domingo, abril 05, 2020

Descontrole - MARCOS LISBOA

FOLHA DE SP - 05/04

Grupos organizados buscam se aproveitar do tumulto para resolver problemas que nada têm a ver com a crise

Nesta fase difícil, pedidos de ajuda importantes são feitos para combater a pandemia e seus efeitos colaterais.

Inevitavelmente, porém, grupos organizados buscam se aproveitar do tumulto para resolver problemas que nada têm a ver com a crise, às custas do país.

A prioridade deve ser os gastos com saúde e com os grupos afetados pelo necessário distanciamento social. São indispensáveis recursos e técnica para transferir renda para os grupos vulneráveis, o que em um país com alta informalidade não será tarefa fácil, apesar do cadastro único.

As políticas para apoiar empresas e empregos também enfrentam imensos desafios. Há pequenas empresas fora do sistema tradicional de crédito. Deve-se ter cuidado para evitar o oportunismo usual de corporações que tentam compartilhar o benefício de crédito subsidiado.

Todos ficamos mais pobres, ao menos temporariamente. O que pode ser feito é minimizar as perdas dos grupos vulneráveis. Aqueles que conseguem sobreviver aos próximos meses, apesar dos prejuízos, devem fazê-lo sem onerar o governo, pois o aumento da dívida pública nos custará mais à frente.

As propostas mais preocupantes têm vindo de governadores. O Plano Mansueto está sendo remendado para transferir imensos benefícios para estados que não fizeram seu dever de casa.

Não é aceitável se aproveitar deste momento para empurrar para a sociedade os custos de anos de desequilíbrio. O Congresso já garantiu que as transferências para os estados e municípios não serão reduzidas durante a crise, apesar do país mais pobre.

Os governadores, porém, querem mais, como novas linhas de crédito, suspensão temporária do limite de despesa com pessoal e do pagamento das dívidas com a União, parcelamento dos precatórios até 2040, entre outros.

Em muitos países, os efeitos da crise são graves, mas vão passar e eles poderão voltar à normalidade, ainda que com uma dívida pública maior. Pelo andar da carruagem, aqui a degradação será mais severa.

Corremos o risco de terminar com uma dívida pública maior do que o necessário para cuidar da crise, o que resultará em prejuízos adicionais para o país nos próximos anos.

Além disso, a desorganização do setor produtivo ocasionada pela proliferação de liminares para interromper o pagamento de fornecedores, aluguéis e empréstimos pode comprometer a nossa economia e deixar sequelas que tornarão bastante difícil a recuperação.

Uma proposta. O Congresso apenas deveria aprovar, neste momento, gastos temporários e destinados exclusivamente aos programas de saúde pública e à mitigação dos efeitos colaterais da crise. Tudo o mais deveria ser vetado.


Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.

O presidente perde poderes - MÍRIAM LEITÃO

O Globo - 05/04

Presidente causa perturbação em meio à grave crise. Ainda assim, Congresso, Justiça, médicos, imprensa, prefeitos e governadores buscam uma saída


O presidente Bolsonaro está perdido em seu labirinto e isso ele mostra explicitamente nos atos do dia a dia. A última semana foi um bom exemplo. No domingo, ele foi às ruas estimular as pessoas a desobedecerem às orientações das autoridades de saúde. Na terça-feira, o conselho de governo, em longa reunião, conseguiu polir o pronunciamento que ele faria à noite. Amanheceu na quarta disposto a derrubar a obra dos seus conselheiros e postou vídeo falso que dizia haver desabastecimento na Ceasa de Minas. Na quinta, ele falou em demitir o ministro da Saúde, cujo trabalho tem alta aprovação popular. Várias vezes atacou governadores e, claro, culpou a imprensa. O presidente é um elemento perturbador no meio de uma crise devastadora.

Desde o início desta crise, Bolsonaro piorou. No episódio em que ele estimulou manifestações contra o Congresso, no domingo, 15 de março, o presidente foi aconselhado por várias pessoas do governo a não fazer isso, principalmente porque o surto do coronavírus estava entrando numa espiral. A uma das pessoas mais fiéis a ele no governo, e que sugeriu que ele desmobilizasse o ato, Bolsonaro deu uma resposta que revela bem o delírio persecutório em que vive mergulhado:

– Eu só tenho as ruas, a mídia quer me derrubar, o Rodrigo quer me derrubar, o Dória quer me derrubar. Eu não posso dizer para as ruas: vão pra casa. Eu preciso das ruas. Eu não estou estimulando, mas eles estão lá e eu abraço eles.

O Brasil estava entrando em período de grande padecimento e o que ocupava a cabeça do presidente era a ideia fixa de que todos são contra ele. E nem vê que as ruas estão se esvaziando. Ninguém é dono da rua, porque ela muda de lado.

Bolsonaro se perde em brigas laterais ou conflitos que ele mesmo inventa. Naquele primeiro pronunciamento em que disse que o Covid-19 era uma gripezinha, ele foi muito aconselhado dentro do Palácio a mudar o tom. Preferiu ouvir o grupo da milícia digital que tem sua sede dentro do próprio Palácio. Ele não apenas falou o que quis como continuou nas declarações rápidas demonstrando até a falta de empatia humana, ao tratar com desprezo as mortes ocorridas e por acontecer em decorrência da pandemia.

O pronunciamento da última terça-feira parecia uma mudança de rumo, mas o que houve de bom naquela fala foi enxertado pelos seus ministros. O objetivo de ir à TV que ele revelou à sua claque na porta do Palácio era disseminar a tese falsa de que o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) defendia a volta ao trabalho. Corrigido no mesmo dia por Tedros Adhanon, e contido no conselho de governo, Bolsonaro mesmo assim usou indevidamente as declarações do secretário-geral da OMC.

Seu comportamento irresponsável diante da crise o deixa isolado e o torna periférico no seu próprio governo. Ele se consome de ciúmes dos subordinados que brilham. Mas até as decisões que toma para impor limites no seu ministério, como mudar o formato do briefing diário da saúde, está tendo efeito bumerangue. A cada dia se vê ministros indo lá e afirmando o oposto do que o presidente diz. O ministro Eduardo Ramos na sexta-feira agradeceu à imprensa e ao Congresso e disse que tem falado com os estados, o ministro Mandetta várias vezes reforçou a orientação dos governadores, a ministra da Agricultura desmentiu que houvesse risco de desabastecimento.

O Congresso, os economistas, a imprensa, os médicos, os infectologistas, os governadores e os prefeitos empurraram o executivo na direção certa do distanciamento social, da ampliação da rede de proteção social aos mais vulneráveis, do aumento dos gastos com saúde. E agora a sociedade cobra prazos de execução das medidas, principalmente no socorro a quem mais precisa. As ameaças do presidente de determinar a volta ao trabalho estão sendo contidas pelas alertas da Justiça. Se baixar a ordem de volta à atividade, o Supremo impedirá. E isso com base no direito à saúde consagrado na Constituição e no princípio de que saúde pública é atribuição compartilhada entre União, estados e municípios. O país vai se governando. Ao presidente, resta o teatro na porta do Alvorada para uma claque cada vez mais reduzida e os robôs controlados pelo filho 02.

O bonito da democracia é isso: ela encontra seu caminho, mesmo nas piores situações como a que vivemos.

Política e falsificação - ROBERTO ROMANO

O Estado de S.Paulo - 05/04

Com ódio à liberdade de oposição e à imprensa, Bolsonaro segue a via da pequenez no mando



Em livro pouco discutido no Brasil, Jean Pierre Faye analisa um documento diplomático, bélico e político da Alemanha em conflito com a França no século 19. Falo do Despacho de Ems, que se liga a Bismarck. Em 13 de julho de 1870, Guilherme I reuniu-se com o embaixador francês. Do encontro resultou um comunicado em forma de telegrama, de imediato remetido ao Chanceler de Ferro. O político tomou o texto, cortou-o em pedaços e fez de certa declaração anódina um insulto à França. Rápido, ele enviou o documento falso para a imprensa europeia. Os dirigentes da Europa tiveram em mãos no dia seguinte uma bomba poderosa contra os tratos pacíficos. O suposto insulto à França nos trechos manipulados levou-a a declarar guerra à Alemanha.

Apenas 20 anos mais tarde Bismarck reconheceu ter falsificado o telegrama. Ele mesmo apresentou o seu truque. Mas já em 1873 um deputado alemão dizia claramente que o autor da mentira era o dirigente do país. Um jornal de Viena, em 1892, contou a maneira como foi deturpado o telegrama e citou as próprias sentenças de Bismarck sobre a proeza: do texto, diz ele, “deixei apenas a cabeça e a cauda. Assim o telegrama parecia algo completamente distinto. Li-o para Moltke e Roon segundo a nova versão. Ambos exclamaram: ‘Esplêndido, causará efeito!’. Almoçamos com o maior apetite”. Faye comenta: que uma falsificação tenha sido tomada pelos adversários como insulto, compreende-se. Mas que o rei prussiano, conhecedor do texto original, tenha acolhido a patranha é algo que mostra o poder das manipulações quando os ânimos assumiram a guerra da propaganda que antecede o morticínio de seres humanos.

O truque bismarckiano possibilitou uma guerra, contribuiu para unificar a Alemanha, piorou o sentimento antigermânico na França, ajudou a semear a 1.ª Guerra Mundial, que fortaleceu os ódios cujo fruto foi o nazismo. Falsificar notícias era prática comum dos políticos europeus, vezo cujo ápice se deu no reinado de Goebbels, inimigo dos jornais que não jurassem pela sua cartilha imunda. Goebbels foi capaz de manipular redações em favor do mando totalitário. As análises de Faye são complexas e ajudam a entender a falsificação das declarações oficiais em regimes que abolem as liberdades, a começar pela de imprensa. Além da edição francesa original, temos uma excelente tradução espanhola (Los Lenguajes Totalitarios, Ed. Taurus). Em nossa língua existe o volume da Editora Perspectiva, sob o título Introdução às linguagens Totalitárias: Teoria e Transformação do Relato.

Em 31 de março de 2020 o presidente Jair Bolsonaro falsificou um texto emitido pelo presidente da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a quarentena no combate ao coronavírus. O responsável pela instituição dizia ser obrigatória a ajuda aos que não têm renda, para que a medida seja bem-sucedida. Lépido, o nosso presidente “cortou a cabeça e a cauda” do texto e anunciou nas redes sociais a “tese”da OMS, que seria exatamente igual à sua, a reclusão vertical. E, claro, repisando a volta do comércio, da indústria, de todas as atividades econômicas e sociais à “normalidade”.

A prática de Bolsonaro não é inédita. E nenhuma originalidade existe na fabricação, por governantes, de fake news que os beneficiem. Desde a Grécia democrática existiram manipuladores de fatos e discursos. Um crítico poderoso de semelhantes boateiros é Platão. A guerra contra os demagogos e sofistas definiu a ética a ser assumida pelos que recusam o servilismo. O universo governamental desde então se divide entre os dirigentes que não reconhecem limites em falas e atos e os dirigidos para os quais o verdadeiro não é luxo, mas gênero de primeira necessidade.

Entre os que manipulam eventos e discursos, alguns chegam à condição de estadistas, para o bem e para o mal. É o caso de Bismarck, gênio político que beneficiou sua gente, por um lado, e a lançou no abismo da morte, por outro. O telegrama de Elms está inscrito entre os pontos relevantes da História moderna. Mas os pequenos artesãos do falso, como Goebbels, só ajudaram a apressar a morte de seu povo, tendo como prefácio a matança que levou ao Holocausto. Não existe falsificação inócua e todas produzem, como expõe Faye, os efeitos deletérios do poder que aspira a abolir limites éticos em seu exercício.

Com ódio à liberdade de oposição e à imprensa, Bolsonaro segue a via da pequenez no mando. Ele esquece, no entanto, a distância entre a sua falsificação e a de Bismarck. No século 19 não existiam rádio, TV, internet, redes sociais. Ainda era possível reunir jornalistas e veicular um texto adulterado como se fosse verdadeiro. Hoje não é possível fazer o mesmo: para além dos seguidores incondicionais, milhões e milhões de seres divergem do governante. Eles publicam o texto inteiro de todas as declarações. Mentir após falsificar uma fala ou ato é tarefa impossível.

Uma nota final: Bismarck era Bismarck, Bolsonaro é Bolsonaro.

*Professor da Unicamp, é autor de 'Razões de Estado e outros estados da razão' (Perspectiva)

Os robôs do presidente - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 05/04

É grave ver Bolsonaro perto de milícias virtuais, que se servem de manobras digitais para atacar o ambiente de liberdade


Mais da metade das publicações no Twitter favoráveis ao presidente Jair Bolsonaro, por ocasião das manifestações do dia 15 de março, foi realizada por robôs, revela estudo da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Após analisar mais de 3 milhões de mensagens no Twitter, o levantamento ajuda a dar uma dimensão mais exata do tipo de apoio que o presidente Jair Bolsonaro tem nas redes sociais, bem como a expor os efeitos deletérios da manipulação digital.

Segundo o estudo, a hashtag #bolsonaroday foi a mais compartilhada na plataforma do Twitter no dia 15 de março de 2020, com cerca de 1,2 milhão de menções. “Os dados apontam uma ação expressiva de perfis não humanos – tanto de robôs, contas automatizadas, como de ciborgues, contas semiautomatizadas – nas publicações do Twitter, chegando a atingir picos de 55% de automatização das postagens no dia do evento”, afirma o estudo.

Em geral, as pessoas que usam o Twitter publicam cerca de três a dez tuítes por dia. Os usuários mais ativos chegam a publicar até 50 tuítes por dia. No dia 15 de março, cada robô favorável ao presidente Jair Bolsonaro publicou, em média, 700 mensagens com a hashtag #bolsonaroday. Houve casos de robôs com mais de 1,2 mil tuítes naquele dia.

O porcentual de 55% de interação por robôs é uma taxa incrivelmente alta, que supera amplamente outros casos recentes de manipulação do debate público por instrumentos digitais. Na eleição do presidente Donald Trump, por exemplo, as contas automatizadas geraram aproximadamente 18% do tráfego do Twitter, segundo o Internet Institute da Universidade de Oxford. No caso do Brexit, dois pesquisadores, Samuel Woolley e Bence Kollanyi, avaliaram que 32% das publicações no Twitter favoráveis à saída da Grã-Bretanha da União Europeia foram realizadas por contas desproporcionalmente ativas, o que indica algum grau de automação.

O estudo da FESPSP e da UFRJ relata algumas evidências empíricas sobre o papel desempenhado pelos robôs nas redes sociais. “A disseminação de mensagens e orquestração de campanhas online com o uso de automação e inteligência artificial tem consequências sociais, políticas e culturais relevantes: (a) sequestram a atenção da rede de usuários e ajudam a manipular os algoritmos das plataformas; (b) criam cascatas de informação que tendem a influenciar o comportamento de outros usuários por meio de contágio; (c) contribuem para a distorção e manipulação da opinião pública em constante construção e mutação; (d) pautam o debate e as conversações online e offline”. O uso dos robôs não apenas falsifica o tamanho do apoio ao presidente Bolsonaro, como deturpa todo o espaço público de diálogo, debate e informação.

Outro ponto destacado no estudo é o uso da estratégia de “campanha permanente” nas redes sociais pelos bolsonaristas, “com hashtags e mensagens cujo apelo, frequência e quantidade são típicos de períodos de campanha, incluindo alusão às eleições presidenciais de 2022 e 2026”. Entre as ações da campanha permanente está a “ativação constante da militância virtual para se defender e atacar seus adversários e o uso de narrativas de testemunho de diferentes atores sociais para a construção ‘do bem e do mal’”, diz o estudo. Um dos alvos mais frequentes dos bolsonaristas é o Supremo Tribunal Federal (STF). “Ainda que o Congresso tenha ganhado maior destaque mais recentemente, a campanha permanente se nutre do universo lavajatista que vê no STF um obstáculo para a continuidade da operação, além da questão da prisão em segunda instância”, aponta o estudo.

Os robôs bolsonaristas não só apoiam o presidente Bolsonaro, como atacam as instituições. Se é um alívio saber que muito dessa movimentação contra o Estado Democrático de Direito não vem de pessoas reais – é mera atuação de robôs –, é grave ver o presidente Bolsonaro tão próximo dessas milícias virtuais, que se servem de manobras digitais para atacar o ambiente de liberdade e diálogo próprio de uma democracia.

Durante e depois da crise - FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

ESTADÃO/O GLOBO - 05/04

Abra-se o Tesouro para garantir a sobrevivência das pessoas e empresas, depois se vê como pagar


Estamos atravessando tempos bicudos. Não só por causa do coronavírus, mas também porque há um vazio político no mundo. Quando não, há uma histeria direitista sem que se veja o “outro lado” do espectro. Ou sumiu, ou os tempos são outros e mesmo a antiga divisão, que persiste, entre esquerda e direita - com suas variantes ao redor de um centro abstrato - não dá mais conta das reais adversidades do mundo contemporâneo: aquecimento global, substituição de mão de obra por “máquinas inteligentes” e agora, como se fossem poucas as tormentas, as pandemias.

Estou, como bom cidadão - e idoso -, fazendo esforço para me isolar. Confesso que ando cansado de ouvir tanta gente, a toda hora, falando de doenças e mortes. Não me refiro aos especialistas, como o ministro da Saúde, que precisam mesmo falar. Ele tem sido competente, claro e sensível às necessidades do momento. Certos presidentes melhor que não falem, pois falam e “desfalam” ao sabor das circunstâncias, despreparados para entender o presente e, mais ainda, para projetar o futuro.

Sei que é difícil. Na última sexta-feira, assisti no Zoom (ah, quantos inventos de interlocução sem a presença das pessoas foram criados no mundo e como são úteis...) a uma discussão, organizada pela Fundação FHC, entre o ex-embaixador do Brasil na China Marcos Caramuru e um especialista americano em economia chinesa, Arthur Kroeber.

Além dos impactos econômicos da pandemia, discutiram o que poderá acontecer com a geopolítica mundial depois da crise. Kroeber afirmou que a crise reforça a posição dos setores mais duros da sociedade e do governo americano, que veem na China uma ameaça, um vírus a ser contido. O embaixador Caramuru acredita que, se essa visão prevalecer nos Estados Unidos, crescerá a influência chinesa no mundo. Para ele, só os Estados Unidos veem a China como adversária implacável da paz e da prosperidade. Os demais países - nós incluídos - deveriam aproveitar os espaços econômicos no futuro para aumentar nossas exportações e induzir os chineses a fazerem mais investimentos aqui.

É certo que é preciso pensar no depois. Os países e seus povos não vão acabar. A crise virótica, por mais difícil e custosa que seja em termos de vidas e de recursos, um dia vai passar. Mas, e antes disso, durante a pandemia? O óbvio já disse acima e a maioria das pessoas sabe e compartilha: nada, se possível, de ir à rua ou juntar-se com outras pessoas. Estamos todos (os que podemos...) como prisioneiros, não por ordem da Justiça ou pelo arbítrio dos poderosos, mas para tentarmos nos salvar e salvar os outros.

Aproveitemos para pensar no estilo de vida que vivemos. A solidariedade, no cotidiano da maioria das pessoas, transformou-se em mera frase, sem correspondência em atos. Por que não aproveitar a prisão voluntária para pensarmos um pouco mais sobre nós mesmos, nossa família, os amigos, os vizinhos e a sociedade mais ampla?

Sei que para alguns a adaptação em casa é mais fácil. Eu próprio aproveito para escrever e ler. Mas, e as pessoas que vivem nas favelas ou nas periferias sem verde algum, apinhadas sob um mesmo teto? E as que perderão o emprego como consequência indireta do coronavírus? Portanto, ao mesmo tempo que mergulharmos em nossa consciência para ver se ainda somos humanos, é hora de pensar também em como transformar em gesto a intenção de ser solidário. Não faltam boas iniciativas da sociedade civil para angariar e canalizar doações.

Sem diminuir a importância dessas iniciativas, a ação decisiva é dos governos. Os economistas não sabem qual será a profundidade da crise e em quanto tempo virá a recuperação. Mas num ponto a maioria concorda: às favas (por ora!) a ortodoxia e os ajustes fiscais. Voltamos aos tempos de Keynes e, quem sabe, os mais apressados deixarão de jogar os “social-democratas” na lata de lixo da História.

Os governos, e não só o daqui, começam a perceber que é melhor gastar já e salvar vidas do que manter a higidez fiscal e produzir cadáveres e depressão econômica. A dívida pública vai aumentar. Depois se verá como pagá-la. Este se é dúbio: em geral a maior parte da conta vai para o conjunto da população, e não para os que mais podem. Terá de haver mobilização política para que desta vez seja diferente.

Que o Tesouro se abra (e se já estiver vazio, que se endivide ainda mais). Com um porém: que os governos usem bem o dinheiro e não transformem gastos extraordinários em gastos permanentes. Melhor haver um “orçamento de guerra” do que criar bazucas permanentes contra o Tesouro.

É disto que se trata: reforçar estruturalmente a saúde pública e a ciência básica, fazer gastos extraordinários para garantir a sobrevivência das pessoas e das empresas mais vulneráveis e, mais à frente, distribuir com equidade a carga de impostos para reduzir o déficit e a dívida pública, que vão crescer inevitavelmente.

SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA