora, assistindo-se a seus anúncios na televisão, seja um pouco difícil distinguir identidades e programas próprios. Todos eles pregam a justiça social, o combate à exclusão, os investimentos em saúde, educação, segurança, coisas com as quais, de tão vagas, qualquer um concorda. Nenhum deles mostra como e o que fará para avançar nesses campos. Isto fica para depois e, pelo visto, sempre ficará.

Cada vez mais abusadas, algumas palavras perderam o sentido. Quase ninguém é capaz de fazer uma distinção teórica, ou abstrata, entre esquerda e direita políticas e, por exemplo, o ex-presidente Lula as emprega para lá e para cá, conforme a necessidade do momento. Ou seja, direita, assim como esquerda, é o que convém. Nega que seja de esquerda e em seguida vocifera contra manobras da direita, como se fosse um porta-voz da esquerda continental. Aliás, é interessante essa conversa de direita e esquerda, considerando-se que Lula é ex-aluno (isto mesmo) da Universidade Johns Hopkins (isto mesmo, universidade), venerável, prestigiosa e cara instituição de ensino americana, onde estudou (isto mesmo) no começo da década de 70 e quem sabe recebeu (não tenho certeza, mas creio que sim) um diplomazinho, ou certificado, que teria precedido o diploma de presidente, o qual bem depois lhe foi conferido, ocasião em que ele proclamou que o primeiro diploma que o operário sem estudo e filho de mãe analfabeta recebia na vida era o de presidente da República. Eu, se tivesse tido até mesmo umas duas parcas semaninhas de seminário na Johns Hopkins, me gabaria de vez em quando, mas esta vida é assim mesmo, tudo é muito relativo. Talvez ele queira esquecer seu período de estudante em Baltimore. Lá de fato faz muito frio, embora eu tenha lido em algum lugar da internet que ele, como sempre simpático, descontraído e boa-praça, fez sucesso e deixou muitos amigos e admiradores. Pode ser que não queira encher a bola da AFL-CIO, poderosa organização sindical americana sob cujos auspícios estudou na Johns Hopkins e, antes, em São Paulo mesmo. O homem não é só doutor honoris causa, não, tem outras láureas acadêmicas, conquistadas nos bancos escolares, de que ele, na sua proverbial modéstia, não fala.

Outra palavra que já merece uma pesquisa semântica é "elite". Lula também faz embaixadinhas com ela a torto e a direito e é preciso estar atento. Assim mesmo, é difícil entendê-la, a começar pela circunstância de que, desde a época em que foi chamado como promissor talento para a temporada universitária patrocinada pela AFL-CIO, formadora de quadros sindicais presente, respeitada e temida em todo o mundo, ele é elite. Foi elite dos sindicalistas, é elite do partido que está no poder, exerceu o posto mais alto da elite governante, num país onde o presidente da República é um monarca tratado com subserviência e vassalagem, viaja esplendidamente para palestras e lobbying, come do bom, bebe do melhor, é amigo pessoal e companheiro de lazer de ricos e poderosos, se trata nos mais respeitados hospitais com os mais renomados médicos, não entra em filas, não pega transporte público, não paga aluguel de casa nem prestação de carro, não se aporrinha com providências do cotidiano, não tem preocupação com o futuro, ganha mais do que todos os professores do primeiro grau da rede pública do Maranhão juntos, manda para lá, desmanda para lá e, ainda por cima, é cultuado por grande parte do povo. Então, ele não é elite? De que mais se precisa para ser elite?

Uma aparente novidade não altera a situação dele e até a faz mais difícil de compreender. Trata-se da expressão "elite branca". Se bem me lembro - e até conferi nuns clipes que guardo no computador - Lula tinha o cabelo bem crespo, antes de sua completa ascensão política. Como sua pele não é alva, poderia talvez, por causa do cabelo, ter sido considerado pardo ou, como se dizia antigamente, mulato. Ou até negro, pelos critérios americanos que agradam a tantos. Mas hoje, como o nome de Conceição, o cabelo dele mudou. Alguém que nunca o tivesse visto antes, nem em fotografia, tê-lo-ia na conta de branco de nascença. Branco latino-americano, hispânico para os americanos, mas, em última análise, branco. Por conseguinte, ele não apenas pertence a várias elites, como pertence à elite branca, ele ficou branco. De resto, elite branca mesmo, no Brasil, só as famílias mais prósperas das comunidades de origem europeia, no Sul. Vai ver que elas acham que die Eschculambazionen foi longe demais e vão chamar dona Angela Merkel para derrubar o PT.

GOSTOSA


Por onde anda a OAB? - REGINALDO CASTRO

O GLOBO - 06/07

Diante de sinais claros de retrocesso, sente-se a falta da palavra e da orientação da Ordem


Poucas vezes na história republicana do Brasil tantos e tão graves acontecimentos puseram em risco o Estado Democrático de Direito. São questões que, no passado, provocariam a intervenção da única tribuna pública não estatal em defesa da cidadania: a Ordem dos Advogados do Brasil, cujo Estatuto a compromete com a defesa da Constituição, da democracia e dos direitos humanos.

A OAB surgiu no bojo de uma crise institucional de grandes proporções: a Revolução de 1930. São 84 anos. Desde então, teve papel decisivo em todos os conflitos da vida brasileira, sempre mantendo distância crítica dos protagonistas do processo político, ocupando, com isenção e destemor, a tribuna da sociedade civil.

Não por acaso, quando o general-presidente Ernesto Geisel, em 1974, intentou a abertura democrática, dirigiu-se não a um partido político, mas à OAB. Raymundo Faoro era seu presidente e encaminhou os pleitos da sociedade: restabelecimento do habeas corpus, fim da censura, revogação dos atos institucionais, anistia e eleições diretas. Numa palavra, a redemocratização.

O atendimento não foi imediato; a abertura, como se recorda, era lenta e gradual. Mas a agenda desembocou, no final do governo seguinte, do general Figueiredo, na redemocratização.

Hoje, diante de sinais claros de retrocesso, sente-se a falta da palavra e da orientação da OAB. Falo como seu ex-presidente e alguém que preza sua história e papel social. Distingo a instituição dos que circunstancialmente estão no seu comando.

Estamos diante de uma agenda política assustadora. Teme-se pela independência do Judiciário e do Legislativo. O aparelhamento do Estado, síntese desses temores, culmina com a edição do decreto 8.243, que o entrega ao arbítrio dos “movimentos sociais”, sem que se defina o que são, já que podem ser institucionais ou não, segundo o decreto.

Antes, tivemos o mensalão, pontuado de agressões por parte dos réus ao STF e ameaças de morte a seu presidente, Joaquim Barbosa. E ainda: a tentativa de regulamentar (eufemismo de censurar) a mídia; a inconstitucionalidade do programa Mais Médicos; a desobediência do presidente do Senado ao STF quanto à instalação da CPI da Petrobras; a violência dos black blocs nas manifestações de rua; as ações criminosas de milícias armadas do MST e do MTST, entre numerosas outras ilegalidades que reclamam uma palavra firme de condenação por parte da advocacia brasileira. E o que se ouviu da OAB? Nada.

São assassinadas no Brasil anualmente mais de 50 mil pessoas, a maioria, jovens e pobres, em decorrência do narcotráfico. Hoje, o Brasil é, além de rota preferencial do comércio de drogas, o segundo maior consumidor mundial de cocaína e o primeiro de crack. O PT, há quase 12 anos no poder, não inclui esse combate entre suas prioridades. E o que diz a OAB? Nada!

Preocupo-me com essa omissão, que, como é óbvio, não é gratuita: tem substância política, expressa na inclusão do nome de seu atual presidente, Marcus Vinicius Furtado Coêlho, na lista de postulantes ao STF. A presidente Dilma Rousseff faria um grande favor à advocacia brasileira nomeando-o, em justa paga aos inestimáveis serviços prestados a seu governo.

A OAB é grande, mas sua atual direção trai a sua história e, com isso, infunde desamparo à nossa frágil democracia. É preciso resgatá-la e devolvê-la a seu glorioso lugar de porta-voz da cidadania brasileira.

Ainda bem que não adivinho - FERREIRA GULLAR

FOLHA DE SP - 06/07


Minha ansiedade na espera desse jogo foi ainda maior do que no anterior; quanto mais alto, maior a queda


Você, leitor, já sabe o estado em que fico quando a seleção brasileira vai jogar e, pior ainda, quando está jogando. Pode, portanto, imaginar quanto me custou esperar pelo jogo com o Chile, que me parecia um bom time, com uma capacidade ofensiva preocupante.

É verdade que, como fazia 12 anos que os chilenos não conseguiram nos vencer, peguei-me nesse argumento para me convencer de que iríamos derrotá-los. Mas, como se sabe, essa foi uma convicção difícil de manter, particularmente depois que o Chile fez um inesperado gol de empate.

Senti o baque e a seleção também, porque, depois disso, parecia perdida em campo. Os chilenos mantinham a posse de bola e avançavam articulados para o nosso gol.

Embora insistisse em dizer a mim mesmo que a nossa vitória era inevitável, essa certeza foi se tornando cada vez mais difícil de manter. Para piorar a situação, os chilenos impediam Neymar de jogar, mantendo dois, três jogadores, em cima dele, que o empurravam, chutavam, derrubavam. Como se não bastasse, Fred recebeu uma bola em frente ao gol chileno, quando o goleiro estava caído do outro lado, e chutou para fora.

A sorte (isto é, o acaso) parecia conspirar contra nós e, além disso, o juiz da partida também se tornou nosso adversário. E que adversário, já que seu poder, dentro de campo, é absoluto. Assim foi que não marcou um pênalti indiscutível em Neymar e anulou um gol absolutamente legítimo do Hulk.

Naquele instante, eu havia saltado da cadeira e gritado "gol!", quando me dei conta de que algo estranho havia acontecido.

O gol fora anulado, porque o juiz achou que Hulk matara a bola no braço e não no ombro como de fato aconteceu. E além disso, ele, que estava errado, puniu quem estava certo, dando-lhe um cartão amarelo. Acreditem que não sou aquele tipo de torcedor que, quando perde, culpa o juiz por tudo, mas esse cara parecia querer nos derrotar a qualquer custo.

E ele não parou aí, passou a apitar falta toda vez que um jogador do Chile, ao disputar a bola, caía no chão. Os chilenos, vivos como são, passaram a se jogar assim que perdiam a bola. Nunca vi tantas faltas num jogo só. Daquele jeito, pensei, era impossível ganhar a partida.

Mas, justiça se faça, ele não foi o único árbitro, nesta Copa, a cometer tantos erros. Vários outros, também os cometeram e também influíram no resultado da partida, pois não precisa deixar de apitar um pênalti para que o resultado seja outro. Também apitar uma falta que não houve pode impedir que um gol aconteça. Enfim, acho que a equipe de árbitros da Fifa deve ser reciclada.

De qualquer modo ganhamos, graças a Júlio César, que Felipão convocou contra a opinião de muita gente. "Esse Felipão --me disse um desses entendidos de boteco-- já não sabe o que faz, do contrário não teria convocado para a seleção um goleiro decadente, como o Júlio César, que foi reserva de um time inglês de segunda categoria." Respondi-lhe que, na próxima Copa, o indicaria para ser o técnico da seleção brasileira.

Tudo bem. Hoje é domingo e sexta-feira passada, houve o jogo do Brasil contra a Colômbia, ou seja, depois que já tinha entregue esta crônica ao jornal. Notadamente, como você pode imaginar, minha ansiedade na espera desse jogo, foi ainda maior do que no anterior, não só pelo desempenho da Colômbia até então --ganhou fácil do Uruguai-- mas porque, como diz o ditado, quanto mais alto se sobe, maior a queda, desde que se caia, claro.

Se caímos ou não nessas quartas de final, não posso saber agora, quando escrevo esta crônica, pois não sou adivinho. Na minha insensatez de torcedor, porém, prefiro cair de mais alto que de mais baixo. De modo que, se tivermos passado pela Colômbia, iremos às semifinais e, se vencermos de novo, iremos à final. Estaremos, pois, quase no ponto mais alto a que se pode chegar nesta escalada. Portanto, se vencermos, o Brasil inteiro será uma festa mas, e se perdemos?

Já calculou o golpe que será repetirmos a derrota de 1950, perdendo de novo em casa a partida que, desta vez, nos tornaria hexacampeões? Não quero nem pensar. Mas, por outro lado, se formos derrotados antes (se é que já não o fomos), a Copa perderá toda a graça. Para mim, pelo menos.

Imagina depois da Copa - CLÓVIS ROSSI

FOLHA DE SP - 06/07

O futebol brasileiro não consegue se inserir no fenomenal negócio global que é o esporte


Começo por onde terminou mestre Tostão a sua coluna desta quarta-feira (2): "Duro será assistir ao Brasileirão".

Pois é, Tostão, ainda faltam os quatro jogos decisivos do Mundial, incluindo a sempre desprezada disputa pelo terceiro lugar, e já sinto os primeiros sinais da síndrome de abstinência. Fica combinado que é de matar trocar o bom nível técnico da primeira fase da Copa e a alta dose de emoção, inerente ao sistema mata-mata, pela espantosa mediocridade do Campeonato Brasileiro.

O futebol brasileiro reproduz, desgraçadamente, o modelo comercial do país: exporta matéria-prima (no caso, jogadores de futebol) e importa produtos acabados (e bem acabados, como são os torneios nacionais europeus, transmitidos em massa pela televisão brasileira).

Pelo menos na TV a cabo, hoje é possível ver mais partidas europeias do que brasileiras. Até o campeonato russo é transmitido, meu Deus do céu. É mais ou menos o que acontece com o café: o Brasil exporta o grão e a Alemanha, que não planta nem um miserável pé de café, exporta o solúvel.

Ou, como diz Marcos Troyjo, colunista desta Folha: "No mundo todo, nossos jogadores são mais conhecidos --e queridos-- do que nossas empresas".

Bingo. Vale para a vida, vale para o futebol: Neymar dos Santos Júnior é uma marca espetacular, que fatura € 20 milhões anuais (R$ 60,17 milhões), mas a "fábrica" que o produziu, o Santos Futebol Clube, é muito menos conhecido --e, por extensão, muito menos valorizado.

Chega a ser inacreditável que o chamado "país do futebol" despreze um esporte que é, já faz algum tempo, muito mais negócio que esporte propriamente dito.

Os números do futebol são impressionantes: em termos de fornecimento anual de materiais e equipamentos esportivos, são cerca de 9 milhões de chuteiras para futebol e futsal, 6 milhões de bolas e 32 milhões de camisas. São também 300 mil empregos diretos; 30 milhões de praticantes (formais e não formais); 580 mil participantes em 13 mil times que participam de jogos organizados (esporte formal).

Para não falar de 580 estádios com capacidade para abrigar mais de 5,5 milhões de torcedores.

É preciso levar em conta também que o mundo da bola é maior que o mundo. Afinal, os países-membros da Fifa são 208, 15 a mais do que os integrantes da ONU.

Ou, posto em termos de negócios, é um mercado superior até ao que a globalização pôs ao alcance dos países que sabem explorá-la.

Pena que o Brasil, elite mundial na produção de jogadores, não o seja na exploração das potencialidades do negócio. Quem compra o Brasileirão no exterior? Para que, aliás, se todo os titulares habituais, menos Fred, jogam na Europa?

Pena ainda maior porque se trata de um negócio que incorpora plenamente o espírito da "pátria de chuteiras", como se vê em lendária frase do ex-jogador e ex-técnico escocês Bill Shankly, ídolo do Liverpool: "Algumas pessoas acreditam que futebol é uma questão de vida e morte. Posso assegurar-lhes que é muito, mas muito mais importante que isso".

GOSTOSA


Real, um genial invento incompleto - SUELY CALDAS

O ESTADO DE S. PAULO - 06/07


"Foi o mais genial e criativo invento de nossa história econômica." A definição do ex-ministro da Fazenda Mario Henrique Simonsen para a Unidade Real de Valor (URV) foi repetida e prestigiada no Brasil e mundo afora em universidades, por professores, acadêmicos e quem mais estudasse ciência econômica na época. Moeda escritural que durou quatro meses, até se transformar no real em 1/7/1994, a URV foi arquitetada por dois economistas brasileiros (André Lara Resende e Pérsio Arida) e seu sucesso foi fundamental para o sucesso do Plano Real. Derrubar a inflação sem os desacreditados congelamentos de preço de sete fracassados planos anteriores foi a primeira e indispensável condição para estabilizar a economia e dar a partida para os 20 anos do mais extraordinário avanço social e econômico na história do Brasil.

Colocar um plano na rua sem nunca ter sido experimentado e em pleno ano eleitoral foi uma jogada arriscada assumida pelo candidato (e ministro da Fazenda na época) Fernando Henrique Cardoso e pelo ex-presidente da República Itamar Franco, a quem coube assinar leis e decretos que deram vida ao Real. Se o plano naufragasse, levaria junto o candidato, o adversário Lula venceria a eleição e não haveria Real. FHC explicou os riscos à cúpula do PSDB e avisou: "Preciso do apoio total e incondicional de vocês". Os ex-governadores Mario Covas, Tasso Jereissati e Ciro Gomes concordaram. José Serra vacilou, mas acabou convencido. Para arrancar o apoio de Itamar Franco, FHC levou o economista Edmar Bacha, mineiro, como o presidente, e com maior traquejo político. Após ouvir atento como a URV derrubaria a inflação, Itamar retrucou: "Mas onde entra o congelamento de preços?".

Felizmente, o risco foi vencido, o plano, bem-sucedido, e a população brasileira deu seu entusiástico apoio nas urnas e nas ruas. Contra o Real ficaram dois importantes protagonistas: o Fundo Monetário Internacional (FMI), que negou aval aos credores da dívida externa; e Lula e o PT, adversários de FHC na eleição de 1994. Eleito presidente nove anos depois, Lula encontrou a economia estabilizada, o País organizado e tirou proveito dos benefícios do Real em sua gestão.

O plano não se limitava a derrubar a inflação e consolidar o real como nova moeda corrente. O País precisava ser virado pelo avesso para se modernizar, construir pilares para atrair investimentos e voltar a crescer com estabilidade. Reformas estruturais (política, tributária, trabalhista, sindical e previdenciária), privatizações, reestruturação das dívidas dos Estados e municípios, criação das agências reguladoras, Lei de Responsabilidade Fiscal, extinção ou flexibilização de monopólios estatais, construção de uma nova democracia - tudo, para se tornar lei, era arrancado a fórceps do Congresso. Muita coisa ficou pela metade, outras nem começaram, como as reformas política e fiscal, e novos desafios surgiram.

Depois de 20 anos, o Real é um plano incompleto, que precisa avançar, concluir o que começou, mas também se reinventar. Por mais que se contabilizem atrasos prejudiciais ao País (as reformas, por exemplo), construir um plano econômico ambicioso e abrangente é tarefa para mais de uma geração, mais de um presidente. Em seu primeiro mandato, Lula e o ex-ministro Antônio Palocci tentaram dar seguimento às bases do Real, inclusive às reformas politicamente mais difíceis, como a previdenciária, a fiscal e a trabalhista. Mas o mensalão atrapalhou, Lula e o PT se perderam e o toma lá dá cá foi consolidado no Congresso e estendido às estatais. Até as reformas microeconômicas, que nasceram com Palocci na Fazenda, foram abandonadas.

A presidente Dilma chegou com menos disposição do que Lula. Sem programa de governo, passou quatro anos apagando incêndios cotidianos. O bom legado dos 12 anos de Lula e Dilma se concentra no progresso social e na melhor distribuição de renda.

Continuar o Real, as reformas, atrair investimentos, reduzir o custo Brasil e retomar o crescimento ficaram para o próximo presidente.

A Copa e a economia - GUSTAVO FRANCO

O GLOBO - 06/07


São diversos os impactos econômicos da Copa, e os mais importantes não têm propriamente de ver com o PIB ou com os empregos e os feriados, mas pertencem ao campo do simbólico. É incomensurável o poder de representação que possui o futebol, um retrato tão rico quanto amargo, como diz o mestre Roberto da Matta, da maneira pela qual o País sabe organizar o seu talento e seus valores dentro e fora do campo.

São quatro, ao menos, as lições.

A Copa, para começar, nos ensinou sobre globalização, esse monstro de mil faces e vilanias que, contudo, se apresentou em uma encarnação encantadora. Um jogo tão simples quanto apaixonante mobilizou rigorosamente todo o planeta, equalizando grandes potências e pequenos países subdesenvolvidos, bem como seus torcedores. Nenhum outro evento ou empreendimento, com exceção do comércio internacional, tem esse alcance. Como não fazer parte desse conjunto? Por que o Brasil é tão fechado e infenso ao intercâmbio comercial com outros países?

Como anfitriões, aprendemos que o evento vai bem além do que se passa dentro de campo. São milhares de peregrinos torcedores, paramentados com suas cores nacionais e nos oferecendo uma lição inesquecível de tolerância e fé no gênero humano: o contato com outras civilizações não dilui a nacionalidade, e pode se tornar uma celebração da diferença, especialmente quando todos se misturam sob o signo do respeito às regras, como é próprio desse jogo e das relações internacionais.

Só há benefícios em aderir aos paradigmas globais, e foi assim que chegamos ao "grau de investimento" e poderemos perfeitamente chegar à OCDE, especialmente se paramos com políticas heterodoxas e com a diplomacia "gauche".

A segunda lição tem a ver com competitividade.

No plano esportivo, a Copa foi surpreendente pelo equilíbrio. O futebol é uma atividade democrática ao extremo, pois todo mundo sabe jogar. Os times ficaram mais parecidos, não existe mais jogo fácil, nem grandes diferenças de "qualidade", como dizem os boleiros. É claro que há vantagens comparativas, recursos naturais abundantes, mas sem esforço, disciplina e infraestrutura, a bola não entra.

O futebol se globalizou, como a economia de forma mais geral e como a indústria e as finanças em particular. Não há como impedir a concorrência, ou ficar isolado do que se passa no resto do mundo. Na verdade, é difícil imaginar que uma seleção nacional tenha sucesso sem que seus jogadores participem das competições internacionais de ponta, de preferência jogando nos melhores clubes, onde quer que estejam. Se as seleções fossem adotar os critérios de "conteúdo nacional", como se usa no Brasil para a prática de protecionismo industrial, ia ser como na época em que a Olimpíada era apenas para atletas amadores: mediocridade e hipocrisia.

A terceira lição tem a ver com a centralidade do público.

No imaginário global, o futebol é o terreno do talento e da excelência, da igualdade diante das regras, da concorrência honesta, que se repete em certames internacionais, nos quais os adversários trocam suas camisas ao final, independente do resultado, pois há algo maior em jogo, o desejo de satisfazer uma audiência exigente e ansiosa por aplaudir o gênio, bem como o jogo coletivo. O futebol, com sua lógica meritocrática, conquistou um público imenso, e é este o principal personagem desse espetáculo, a razão de ser de todo o exercício.

A primazia do cliente, como os telões colocados nos estádios, é novidade por aqui. As imagens do público e suas emoções se juntam aos dribles e aos gols, pois tudo é parte do mesmo espetáculo. O telão é o "selfie" da multidão, matéria de grande interesse de todos, pois equaliza os anônimos às estrelas e coloca o público no interior da festa e da foto. Vale tudo pelo aplauso, e um público satisfeito significa bilheteria gorda, patrocínio abundante, e espetáculos cada vez melhores. Assim é a lógica da economia de mercado.

Aqui no Brasil, em contraste, a julgar pelos campeonatos regionais, o público é uma consideração secundária. Prevalece uma lógica cartorial destinada a proteger e adular clubes "pequenos" que ninguém quer ver em ação, em decorrência de uma organização corporativista, onde as federações são controladas justamente pelos pequenos, que exploram os grandes, mais ou menos como ocorre nas federações industriais.

A quarta e última lição tem a ver com o gasto público e com o balanço financeiro do evento.

Há uma justificada irritação com o custo total dos estádios, alguns dos quais não servirão para nada, depois da festa. O brasileiro sabe fazer conta, especialmente quando se trata do seu dinheiro, e a Copa trouxe para as páginas esportivas, que todo mundo lê, muitas revelações incômodas sobre o modo como as autoridades conduzem grandes programas de desenvolvimento econômico. Foi um rude golpe contra a apatia do brasileiro diante do drama com as finanças públicas.

Percebe-se com clareza que o problema de achar o dinheiro para executar os gastos associados ao evento, como se observa genericamente para os programas de governo, simplesmente não pertence a autoridades brasileiras ligadas à organização da Copa. Como a ação dos políticos é redentora genericamente, e o hexa, em particular, não tem preço, tudo é barato mesmo quando superfaturado.

Tudo se passa como se houvesse uma fonte brotando do solo, uma riqueza real ou simbólica inesgotável, uma pródiga mina de ouro ou poço de petróleo, quem sabe uma gaveta mágica na mesa do ministro da Fazenda, ou algum artifício contábil de multiplicação de pães, ou ainda uma viúva milionária, tola e disposta a assinar qualquer cheque que lhe for solicitado.

A quarta lição, portanto, é uma maldição antiga: o dinheiro da viúva não tem dono. E mais: não temos os mecanismos institucionais apropriados para fazer escolhas entre prioridades tendo em vista recursos limitados. No Brasil, o orçamento público é uma relação de sonhos amparada por uma construção contábil engenhosa com vistas a fomentar duas crenças falsas: a de que há algum equilíbrio entre receita e despesa e a de que todos os sonhos expressos como despesa são possíveis.

Nosso orçamento público está precisando de uma vasta reforma, onde receitas, despesas e dívidas fiquem subordinadas a normas claras de sustentabilidade.

Em resumo, o legado econômico da Copa poderá ser muito rico se tivermos o descortino de tirar o devido proveito dos erros e dos acertos, sem as fanfarronices.

A queda na atividade se intensifica - JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS

O ESTADO DE S.PAULO - 06/07


As informações mais recentes mostram que a atividade econômica está desacelerando muito rapidamente, mais do que o esperado. Os itens mais significativos a destacar são os seguintes:

1) As expectativas dos agentes vêm caindo acentuadamente nesta primeira parte do ano. Se compararmos o índice de junho, recém-findo, com o mesmo mês de 2013, a confiança do consumidor caiu 8%, a do comércio 7,4%, a da construção 8,9%, a do setor de serviços 9,30% e a da indústria mergulhou 16%! Não me lembro de período no qual, tanto produtores de todos os setores, como consumidores, tenham ficado tão desanimados simultaneamente.

Este comportamento acaba se traduzindo numa profecia que se auto confirma: se o consumidor está reticente, vai comprar menos; se os produtores ficam pessimistas tentarão cortar custos e reduzir estoques. O resultado só pode ser uma queda na atividade.

2) A produção industrial divulgada nesta semana desabou até maio. Neste período, a indústria como um todo encolheu 1,6%, bem como todas as categorias econômicas, exceto bens não duráveis de consumo, que acumulou ganho de 1%. No caso dos bens duráveis, a queda foi extraordinária. Conforme divulgado também nesta semana, a produção de veículos encolheu quase 20% em relação a maio de 2013. Ainda assim, a escassez de clientes foi de tal natureza que os estoques se elevaram muito no varejo e na indústria, levando a um grande volume de paradas na produção.

Estas decisões de ajuste de oferta/demanda, em segmentos com cadeias de produção relativamente complexas, como é o setor automotivo, sempre são tomadas apenas em último caso, em situações de forte desequilíbrio, uma vez que a redução no fluxo de produção de uma montadora exige de 60 a 90 dias para se materializar, dada a necessidade de se coordenar fornecedores e distribuidores.

Outro segmento que gera preocupações é o de bens de capital, cujo resultado desabou quase 6%, entre janeiro e maio deste ano, em relação ao mesmo período do ano passado. Seguramente, os investimentos vão continuar se contraindo, pois os dados da Abimaq (Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos) mostram uma queda no faturamento do setor de quase 14% nos primeiros cinco meses deste ano em relação a 2013.

3) Olhando para adiante, é certo que a atividade industrial continuará caindo. No setor automotivo a MB projeta para o ano uma queda de quase 10% na venda de autos e comerciais leves, de 15% na de caminhões e de 10% na de ônibus. Os estoques já acumulados garantem que um corte de produção significativo ainda será necessário. A mesma coisa vale para outros bens duráveis.

Existe um fator específico neste ano a contribuir para o encolhimento da atividade industrial, que é o encarecimento do preço da energia elétrica no mercado livre, fruto da severa redução de água nos reservatórios e da intensa utilização da termoeletricidade. Como resultado, muitas empresas consumidoras intensivas em energia optaram por desligar equipamentos e vender sua eletricidade assegurada no mercado livre, a preços muito elevados. Isto fica muito claro, quando se observam (gráfico) as quedas na produção de setores de alta e média intensidade no consumo de energia elétrica. Ainda não é possível fazer uma avaliação mais cuidadosa de qual o volume de produção cortado, mas têm-se notícias de muitos desligamentos de equipamentos nos setores de metais, química, cimento, etc. Além disso, os dados de comércio exterior mostram uma apreciável redução nas exportações de produtos industriais, especialmente tendo-se em vista a crise pela qual passam vários de nossos vizinhos, como Argentina e Venezuela.

É inescapável uma forte queda no produto da indústria de transformação deste ano, que projetamos ser da ordem de 3,6%.

4) Quando olhamos para o mercado de trabalho, fica claro que o efeito negativo no emprego será muito mais acentuado agora no segundo semestre. Por exemplo, se considerarmos os dados de emprego formal, mostrados pelo Caged em maio deste ano, observamos uma geração líquida (contratados menos desligados) de empregos de apenas 59 mil pessoas.

A indústria reduziu seu contingente em 28 mil empregados, o comércio dispensou 1000 funcionários, a construção civil contratou 3000 e apenas os setores de serviços (mais 41 mil) e a agropecuária (mais 44 mil) contrataram de maneira mais significativa. A abertura dos dados de serviços mostra o efeito da Copa, uma vez que os itens de hospedagem e alimentação foram os mais relevantes. Entretanto, na agropecuária 65% do saldo de contratações foi de colhedores de café, atividade de curta duração, uma vez que até o fim do próximo mês, a safra já estará nos armazéns.

O fato é que no segundo semestre é que ocorrerá o grosso da redução do emprego industrial e da redução do emprego na construção civil, uma vez que muitas obras ficaram prontas e terão seus canteiros desativados, como é o caso dos estádios. Além disso, o ajuste decorrente da questão da energia terá seu efeito pleno dado que a maior parte das companhias só organizou sua decisão de desligar equipamentos em março/abril.

Nosso crescimento caminha para zero e não dá para culpar o resto do mundo, mesmo tendo-se em conta que a escolha de nossos parceiros comerciais preferenciais não tenha sido das mais felizes.

O barato que sai caro - HENRIQUE MEIRELLES

FOLHA DE SP -06/07

A maioria das pessoas prefere inflação e juros os mais baixos possíveis e salários os mais altos possíveis, reajustados acima da inflação e da produtividade. O problema é que a realidade é mais complexa. A elevação dos juros, por exemplo, é o instrumento mais eficaz para o Banco Central baixar a inflação.

É natural que existam inúmeros exemplos de interesses incompatíveis de setores da sociedade. O dólar barato é bom para os importadores, mas péssimo para os exportadores e para a cadeia produtiva da exportação. Inflação baixa beneficia a maioria, mas os que podem indexar seus preços (como o governo com os impostos) podem se beneficiar de uma inflação mais alta. A maioria quer os salários reajustados acima da inflação e da produtividade, mas isso pode baixar o poder de compra dos trabalhadores pela alta da inflação. Gasolina mais barata, excelente para os consumidores, é problema para a Petrobras e as necessidades de investimento na produção de petróleo. O mesmo vale para o preço da eletricidade.

O problema da intervenção de governo na formação de preços da economia, que incluem câmbio e juros, é que cada ação cria ganhadores e perdedores. O governo torna-se, assim, árbitro da disputa intensa de interesses dos diversos setores. Isso gera distorções na economia e eventualmente menos crescimento, menos emprego e menos riqueza.

A história mostra que a administração pública é mais eficiente quando deixa os preços se ajustarem segundo a oferta e a procura e, ao mesmo tempo, garante uma segurança regulatória que dê conforto e previsibilidade a todos. Assim, quando um produto se torna escasso, seu preço sobe e eleva a remuneração de quem o produz, estimulando os investimentos e o aumento da produção, do emprego e da renda. O aumento da produção, por sua vez, tende a controlar preços elevados pela escassez.

Outro problema das intervenções é que, por definição, são decisões individuais e erráticas, que geram incertezas nos agentes econômicos e reduzem investimento, consumo, crescimento e emprego. Cabe ao governo intervir em alguns momentos para regular excessos. Uma crise de liquidez, por exemplo, pede intervenção estatal para normalizar os mercados. A questão é saber quando parar, para o governo não passar de solução a problema.

A tentação do governante de fixar preços é enorme, pois estará atendendo a queixas de setores importantes. Mas a realidade é mais complexa. O que funciona, em última análise, é um sistema de definição de preços que atenda à realidade econômica de cada momento e traga mais investimento, crescimento, produtividade e riqueza e um melhor padrão de vida à população.

Real ou falso? - RUBENS RICUPERO

CORREIO BRAZILIENSE - 06/07


O Real foi iniciativa circunscrita no tempo e na meta: afastar o risco iminente da hiperinflação e devolver ao Brasil mínimo de estabilidade e previsibilidade econômica. Nesse sentido, teve êxito e passou à história. A melhor prova do sucesso é que nenhuma outra medida econômica brasileira continua a ser comemorada tanto tempo depois.

Falso é pensar no Real como plano de desenvolvimento de longo prazo ou o projeto de país que nos falta, coisas que ele jamais pretendeu ser. Vejo essa tendência equivocada nas perguntas que me fazem e em muitos artigos na imprensa. No lançamento da moeda eu costumava compará-la ao pedestal de um monumento. Isto é, a estabilidade seria o fundamento sobre o qual deveria ser edificado um projeto de desenvolvimento e distribuição.

Pode-se discutir se o que se construiu é harmonioso ou disforme, completo ou inacabado, se é sólido ou vai ruir amanhã. Já aí, porém, não se trata de mérito ou culpa do Real, mas do que veio depois.

Obra coletiva por excelência, o Real se deve, sobretudo, ao presidente Itamar Franco, a Fernando Henrique Cardoso e aos membros da equipe econômica mais competente que o país teve. Posso falar apenas do momento no qual me coube responsabilidade como ministro da Fazenda nos meses imediatamente anteriores e seguintes à entrada em circulação da moeda em 1º de julho de 1994.Seria exagero afirmar que o lançamento deu certo? Primeiro, graças à preparação por meio da brilhante concepção da URV e do cuidado de tudo anunciar com antecedência, sem choques nem surpresas.

Em seguida, pela execução: a troca de moedas tranquila, sem incidentes; a transparência da informação frequente, em linguagem clara, não em "economês"; a ausência de congelamento ou de tabelamento de preços. Prova é que, de todos os planos econômicos nacionais, o Real é o único que não causou vítimas nem ações de indenização na Justiça.

As fundações resistiram à prova do tempo. Construir sobre elas economia de baixa inflação, crescimento inclusivo e sustentável é o desafio para os sucessores da geração que lhes deixou um pedestal robusto e duradouro.

Política secreta - MIRIAM LEITÃO

O GLOBO - 06/07

A estratégia da presidente Dilma de só revelar a política econômica após as eleições cria a situação estranha de haver uma candidatura com programa secreto. É complicado para quem está no governo, num momento difícil da economia, dizer como vai corrigir os erros sem fazer críticas a si mesmo. A inflação está alta, o país não cresce, o setor elétrico está em situação precária.

A informação publicada pelo editor-executivo do “Valor”, Cristiano Romero, é a de que a presidente Dilma vai se reunir com os empresários depois das eleições, se reeleita, para então definir a política econômica do segundo mandato. A estratégia revela a incapacidade da governante de responder agora como pretende ajustar o que a sua política econômica desajustou.

Quem disputa reeleição ou se engaja na eleição do sucessor tem a vantagem do uso do cargo para que atos de governo virem atos de campanha. Até sexta-feira, Dilma teve toda a máquina governamental aberta. Inaugurou, lançou programas e fez promessas com tom de campanha o que foi apresentado como suas funções de governante. Agora, a lei eleitoral vai inibir um pouco.

Para o ex-presidente Lula, foi muito fácil fazer campanha para Dilma em 2010 porque o país crescia vigorosamente depois da queda do PIB em 2009. A coleção de números bons de atividade econômica e a inflação baixa facilitaram o discurso da continuidade. Em 2006, o então presidente Lula enfrentou um constrangimento político porque no ano anterior havia estourado o escândalo do mensalão. Mas a economia ajudou.

Na economia, a de 2014 é a eleição mais difícil para o PT. Há muito número mostrando a deterioração da conjuntura. O governo usou instrumentos, para manter o crescimento, que perderam a eficácia, como os sucessivos pacotes de redução de IPI para o setor automobilístico. A indústria afundou e vai encolher este ano. O mais do mesmo não é suficiente para um país que vai crescer apenas 1% em 2014.

Na inflação, a continuidade da política é perigosa. A taxa passou quatro anos muito perto do teto da meta. Somando-se os meses em que ficou acima do permitido, dá quase um ano. Não há resposta fácil para a dúvida a respeito de como serão corrigidos os preços represados. A presidente da Petrobras disse que para subir o preço da gasolina bastam dois elefonemas. Ela já fez inúmeros telefonemas, sem sucesso. Os preços reprimidos têm alimentado a expectativa de mais inflação no futuro.

As empresas do setor de energia estão com sérios desequilíbrios. Está sendo negociado com bancos outro empréstimo para as distribuidoras através do mesmo canal, a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica. O governo está dando socorro às empresas através de um ente privado, a CCEE, para não reduzir o superávit primário. É uma artimanha. Mais uma.

Uma das grandes questões para 2015 é como desatar o nó elétrico. Há um desequilíbrio financeiro grave em todos os elos do sistema provocado pela MP 579, que reduziu os preços da energia, antecipando o fim dos contratos. E nesse caso ficou claro outro problema criado pelo estilo de gestão Dilma: a falta de diálogo com os empresários.

Existe defesa de lobby que é apresentada como diálogo, como o que acontece com o setor automobilístico. Mas não foi esse tipo de conversa que faltou ao setor de energia. O governo não quis ouvir as ponderações técnicas das empresas. Elas tentaram alertar para as distorções que seriam criadas pela imposição apressada e eleitoreira da medida.

Há necessidade de correção do modelo que o governo usa para determinar o nível de risco do sistema. Agora, por exemplo, o preço da energia no mercado spot havia caído para R$ 368,5 e neste começo de julho voltou a subir para R$ 547,7.O modelo está indicando um nível baixo de risco, de 2,68%. O volume de água nos reservatórios permanece pouco acima dos 30%. Alguma coisa está errada com o modelo, porque se há pouca água, a indicação do risco deveria ser maior; e se o risco é tão baixo, por que ONS mantém todas as termelétricas ligadas encarecendo o custo?

Dilma vai tentar empurrar para depois os temas incômodos, como a inflação, o PIB, o nó elétrico, porque sabe que tratar deles agora seria admitir os erros que sua administração cometeu.

Depois da Copa - JOÃO BOSCO RABELLO

O ESTADO DE S.PAULO - 06/07


No momento em que a mais recente pesquisa eleitoral registra uma espécie de hiato futebolístico, com os índices relativamente estabilizados, uma outra aferição mantém a economia como alto risco eleitoral para o governo.

Enquanto a presidente Dilma permanece em patamar de aprovação que confirma a realização de um segundo turno, pesquisa da Fundação Getúlio Vargas mostra que o consumidor estima uma inflação de 7,5%, acima do teto da meta, maior que a previsão do próprio mercado, que é de 6%.

O dado inflacionário puxa outras percepções que constam das consultas feitas pelos partidos políticos para consumo interno, igualmente negativas para o governo e indicativas do grau de dificuldade da campanha da candidata oficial em criar expectativas que revertam sua estagnação nas pesquisas.

Inserem-se nesse quadro a falta de expectativa de aumento de renda, conjugada ao fim do poder de consumo, a baixa remuneração de empregos, a insatisfação com as políticas públicas nas áreas essenciais de saúde, infraestrutura e segurança, além da sensação de aumento da corrupção.

Os índices de intenção de voto registrados pela presidente Dilma são desfavoráveis no sudeste, que concentra 40% do eleitorado nacional, no qual ela empata com o candidato Aécio Neves, do PSDB, ambos na casa dos 28%. A soma nas outras regiões não autoriza uma votação compensatória.

Na conta global, a pesquisa sugere que a presidente não cai mais por ter atingido seu piso de queda, apesar da superexposição a que foi submetida.

É nesse ponto que reside o otimismo da oposição. Os levantamentos feitos até aqui ainda ocorrem com os candidatos Aécio Neves e Eduardo Campos desconhecidos por parcela expressiva da população, o que certamente será reduzido com a exposição no horário eleitoral gratuito na televisão.

Se é verdade que a oposição ainda não se mostrou competente para capitalizar politicamente o revés do governo, na proporção que ele permite, é igualmente real que o repertório oficial esgotou sua capacidade de produzir novidades.

Nada mais demonstrativo dessa constatação do que o relançamento de programas como o PAC, em versões renumeradas, antes mesmo que as primeiras se tenham completado.

Além disso, com a disputa política orientada pela meta de ampliação de bancadas federais dos partidos, a dissidência na base aliada do governo foi maior do que era permitido estimar com base na disputa por espaço na estrutura de governo, protagonizada por PT e PMDB.

A fragmentação da militância desfavorece o governo nas campanhas estaduais e eleva seu risco eleitoral.

Nada indica que o êxito na organização da Copa, com ou sem vitória da seleção nacional, perdure para afetar essa realidade que a antecede.

Dilma nas quartas de final - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 06/07

Presidente sofre, bate, apanha e passa de fase, mas mau humor continua em nível alto no país


DILMA ROUSSEFF e seu governo chegam às quartas-de-final da eleição como o time do Brasil: jogando mal, quase empatando, batendo e apanhando, mas ainda vencendo. Apesar dos infortúnios, críticas, campanhas negativas contra seu governo e incompetências também de seu governo, Dilma ainda pode vencer sem mesmo ir para a final, o segundo turno.

Isto posto, parece equivocado dar muita relevância ao fato de que os dias de alienação voluntária da Copa favoreceram a popularidade dilmiana e amenizaram a insegurança com a economia, como indicou a pesquisa Datafolha realizada na semana passada. A cada semana, cai lenha na fogueira que tem fervido os humores do eleitorado, ao menos no que diz respeito à economia.

Antes, tumultos e iras sociais influenciavam o sentimento de confiança econômica.

Daqui em diante, mais e mais a degradação da economia vai determinar o desconforto político.

A popularidade do governo de Dilma melhorou, mas está no mesmo nível recorde de baixa de junho 2013, um ou outro ponto para cima ou para baixo, o imponderável de almeida das estatísticas. O mesmo se pode dizer de indicadores como o de expectativa de aumenta de preços, ainda medido pelo Datafolha.

O grau de difusão do temor de que os preços venham a aumentar assemelha-se ao dos dias piores do governo FHC, de colapsos econômicos como a grande e desordenada desvalorização do real (1999), apagão (2000), quebra com romaria ao FMI e espasmos feios de inflação e desemprego alto e variável.

Note-se de passagem que, a julgar pelo histórico das pesquisas Datafolha, as respostas a essa pergunta sobre a expectativa de inflação (maior, menor, na mesma) nem sempre estão associadas à variação de fato de preços, mas a um sentimento geral de insegurança econômica.

O aumento recente desse sentimento de insegurança econômica coincidiu com o colapso da popularidade de Dilma, mas, pelo menos entre meados do ano passado e deste 2014, é difícil dizer que a piora econômica provocou a piora da avaliação do governo. Se o fez, foi em pequena medida. Até agora.

Os protestos de junho não eram de natureza "econômica". A irritação com a inflação vinha fervendo aos poucos, mas até junho não era uma ebulição. No que diz respeito à vida cotidiana, emprego e renda, os indicadores começaram a se tornar mais problemáticos a partir de março, por aí. O efeito significativo da inegável deterioração macroeconômica não havia chegado ao dia-a-dia do grosso da população.

Mas o mau humor disseminado ajudou a acelerar a degradação das condições econômicas.

Apesar da Copa, acrescente-se e ressalte-se, o grosso desse mau humor não passou. Agora, a piora da economia começa a desaguar "nas ruas": demissões, ainda poucas, mas "simbólicas", como as da grande indústria; a seca no mercado de trabalho, ao menos nas grandes metrópoles; a seca no crédito etc.

Não se trata de sangria desatada nem de um quadro predominante em todo Brasil (a crise afeta mais as metrópoles do Centro-Sul); pioras econômicas nem sempre transparecem sem mais na política ou na eleição.

Mas há motivos para estimar que o clima no país vá melhorar.

O califado de olho em Messi - DORRIT HARAZIM

O GLOBO - 06/07

Para os militantes do Isis, o recurso à barbárie e a atrocidades representa uma forma de terror-ostentação do qual se orgulham


Dois jogos de arromba marcaram o domingo passado: a dramática eliminação do México pela Holanda no Castelão e a atormentada vitória da Costa Rica sobre a combativa Grécia na arena Pernambuco. Foi uma tarde em que o planeta pareceu orbitar em torno de uma bola de futebol.

Apesar de a Copa estar tão empolgante quanto empolgada, um inesperado comunicado postado no Twitter obrigou vários donos do poder a desviar o foco dos gramados. A inoportuna mensagem também envolvia disputa, vitória e eliminação. Mas continha sobretudo potencial de sobra para embaralhar de vez a geografia atual e alterar a história futura.

Não por acaso o anúncio coincidia com o primeiro dia do mês do sagrado Ramadã. Fora postado pelo grupo terrorista Estado Islâmico do Iraque e do Levante (Isis, na sigla em inglês) e comunicava ao mundo ter mudado de nome, identidade e ambição. A partir daquele domingo o grupo extremista que vinha implodindo o poder do governo do Iraque se autoproclamava um país. Mais precisamente, um califado, agora Estado Islâmico.

Semeando o terror e aniquilando o que encontram pela frente, seus militantes jihadistas há meses conquistam vastos nacos de território outrora invadido, ocupado e abandonado por tropas americanas. A meta do pretendido califado é se estender de Aleppo, no norte da Síria, até a província de Diyala no Iraque oriental. Como chefe político e religioso da nova “nação”, o califa Abu Bakr al-Baghdadi, chileno de nascimento, passa a ser considerado sucessor do profeta Maomé e líder de todos os muçulmanos — ao menos dos sunitas extremados que combatem em suas fileiras.

Considerando-se que o último califado de algum peso foi abolido em 1924 por Kemal Ataturk, fundador da Turquia moderna, essa tentativa de ressurreição produzida por uma das vertentes mais sanguinárias do terrorismo islâmico injeta pânico nos governos da região e em seus aliados ocidentais.

Motivos de alarme não lhes faltam. Até então a norma e a tática dos grupos jihadistas consistiam em eclipsar-se após praticar um atentado, procurado não deixar pistas. Esse terrorismo clandestino de diáspora islâmica, apátrida, tem regido tanto a al-Qaeda, responsável pelos atentados de 11 de Setembro de 2001, como o Boko Haram, atuante na Nigéria, que consegue sumir com 200 crianças raptadas de uma escola.

Já o objetivo declarado do Isis é fincar pé, conquistar terreno e formar uma nação em meio a uma região em combustão perpétua. O contorno desse sonhado califado apaga do mapa a fronteira entre Síria e Iraque estabelecida há um século pelas potências coloniais da época, o Reino Unido e a França, que fatiaram o Oriente Médio em zonas de influência.

Para os militantes do Isis, o recurso à barbárie e a atrocidades representa uma forma de terror-ostentação do qual se orgulham. Dois anos atrás, quando ainda eram afiliados à al-Qaeda, lançaram uma série de ataques a prisões iraquianas, inclusive a Abu Ghraib de sinistra notoriedade, e arrebanharam criminosos para suas fileiras. Batizaram essa fase inicial de “Rompendo muros”. A fase atual de consolidação do território também tem nome: “Rompendo fronteiras”. Por atrair jovens de países ocidentais, tornou-se pesadelo dos grandes em Washington e capitais europeias.

Em recente artigo publicado no site da emissora árabe Al Jazeera, um ex-oficial do Exército britânico respondeu à indagação mais recorrente envolvendo a irrupção do Isis: por que nem a mídia nem os governos interessados perceberam a força que move o ideal de um califado terrorista? “No caso da mídia”, escreveu Crispian Cuss, hoje consultor no Oriente Médio, “uma espécie de fadiga decorrente de anos de violência acabou afetando a cobertura feita no Iraque e na Síria”. Ele credita à violência explicita do ISIL o fato de pouquíssimos repórteres terem se aproximado do bando

Já os serviços de inteligência ocidentais teriam falhado menos, pois enviaram repetidos alertas quanto à movimentação em curso. “Mas foram relatos sem audiência”, explica Cuss. “Assoberbados pela complexidade da região e acossados por um eleitorado cansado de aventuras militares longe de casa, os governos preferiram não encarar as consequências do novo quadro”, conclui o analista.

Apesar de o Isis pretender ressuscitar um tipo de regime que data do século 7, seus militantes são antenadíssimos com o mundo de 2014. Duas semanas atrás, pouco depois de Lionel Messi ter salvo a Argentina de um humilhante empate no 91º minuto do jogo contra o Irã, o craque argentino recebeu inesperado elogio e extravagante convite do grupo terrorista. “O Isis felicita Messi, o convida para unir-se à jihad e o premia com o titulo de pai goleador argentino e rei da América do Sul”, dizia a mensagem postada no Twitter.

Como se sabe, radicais islâmicos tem leniência zero com a depravação e decadência ocidental que associam à prática do futebol internacional. Tanto na Nigéria como em vilarejos do Quênia ocorreram ataques brutais contra moradores com a televisão ligada na Copa.

Mas o Irã, por ser um estado teocrático ultraxiita, é inimigo jurado da vertente sunita abraçada pelo Isis. Daí a saudação fraterna ao soldado Messi.

A agilidade e o uso maciço das redes sociais pela turma do califado surpreendem. Cientes da popularidade mundial da Copa, os terroristas têm se infiltrado no hashtag #WoldCup2014 para anunciar conquistas no campo de batalha. Ou, como relatou o “New York Times”, para postar o vídeo da decapitação de um policial iraquiano. “Esta é nossa bola. É feita de pele #WorldCup”, dizia a mensagem anexada ao vídeo.

Facebook, Tumblr, YouTube, WordPress, JustPaste, SoundCloud — nada falta ao leque de ferramentas da comunicação moderna utilizado pelos militantes do Isis. Uma pioneira pesquisa sobre a atividade on-line do grupo, de autoria da americana Rita Katz e disponível no site Intelligence Group, mapeia o fenômeno.

Trata-se apenas do começo. Na próxima Copa de 2018, em Moscou, o terrorismo do Isis talvez não precise mais de um Lionel Messi para demolir infiéis com um chute.

Ação entre amigos - MAC MARGOLIS

O ESTADO DE S.PAULO - 06/07


Em sua queda de braço com os credores externos, Argentina não poupa despesa nem drama. "Argentina quer continuar a pagar suas dívidas, mas eles não vão deixar", apelou aos leitores do Financial Times.

Exortou milhares a tomar a praça pública contra os "abutres", como taxou os especuladores da dívida internacional. Contratou um pelotão de advogados de gabarito para levar sua causa até a Corte Suprema americana.

A Casa Rosada só não alistou o papa Francisco nem o dalai-lama, mas na semana passada, recorreu aquele balcão mor de indulgências ocidental, a Organização dos Estados Americanos (OEA).

Na pauta, um imbróglio que se arrasta há uma década entre Argentina e os "holdouts" (credores que não aceitaram reestruturar as dívidas). São os pequenos financiadores que nunca engoliram as perdas impostas após o mega calote argentino de 2001 e hoje ameaçam melar o acordo costurado entre o governo e o grosso de seus credores.

Tachados de abutres, por seu paladar para bônus podres, esses fundos são ruins de imagem, mas bons de briga. Em 2012 conseguiram a chancela de um juiz de Nova York, Thomas Griesa, que mandou o Tesouro argentino pagá-los. No mês passado, o Supremo americano lavou as mãos do pleito, deixando intocada a decisão de Griesa.

Mas já que "na Argentina todos os temas são políticos", nas palavras do chanceler Hector Timerman, o jeito foi recorrer à ação entre amigos. Embora crivada de rivalidades e desconfianças, a América Latina ainda se une frente às ameaças externas.

Por três horas os chanceleres trovejaram contra os abutres. Houve até homenagem a Thomas Piketty, o economista francês que se tornou popstar por seu libelo contra o capital como vilão da desigualdade internacional.

Os hermanos aplaudiram. Mesmo que quase todos os latinos façam questão de pagar em dia suas dívidas, demonizar os credores ainda traz dividendos políticas. Melhor para a tropa de choque de Cristina Kirchner, que usa o brado solidário para camuflar um dos maiores fracassos da economia mundial.

Após anos de inflação maquiada, ingerência e contabilidade arteira, a Argentina declarou moratória na dívida externa de mais de $100 bilhões. Foi o maior calote da história recente. Levou a um colapso econômico brutal que fez da Argentina um pária do sistema financeiro global.

Em 2005, o então presidente Néstor Kirchner, chamou os credores e, a ferro e foice, renegociou 75% da dívida vencida. Quem abarcou, levou 25 centavos para cada dólar emprestado, não em dinheiro vivo, mas em títulos novos, de longo prazo. Em 2010, outra leva se aderiu ao pacto, que passou a cobrir 93% da dívida.

Entra o juiz Griesa que, em julgamento histórico, autorizou os fundos rebeldes - detentores de 7% da dívida - a receberem integralmente. Ainda mais, vetou o pagamento a qualquer outro credor até que os holdouts fossem reembolsados. O Supremo ratificou a decisão.

A decisão revoltou os argentinos e preocupou os gurus da política financeira mundial. Com razão. Afinal, qual o credor que amanhã aceitará renegociar a dívida de um país se um grupelho de refratários, com bons advogados, pode invalidar o pacto?

Mas há um timbre de condescendência no desagravo latino à Argentina. Cristina perdeu a disputa no tribunal. Poderia ter convidados os desafetos para chegar ao bom termo. Ao contrário, apelou à tribuna das ruas e à confraria companheira.

Por trás da manobra argentina, há a ideia sedutora de que dívida é facultativa e sua renegociação, de praxe. É a política de não pagar para depois ver com fica. Se complicar, sempre há a mesa de reestruturação da dívida e depois, o brado retumbante. Quem não aceita é abutre.

Caminhos da paz na Colômbia - FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

O GLOBO - 06/07

Convocados pelo presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, para debater e apoiar a tentativa de lograr a paz entre as Farc e o governo daquele país, Bill Clinton, Felipe González, Ricardo Lagos, Tony Blair e eu nos juntamos em Cartagena nessa segunda-feira.

Pela primeira vez, depois de décadas de lutas entre os guerrilheiros e as Forças Armadas, com todo o horror da guerra e uma inédita relação entre guerrilheiros e narcotraficantes, após várias tentativas fracassadas para encerrar o conflito e criar condições para a pacificação do país, há sinais firmes de que, finalmente, houve progressos na direção da paz.

As mesas de negociação, estabelecidas em Havana com o apoio do governo cubano, já acordaram três dos cinco pontos em discussão, entre eles o da reparação das vítimas e a forma de punição dos culpados.

Embora ainda seja cedo para dizer que existe paz à vista, chegou a hora de os líderes e organizações internacionais emprestarem seu apoio ao processo em curso, mesmo antes do cessar-fogo.

O governo da Colômbia se opõe a paralisar as operações militares sem que as demais questões postas na mesa de negociações estejam resolvidas. Quer evitar o que ocorreu na época do presidente Pastrana, quando uma “zona de paz” consagrada no meio do país serviu de base para que as Farc se reforçassem militarmente.

Firmamos um documento apoiando os esforços em andamento, ressaltando, ao final, que queremos uma paz com justiça, assegurando às vítimas do conflito a satisfação possível de seus direitos. Isso não deve impedir que a Colômbia encontre caminhos de paz e reconciliação.

No decorrer da discussão, ficou claro que, em outros processos semelhantes, resolver a questão dos direitos das vítimas foi essencial para criar um clima favorável à aceitação da chamada “justiça de transição”, a única possível para encerrar situações de conflito que perduraram por décadas.

A natureza excepcional dessas situações torna difícil individualizar responsabilidades e punições em toda a longa série de crimes cometidos. De um lado, a anistia é uma necessidade para pôr fim ao conflito; de outro, o perdão legal não pode ser um ato que cooneste graves violações dos direitos humanos.

É um equilíbrio difícil de estabelecer. Cada qual dos presentes tinha sua contribuição a dar na matéria, pela experiência vivida: Felipe González, pelo trato com a questão do ETA na Espanha; Bill Clinton, pelo empenho e pelas inúmeras dificuldades encontradas nas negociações de paz entre Israel e Palestina; eu próprio, pela mediação do Brasil no acordo de paz entre Equador e Peru; e, certamente, Tony Blair, pelo papel que desempenhou no acordo de paz que pôs fim ao conflito entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte.

Em todos esses casos, em maior ou menor grau, não se trata apenas de assegurar reparações a refugiados, deslocados, famílias de pessoas assassinadas e desaparecidas etc. É preciso lidar com um drama coletivo autenticamente humano, que não desaparece com as leis de anistia e as reparações às vítimas e suas famílias.

A justiça possível é o primeiro passo para a reconstrução da convivência nacional pacífica em torno de valores verdadeiramente democráticos e generosos, o que exige arrependimento, reconciliação e boa vontade.

Na segunda parte do encontro, tratamos de reavaliar as melhores práticas para, havendo paz, assegurá-la por meio de políticas que melhorem as condições de vida da maioria da população.

Nenhum dos líderes presentes acredita que basta aumentar o PIB. Essa condição é necessária, mas não suficiente.

A participação cidadã; o domínio e a disseminação das novas tecnologias de comunicação e informação; o livre engajamento nas redes sociais, como espaços públicos de elaboração e expressão do pensamento e dos sentimentos da sociedade; e a necessidade de uma democracia aberta à oitiva dos anseios das pessoas são tão importantes quanto um bom desempenho econômico para assegurar vida longa à paz.

Nenhum de nós crê tampouco que a melhoria das condições de vida da população na Colômbia, assim como em outros países, decida-se na disputa ideológica entre “privatizar” ou “estatizar”.

A decisão a respeito deve se dar o mais possível a partir do debate público sobre quais bens e serviços devem ser oferecidos diretamente pelo Estado, eventualmente de forma gratuita, ou pelo setor privado, levando em consideração as implicações dessas escolhas não só para o tamanho do Estado e da carga tributária, mas também para a qualidade da gestão estatal e da regulação pública.

A regulação pública de qualidade — o oposto do controle discricionário e caprichoso do Estado sobre os agentes privados — é uma das chaves para a prosperidade social e econômica no mundo atual para todos os países que, como a Colômbia, já ultrapassaram um certo umbral de desenvolvimento.

Passamos em revista as políticas que permitiram avanços sociais importantes na América Latina nos últimos 20 anos. Clinton lembrou o efeito positivo dos programas de transferência direta de renda que o Brasil implantou a partir do Plano Real.

Eu ressaltei a importância da estabilidade econômica para os avanços sociais. Em sentido amplo, uma vez que o Plano Real não foi apenas um programa tecnocrático de derrubada da inflação, mas um processo de fortalecimento da capacidade dos indivíduos e da sociedade para planejar e realizar as suas escolhas.

Lagos insistiu na centralidade das questões distributivas, registrando que a região continua marcada pela desigualdade, apesar da estabilidade e da redução da pobreza.

Felipe González acrescentou ser importante cuidar da distribuição dos resultados da expansão econômica, diferenciando-a da distribuição do estoque de riqueza acumulada, quando socialmente produtiva, pois os países, em especial aqueles em desenvolvimento, necessitam de mais frutos mais bem repartidos, e não de árvores derrubadas.

Muitas esperanças compartidas. E confiança também. Apesar de uma guerra interna de mais de 40 anos, a Colômbia manteve a democracia ao longo de todo este período e, há vários anos, vem crescendo a cerca de 4% ao ano, com inflação baixa.

A paz ampliará os horizontes do seu desenvolvimento e fortalecerá ainda mais a legitimidade de sua democracia, com grande benefício para toda a região. Por isso, merece todo o nosso apoio.

Dois pesos, duas medidas - YOEL BARNEA

GAZETA DO POVO - PR - 06/07


Há duas semanas, três jovens israelenses foram sequestrados quando saíam de suas escolas. Gilad Shaar e Naftali Frenkel, ambos com 16 anos, e Eyal Ifrach, com 19, podem ser caracterizados por terem cometido dois “crimes”: são israelenses e judeus, e pretendiam pegar uma carona para seus respectivos lares. Israel acusa a organização terrorista palestina Hamas de ser a autora do sequestro. Em 30 de junho, segunda-feira passada, os corpos dos três jovens foram encontrados pelas forças de busca de Israel. Eles foram cruelmente e covardemente assassinados pelo terrorismo palestino.

Existem “regras do jogo” no confronto entre Estados, povos e diferentes opiniões, assim como também no cruel “jogo” do terrorismo: as crianças, os jovens e as mulheres devem estar fora desses conflitos. Somente atacamos quando somos agredidos, pelo direito de defesa. Ou esse direito vigora para todos os povos e nações, exceto para o Estado de Israel? O terrorismo palestino e as demais visões terroristas e extremas infringem e ignoram todas as “linhas vermelhas”, e exigem que o lado israelense respeite todos os limites. Assim foi no princípio dos anos 2000, quando o terrorismo palestino explodia ônibus, cinemas, restaurantes, centros comerciais no coração de Israel (não em “territórios ocupados”), e hoje é assim na Líbia, no Iraque, na Síria e no Líbano. Não há lei, nem juiz, tudo é permitido. Mas a comunidade internacional parece ter dois pesos, duas medidas.

À luz da complexa história do povo judeu e da sua nefasta experiência ao longo dos últimos dois milênios de diáspora, com perseguição e sofrimento, acredito que preferimos viver numa geração e numa realidade na qual permanecemos vivos, ainda que injustamente condenados segundo esse princípio de dois pesos e duas medidas, e não mortos e lamentados.

O Hamas, reconhecido como organização terrorista pelos Estados Unidos, União Europeia, Canadá, Japão e também pelo Egito, tem uma longa história de ataques terroristas, cujos alvos são civis israelenses. Seu fundamento é uma ideologia religiosa extremista, que não reconhece o direito de existência de Israel e preconiza a “luta armada” (eufemismo para os atos terroristas) como o único meio de resolver o conflito entre palestinos e israelenses. Seus membros celebram com orgulho os atos terroristas suicidas, os numerosos ataques de mísseis ao sul de Israel (e não nos territórios “ocupados”) e outras tantas iniciativas terroristas na região e fora dela, que possuem um denominador comum: alvos civis. Ações condenáveis e moralmente deploráveis, que fizeram mais de mil vítimas inocentes israelenses, ameaçam a estabilidade regional, prejudicam as chances de paz no Oriente Médio e afastam os palestinos de seus objetivos centrais, como a constituição de um Estado palestino independente, apoiado pela Autoridade Palestina, liderada por Mahmoud Abbas, e aceito pelo governo israelense.

Foi com o Hamas que o presidente da Autoridade Palestina decidiu, há algumas semanas, renovar as relações (os dois organismos estavam afastados e tiveram confrontos armados nos últimos anos) e constituir um governo de unidade nacional. Abbas deve escolher entre a paz e o Hamas, entre o terrorismo e a violência – como o sequestro e assassinato dos nossos jovens –, e o convívio entre o Estado judeu, Israel, e o futuro Estado palestino. Estas duas opções são contraditórias. O governo AP-Hamas deve se dissolver se os palestinos anseiam, assim como nós, pela paz, pelo progresso e pelo bem-estar do seu povo e da região.

Abbas tem de escolher, agora. Esperamos que ele, e os palestinos, façam a escolha correta.

Geopolítica aquecida - SACHA CALMON

CORREIO BRAZILIENSE - 06/07

Depois do embate na Ucrânia, vem à luz o conflito pela Eurásia, entre EUA/EU/Japão e o bloco eurasiano, até então restrito ao observatório internacional da geopolítica. Ele acontece em três fronts: o do centro europeu nas fronteiras da Rússia; o do Oriente Médio, envolvendo a Síria e o Iraque, nas vizinhanças do Irã; e o do mar da China, cercando o crescimento chinês.

O bloco eurasiano compreende a Bielo-Rússia, a Rússia, o Cazaquistão (certamente o Uzbequistão), o Irã e a China. No Ocidente, fustiga-se a Rússia. No Oriente Médio, Arábia Saudita à frente, aliada dos EUA, o avanço é das ricas monarquias absolutistas a incitar todos os grupos radicais sunitas, exceto a irmandade, para tomar o poder na Síria e no Iraque, isolando o Irã. No extremo oriente, os EUA buscam alianças sub-regionais contra a China.

 Movimentos russos se opuseram às investidas dos EUA-EU: a) a anexação da Crimeia; b) a formação do bloco Bielo-Rússia, Rússia e Cazaquistão no centro da Eurásia; c) o direcionamento de gasodutos e ferrovias da Rússia para a China e a Coreia do Norte, incluindo o contrato de US$ 400 bilhões para fornecer gás; d) a desnuclearização do Irã a impedir o planejado ataque israelense àquele país; e) a defesa intransigente de alauitas, xiitas, curdos e cristãos na Síria contra o sunismo.

Três movimentos iranianos, esclarecem o conflito: a) a renúncia à bomba atômica; b) o apoio ao Iraque chiita, em caso de divisão, a leste e a sul de suas fronteiras; c) a manutenção política do Hesbolah (o Exército de Deus) na Síria e no Líbano. A China também movimentou-se: a) fez um tratado histórico com a Rússia, dissipando a intriga de que lhe cobiçava a Sibéria asiática; b) convocou Putin para formar o grupo eurasiano, assinar a construção do gasoduto sino-russo e assegurar ao Irã a compra do seu petróleo.

A Eurásia tem uma população de 1,4 bilhão na China; 220 milhões na Bielo Rússia, na Rússia e no Cazaquistão; 80 milhões no Irã, num total de 1,7 bilhão de pessoas, além de 90% das terras raras do mundo, 60% dos minerais, força atômica, água, gás, petróleo e terras aráveis. O bloco é econômico, político e estratégico, daí o cerco que sofre.

O argumento democrático não está em causa. Os waabitas da península arábica são autoritários (as mulheres nem sequer podem dirigir), fornecedores fiéis de petróleo ao Ocidente. Oprimem a democracia no Egito, na Tunísia e na Líbia. Todos os grupos terroristas são sunitas: os talibãs, treinados pelos EUA para lutar contra a URSS; a Al-Quaeda, cujo mentor era de ilustre família saudita; a frente Al-Nusrri e a irmandade muçulmana salafita. Os EUA estão saindo do Oriente próximo e deixando que a Arábia Saudita, o Catar e o Egito estabilizem a região, tornando-a anti-Irã. Os EUA não mas agirão (fingem preocupação).

A Rússia defende decididamente a Síria, alauita (variação do xiismo), o Irã e o Iraque xiita (facção islâmica sem terrorismo), o que agrada à Rússia e à China, por terem fronteiras com comunidades sunitas terroristas. Cinco caças russos já estão em Bagdá, contra o "califado do levante" (o kalifa é uma espécie de papa muçulmano).

De notar as conexões. Primeiro, as "insurreições" na Síria e agora no Iraque exigem recursos permanentes (das monarquias ricas da península arábica) e apoio tático, para desestabilizar dois governos xiitas vitais à segurança do Irã. O problema é que o califado sírio-iraquiano pode perturbar tanto o Irã quanto as monarquias (a irmandade e salafitas egípcios estão infiltrados com doações comunitárias).

Segundo, o bloqueio do gás russo. A Bulgária paralisou as obras de um novo gasoduto construído pela Rússia - sem passar pela Ucrânia - para a Europa. Autoridades dos EUA obrigaram a Bulgária a parar o projeto. O South Stream elevaria o poder da Rússia em relação à Ucrânia, ao permitir a Moscou suspender o envio de gás sem afetar o suprimento da Europa Central. Dragomir Stoynev crê que o projeto acabará sendo retomado. "Se considerarmos a situação estratégica sem emoções, o projeto South Stream parece irreversível e importante para a Europa e para a Bulgária", disse ele à rádio búlgara.

Terceiro, a subida das tensões no Extremo Oriente. Gideon Rochamn, analista do Financial Times, observa que, nos últimos 30 dias, as marinhas russa e chinesa realizaram exercícios conjuntos, da mesma forma que a dos Estados Unidos e a das Filipinas. O secretário de Defesa dos EUA e o vice-chefe militar da China no Diálogo de Shangri-lá, em Cingapura, fizeram discursos confrontadores. Chuck Hagel acusou a China de "intimidação e coerção". Pequim respondeu que os EUA e o Japão vêm realizando "desafios e ações provocadoras contra a China". O primeiro-ministro do Japão, Shinzo Abe, defendeu a lei internacional mas o fez com tal veemência que um observador disse nunca ter visto "ninguém defendendo a paz de forma tão agressiva". São as marés da história. A boa notícia é que os conflitos são localizados. A guerra é geoeconômica.

Biden deu a Dilma documentos inúteis - ELIO GASPARI

FOLHA DE SP - 06/07


O Departamento de Estado armou um factoide e jogou o vice-presidente americano numa presepada

Se a turma que grampeia o mundo para o companheiro Obama lida com as informações de hoje da mesma forma como o Departamento de Estado lidou com os papéis que o vice-presidente Joseph Biden passou à doutora Dilma em junho, estão jogando dinheiro do contribuinte americano no lixo. Durante sua passagem pelo Brasil, Biden entregou 43 documentos dos anos da ditadura que estavam guardados nos arquivos americanos. Chamou-os de "conjunto inicial" de uma colaboração. Pura marquetagem, quase um vexame.

Dos 43 documentos, 25 eram de domínio público, alguns deles acessíveis na internet. Se um terceiro-secretário tivesse trabalhado direito durante uma semana na seleção desses papéis, poderia ter feito coisa melhor.

Um dos documentos é um telegrama do consulado em São Paulo, de 27 de outubro de 1970, intitulado "Morte do Chefe Terrorista". Trata do assassinato de Joaquim Câmara Ferreira, que substituiu Carlos Marighella no comando da Ação Libertadora Nacional. Conta que Câmara foi localizado graças à colaboração de Eduardo Leite, o "Bacuri", que fugiu durante a cena da captura.

Tudo mentira. O consulado propagou um "roteiro" preparado pelo Centro de Informações do Exército. Bacuri estava preso desde agosto. No dia em que o consulado expediu o telegrama, ele foi retirado da cela onde estava, no Dops, e levado para um quartel. Em dezembro, foi assassinado.

Enfiaram o vice-presidente dos Estados Unidos num vexame. Esse telegrama é conhecido desde 1986. Enquanto a embaixada em Brasília e o consulado em São Paulo estavam conveniados com o DOI, o cônsul no Rio advertia que a história da colaboração de Bacuri bem como a sua fuga eram lorota. Ele se chamava Clarence Boonstra. Seu telegrama, conhecido há mais de dez anos, foi esquecido pelos pesquisadores de Biden.

A presepada em que enfiaram o vice-presidente dos Estados Unidos foi produto da incompetência, mas, se a conversa de "conjunto inicial" é séria, pode-se ir adiante. Dois exemplos:

1) Em maio de 1971, o diretor da CIA, Richard Helms, depôs durante duas horas sobre a situação brasileira numa comissão do Senado americano. Como manda a boa norma, à época seu depoimento foi transcrito e mantido sob sigilo. Em 1987, o governo liberou 75% da transcrição. Mesmo respeitando as restrições da segurança americana, Biden poderia mandar ver o que se pode liberar dos 25% que faltaram.

2) Em julho de 1962, o embaixador americano, Lincoln Gordon, reuniu-se com o presidente Kennedy e discutiram como influenciar as eleições brasileiras daquele ano. O governo americano liberou o áudio de 28 minutos dessa conversa, omitindo sete segundos. Ali está a quantia que investiriam. Estima-se que a conta ficou nuns cinco milhões de dólares. O conhecimento exato dessa cifra ajudaria a mostrar a orgia em que viraram as eleições brasileiras, pois hoje cinco milhões de dólares são um trocado.

Por mais que o lote de 43 documentos tenha resultado numa presepada diplomática, ela não pode ser comparada à conduta dos comandantes militares brasileiros. Para que se documente a tortura e os assassinatos praticados em quartéis de Pindorama, os arquivos oficiais americanos ainda são uma fonte de informação melhor que a memória dos servidores pagos pela Viúva. É triste ver os comandantes militares dizendo que nos DOIs nada ocorria de anormal, enquanto milhares de brasileiros testemunham o contrário e até a diplomacia americana, servindo ao presidente Richard Nixon, que colaborava e torcia pela ditadura, registra que eles eram centros de tortura.

BOA NOTÍCIA

Há quatro anos, um dos maiores empresários brasileiros decidiu apadrinhar quatro alunos que haviam sido aprovados no vestibular de uma universidade privada brasileira. Todos amarrados ao andar de baixo. Uma está concluindo o curso de engenharia química na Universidade de Rouen, na França. Outra formou-se em comunicação e já foi contratada pela empresa onde estagiou. Uma terceira foi aprovada no exame da OAB e vai disputar uma vaga no concurso do BNDES. Só um continua na escola.

A fatura custou a mixaria (para o benfeitor) de R$ 520 mil, ou R$ 33 mil por aluno/ano. Cerca de R$ 400 mil pagaram a universidade. O restante ficou com uma ajuda em transporte, alimentação ou material. O empresário está formando outro grupo.

Os candidatos a presidente gastam latim falando em educação. Nenhum foi capaz de se comprometer com um projeto que estimule qualquer tipo de filantropia.

NOVO MINISTRO

Se é verdadeira a informação segundo a qual a doutora Dilma pretende anunciar o nome do substituto de Joaquim Barbosa no STF depois da eleição de outubro, há alguém com parafuso solto no Planalto.

É seu direito preenchê-la logo e, caso não seja reeleita, ofenderia o país se nomeasse um ministro do Supremo em fim de governo, a caminho de casa.

LIÇÕES DA COPA

Depois da Lapa, no Rio, a Vila Madalena, em São Paulo, tonou-se um grande centro de comemorações populares depois dos jogos da Copa.

Curiosidade: essas duas catedrais da boêmia surgiram sem que o Estado se metesse. Nunca houve o ProLapa nem o PoloVila. Coisa do povo, pelo povo, para o povo.

LEWANDOWSKI E A HARMONIA DO STF

O ministro Ricardo Lewandowski assumirá a presidência do Supremo Tribunal Federal num período difícil. Joaquim Barbosa, seu antecessor, engrandeceu a Casa relatando e conduzindo o processo do mensalão e exacerbou malquerenças que podem surgir em salas onde 11 pessoas são obrigadas a trabalhar juntas, expondo opiniões conflitantes.

O clima no STF está mais para aquele que se viu no caminho do vestiário depois do jogo Brasil x Chile do que para a solenidade que a Casa merece. Há ministros que mal se falam. Pelo menos um evita conversa com o próprio Lewandowski.

Se o novo presidente do tribunal restabelecer a harmonia na corte, fará um serviço inestimável. É pessoa cordial, de bons modos. Comeu com elegância o pão que Asmodeu amassou quando defendeu suas posições durante o julgamento do mensalão. Foi patrulhado e insultado. Sofreu, mas não deu troco.

Há algumas semanas, Lewandowski pisou na bola. Estava interinamente na presidência e reclamou porque os colegas iniciaram a sessão sem ele. Como as sessões têm hora marcada para começar, a agenda da corte prevalece sobre os compromissos de seus integrantes. Ele reclamou, argumentando que se atrasara porque recebia o prefeito de Londres. Veio do ministro Marco Aurélio a lembrança de que se o governador de Brasília for a Londres, o presidente da corte do Reino Unido não atrasará a sessão.

Doação compulsória - DORA KRAMER

O ESTADÃO - 06/07

Com o fim do prazo legal para que governantes aproveitem os últimos momentos para posar ao lado de suas benfeitorias, na semana passada o país assistiu a um festival de inaugurações, lançamentos de pedras (nem sempre) fundamentais e solenidades do gênero patrocinadas por candidatos à reeleição. Ou melhor, sob o patrocínio compulsório do público pagante de impostos, uma vez que esses “eventos” governamentais são feitos na medida exata da necessidade do horário eleitoral de cada um deles. Fazem parte da chamada produção de conteúdo dos programas que irão ao ar a partir de agosto. Produção esta a ser paga pelos partidos com o dinheiro de doações de empresas, de pessoas físicas, do Fundo Partidário e da maneira como as agremiações acharem melhor, mas é responsabilidade delas.

O horário dito gratuito, como se sabe, já é devidamente financiado pelo público mediante a renúncia fiscal a que têm direito as empresas de comunicação pela cessão do espaço. Ocorre que, se parte do conteúdo é decorrente de atos de governo custeados pela máquina pública, os programas dos candidatos à reeleição também acabam sendo em parte pagos pelo contribuinte. Isso sem que ele seja informado nem que perceba sua condição de doador compulsório.

Tal deformação do conceito de igualdade de condições entre os candidatos a uma eleição, o abuso de poder e o uso indevido dos instrumentos de Estado ficaram muito nítidos na maratona de inaugurações da semana passada.

O mutirão da semana passada incluiu governadores, com destaque para Geraldo Alckmin, de São Paulo, que inaugurou obra incompleta do Rodoanel, e Luiz Fernando Pezão, do Rio, cuja agenda incluiu a entrega de um hospital com apenas 20% da capacidade de funcionamento.

Nenhum deles, contudo, superou em mobilização de recursos e esmero de espetáculo a presidente Dilma Rousseff. Ela teve uma semana intensa no quesito benfeitorias de última hora, mas o clímax deu-se na quinta-feira. Uma superprodução sob a batuta do marqueteiro João Santana, com o anúncio da entrega de 5.460 unidades do programa Minha Casa Minha Vida e a promessa de contratação de outras 2,75 milhões até o final deste ano para serem construídas a partir do início de 2015.

Promessa esta vã, a julgar pelo que apurou o jornal O Globo no Ministério das Cidades. Não há previsão para publicação da portaria para o detalhamento do programa para que as construtoras possam comprar terrenos, desenvolver e aprovar projetos. Segundo representantes do setor da construção civil, um projeto leva no mínimo seis meses para ficar pronto, o que já torna inviável o prazo dado por Dilma.

Alheia a esses detalhes da realidade, na quinta-feira, de Brasília, a presidente comandava no papel de âncora a entrega de casas em 11 cidades de sete estados e mais o Distrito Federal, onde estavam dez ministros estrategicamente colocados em bases eleitorais de seus respectivos interesses. O anúncio poderia ter sido feito no Palácio do Planalto. Não teria sido necessário que a Caixa Econômica Federal gastasse R$ 1 milhão com a montagem de palanques em 11 cidades, nem que a Empresa Brasil de Comunicações gastasse outro R$ 1 milhão com a transmissão da teleconferência.

Essa exorbitância em período tão especial autoriza a suposição de que por trás dele exista o propósito do uso e abuso de prerrogativas governamentais para outros fins. A menos que João Santana pretenda desperdiçar as imagens, o megaespetáculo não foi produzido só para gerar manchete do dia seguinte, o que teria um efeito passageiro. O aproveitamento do material no programa da candidata à reeleição atende ao objetivo de exaltar os feitos do governo.

O PT estima seus gastos com a campanha eleitoral em até R$ 290 milhões. Falta computar os recursos públicos com os quais o partido poderá contar, e já está contando, por meio de expedientes como esse.

Diagnóstico errado - RENATO ANDRADE

FOLHA DE SP - 06/07

BRASÍLIA - Ninguém no Palácio do Planalto ou na equipe de campanha da presidente Dilma Rousseff está disposto a assumir publicamente que a situação da economia brasileira está em franca deterioração.

Nos bastidores, porém, alguns assessores presidenciais reconhecem, há tempos, que a situação preocupa.

Um olhada rápida em números divulgados nas últimas semanas ajuda a entender um pouco o quadro.

A produção da indústria acumula três meses de queda seguida e o emprego começa a perder fôlego. Tivemos o pior maio dos últimos 22 anos.

A parada das fábricas reflete diretamente no ritmo de crescimento de toda a economia, que se arrasta.

Especialistas estimam que, na melhor das hipóteses, o país crescerá neste ano pouco mais de 1%.

E se a economia não cresce, o volume de dinheiro que entra nos cofres públicos diminui. A arrecadação federal de impostos caiu em maio --o primeiro tombo do ano.

Como o governo não consegue --ou não está disposto-- a reduzir seus gastos, o resultado final é desastroso para as contas públicas.

Nos primeiros cinco meses deste ano, o governo federal, os Estados e os municípios conseguiram economizar pouco mais de R$ 30 bilhões para reduzir a dívida pública.

O compromisso do ano é salvar R$ 99 bilhões. Difícil imaginar que a meta será alcançada sem os truques aplicados nos dois últimos anos.

Há tempos, empresários, economistas e especialistas reclamam da falta de rumo da política econômica.

A equipe do ministro Guido Mantega, entretanto, insiste que não há nada de errado com o caminho escolhido. Seguindo a cartilha em uso, tudo será resolvido no futuro.

Recomendo aos que pensam a economia dentro do governo a leitura da entrevista que o ministro Gilberto Carvalho deu a esta Folha.

Sem um bom diagnóstico da situação, não há como receitar um bom remédio para resolver os problemas.

O caldeirão das urnas - GAUDÊNCIO TORQUATO

O ESTADÃO - 06/07


Passados os lúdicos tempos da Copa, o país retornará ao ciclo da “opressão psíquica”, termo que Serge Tchakhotine usa, ao lado de outros, como “violação psíquica”, “maquinaria psíquica”, “impostura psíquica”, para explicar o tiroteio verbal a que será submetido o eleitorado brasileiro na arena que abrigará contendores até a luta de outubro, quando as urnas mostrarão quem viverá, morrerá ou será ferido na eleição mais emblemática das últimas décadas. A nomenclatura do cientista russo foi usada para estudar as “chicotadas psíquicas” de Hitler, que explicam a tirania a que submeteu o povo alemão, mas serve para mostrar a relação entre propaganda e política neste momento do uso intenso da palavra na competição pelo poder.

Mesmo levando em conta que a evolução social da massa impede que seja entorpecida como “um rebanho de carneiros que não se governa por si mesmo, devendo ser conduzido por entusiasmo e interesse”, como dizia Mussolini, é fato que parcela ponderável das camadas menos esclarecidas e até de segmentos mais elevados é muito influenciada pela propaganda política. Não por acaso, a conquista de maior espaço na mídia eleitoral foi o fator mais ponderado nas negociações para a formação da mais estrambótica frente de parcerias e alianças entre partidos e candidatos.

Afinal, que condimentos entram no caldeirão eleitoral, a ponto de atrair o apetite de milhões de pessoas de todas as classes? Vejamos alguns. O medo, por exemplo. Estudos de propaganda política revelam que os efeitos do medo são muito grandes ante situações de fome, sede, doença, depressão e até cansaço, o que explica a eficácia da linguagem da ameaça nas abordagens. Exerce o medo maior influência sobre camadas em precária situação econômica, contingentes esgotados ou amedrontados por diversos motivos. O desconhecido, a surpresa, o isolamento, a tensão agravam o estado de medo. Por isso mesmo, procura-se marcar candidatos com a pecha de contrários a programas assistenciais, como o Bolsa Família. É sabido que os valores econômicos e os interesses materiais, fundamento dos dois instintos de conservação do ser humano (combativo e nutritivo), lideram o rol de “alimentos psíquicos” que entram na panela eleitoral. O bolso, portanto, é a parte mais sensível do eleitor.

Harold Lasswell, estudioso norte-americano, coloca ainda no caldeirão que começa a ferver duas categorias assim designadas: os credenda e os miranda, ou seja, as coisas a serem acreditadas e as coisas a serem admiradas. A primeira comporta o discurso, as propostas, as promessas, repertório, aliás, hoje bastante desprestigiado. Ele parte da lógica que aponta para as prioridades das famílias, ou seja, as demandas urgentes e prementes do cotidiano: alimento barato, transporte fácil, rápido e confortável, escola de qualidade próxima à casa, hospital capaz de prestar bom atendimento, segurança nas ruas, harmonia comunitária. Já na galeria da admiração, emerge, primeiro, o candidato com sua história e valores que modulam o perfil: experiência, mudança, avanço, domínio temático, capacidade expressiva, simplicidade, maneira de se apresentar. Dependendo da forma com que são expostos, podem despertar atenção, gerar simpatia, empatia ou antipatia, elementos que carregam o voto do coração para uns e rejeição para outros. O eleitor, porém, percebe quando o candidato se esforça para acrescentar um palmo mais à sua altura, ou seja, mostrar a imagem bem diferente da identidade. O artificialismo exagerado não passa pelo crivo do eleitorado.

Os grupos de amigos, a vizinhança e a própria vida no bairro têm peso no processo decisório do eleitor, eis que funcionam como cola de pertinência social e do cotidiano comum, o que é importante para estabelecer as demandas comunitárias. Explica-se, assim, a proximidade como fator gerador da distritalização do voto, tendência crescente no país. As bases buscam cada vez mais candidatos que se identifiquem com as localidades, que são os centros da micro-política. Não é desprezível também o tempero dos partidos, principalmente nos fundões do território, onde ainda se vota de acordo com os costumes antigos e sob a égide de lideranças e famílias que repartem o espaço político e as estruturas de poder. Da mesma forma, é inegável a influência de pesquisas junto a alguns compartimentos, particularmente nas beiradas que agregam camadas incultas e embaladas pelo celofane de “vitórias” arrumadas por mapeamentos “fajutos” e de utilização eleitoreira. Em algumas regiões, pesquisa vira cabo eleitoral.

Questão instigante na propaganda política é a que procura distinguir a linguagem da emoção da linguagem da razão. “As pessoas que votam com o coração são mais numerosas que as que votam com a cabeça; as eleições são ganhas e perdidas pela emoção, não pela lógica”, proclama o famoso profissional de propaganda norte-americano, Joseph Napolitano. É verdade que a espetacularização da política, que se expande no bojo da sociedade de informação, procura maximizar as alavancas da adesão do eleitorado, o que implica adoção de signos que impactem o hemisfério emotivo do cérebro. Urge, porém, reconhecer a promoção educacional e social de grupos saídos das margens, que começam a fazer exame criterioso de candidaturas e escolha mais racional de perfis. Ou será que os 30 milhões de eleitores que ascenderam ao meio da pirâmide nos últimos 10 anos votam apenas com o coração?

Como se conclui, é imbricado o tecido sobre o qual se desenvolve a artilharia discursiva das campanhas. Pode-se até apostar no entorpecimento das massas por meio da “mágica da expressão” a cargo do marketing eleitoral. Mas a excitação, a animação, a indução, enfim, os fenômenos que explicam os comportamentos humanos ganham outras influências, a par da artilharia desfechada pela palavra. Sem esquecer que existe a força do imponderável, aquele vento que causa destruição quando entra pelas frestas eleitorais sem dar aviso prévio.

Gastança eleitoral - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 06/07
A divulgação do montante que os candidatos à Presidência da República e aos governos estaduais estimam gastar traz de volta a discussão do financiamento das campanhas eleitorais, que começaram oficialmente.
Aumentando a sensação desagradável, os gastos somam-se à verdadeira balburdia das siglas partidárias, a revelar que já não existem mais partidos nem programas a serem seguidos, mas apenas interesses de grupos ou individuais que transformaram as eleições em disputas mais econômicas do que programáticas.

São gastos estratosféricos, que na corrida presidencial tiveram um aumento de nada menos do que 50% em relação à campanha anterior, quatro anos atrás. Os 11 candidatos estimam gastos com a campanha eleitoral de cerca de R$ 1 bilhão. Só no Rio, a previsão de gastos com a campanha para governador é o triplo de 2010, podendo consumir R$ 180 milhões, e o mesmo deve acontecer nos demais estados da Federação.

Esta deve ser a última campanha eleitoral nos termos previstos na legislação atual para o financiamento eleitoral, pois o Supremo tribunal Federal (STF) já tem maioria para aprovar a proibição de financiamento por empresas privadas, o que deve levar o próximo Congresso a aprovar uma nova lei.

O Supremo tende a proibir qualquer decisão que importe em quebra da isonomia entre os concorrentes, e também em relação aos direitos dos cidadãos. O ministro Luiz Fux, relator da ação de inconstitucionalidade que está em julgamento, também declarou inconstitucionais os trechos da lei que limitam as doações em 10% do rendimento bruto de pessoas físicas e que permitem que os candidatos usem recursos próprios.

A ênfase no financiamento por meio de pessoas físicas, se prevalecer na legislação que o próximo Congresso aprovará, terá de ser acompanhada da permissão de contribuições pela internet para as campanhas eleitorais, coisa que ainda não existe, por incrível que pareça. E de um barateamento da campanha, com limitações ou a adoção do sistema distrital.

Já é histórico o exemplo dos eleitores americanos. Milhões de pessoas físicas fizeram doações pela internet para a campanha do candidato democrata Barack Obama em 2008; desses, cerca de 30% contribuíram com pequenas quantias de até US$ 20.

O financiamento público de campanha, que é o objetivo do PT, mas tem a objeção da maioria dos partidos por só se adequar ao sistema de lista fechada, já existe no Brasil, embora pouca gente se aperceba disso. Alguns números sobre o financiamento público que já existe: em 2012, os gastos eleitorais apurados pelo TSE ultrapassaram R$ 3,5 bilhões. Somente o horário eleitoral gratuito custou R$ 606 milhões aos contribuintes brasileiros.

Segundo o site Contas Abertas, já citado na coluna anteriormente, nos últimos 10 anos o Estado desembolsou mais de R$ 4 bilhões em compensações pelo uso do horário eleitoral.

Já o fundo partidário distribuiu aos partidos com representação no Congresso cerca de R$ 286 milhões. Estudos indicam que os gastos das campanhas eleitorais saíram de cerca de R$ 800 milhões em 2002 para quase R$ 5 bilhões em 2012, e pelo visto caminham para bater recorde este ano.

O problema é que os setores que concentram as doações são exatamente aqueles que precisam manter estreitas relações com o poder público, como as empreiteiras.

Pesquisa realizada pelo Kellogg Institute for International Studies demonstra que as empresas doadoras em campanhas eleitorais recebem, nos 33 primeiros meses após a eleição, o equivalente a 850% do valor doado em contratos com o poder público.

Especialistas também compararam as doações a um sistema de crédito para as empresas, que vão buscar a compensação mais tarde nos cofres públicos. Lucieni Pereira, auditora do TCU e presidente da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC) chamou a atenção para o que ocorre com a concessão de benefícios fiscais para atração de empresas, que seriam ao mesmo tempo, segundo especialistas denunciaram na audiência pública sobre o assunto no STF, mecanismo para atrair doações de campanha para os candidatos a governos estaduais.

O financiamento das campanhas eleitorais, como se vê, é um ponto fundamental de uma necessária reforma político-eleitoral, que será um dos temas principais do Congresso a ser eleito este ano pelas regras atuais.