terça-feira, fevereiro 03, 2015

Capitalismo, o nosso e o deles - CLÓVIS ROSSI

FOLHA DE SP - 03/02

Há um chocante contraste entre as prioridades de Obama e de Dilma para os próximos anos


É chocante o contraste entre as prioridades desenhadas para o futuro imediato pelos governos de Barack Obama e de Dilma Rousseff.

Na teoria, um país emergente como o Brasil deveria ter o desenvolvimentismo como primeiro ponto de sua agenda. Já a uma economia madura como a norte-americana bastaria, sempre em tese, apenas surfar nas águas da estabilidade.

No entanto, Barack Obama chega a anunciar, nas mensagens que acompanham sua proposta orçamentária para os dois anos finais de mandato, o que chama de capitalismo do século 21.

Dilma Rousseff, ao contrário, se vê obrigada, pelos erros cometidos no primeiro mandato, a adotar uma agenda do século 20, caracterizada pela prioridade ao ajuste das contas públicas. Ajuste necessário, sem dúvida, mas que fica a anos-luz de qualquer possibilidade, por si só, de levar o país a finalmente emergir no século 21.

Mais contrastes: Obama afirma que criar empregos que paguem bons salários é o melhor caminho para fazer crescer a economia e a classe média. A propósito: o tal capitalismo do século 21 seria o capitalismo para a classe média.

No Brasil, ao contrário, os empregos que brotam são, principalmente, os de baixos salários. E a classe média, a que cresceu nos anos Lula e a que sempre existiu, é quem paga o custo maior do ajuste (ricos, é bom deixar claro, quase sempre escapam dos ajustes).

Nos EUA, Obama está propondo um imposto, a ser cobrado uma única vez, sobre os ganhos das multinacionais norte-americanas no exterior, além de aumentar de 23,8% para 28% a taxação máxima sobre capital e dividendos.

O dinheiro será empregado na melhoria da infraestrutura, uma espécie de PAC gringo, com investimentos de US$ 478 bilhões (R$ 1,3 trilhão). Por mais que a infraestrutura norte-americana tenha se deteriorado, é superior à brasileira, para cujo conserto, no entanto, não se vê dinheiro novo. Nem velho, aliás, ainda mais agora que a Petrobras, grande investidora no passado, anuncia que está encolhendo.

Enquanto o Brasil se concentra na austeridade mesmo em uma economia em desaceleração (ou coisa pior), Obama anuncia que, "para competir na economia do século 21 e para fazer da América um ímã para criação de emprego e oportunidade, necessitamos investir na inovação, fortalecer nossa base manufatureira [a do Brasil encolhe], manter nossa nação na ponta do avanço tecnológico, e líder no desenvolvimento de alternativas energéticas limpas e na promoção de eficiência energética" (no Brasil, o que se comenta é o risco de racionamento --e não só de energia).

Pode ser tudo parolagem, como diria Elio Gaspari, mas, parolagem por parolagem, é mais sedutora a de Obama, não? Ao menos põe esperança de melhores dias no horizonte. Como se fosse pouco, Obama mostra uma ponta de simpatia pelo novo governo grego e sua rejeição à austeridade. "Em algum momento, é necessária uma estratégia de crescimento para poder pagar suas dívidas", disse o presidente à CNN.

É essa estratégia que faltou na Grécia e falta no Brasil.

O começo do fim - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 03/12

Mais uma etapa da desconstrução da hegemonia petista foi cumprida na noite de domingo com o alijamento do partido das principais funções da Câmara, como presidências de comissões ou postos na nova direção da Mesa, que será presidida, contra a vontade do Palácio do Planalto, pelo peemedebista Eduardo Cunha, que transformou a maioria megalômana que o governo teria teoricamente na Câmara em minoria de 136 votos, menos de 1/3 do plenário.
O governo, em uma só eleição, perdeu o controle que sempre tentou manter sobre o Legislativo e já não é possível garantir que CPIs perigosas para ele, como a da Petrobras, deixarão de funcionar, ou terão sua constituição controlada pelo governo. Mesmo por que já não se sabe mais quem é governo e quem é oposição na Câmara, e tudo terá que ser negociado ponto a ponto, com ministros responsáveis pela articulação política tendo saído desgastados desse embate para a presidência da Câmara.

O ministro em teoria responsável maior pelas relações institucionais, o petista Pepe Vargas, que já não tinha o apoio do próprio PT, mostrou que não se sai bem também com os demais aliados. Ainda provocou Cunha ao dizer que o presidente da Câmara "pode muito, mas não pode tudo", o que é uma verdade, mas o muito que ele pode é mais do que Pepe parece perceber.

Não se saiu melhor o Chefe do Gabinete Civil Aloísio Mercadante em sua primeira prova de fogo como o mais importante ministro do segundo governo Dilma, e potencial candidato à sua sucessão. O PT mal começa o governo já parece sem capacidade para comandar uma base aliada que desde a eleição presidencial dava sinais de que não caminharia unida nesse segundo mandato, conseguido às custas de desgastes institucionais que cobrarão seu custo ao longo dele.

A presidente Dilma, por sua vez, ampliou a distância que a separa do ex-presidente Lula, que tentou um acordo com o PMDB temendo a derrota, que afinal veio no primeiro turno, maior do que previam os articuladores governistas. O que separa Lula de Dilma não são princípios e valores, mas o pragmatismo, que o ex-presidente tem de sobra e a atual, não.

A disputa com o PMDB, que volta a ocupar as presidências da Câmara e do Senado, leva o Palácio do Planalto a uma situação de confronto que não serve aos seus interesses imediatos e, ao contrário, serve aos do PMDB, que se prepara para apresentar candidatura própria em 2018 ou, no limite, pode ter a presidência da República no seu colo caso as trapaças da sorte encaminhem o processo de desgaste petista para um desfecho político provocado pelo julgamento do petrolão.

A presidente Dilma tem horror a Eduardo Cunha, dizem, por sua característica marcadamente fisiológica, e teria razão se fosse esse o motivo. Mas, na presidência da República, e dirigindo um governo montado na base do fisiologismo, Dilma não tem mais o direito de alegar questões éticas para tomar decisões políticas.

Desde quando era a chefe do Gabinete Civil de Lula, pelo menos, ela sabe como o jogo do poder é jogado e já teve a experiência dolorosa no seu primeiro governo de ter que chamar de volta ao ministério partidos que haviam sido expulsos por questões éticas. Ganhou as duas eleições a bordo de uma aliança política construída à base de mensalões e petrolões, e já não tem mais condições de convencer ninguém de que é contra esses métodos.

Eduardo Cunha de um lado, potencialmente de oposição, e Renan Calheiros de outro, potencialmente de situação, podem trocar de lado com a maior tranquilidade, e representam a maneira de fazer política do PMDB. No embate entre correntes dissidentes nas duas eleições, o DEM assumiu sua vontade de derrotar o PT e foi com Cunha já no primeiro turno.

O PSDB iria com ele no segundo turno, mas seguiu a máxima expressa pelo senador José Serra de que para derrotar o PT não vale qualquer coisa. Arlindo Chinaglia achou que era apoio à sua candidatura, mas na realidade Serra estava acompanhando a orientação do presidente do partido, o senador Aécio Neves, que levou os tucanos a apoiar Julio Delgado para dificultar a volta do PSB ao seio governista.

PSDB e PSB fizeram a coisa certa, apresentaram alternativas às candidaturas favoritas, e ajudaram a derrotar o governo, que agora tem uma base de apoio imprevisível para anos políticos imprevisíveis.

Prisão esportiva - RENATO ZUPO

O ESTADO DE S.PAULO - 03/02


Um empresário de Mato Grosso foi assaltado em casa. Durante o roubo seu celular tocou. Um dos ladrões se assustou e o crivou de balas, ceifando uma vida integralmente dedicada ao trabalho. O espantoso é que o latrocida, ainda jovem adulto, já acumulava 21 prisões pela prática de roubos, homicídio e tráfico de drogas, todos delitos gravíssimos.

Ora, 21 prisões em sequência significam igual número de liberdades concedidas, todas obviamente por força de decisões judiciais. Nessa espécie de crime, o delegado de polícia não pode conceder liberdade mediante o pagamento de fiança. Os motivos dessas solturas não são de meu conhecimento, mas a reiteração com que foram concedidas certamente tem uma origem: o garantismo judicial. Ouso supor que o tal assaltante deve ter sido solto diversas vezes pelos motivos de sempre, que abundam nos Fóruns do País: excesso de prazo, primariedade ou porque sua prisão foi substituída por recolhimento domiciliar, cestas básicas e tornozeleiras eletrônicas. Isso 21 vezes.

É absurdo que um elemento de extrema periculosidade e com tamanha e reconhecida propensão à prática de crimes graves tenha angariado várias vezes a dádiva judicial de sua liberdade. Sou magistrado e sei que nenhuma lei, nenhuma Constituição garante tamanha impunidade. Não há desculpa para um Estado garantista que só garante liberdades para o lado armado e bandido da sociedade. Nossas leis não têm essa culpa. O legislador penal, com todas as suas mazelas e seus defeitos, soube fazer o dever de casa: deixou ao encargo do juiz aquilatar a necessidade e a conveniência da prisão, afirmou que a prisão somente pode ser substituída por outra medida menos gravosa se esta última for suficiente para a contenção do delinquente e determinou expressamente que presos por tráfico de drogas e por outros delitos hediondos a princípio não têm direito à liberdade provisória ou ao cumprimento de penas alternativas.

Desanima as polícias e o Ministério Público que os juízes e tribunais teimem em legislar, fazendo letra morta dos dispositivos legais que procuram conter a criminalidade. É isso que cria a prisão esportiva. Tal como na pesca esportiva, no "pesque e solte", a extrema leniência judiciária com o criminoso gera por aqui o "prenda e solte". Conduzido o suspeito à delegacia, se não é solto imediatamente pelo delegado, acaba libertado horas depois pelo juiz de Direito.

O berço dessa interpretação garantista da lei penal são os tribunais superiores, liderados, obviamente, pelo Supremo Tribunal Federal, que, por exemplo, determinou que o artigo 44 da Lei de Tóxicos - que impede a soltura do suspeito flagrado de crime de tráfico de drogas - é inconstitucional porque fere, dentre outros, os princípios da presunção da inocência e do devido processo legal. Ao contrário, esse entendimento é que conflita com a Constituição federal, porque sobrepõe o direito individual ao coletivo. Os tribunais dos Estados acompanharam esse entendimento talvez porque réus presos signifiquem mais gastos públicos, forçando uma tramitação processual mais célere e prejudicando estatísticas de produtividade. É uma prática alicerçada nas velhas teorias de que o cidadão criminoso é uma vítima da sociedade, que devemos educar, em vez de punir, que o Direito Penal não é a solução para as mazelas sociais que geram o criminoso, e outras velhas cantilenas.

A questão da primariedade, aliás, é outra utopia criada por nossos juízes e tribunais à margem da legislação penal. Em todos os momentos em que faz alusão aos bons antecedentes dos acusados de crimes, o legislador faz questão de enunciar claramente que esses requisitos são dois e, portanto, distintos. Para a jurisprudência em voga, o cidadão só pode ser considerado detentor de maus antecedentes se já foi condenado em sentença da qual não caiba mais recurso. Esse é justamente o conceito de reincidência, porque os maus antecedentes decorrem simplesmente da existência de apontamentos desabonadores pairando sobre o passado do cidadão, registros de inquéritos e ações penais já extintas ou em andamento contra o indivíduo. Dessa anomalia decorre a conclusão grotesca de que, na prática, quase todo réu é primário! Será que a intenção dos intérpretes das normas e das autoridades públicas é esvaziar cadeias a qualquer preço? Por certo é mais econômico, mas tudo será sempre uma questão de dinheiro?

Nos congressos de magistrados e cursos de capacitação judicial ouvimos reiteradas vezes que nossa função é a pacificação social. Só pacifica, porém, quem coíbe a violência, não quem alimenta a impunidade. Há uma forte tendência judicial, infelizmente transformada em realidade, de tornar o processo uma luta para absolver o acusado. O magistrado é doutrinado para analisar o processo sob o ponto de vista da defesa e, de fio a pavio, esquadrinhando tecnicalidades e os indícios que possam tornar a ação penal um caminho sempre propenso à absolvição. Na verdade, o espírito da lei é bem outro: o processo penal é acusatório. O réu é que tem de se desvencilhar da acusação e das provas que a ensejam. O juiz excessivamente garantista torna as vítimas indefesas e dá ao cidadão comum a impressão exata de que o nosso país é uma casa de mãe Joana onde as pessoas de bem são as únicas obrigadas a cumprir leis.

É fato que a lei penal às vezes é falha, mas não é ela que manda soltar criminoso violento. São os magistrados que o fazem, por motivações mais sociológicas e filantrópicas do que jurídicas. Não convence mais o argumento de que cadeia não conserta o criminoso. No cárcere é que delinquentes devem ser corrigidos e para que isso seja possível, basta que o Poder Executivo construa e mantenha estabelecimentos prisionais decentes. Afinal, os impostos altíssimos que pagamos são também para custear o sistema prisional.