domingo, abril 12, 2020

O carrinho do súper e você - MARTHA MEDEIROS

ZERO HORA - RS - 12/04


O CARRINHO ENTREGA
É possível identificar o estilo de vida de alguém analisando suas compras no súper
Nos primeiros dias da crise, quando a população invadiu os supermercados para se abastecer, os carrinhos deduraram os mais egoístas


Normalmente, vou bastante ao supermercado. Duas vezes por semana, no mínimo. As pessoas estão acostumadas a me encontrar pelos corredores e, quando falam comigo, são sempre muito simpáticas. Mas um cliente, certa vez, conseguiu me constranger. Sem dar bom dia e sem se apresentar, fitou meu carrinho com os dois olhos arregalados e exclamou num tom de voz muito acima do razoável: "Vamos ver o que a Martha Medeiros come!". Fiquei muda, perplexa. Quando ele fez menção de tocar nas minhas compras, desviei e dei-lhe as costas - não disse o que ele merecia escutar. Sou covarde diante da iminência de um barraco.

Foi quando me dei conta do quão íntimo é o conteúdo dos nossos carrinhos. É possível identificar o estilo de vida de uma pessoa apenas analisando suas compras regulares no súper: se mora sozinha, se tem crianças em casa, se tem filhos adolescentes, se tem muito dinheiro, se está de dieta, se é vegetariana. No filme Divã, a personagem de Lilia Cabral, recém-separada, encontra o ex-marido entre as gôndolas do súper e não resiste em dar uma conferida no carrinho dele. Repara que o ex comprou uma garrafa de um vinho caro. Espumando de raiva, mas mantendo o sangue frio, comenta: "Humm, comprando vinho de R$ 80 ... quando éramos casados o teto era R$ 35". Ele dá uma desculpa qualquer, mas não adianta: ela acaba de descobrir que o bandido já está namorando.

O carrinho entrega tudo: se você só come carne de segunda, se tem cachorro, se não se preocupa com o peso, se está menstruada, se depila com gilete, se pretende maratonar uma série no sofá com um balde de pipoca no colo ou se vai dar uma festa em casa - não é possível que aquela quantidade de garrafas de espumante seja apenas para fazer estoque.

Nos primeiros dias da crise do coronavírus, quando a população invadiu os supermercados para se abastecer, os carrinhos deduraram os mais egoístas. Clientes que conduziam carrinhos abarrotados de papel higiênico e garrafas de álcool eram vistos como inimigos da população, pessoas sem empatia. Da mesma forma, mas invertida, me doeu ver uma senhorinha de uns quase 90 anos comprar apenas um litro de leite, um pacote de macarrão, dois tomates, uma cebola e três sabonetes. Nem precisou de carrinho, a cestinha deu conta.

Entre este momento em que escrevo até o momento em que serei lida transcorrerá uma semana. Não sei como estará o mundo, nem o Brasil, já que as notícias têm sido atualizadas a cada 10 minutos. Nossa vida melhorou? Piorou? Seja como for, espero o básico: que a gente consiga continuar se abastecendo de comida e de respeito pelos outros, que é o que faz uma sociedade doente receber alta.

Estar em casa - LYA LUFT

ZERO HORA - RS - 12/04
Talvez a vida, enigmática sempre, queira nos mostrar que é hora de virarmos aprendizes


Nestes tempos esquisitos, que deixam todo mundo assustado sem saber nada direito - e às vezes nem querendo saber mesmo, pois seria dramático demais -, tenho refletido sobre a dificuldade das pessoas de ficarem em casa.

Pior ainda, com mulher, marido, filhos. Uma das loucuras deste nosso universo, dito moderno, é a despersonalização dos lugares, dos afetos, do convívio. A casa, o dito lar, deveria ser o melhor lugar do mundo. Simples ou luxuoso, longe, pertinho, decorado por profissional ou, de preferência, conforme gostos e amores dos donos da casa, deveria ser, sim, nosso lugar preferido.

Um pequeno paraíso, ainda que com geladeira velha, sofá cambaio, tapete puído, cortinas desbotadas, chuveiro pingando, mas... nosso. Alugado, emprestado, comprado e pago, mas... nosso. Meu lugar no mundo, onde posso ter o privilégio de conviver com as pessoas que amo. O difícil, complicado, essencial grupo familiar, ou até mesmo sozinho.

"O que é família para a senhora?", me perguntaram certa vez. Pois. para mim, família é aquele grupo de pessoas - às vezes uma pessoa só - que eu sei que, mesmo se não me entendem, me respeitam e gostam de mim. Simples? Não, com certeza. Complicado, chato, difícil de construir, trágico de se perder. Mas a gente corre tanto atrás de coisas cobiçadas, muitas vezes desnecessárias, que o convívio simples, tranquilo, alegre ou briguento com família e amores passa a ser algo inusitado.

"Como? Agora tenho de ficar em casa? Aguentar mulher, marido, sogra, mãe, filhos barulhentos, o dia inteiro? Lidar com o tédio, pois não sei o que fazer?"

Que civilização no mínimo bizarra nos tornamos?

Assustados - embora muitos digam que de jeito nenhum -, ficamos mais agressivos. Confundimos política com saúde e sobrevivência, esperneamos feito a criança que cai, se machuca e, quando alguém chega para ajudar, fica furiosa, a raiva disfarçando o medo.

Com essa tragédia viral que nos assola de um ponto da Terra a outro, talvez a vida, enigmática sempre, queira nos mostrar que é hora de virarmos aprendizes: aprendizes de modos diferentes, melhores, de ser e viver, e de conviver. Quem sabe, depois de passada essa verdadeira peste - pior do que a Negra da Idade Média porque ataca muitíssimo mais gente -, acordaremos uma humanidade mais amorosa, mais amiga e tolerante, menos atrapalhada, menos apressada, menos insatisfeita, menos raivosa... menos pronta a criticar, a apontar o dedo acusador... quem sabe?

Aliás, por falar em aprendizado: Vicente e eu estamos celebrando 17 anos de casados. Assim nos consideramos, desde quando nos vimos num almoço no British. Anos de pequenos terremotos e tsunamis, de grandes e belos pores do sol e auroras, experiência única de crescimento humano já bem depois da juventude. Tolerância com defeitos, admiração e respeito por qualidades (a cada dia descobrimos novas).

Então, nesta nossa data, quero dizer, Vicente: é bom estar em casa com você. E para todos os leitores: uma boa Páscoa.

O bêbado e a borboleta - LUIZ CARLOS AZEDO

Correio Braziliense - 12/04

“Desafiar o novo coronavírus se tornou uma espécie de obsessão para o presidente da República, que se comporta como quem adquiriu imunidade contra a doença”



No livro O revólver que sempre dispara (Casa Amarela), Emanuel Ferraz Vespucci analisa as causas, os comportamentos e as consequências para a saúde de diversas dependências químicas, inclusive o alcoolismo e o tabagismo. É um livro despido de preconceito e, do ponto de vista clínico, como não poderia deixar de ser, serve de referência para os que lidam com o problema: usuários em busca de tratamento, seus familiares e terapeutas. O livro explica de maneira clara como as diversas drogas causam dependência física e psicológica, os problemas que acarretam e as maneiras de enfrentá-los, sem moralismo. A perda de controle sobre o álcool, a cocaína, o crack, a maconha, morfina, calmantes, inibidores de apetite e outros psicotrópicos é um problema muito mais amplo do que se imagina.

A dependência funciona como uma roleta russa. Em algum momento a bala que está no cilindro do revólver será disparada, na medida em que o sujeito arrisca mais uma vez. Ou seja, o acaso tem um limite, quanto maior a frequência, maior a probabilidade de ocorrência. Por causa da dependência, algo grave acontecerá na vida da pessoa, pode ser um acidente de carro, a perda do emprego, um surto psicótico, um infarto.

O que interessa aqui é a analogia da roleta-russa, ou seja, do revólver que sempre dispara. Durante a pandemia de Covid-19, por causa do risco de contaminação, sair de casa é uma espécie de roleta russa, mesmo que a pessoa utilize máscaras e luvas. Acontece que o presidente da República — com o objetivo declarado de desmoralizar a política de distanciamento social preconizada pelas autoridades médicas, inclusive seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e responsabilizar governadores e prefeitos pela recessão econômica — resolveu sair às ruas com frequência e, nesses passeios, visitar o comércio local para estimular proprietários e consumidores a manterem uma vida normal. Bolsonaro ignora uma epidemia que está matando mais de 100 pessoas por dia no Brasil, o equivalente a um desastre de grandes proporções.

Desafiar o novo coronavírus se tornou uma espécie de obsessão para o presidente, que se comporta como quem adquiriu imunidade contra a doença, como acontece com aqueles que já foram contaminados, se recuperaram e adquiriram anticorpos ou que, por qualquer outra razão, têm uma sistema imunológico mais robusto, geralmente mais jovens. Não se sabe se o presidente está imunizado; ele se recusa a revelar os resultados dos exames que fez. Bolsonaro age como um jogador compulsivo, o que não deixa de ser uma dependência, sem levar em conta que a maioria das pessoas não está preparada para lidar com o aleatório.


Teoria do caos

É aí que chegamos a O andar do bêbado (Zahar), o instigante livro do físico Leonard Mlodinow, do Instituto de Tecnologia da Califórnia, sobre o acaso na vida das pessoas, ou melhor, sobre como funciona a aleatoriedade. O novo coronavírus se multiplica como um “Efeito Borboleta”, descoberto em 1960, pelo matemático Edward Lorenz, base para a Teoria do Caos. Mostra como pequenas alterações nas condições iniciais de grandes sistemas podem gerar transformações drásticas e significativas.

Lorenz, que também era meteorologista, realizava cálculos relacionado a padrões climáticos num computador. Em vez de colocar 0,000001, conforme fez na primeira vez, ele colocou 0,0001, alterando completamente o resultado da simulação, como se o bater de asas de uma borboleta na Austrália provocasse um furacão no Caribe. Foi o que aconteceu com o coronavírus na Alemanha e na Coreia do Sul, países que mais bem monitoraram a epidemia e conseguiram mantê-la sobre controle, com testes em massa e hospitalização dos contaminados. No primeiro caso, bastou que uma pessoa contaminada usasse o saleiro num almoço de família para a epidemia se propagar; no segundo, um único paciente, de 30 casos confirmados, escapou do isolamento e disseminou a doença.

Na Sexta-feira da Paixão contabilizamos 1.056 mortes e 19.638 casos confirmados, 44 dias após o primeiro caso registrado no país e 24 dias depois do registro da primeira morte. São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Ceará e Amazonas estão em risco de colapso do sistema de saúde pública. Numa hora em que o país precisa de coesão social e alinhamento das políticas de combate ao novo coronavírus, para evitar o colapso do sistema de saúde, Bolsonaro aposta na autoimunização pelo contagio e num medicamento de eficácia limitada nos tratamentos, a hidroxicloroquina, para evitar as mortes, e prega a retomada imediata das atividades econômicas, com adoção do chamado isolamento seletivo ou vertical. Essas apostas foram feitas em outros países, como os Estados Unidos, Inglaterra e Japão, e fracassaram.

Ilhas desertas - RUY CASTRO

Folha de S. Paulo

Hora de levar para elas os seus livros, discos e filmes favoritos


Está fora de moda há anos, mas, no passado, os jornais adoravam perguntar aos artistas e intelectuais que livros, discos e filmes eles levariam para uma ilha deserta. E todos adoravam responder. Minha resposta favorita é a do jornalista José Lino Grünewald, que, ao escolher seus livros indispensáveis, incluiu —rindo, mas a sério— o “Philosophie der Symbolischen Formen”, de Ernst Cassirer, em três volumes. A dita ilha, ainda que provida de uísque, poltrona e luz elétrica, era só uma metáfora, claro, para as tradicionais listas de dez melhores livros, discos ou filmes de cada um.

De repente, com a quarentena imposta pela Covid-19, a ilha deserta deixou de ser metáfora. Tornou-se, para tantos de nós, dura realidade e por tempo não sabido. Agora, sim, é hora de fazer as tais listas. Por isso, resolvi produzir as minhas. Como esta, só de discos de música brasileira, torcendo para que, como meu equipamento é antigo, a ilha ainda não tenha sido corrompida pela tomada de três pinos.

Eu levaria os três discos instrumentais gravados por Tom Jobim nos EUA em fins dos anos 60: “Wave”, “Tide” e “Stone Flower”. Levaria também duas obras-primas do samba-jazz daquela década, “Edison Machado É Samba Novo”, com o próprio, e “Embalo”, com o pianista Tenório Jr. E todos os discos de Lucio Alves, Sylvinha Telles e João Gilberto que pudesse enfiar no saco. Para as noites de fog na ilha, levaria o que pudesse de Dolores Duran, Tito Madi e Doris Monteiro. Para as tardes de sol, o máximo de Francisco Alves e Mario Reis, juntos e separados. A caixa de três CDs de Orlando Silva, lançada pela BMG, e a de cinco CDs de Carmen Miranda, pela EMI. Avulsos de Sylvio Caldas, Aracy de Almeida, Cyro Monteiro. E com isso já teria estourado o peso, acho.

Esta é apenas a minha lista. Você terá a sua, e deve fazê-la. A melhor ilha é a cercada de música por todos os lados.

Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues

Caixa de pandora, clube-empresa pode modernizar futebol no país - PVC

FOLHA DE SP - 12/04

Só dez times estiveram representados em discussão sobre novo modelo de gestão



A convocação dos vinte clubes da Série A, para discutir mudança da legislação e a possibilidade de criar uma linha de crédito para quem virar empresa, dividiu os dirigentes na quarta-feira (8). Só dez times estiveram representados e, entre eles, quem julga a transformação do modelo societário uma piada.

Como você já leu aqui, virar sociedade anônima não vai produzir o milagre dos títulos nacionais e internacionais. Só um vai vencer cada campeonato. Mas está óbvio há décadas que o modelo político em que dirigentes têm domínio sobre um grupo de conselheiros despreparados já fez água.

Há mais política do que trabalho, mais espuma do que conteúdo. Contratam-se jogadores por repercussão, demitem-se treinadores por pressão.

Com o atraso da gestão, há casos relatados de investidores internacionais mais interessados em se associar a clubes da Colômbia do que do Brasil. Tem de mudar.

Ao saber da convocação da Frente Parlamentar do Esporte para que os vinte clubes da Série A discutissem a mudança de legislação, o presidente da Câmara Federal, Rodrigo Maia, disse: “Não estou sabendo da reunião, mas julgo que temos de tratar disso.”

Maia caminha com o projeto de lei do clube-empresa do deputado Pedro Paulo (DEM-RJ). Pode não ser o ideal, mas o Congresso tem demonstrado mais preocupação do que os dirigentes de clubes, quando se fala em transformar o futebol numa indústria capaz de ampliar sua participação na economia do país.

Hoje, são 370 mil empregos gerados direta ou indiretamente pelo futebol. No ano passado, Flamengo 5 x 0 Grêmio teve 20% dos ingressos comprados por turistas. Representa gente trabalhando em hotéis, táxis, Uber, restaurantes, vendas de passagens aéreas e de ônibus.

Uma parte do que o futebol ajuda a economia formal— e informal —explicitou-se durante o confinamento. Como toda crise gera oportunidade, a que parece mais clara neste momento é que a necessidade de dinheiro ajude a produzir a mudança.

Até mesmo os clubes que fogem da ideia do clube empresa arregalam os olhos quando se fala em linhas de crédito. Dinheiro não dá em árvore e dinheiro público não se planta na Caixa Econômica Federal.
Se houver, precisará de contrapartida.

A ideia implícita na convocação para a vídeo-conferência da Frente Parlamentar, na quarta-feira, era adaptar a legislação à espanhola, onde só não é empresa quem comprova finanças em ordem, como Real Madrid e Barcelona.

Também nas entrelinhas, a determinação de que só terá crédito quem se comprometer a virar sociedade anônima.

Num primeiro momento, só vão entrar nesse possível novo modelo quem entender que precisará se estruturar para se manter na Série A. O Atlético-GO está fazendo isso. Sua vantagem será a de estar pronto quando houver investidores dispostos a entrar no Brasil.

A segunda boa chance é a de se livrar da viciada estrutura política. À parte, os conselhos fiscalizarem as contas, muitas vezes isto se faz com interesse eleitoral.

Entre os clubes, não há consenso sobre criação de uma liga, sobre inversão de calendário, sobre terminar os estaduais. Há mais reuniões e, nesta semana, a discussão sobre a venda de direitos internacionais, que parece ter avançado.

Há apenas busca por dinheiro e salvação.

Boas ideias e planos de longo prazo podem ajudar a trazê-lo.

No Congresso, está cada vez mais claro que a transformação do modelo de gestão pode fazer o futebol brasileiro dar um passo em direção à modernidade. Há uma oportunidade.

PVC
Jornalista e autor de Escola Brasileira de Futebol. Cobriu seis Copas e oito finais de Champions

Após ver reprises, passei a achar a seleção de 1982 melhor ainda - TOSTÃO

FOLHA DE SP - 12/04

Na época, era médico residente, por isso não acompanhei nos detalhes a Copa


Parabéns aos profissionais de saúde. É necessário protegê-los durante o trabalho, para diluir as chances de eles e seus familiares se infectarem.

Não se desespere. Ainda é cedo para afrouxar o distanciamento social. Respire fundo e sonhe com o que deseja fazer após a epidemia.

Nos últimos dias, assisti às partidas da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1982, pelo Sportv. Na época, eu era médico residente no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Por isso, não acompanhei nos detalhes o Mundial e o time brasileiro. Vejo hoje que a equipe era ainda melhor do que eu achava.

Gosto mais de ver partidas do passado com a narração e os comentários feitos na época, mas as análises atuais de Paulo Vinicius Coelho durante a reprise da partida entre Brasil e União Soviética são tão ricas em informações que facilitam a compreensão do futebol do passado e do presente. O Sportv contratou um ótimo reforço.

Dunga disse, várias vezes, que não entende como a seleção de 1982, que perdeu, pode ser mais elogiada que a de 1994, que ganhou. Ele, com seu pragmatismo e utilitarismo, nunca vai entender.

Por outro lado, é preciso reconhecer que a seleção de 1994 foi excelente. Além de um excepcional sistema defensivo, com duas linhas compactas de quatro, o que, na época, era novidade no futebol brasileiro, a equipe tinha um cracaço, Romário, e ótimos jogadores em todas as posições.

A seleção de 1982, do meio para frente, era formada por sete craques, Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico, no meio, além do ponta Éder e dos dois laterais, Júnior e Leandro. Os três entravam pelo centro, para também armar as jogadas e participar da troca de passes. Júnior e Leandro atuavam de uma maneira parecida da de Rafinha e de Filipe Luís no Flamengo. Não havia pontas fixos.

Naquele período, havia, na televisão, um delicioso quadro humorístico de Jô Soares, em que o personagem Zé da Galera telefonava de um orelhão e pedia a Telê Santana: “Bota ponta, Telê”!

As seleções de 1970 e de 1982 tinham maneiras próprias de jogar. Não atuavam no esquema com dois volantes, três meias e um centroavante, como hoje gostam de dizer.

Em 1982, o esquema tático da seleção parecia uma roda no meio-campo, que não parava de girar, com todos se movimentando e ocupando posições e funções diferentes. O time brasileiro jogava uma bola redonda.

A maravilhosa seleção de 1982 gerou vários lugares comuns, inverdades e enganos. Falam que o time enfrentou a Itália para dar show, enquanto os italianos jogaram para vencer. Há várias maneiras de ganhar. Dizem ainda que a equipe, durante a partida, poderia ter recuado para garantir a vantagem do empate, que garantiria a classificação. Dois gols da Itália saíram de bolas paradas, quando o time brasileiro estava todo atrás. O outro gol saiu de um passe errado de Cerezo, na intermediária defensiva.

Depois do Mundial, cresceu a discussão, que vigora até hoje, sobre qual é a melhor estratégia para vencer, a de recuar, fechar os espaços e contra-atacar, ou a de pressionar e ter o domínio da bola, quando tiver de ser uma coisa ou outra. Falam ainda que grandes craques são, geralmente, individualistas e indisciplinados taticamente. É um grande equívoco.

Os grandes talentos, de qualquer área, são os que unem a criatividade e a fantasia com a técnica, a racionalidade e a participação coletiva. Sabem que precisam do outro para brilhar.

Tostão
Cronista esportivo, participou como jogador das Copas de 1966 e 1970. É formado em medicina.

Incertezas agora, incertezas depois - CELSO MING

ESTADÃO - 12/04

Se agora não há liderança nem na estratégia de enfrentamento de uma crise tão grave, também tende a faltar na hora de recolocar a casa em ordem


Não é verdade que todos estejam preocupados somente em como atravessar essa pandemia, pouco ligados ao day after.

Não há quem também não se pergunte sobre o que será do emprego e do ganha-pão; o que será da evolução da economia e do patrimônio familiar, hoje em pandarecos.

A maioria dos consultores, dos chefes de economia dos bancos e dos administradores de finanças vem apresentando suas projeções. Nesta segunda-feira, o Banco Central divulgará, no meio de outros itens do Boletim Focus, as novas estimativas de cerca de 100 desses rastreadores permanentes da economia que, há uma semana, já apontaram para uma queda de 1,18% do PIB. Na última quinta-feira, o ministro da Economia, Paulo Guedes, confidenciou a senadores que, se a crise se estender até depois de julho, a queda do PIB do Brasil em 2020 poderá chegar a 4%. E este é número cada vez mais sujeito às revisões da hora.

Não há certeza sobre nada. O que há são torcidas e algumas apostas. Como há, por exemplo, a aposta em que a economia da China, em franca recuperação, será a primeira locomotiva a voltar a puxar os vagões do resto do mundo, ainda neste segundo trimestre. O pressuposto é o de que não haverá recaídas graves, o de que o ataque do coronavírus desta vez não acontecerá em ondas, como se vê nos terremotos. Mas é uma hipótese que os epidemiologistas não garantem como certa.

Até mesmo uma megaoperação junta-cacos poderá ser confusa e fortemente complicada, a começar pelo inevitável enfrentamento da desorganização das contas públicas. Mesmo depois do destravamento dos cofres federais, as finanças dos Estados e municípios sairão da crise ainda mais enfraquecidas do que já estavam. Grande número de empresas estará quebrada ou perto disso. O desemprego e a derrubada da renda familiar continuarão a asfixiar o mercado consumidor. Não é verdade que o Tesouro tudo pode, como às vezes alguns fingem acreditar. Tesouro nenhum cria renda. Apenas distribui ou deixa de distribuir o que acaba chegando até ele.

Aumentarão as pressões por aumento de impostos. Mas como arrancar mais arrecadação de uma sociedade que perdeu tanto patrimônio e tanta renda?

Nessas horas, sempre aparece a ideia de sobretaxar os mais ricos. O problema é que, se isso estivesse para acontecer, seria inevitável uma corrida ao dólar. E, ninguém se iluda, trata-se de um dos impostos mais difíceis de arrecadar. Os grandes proprietários de terras, de imóveis urbanos e de participações acionárias teriam de despejar de repente um pedaço de seu patrimônio no mercado para ficar em condições de recolher ao Fisco os novos impostos que passariam a ser cobrados?

Ah, então vamos à emissão de moeda? É uma opção. Mas, novamente, ninguém se iluda: seria a mais cara para o trabalhador, dada a tesourada real dos salários e das pequenas rendas que a ela se seguiria.

A paralisação da economia, tanto a que já aconteceu quanto a que ainda está para acontecer, produzirá certo número de vítimas entre as empresas, especialmente no segmento dos pequenos negócios. Embora a maioria dos bancos se disponha a melhorar as condições dos empréstimos, será inevitável aumento da inadimplência entre os que terão de honrar créditos bancários. E isso significa que o Banco Central poderá ter de ajudar certas instituições financeiras a aguentar o tranco.

A recuperação poderá ser dolorosa, mas a partir do momento em que prevalecer a convicção de que a pandemia terá ido embora, tudo poderá ficar mais suportável.

O problema é que não há como garantir nem isso, porque o País está sem comando. Se no momento não há liderança nem na estratégia de enfrentamento de uma crise tão grave, também tende a faltar na hora de recolocar a casa em ordem.

CONFIRA

G-20 não avançou


O encontro dos ministros de Petróleo e Energia do Grupo dos 20 deixou tudo no ar. O documento final não fala em novos cortes de oferta. Assim, não se sabe como e quando o mercado de óleo conseguirá se reequilibrar. Mesmo o número de 10 milhões de barris diários que ficaram para ser cortados pelos membros da Opep pode não ser atingido. O México concordou em reduzir 100 mil barris diários em vez do corte de 400 mil que lhe foi pedido. Por enquanto, o ajuste está para ser feito com redução de preços.

Ímpeto suicida - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO - 12/04

Quebra criminosa do isolamento de Norte a Sul vem de cima, do isolado nº 1


Com o coronavírus ultrapassando a barreira de mais de cem mil mortos no nosso mundo e mais de mil no nosso Brasil, as pessoas parecem não entender, sofrem uma intrigante negação da realidade e estão voltando às ruas em todas as capitais, de Norte a Sul do País. Por que Manaus e Porto Alegre, Cuiabá e Recife, São Luís e São Paulo fazem esse movimento suicida ao mesmo tempo? Porque a ordem, ou o exemplo, vem de cima. Vocês sabem de quem. E não vão esquecer.

Seria impossível desconhecer e esquecer que o isolado número 1 do País estimula manifestações contra o Supremo e o Congresso, toca pessoas e celulares na frente do Planalto, mistura-se e tira selfies com cidadãos em três locais do Distrito Federal, descumpre decreto do DF para comer numa padaria, causa aglomeração em frente a uma farmácia. É tão inacreditável que se torna inesquecível.

Não satisfeito, o isolado número 1 corre atrás de governadores, e do prejuízo político, inaugurando uma forma inédita de compra de apoios: o toma lá dá cá em tempos de coronavírus. Oferece mundos e fundos para reduzir o impacto econômico da pandemia nos Estados, desde que relevem a preocupação com a mortandade e relaxem o isolamento. Ou seja, façam como na ditadura militar: “Às favas os escrúpulos de consciência”.

A pressão se estende para o Dr. Ronaldo Caiado e a aposta é que este não ceda e não troque recursos por vidas em Goiás, mas o empresário Romeu Zema saiu alegrinho do Planalto, voltou para Minas em atrito com o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, e acena com abrandamento do isolamento bem no pico da contaminação.

O advogado Ibaneis Rocha também saiu outro das conversas com o governo federal. Primeiro governador a decretar a suspensão das aulas - então com a oposição até do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta -, ele agora relaxa o isolamento, única forma de prevenção contra o vírus.

Ibaneis liberou a volta ao trabalho em diferentes setores do DF, como o de móveis e eletrodomésticos. Ué?! Será que móveis e eletrodomésticos são serviços essenciais, ou é só para aumentar a aglomeração em pontos, ônibus e metrô? Como lembrança, o DF tem 16,9 contaminados por cem mil habitantes e é o quarto na fila para entrar na “fase descontrolada”. Hora ideal para mandar as pessoas para as ruas, não é?

Enquanto o isolado número 1 - que, aliás, nunca exibiu seus pelo menos três testes para o coronavírus - tenta quebrar o próprio isolamento político na base do homem a homem, continua a guerra do socorro aos Estados na Câmara, trocando o varejo do Planalto pelo atacado do Congresso. Mas Paulo Guedes bate pé contra o que chama de “bomba fiscal”, Rodrigo Maia fecha com os Estados (sobretudo com o seu Rio de Janeiro...) e as bancadas se dividem, cada uma pensando na sua região, no seu governador.

Essa guerra entre União e Estados, e entre o isolado número 1 e os governadores, extrapola a linha sanitária, política e educada e cai no jogo sujo das redes sociais. Os principais alvos são Mandetta, que ousa usar critérios técnicos e científicos para as pessoas não morrerem e não matarem, e João Doria, que não é visto como o governador que enfrenta a situação mais desesperadora, com metade dos contaminados e mortos, mas sim como adversário político.

Depois de guerras e tsunamis, chega a hora de contar mortos e feridos e avaliar a atuação dos líderes, generais e tropas, com base nos erros e acertos das estratégias, comandos e ações. O coronavírus será o divisor de águas nas eleições de 2022. O risco do isolado número 1 é ocupar o lugar do PT em 2018, com o eleitor aglutinando para qualquer um que não seja ele. A grande pergunta tende a ser: quem é capaz de derrotar essa ameaça à saúde, à vida e à Nação?

Jair Bolsonaro se isola, no sentido errado - THE ECONOMIST

The Economist/O Estado de S. Paulo - 11/04
Tradução de Renato Prelorentzou

Imprudência do presidente brasileiro diante da covid-19 voltará para assombrá-lo



Um a um, os negacionistas fizeram as pazes com a ciência médica. Apenas quatro governantes do mundo continuam negando a ameaça à saúde pública que a covid-19 representa. Dois são de destroços da antiga União Soviética, os déspotas da Bielorrússia e do Turquemenistão. O terceiro é Daniel Ortega, ditador tropical da Nicarágua. O outro é o presidente eleito de uma grande - ainda que combalida - democracia. O esforço de Jair Bolsonaro para minar as iniciativas de seu próprio governo no combate ao vírus pode marcar o início do fim de sua presidência.

Desde que o novo coronavírus foi detectado pela primeira vez no Brasil, no final de fevereiro, Bolsonaro, um ex-capitão do exército que tem adoração pelos governantes militares, fez pouco caso da doença. Menosprezando seus efeitos como “só uma gripezinha”, ele disse que era preciso "enfrentar o vírus como homem, pô, não como moleque”. E acrescentou, num tom bastante consolador: “todos nós vamos morrer um dia”. Nos quinze meses desde sua chegada à presidência, os brasileiros se acostumaram às suas bravatas de machão e à sua ignorância em questões que vão desde a preservação da floresta amazônica até educação e policiamento. Mas, desta vez, o dano é imediato e óbvio: Bolsonaro juntou a retórica truculenta à sabotagem ativa da saúde pública.

Ele diz acreditar no “isolamento vertical”, na quarentena apenas para os brasileiros com mais de 60 anos, com o objetivo de limitar os danos à economia. Existem dois problemas nesse raciocínio. Os jovens também morrem de covid-19 (10% das vítimas no Brasil têm menos de 60 anos), e a imposição de uma quarentena desse tipo seria impossível.

Os governadores dos estados mais importantes do Brasil tomaram a frente e impuseram isolamento social utilizando seus próprios poderes. Bolsonaro encorajou os brasileiros a ignorá-los. Homem que teme traições e sente uma perpétua necessidade de provocar, ele recebeu com abraços e selfies seguidores que faziam uma manifestação contra o Congresso, em 15 de março. O presidente também lançou uma campanha incentivando as empresas a reabrirem as portas e pediu “jejum e manifestações” nas igrejas em 5 de abril. Ele cogitou decretar, ilegalmente, o fim do isolamento. E, por duas vezes, chegou perto de demitir seu próprio ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, um médico conservador que se opôs publicamente ao clamor do presidente para afrouxar as restrições.

Ao que parece, Bolsonaro está com ciúmes da ascensão de um ministro que, segundo ele, “não tem humildade”.

Mesmo para seus próprios padrões, a recusa de Bolsonaro em cumprir seu dever primordial de proteger vidas foi longe demais. Grande parte do governo o trata como um tio inconveniente que apresenta sinais de insanidade. Os principais ministros, entre eles o grupo de generais que faz parte do gabinete, bem como os presidentes das duas casas do Congresso, deram apoio ostensivo a Mandetta, que também tem a população ao seu lado. Uma pesquisa realizada neste mês pelo Datafolha apontou que 76% dos brasileiros aprovam a maneira como o Ministério da Saúde vem combatendo o vírus. Em comparação, 33% aprovam o gerenciamento da crise por Bolsonaro.

Os clamores pela renúncia de Bolsonaro aumentaram. E não apenas na esquerda, mas também entre alguns de seus antigos aliados, como Janaina Paschoal, deputada estadual por São Paulo que Bolsonaro chegou a considerar para vice na chapa presidencial. Ela disse que o presidente era culpado de “um crime contra a saúde pública” e acrescentou: “não temos tempo para o impeachment”.

Não há dúvida de que as condutas do presidente justifiquem constitucionalmente um impeachment, destino que caiu sobre dois de seus antecessores, Fernando Collor, em 1992, e Dilma Rousseff, em 2016. Mas, por enquanto, Bolsonaro mantém apoio público suficiente para sobreviver. Se, à época, as pesquisas apontaram que a maioria era a favor da deposição de Dilma (por violar a lei de responsabilidade fiscal para ganhar a reeleição), 59% dos brasileiros disseram ao Datafolha que não querem que Bolsonaro renuncie. O índice de aprovação de Dilma girava em torno de 10%; Bolsonaro mantém o apoio de um terço dos eleitores. Poucos em Brasília acreditam que o país queira ou possa arcar com a turbulência de um impeachment enquanto se vê tomado pela covid-19.

Bolsonaro é sustentado por um pequeno círculo de fanáticos ideológicos (entre eles, três de seus filhos), pela fé de muitos evangélicos e pela falta de informações sobre a covid-19 entre os brasileiros. Os dois últimos fatores podem mudar à medida que o vírus começar a ceifar vidas nos próximos meses. Em 8 de abril, o Brasil contava 14.049 casos confirmados e 688 mortos. E pode ser que o presidente não consiga se isolar da culpa pelo impacto econômico. Por sua imprudência com a vida dos brasileiros, Bolsonaro fez com que sua própria queda entrasse na agenda política. É bem provável que ela permaneça ali mesmo depois do fim da epidemia. / Tradução de Renato Prelorentzou

A macroeconomia da pandemia - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 12/04

São comuns cenários com queda da economia de 5% ou mais; o desemprego subirá muito

Esta crise é única. Em razão do risco para a saúde de todos nós, estamos desligando a economia. No mundo todo. Têm sido comuns cenários com queda da economia de 5% ou até mais. O desemprego subirá muito.

Difícil saber o impacto da crise sobre a demanda e a oferta. Para simplificar, suponha uma economia com dois setores, A e B, cada um responsável por metade da produção e do emprego e, portanto, da geração de renda.

Para simplificar ainda mais, suponha que toda a renda seja do trabalho. Não há capital nessa economia hipotética.
Desempregados enfrentam fila em busca de uma oportunidade de trabalho em São Paulo - Danilo Verpa - 17.set.2019/Folhapress

O setor A representa atividades essenciais e que, portanto, serão mantidas ao longo do período de adoção do distanciamento social (DS). O setor B será interrompido.

As pessoas que trabalham no setor B ficarão em casa, e as que trabalham no setor A trabalharão normalmente, mas no resto do tempo ficarão em casa com seus parentes. O DS impede que se consuma o bem produzido no setor B.

Finalmente, suponha que a adoção do DS será por um trimestre. Em seguida, vida normal.

O consumo de todos será reduzido à metade. Para que não haja desequilíbrios na economia, há políticas públicas com vistas a manter a renda de todos. Para tal, será necessária a manutenção dos salários do setor B.

Durante um trimestre, tempo de vigência do DS, haverá queda do produto de 50% ou queda de 12,5% em um ano.

Para mitigar os efeitos depressivos da política de supressão da atividade produtiva, o Tesouro sustenta a renda do setor B. A manutenção de todas as rendas do setor B implicará a elevação da dívida pública no fim de 2020 em 12,5 pontos percentuais (pp) do PIB, ou 14 pp do PIB de 2020, que será 12,5% menor.

Se tudo der certo, teremos o seguinte: os trabalhadores do setor B ficam em casa; os trabalhadores do setor A trabalham normalmente; todos consomem os produtos essenciais do setor A; a parte da renda referente ao consumo do setor B será poupada. No fim de 2020, a dívida pública terá crescido em 12,5 pp do PIB, e os detentores da dívida serão os trabalhadores do setor A e B, que, ao longo do período de supressão da atividade, tiveram seu consumo reduzido em 50% por um trimestre.

No exemplo hipotético que construí, a crise não gerou nem excesso de demanda nem de oferta. A sustentação da renda manteve a demanda normal das atividades essenciais, e a perda de produto foi integralmente socializada na forma de elevação da dívida pública.

Nessas circunstâncias, o Banco Central não deve nem subir nem reduzir a taxa de juros. A política fiscal, ao sustentar a renda, fez todo o serviço. Para o futuro, a carga tributária terá que ser maior, ou o gasto público, menor, para pagar pelo maior endividamento.

Note que não há necessidade de compensação total da perda de renda. Se as rendas dos trabalhadores do setor B forem compensadas em metade da queda da produção, já será suficiente para a manutenção da demanda pelos bens essenciais produzidos pelo setor A. A dívida pública, em vez de aumentar em 12,5 pp do PIB, se elevaria em 6,25 pp.

No mundo real, e para o setor privado, a compensação será certamente menos do que integral. Salários serão reduzidos, e é possível que empresas quebrem. Nesse cenário, não faz sentido que o setor público garanta a integralidade dos salários dos servidores que não trabalham nos setores essenciais.

Chama a atenção o gesto do governador do Rio Grande do Sul, que abriu mão de 30% de seu salário no período de calamidade pública. Essa medida deveria ser estendida a todos os altos salários do funcionalismo público.

Samuel Pessôa
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.

Crise - ROBERTO RODRIGUES

ESTADÃO - 12/04

Hoje é domingo de Páscoa. Mas será diferente de todos os outros anos. Muita gente mergulhada no confinamento não vai ganhar nem presentear ovos de chocolate aos seus queridos.

A prioridade de todos nós do campo e do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa)agora é abastecer, com a engrenagem que vai da roça ao consumidor. Esta longa cadeia de abastecimento, por sua vez, é impulsionada por um poder superior, a natureza. É ela que diz a hora de plantar, de cultivar e de colher, de transportar e distribuir, que determina o ciclo fundamental do trabalho rural, o ciclo da vida, ao qual os agentes da cadeia de abastecimento se adaptam. Por isso agricultura e abastecimento estão sempre juntos. E o Mapa vem trabalhando competentemente para desmanchar todo “nó” que estrangule qualquer elo das cadeias produtiva e de abastecimento.

Dada a grandeza da crise, nem sempre isso é possível. Há problemas quase incontornáveis, como o que aconteceu com os produtores de flores: não tem mais eventos, nem festas, nem celebrações importantes que são os grandes demandantes de flores. Até casamentos estão sendo adiados... Portanto, o mercado sumiu. Será necessário socorrer esse segmento com um crédito especial, barato e de longo prazo para evitar a quebradeira geral de seus heroicos produtores.

Frutas e verduras passam por problemas semelhantes: quando estão maduros, precisam ir ao mercado imediatamente, caso contrário apodrecem. E os sistemas de distribuição não funcionam agora como em tempos normais. Medidas em sua defesa devem também acontecer.

Mas nenhum setor está causando mais dor de cabeça do que o canavieiro, por diversas razões: ocupa mais de 9 milhões de hectares em centenas de municípios em todo o País, emprega milhares de pessoas ao longo da cadeia produtiva e movimenta uma economia gigantesca. O que aconteceu com esse importantíssimo setor?

Depois de alguns anos muito ruins, seja por erros de governo (como o governo Rousseff que tentou evitar a inflação segurando artificialmente os preços dos combustíveis e assim quase quebrou a Petrobrás e a agroenergia) ou por acidentes de mercado (com pesados subsídios em anos anteriores, os produtores indianos de cana e de açúcar aumentaram a produção e “encheram” o mercado açucareiro, derrubando os preços), havia uma expectativa favorável para 2020: no começo do ano estava clara uma retomada da economia canavieira porque os estoques mundiais de açúcar tinham caído e os preços vinham reagindo, a demanda por etanol estava aquecida com a melhora do ambiente econômico interno e o clima chuvoso indicava alta produtividade agrícola. Os empresários se preparavam para fazer investimentos em tecnologia e em equipamentos e nas regiões canavieiras havia muito otimismo.

De repente, essa esperança derreteu no rastro do coronavírus e do estranho embate entre Arábia Saudita e Rússia que derrubou os preços do petróleo para menos de US$ 30 o barril. Ora, com a pandemia, ninguém sai de casa e o consumo de etanol caiu 60 a 70%, dependendo da região, e o produto encalhou nas usinas. E como seu uso só é viável até custar 75% do preço da gasolina nas bombas, vai perdendo competitividade com a queda do valor do petróleo.

Foi uma impressionante mudança de cenário em muito curto espaço de tempo. Várias medidas paliativas vêm sendo estudadas pelo governo junto com o setor. Uma delas é colocar para funcionar a Cide, taxa que foi criada exatamente para enfrentar crises como essa: incidindo sobre a gasolina, melhora a competitividade do etanol. Outra é não cobrar PIS/Cofins dos produtores. Estas duas medidas durariam enquanto durarem os efeitos do covid-19 e depois seriam revogadas.

Medida muito importante é o financiamento de estocagem de etanol: se o consumo continuar muito baixo, certamente o produto terá que ser estocado, e talvez por muitos meses. Sem vender, como sobreviveria o produtor? O estoque financiado reduz este descasamento. Mas atenção: como esse crédito só é dado ao industrial, a condição necessária para concessão do recurso é que o industrial pague em dia seu fornecedor de cana.

O CBio previsto no RenovaBio também ajudaria muito, mas só deve funcionar no ano que vem...

Linhas de crédito para realizar a safra ou mesmo para o plantio de cana são outra alternativa, desde que com prazo longo, visto que a cana-de-açúcar é uma cultura semipermanente, e depois de plantada fica no terreno por até 8 anos.

São medidas que demandam rápida solução, porque a safra não espera. Felizmente a competente ministra Tereza Cristina conhece muito bem o assunto e está trabalhando para encaminhar algumas das soluções apresentadas.

Feliz Páscoa a todos.

É EX-MINISTRO DA AGRICULTURA E COORDENADOR DO CENTRO DE AGRONEGÓCIOS DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS

Mandetta pegou o vírus do holofote - ELIO GASPARI

O Globo/Folha de SP - 12/04

Ministro perdeu uma oportunidade de ficar calado quando disse que “a saúde dialoga, sim, com o tráfico, com a milícia"


O ministro Luís Henrique Mandetta perdeu uma oportunidade de ficar calado quando disse que “a saúde dialoga, sim, com o tráfico, com a milícia, porque eles também são seres humanos e também precisam colaborar, ajudar, participar.”

Para um ministro da Saúde que construiu sua reputação falando no valor do conhecimento, só se pode atribuir essa declaração à síndrome do holofote. Dialogar com as milícias e com o tráfico é coisa que o poder público do Rio de Janeiro pratica há décadas. O próprio Mandetta já viu a promiscuidade suprapartidária que dialoga com a contravenção em Mato Grosso do Sul.

A essência da fala do ministro é um truísmo. Em diversas áreas o poder público precisa dialogar com a bandidagem para trabalhar em paz. O que ela não precisa é legitimá-lo, coisa que Mandetta fez. Essa legitimação não funciona apenas como um gesto simbólico. Ela ampara organizações criminosas. Além disso, tanto os traficantes como as milícias dividem-se em facções. Como se faria esse diálogo: numa assembleia?

O ministro da Saúde poderia se informar sobre as consequências de sua fala com o ministro da Justiça, mas faz tempo que o doutor Sergio Moro entrou numa quarentena. Além dele, poderia também recorrer ao acervo de conhecimentos da família Bolsonaro com milicianos. Ninguém deve se meter com decisões profissionais dos médicos, mas eles também não devem ir além delas, atropelando as leis.

Numa guerra, o poder público pode precisar de algum tipo de entendimento com o crime organizado, mas não pode legitimá-lo. Em 1941, o governo americano entendeu-se com a máfia do porto de Nova York para que ela não atrapalhasse seus embarques militares. Mais: em 1943, quando a tropa do general George Patton desembarcou na Sicília, cultivou a simpatia da máfia. O “capo” Don Calogero Vizzini tornou-se prefeito da cidade de Villalba e coronel honorário da exército americano. O preço desse diálogo seria um problema dos italianos.

O general Patton nunca assumiu publicamente a ajuda da Máfia.


O Itaú Unibanco dá o exemplo

O Itaú Unibanco anunciará amanhã uma doação de R$ 1 bilhão para o combate à Covid-19. O dinheiro irá para a fundação do banco e será administrado exclusivamente por um conselho de profissionais da saúde, onde estarão diretores de hospitais públicos e privados. Dinheiro na veia.

Essa será a maior iniciativa filantrópica já ocorrida no Brasil e sua lembrança ficará gravada na história da pandemia. Para se ter uma ideia do tamanho da doação, estima-se que em 2016 todas as iniciativas filantrópicas de corporações brasileiras somaram R$ 2,4 bilhões. (Nessa cifra entraram ações relacionadas com cultura, meio ambiente e educação, por exemplo.)

De onde eles estão, Olavo Setúbal (1923-2008) e Walther Moreira Salles (1902-2001), criadores dos dois bancos, terão um momento de orgulho.


Andrew Carnegie

Não custa relembrar Andrew Carnegie.

Ele foi um pobre imigrante escocês que se tornou o homem mais rico dos Estados Unidos. Em 1901, aos 65 anos, vendeu seu império siderúrgico e passou o resto da vida distribuindo dinheiro. Carnegie ensinou:

“Morrer rico é uma desgraça”.

Ele se foi em 1919, depois de ter doado 350 milhões de dólares. (Algo como US$ 10,5 bilhões em dinheiro de hoje.)


Tasca

O ministro Alexandre de Moraes sabe Direito e travou a ofensiva de Bolsonaro contra as medidas de isolamento determinadas pelos governadores.

Na sua decisão, redigida em juridiquês, ele foi além. Reconhecendo que “não compete ao Poder Judiciário substituir o juízo de conveniência e oportunidade realizado pelo Presidente da República no exercício de suas competências constitucionais”. Até aí, o óbvio, mas o doutor foi além:

“Porem, é seu dever constitucional exercer o juízo de verificação da exatidão do exercício dessa discricionariedade executiva (...) verificando a realidade dos fatos e também a coerência lógica da decisão com as situações concretas.”

Se Moraes quer “coerência lógica” do presidente da “gripezinha”, perde seu tempo. Mesmo assim, não é atribuição do Poder Judiciário determinar sua interdição.

Em seu benefício, deve-se registrar que Alexandre de Moraes apenas segue uma virótica mania do Judiciário de ir além das próprias chinelas.


Sessões eletrônicas

As próximas sessões do Supremo Tribunal serão realizadas em videoconferências. Realiza-se assim o sonho de vários ministros.

Eles poderão ficar com os rostos no vídeo, tirando o som dos soporíferos votos de alguns colegas.


Memória

Nos anos 1940, o garoto Michel Temer vivia num sítio em Tietê, no interior de São Paulo, e por perto havia um bosque de eucaliptos chamado de Hospital. Ele não passava por perto e, muitas vezes, perdeu o sono por causa das assombrações que apareciam entre as árvores.

A memória da região contava que durante os surtos de febre amarela do início do século, era lá que se enterravam os doentes, alguns deles ainda vivos.


Carnificina

De um empresário que já viu de tudo:

“Vem aí uma carnificina em cima dos pequenos negociantes. Uma parte vai quebrar e quem tiver sorte venderá para um concorrente.”


Segunda-feira

Está entendido que, pelos piores motivos, Jair Bolsonaro quer demitir o ministro Luiz Henrique Mandetta. Também está entendido que Mandetta tem seus limites e se dispõe a ir embora para não ser avacalhado.

Mesmo assim, não se pode dizer que Bolsonaro estivesse disposto a demiti-lo na segunda-feira.

Ficou a impressão de que o presidente foi dissuadido por conselheiros militares (abracadabra). Admita-se, contudo, que a demissão iminente de Mandetta foi divulgada por gente que, sabendo-a incerta, queria que ao final Bolsonaro ficasse mal na fotografia, como se tivesse sido obrigado a engoli-lo.

O médico e o paciente querem se livrar um do outro. Ambos esperam o melhor momento.


Erosão

Em 2018 o candidato Jair Bolsonaro era o quindim da maioria dos médicos e de todos os empresários do agronegócio.

Com seu diagnóstico da “gripezinha” perdeu os médicos. Com a encrenca que seu ministro da Educassão arrumou com a China, perdeu as lideranças empresariais da lavoura e da pecuária.

Precisamos de ousadia e responsabilidade - AFFONSO CELSO PASTORE

O Estado de S.Paulo

Na ausência de vacina e de remédio eficaz, só o distanciamento social consegue reduzir o contágio e o número de mortes provocadas pela Covid-19. Tal estratégia leva a forte queda da produção, como ocorre em uma guerra convencional, com a diferença de que neste caso o inimigo destrói fábricas e cidades, e as mortes chegam a muitos milhões. Há uma destruição de capital físico, cuja reconstrução exige um “Plano Marshall”, e uma destruição de capital humano, que somente será reposto a longo prazo com os investimentos na educação dos nascidos após o final da guerra.


Embora haja queda temporária da produção e da demanda, o distanciamento social evita a destruição dos capitais físico e humano, preservando o PIB potencial. Os governos elevam significativamente os gastos em saúde e em transferências aos menos favorecidos, e a forte expansão de crédito em escala sem precedentes deve impedir (ou reduzir) a quebra de empresas. Parte do crédito é dirigido ao pagamento dos salários, incentivando as empresas a manter os empregos e a renda dos funcionários. Se fosse uma recessão convencional disparada pela queda de demanda, esta teria que ser imediatamente estimulada. Porém, quando ocorre uma queda simultânea de demanda e oferta, com esta última temporariamente incapacitada de reagir, não há como o multiplicador keynesiano possa funcionar, o que somente ocorrerá quando o freio à oferta for aliviado.

Com as fábricas paradas e as lojas de portas fechadas, não é possível que a oferta responda aos estímulos da demanda. O colapso da receitas das empresas implode os lucros e adia os investimentos, contraindo a demanda, e ainda que o financiamento lhes permita manter o emprego, há uma queda de renda das famílias, contraindo o consumo. Para que a economia se recupere é preciso que a oferta responda à demanda, o que não acontece enquanto persistir o choque de oferta.

Esta não é uma recessão descrita em livros de texto, que se resolve com remédios convencionais. Para evitar a destruição do capital físico e humano a política monetária deve inicialmente ser direcionada a manter as empresas vivas através de crédito abundante, e não há por que impor limites. Ao final, as empresas estarão aptas a produzir, mas isto depende de nossa coragem e responsabilidade de fazer o que é necessário. A reação das empresas será mais rápida e intensa se os funcionários forem mantidos, preservando o investimento feito no seu treinamento. Mas é fundamental que não nos acovardemos. Aos tesouros dos países cabe realizar gastos em saúde que forem necessários – elevando a oferta de leitos de UTI, remédios e equipamentos –, e não economizar nas transferências de renda aos desassistidos, preservando o capital humano. A escala na qual isto já vem ocorrendo nos EUA e na Europa é uma medida do que é necessário.

A previsão é que a paralisação econômica durante o distanciamento social será seguida de uma recuperação, mas infelizmente a recessão na qual já estamos será profunda e duradoura, em escala mundial pior do que a de 2008/09. Há muitos cenários possíveis, todos cercados de muita incerteza, mas serei otimista se projetar que ao final de 2020 o PIB brasileiro tenha se contraído em apenas 5%. Estaremos mais habilitados a crescer em 2021 se formos mais ousados e responsáveis agora, mas sabemos, também, que se sairmos rapidamente do ‘lockdown’, como quer o nosso presidente, correremos o risco de uma nova aceleração do contágio, como em Cingapura e no Japão, o que aprofundaria ainda mais a recessão.

Começamos a enfrentar esta crise com uma situação fiscal frágil, e ao final deste ano teremos uma relação dívida/PIB próxima de 90%. Não é hora de tomar isto como um limite ao que é necessário. Gastemos agora o que for preciso, resistindo à pressão dos oportunistas, que são muitos, com o compromisso de sermos sérios no futuro. A equipe econômica tem a obrigação de reagir proporcionalmente à gravidade do problema sem se acovardar, escondendo-se das críticas de que gastamos demais. Se o fizemos, terá sido para evitar o pior.

A Bolsonaro resta curvar-se aos ensinamentos da ciência e abandonar a arrogância com a qual vem negando a necessidade do isolamento social. Ainda que ele seja contido em seus objetivos, influenciará os mais pobres e menos informados a violarem a quarentena, gerando o risco de uma aceleração da infecção, com consequências econômicas e sociais desastrosas.

Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados

Beijo, abraço, aperto de mão e o vírus - VINICIUS TORRES FREIRE

Folha de S. Paulo - 12/04

Não haverá um dia seguinte social e econômico até que se saiba o tamanho da epidemia



No dia depois do amanhã da epidemia, o aperto de mão deveria ser extinto, que dirá um beijo e um abraço, disse Anthony Fauci, o grande imunologista, consultor da Casa Branca para assuntos de Covid-19. Nos EUA, já é uma campanha.

Como vamos nos cumprimentar seria até um problema simpático para o dia seguinte, o dia da vitória contra o coronavírus. Mas não haverá um dia seguinte, a julgar pelo que dizem cientistas, mas arrastados meses de guerrilha contra o inimigo.

Um grande problema é que nem sabemos onde está o inimigo, pois ainda não há ideia de quantas pessoas já foram de fato infectadas. Assim, também não sabemos dos amigos, do risco de namorar, de crianças brincarem com os avós, de trabalharmos ao lado dos colegas e de nos juntarmos para qualquer atividade.

Por terrível que seja, o HIV pode ser contido por um pingo de juízo e um pedaço de borracha, mas uma conversa ingênua pode espalhar o corona. É um predador que pode nos esperar até na maçaneta, na maçã, na barra do ônibus ou no papel do pão.

Uma vitória de fato contra a epidemia depende, óbvio, de remédio que ao menos reduza a capacidade mortífera do corona à de um vírus da gripe, digamos, embora não se saiba qual a letalidade da Covid-19 (por falar nisso, nem mesmo precisamente a da gripe). “Por enquanto, exceto no que diz respeito a medidas de apoio, a infecção pelo SARS-CoV-2 é essencialmente intratável”, diz um editorial do “BMJ”, a reputada revista médica britânica, de 8 de abril.

Dizer que não se conhece a letalidade do coronavírus significa basicamente que não se sabe quantas pessoas foram infectadas (é menos difícil contar os mortos).

Um estudo amplo publicado na “Lancet” (“Estimates of the severity of coronavirus disease 2019: a model-based analysis”) estima que a letalidade seria de 0,66% (número de mortes por infectados na população em geral, não apenas entre “casos confirmados”). Pelos dados oficiais, a letalidade vai de menos de 2% (Coreia do Sul, Japão, Alemanha) a mais de 12% (Itália). Tal disparidade indica disparates nas contagens.

É mais um indício de que não sabemos quantos infectados há, com o que não sabemos quantas pessoas estão (possivelmente) imunizadas. Não sabemos com quem estamos falando. Com um imune? Doente assintomático? Vítima potencial? De quê? De qual risco de morrer?

Quantos casos teria tido a Itália até agora, por exemplo? Uns 150 mil, como diz a contagem oficial? Ou uns 2 milhões ou até 4 milhões (a depender de como se dê o chute, de qual número se use para a taxa de letalidade e para o tempo médio que a doença leva para matar)?

De qualquer modo, por estes números, a Itália ou qualquer lugar do mundo ainda estaria longe de ter chegado a um nível de imunização que dá cabo da epidemia. Logo, no “dia seguinte”, teremos de sair para a rua tateando, aos poucos, a não ser que sejamos salvos por avanços súbitos e ora inesperados na medicina.

Para que se tenha alguma boa medida da epidemia, é preciso fazer amostras nacionais, estudos que o Brasil e alguns países do mundo estão à beira de começar.

Enfim, trata-se aqui apenas de “um beijo, um abraço e um aperto de mão”, da volta do convívio social, da possibilidade de recomeço. Para recomeçar mesmo, haverá um sistema de relações e proteções sociais para refazer, uma economia para tirar da ruína, um sistema de cooperação internacional para reconstruir. É história para outro dia.

Erros e acertos no espelho da história - MÍRIAM LEITÃO

O Globo - 12/04

O que a democracia fez nos ajuda nessa pandemia, o que o país deixou de fazer está cobrando a conta e ela pode ser alta demais



O que fizemos certo como país e o que não fizemos aparecem agora diante de nós. O coronavírus trouxe um enorme espelho onde vemos com lucidez aguda os acertos e os erros. A democracia criou o SUS, formulou programas de transferência de renda e fez um cadastro dos mais pobres. Isso é a base para o trabalho de proteção dos brasileiros. A desigualdade, a falta de moradia decente, os esgotos não tratados e a má distribuição da água ameaçam transformar essa pandemia numa enorme tragédia social. E são os pobres e os negros os mais ameaçados. Como sempre.

O Brasil tem feito a si mesmo perguntas profundas neste tempo extremo. Uma delas é: onde estão os invisíveis? O país sempre conviveu com um fosso social imenso que divide os incluídos dos excluídos. Os com e os sem. No mercado de trabalho sempre houve os com carteira e os sem carteira. Dentro e fora das leis trabalhistas. Os sem carteira se dividem em vários grupos: trabalhadores informais, os que trabalham por conta própria, os empregadores sem CNPJ, os desempregados, os desalentados, os nem nem, os subutilizados. É uma multidão. São, evitando dupla contagem, 64,8 milhões. É a soma de toda a população da Argentina, de Portugal e da Áustria. Eles de alguma forma iam vivendo e gerando sua própria renda. O choque de realidade que a pandemia provocou trouxe todos eles para a cena principal. Quem são, onde estão, como fazer um caminho para entregar a eles os recursos públicos? Dúvidas do tempo presente.

Tudo o que foi feito nos governos democráticos nesses últimos 35 anos ajuda muito. É o que temos. Não é suficiente. O governo Sarney começou com o programa do leite, evoluiu para cestas básicas. Betinho avisou que a fome de outro brasileiro era inaceitável e nos ensinou a solidariedade. Cidades testaram a transferência de renda vinculada à presença da criança na escola, o Bolsa Escola. Para isso foi necessário fazer a ficha dos beneficiários. Campinas, Distrito Federal, Belo Horizonte passaram a criar cadastros. Outras cidades as seguiram. Depois veio o Bolsa Escola Federal, no governo Fernando Henrique, que fez o primeiro cadastro geral. Em seguida o Bolsa Família, no governo Lula, que unificou programas federais, ampliou a transferência e incluiu mais brasileiros no que se chamou de Cadastro Único. É incompleto, mas é a base que está sendo usada agora no auxílio emergencial.

Para ampliá-lo o governo pede, no meio dessa crise, que estejam todos, até as crianças, com os seus CPFs em dia. Essa exigência coloca os pobres em risco de vida. A mãe ou o pai de família precisam ir até um órgão público, aglomerar-se, para registrar aquele pequeno ser humano como contribuinte. Pronto. Se é um pagador de impostos então ele passou a existir. Essa exigência seria apenas surreal, se não fosse desumana. Na fila eles podem se infectar. A burocracia estatal, um dos nossos defeitos mais velhos, de novo coloca pedras no caminho.

Derrubar a superinflação indexada deixada pelo regime militar, e que virou hiperinflação, foi uma saga que consumiu dez anos de esforços. O real permitiu que mais brasileiros tivessem acesso a bens de consumo. A privatização produziu uma enorme inclusão no mundo da telecomunicação. Hoje é com esses celulares em mãos que os pobres estão tentando inscrever-se no auxílio emergencial. Na venda das teles criou-se um fundo cujo dinheiro deveria ter sido usado para informatizar todas as escolas públicas e universalizar a banda larga. É o Fust, Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicação. Arrecada R$ 1 bi por ano e tem R$ 20 bilhões em caixa. O governo acaba de decretar o seu fim. Se a tarefa tivesse sido executada, seria possível hoje ter todas as crianças na escola, ainda que remotamente.

Fizemos casas para os pobres e nem de longe foi o suficiente. Nas favelas, o risco é aterrorizante. O serviço de água tratada é irregular. Como lavar as mãos? Nas moradias não há espaço. Como isolar algum eventual infectado? As falhas da política habitacional e do planejamento urbano cobram a conta. O SUS espalhou-se pelo país e com todas as suas falhas é a melhor rede que temos para acolher os brasileiros.

O que fizemos de certo nos 35 anos de democracia nos ajudará nessa emergência humanitária. O que deixamos de fazer cobrará a conta e ela talvez seja alta demais. Que a dor dessa travessia nos ensine.

A revolta da cloroquina - VERA MAGALHÃES

ESTADÃO - 12/04

Assim como a reação à vacina em 1904, a apologia a um remédio é irracional e perigosa


Cada epidemia que assola a humanidade tem seus surtos de irracionalidade, ignorância e aproveitamento político associados. Não é diferente com a covid-19, e o fenômeno não é uma exclusividade do Brasil, embora por aqui estejamos nos esforçando para passar à frente no campeonato desses efeitos incidentais.

Em 1904, o Rio de Janeiro viveu a Revolta da Vacina. O presidente Rodrigues Alves nomeou o médico sanitarista Oswaldo Cruz para tentar conter os surtos concomitantes de varíola, febre amarela e peste bubônica, que assolavam uma população crescente que vivia em condições sanitárias precárias. A obrigatoriedade de vacinação para a varíola, aprovada pelo Congresso, foi o estopim para uma revolta popular instrumentalizada por grupos políticos em novembro daquele ano.

Mais de um século depois, diante da pandemia do novo coronavírus, outra reação irracional e perigosa, insuflada por políticos e seus apoiadores, confunde a população e desarticula a estratégia nacional para o combate à propagação do vírus.

Trata-se da pregação do uso de cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da covid-19. Na última semana, o debate, que já era intenso nas hostes bolsonaristas, ganhou emissoras de TV aberta, fez com que o ministro da Saúde, Luiz Mandetta, fosse forçado a se pronunciar e colocou na berlinda até médicos conceituados, instados por comunicadores a dizer se haviam ou não usado os medicamentos em seus próprios tratamentos.

O uso dos dois fármacos no tratamento da covid-19 é controvertido: resultados positivos na evolução de alguns pacientes são relatados pelo mundo, bem como complicações que não só não resultam na propalada cura como pode fazer com que os pacientes evoluam para óbito.

Seu uso mais efetivo, até aqui, foi observado em laboratório, em dosagens e condições que não podem ser replicadas em pacientes. Seu efeito tem sido mais efetivo quando em associação com outras drogas, como antirretrovirais e corticoides. Esse coquetel só pode ser prescrito por médicos, de acordo com o histórico e as condições de cada doente.

Mas não é isso que se vê nas insanas redes sociais e na movimentação deliberada de Jair Bolsonaro. O que se tem é uma propaganda irresponsável dos poderes da cloroquina e da hidroxicloroquina, sem comprovação científica que a ampare. Chegou-se ao ridículo de parlamentares sempre dispostos a pagar mico para bajular Bolsonaro subirem hashtags como #RemediodoBolsonaro e #JairNobeldaPaz.

A “revolta” da cloroquina e da hidroxicloroquina embute riscos graves. O primeiro e mais evidente é contrapor seu efeito “milagroso” à necessidade de isolamento social, como se o uso liberasse as pessoas a relaxarem a quarentena. O efeito da semana da histeria cloroquínica foi justamente esse: em todo o País os índices de isolamento regridem perigosamente.

Sem testes em quantidades mínimas, o incentivo de Bolsonaro para que as pessoas voltem às ruas tem potencial genocida. Seu novo tour por Brasília, um dos lugares do Brasil que primeiro adotaram regras duras de distanciamento social, é um desserviço presidencial à saúde pública. Displicente, limpou o nariz no antebraço antes de dar a mão a simpatizantes, entre os quais idosos. Uma cena capaz de chocar um mundo quarentenado e envergonhar o Brasil.

Caso prospere a narrativa de que basta pressionar médicos para que receitem medicamentos de eficácia ainda não comprovada e todos podem sair por aí livremente, vamos viver uma tragédia. Neste caso, o presidente não será candidato ao Nobel da Paz (risos), mas sim ao título de chefe de Estado que pior lidou com o mais grave problema enfrentado pela humanidade neste século.

Espinhosa travessia - PEDRO MALAN

ESTADÃO - 12/04

O desafio histórico para verdadeiros líderes é gerir a crise enquanto constroem o futuro


A crise em que se veem o Brasil e o mundo é a um só tempo sanitária, econômica e social. Para enfrentá-la precisamos, mais que nunca, de serena combinação de humildade e confiança da parte de suas lideranças. Humildade para reconhecer o alto grau de incerteza e riscos presentes, confiança em que teremos capacidade para nos erguermos à altura dos desafios. É preciso também reduzir conflitos - com o Congresso, governadores, comunidade científica, mídia profissional, parcela expressiva da opinião pública e até mesmo com os fatos.

Marcus André Mello recorre a Maquiavel na abertura de seu belo artigo na Folha desta semana: “Os príncipes devem transferir decisões importunas para outrem, deixando as agradáveis para si”. O autor mostra quão complexos podem ser os mecanismos de “reivindicação de crédito e de transferências de culpas por decisões impopulares”. E conclui: “Na atual pandemia, são três as lições a tirar para Trump, Johnson e Bolsonaro: ter começado mal importará pouco; transferir responsabilidades não funcionará. (...) E mais importante, a crise revelará sua real capacidade de liderança, não há como escapar”.

A velocidade de contágio do vírus atesta de forma dramática as interações necessárias do mundo da política nacional, regional e internacional. Em artigo recente, Henry Kissinger afirma que nenhum país poderá superar de forma isolada um problema que é global, e cujas consequências econômicas e políticas estarão conosco por gerações. Para o experiente analista, impõe-se aos EUA um grande esforço em três áreas: contribuir para aumentar a resiliência global a doenças infecciosas; fazer mais do que foi feito em 2008/09, porque a situação agora é muito mais complexa; e lembrar as razões que levaram os EUA a cooperar com outros países nos arranjos internacionais que marcaram o mundo do pós-guerra. O desafio histórico para verdadeiros líderes é administrar a crise enquanto constroem o futuro.

Com efeito, lideranças nacionais serão inevitavelmente avaliadas não só pela opinião pública doméstica, como também pela percepção dos outros países. Importa como nos vemos, mas importa também como somos vistos por outros. Afinal, 2020 será marcado por uma brutal recessão na economia mundial e no comércio internacional, muito mais intensa que a de 2008/09. A magnitude dos efeitos sobre oferta, cadeia de suprimentos, demanda e, portanto, sobre emprego e renda não permitirá uma recuperação rápida em 2021. Pesa, ademais, o receio de uma segunda onda da covid-19 ainda em 2020.

“Abril é o mais cruel dos meses” escreveu o poeta T. S. Eliot (A terra desolada, 1922). Está sendo em 2020. Mas não terá sido menos cruel março, quando a epidemia virou pandemia e atingiu, em mais de 140 países, o primeiro milhão de casos registrados (certamente uma subestimativa), que terão alcançado 2 milhões nos primeiros 12 dias de abril. Aguarda-se maio com trepidação.

Graças ao trabalho extraordinário da mídia profissional - que deu e dá espaço inestimável a epidemiologistas, médicos e profissionais da área -, parte expressiva da opinião pública compreendeu que a capacidade do sistema nacional de saúde não comportaria um fluxo excessivo de demandas por cuidados hospitalares, em particular leitos com respiradores em UTIs. Daí a necessidade de políticas de isolamento social, para que o pico da epidemia fosse menos intenso e diferido no tempo. A política do Ministério da Saúde foi explicada com clareza e transparência pelo ministro Mandetta e sua equipe. A política de assistência emergencial aos mais vulneráveis, aos informais, às pequenas e médias empresas, e à preservação do emprego, era e é absolutamente necessária e pôde apoiar-se na aprovação pelo Congresso da declaração de calamidade pública.

O vírus e a necessidade de respostas simultâneas que ele impõe vêm desvendando de forma dramática a extensão de nossas desigualdades e fragilidades sociais - nas áreas de saúde pública, saneamento, educação. São temas que vieram para ficar, com intensidade renovada, e estarão presentes em qualquer debate futuro, muito após o momento em que houver sido superada a atual pandemia.

O Brasil sairá diferente, e espero que melhor, ainda que gradualmente, se algumas importantes lições desta sofrida experiência puderem ser aprendidas. Se alcançarmos grau de capital cívico mais elevado, renovação relevante de lideranças políticas, maior confiança e credibilidade dos governantes junto à maioria da população.

Decorrido quase um terço de século da Constituição de 1988, o sonho de criação de um Estado de bem-estar social está a passar por seu mais sério teste. O Brasil descobre quão difícil é implementar o generoso (e de todo desejável) objetivo de construir um Estado garantidor do alento de aposentadoria para todos e de serviços de saúde e educação universais. Isso envolve custos elevados para a sociedade, e exige clara definição de prioridades numa visão de médio e longo prazos, que alcança o País em que gostaríamos que nossos filhos e netos pudessem viver.

As lições do vírus paradoxalmente ajudam nesse importante diálogo do País consigo mesmo; diálogo sobre um futuro que com frequência permitimos seja adiado.

ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FHC

Um só bolso - MARCOS LISBOA

FOLHA DE SP - 12/04

No Brasil, oportunismo usa o pânico para pagar despesas que nada têm a ver com a pandemia às custas da sociedade

Na semana passada, houve um intenso debate sobre as propostas de auxílio aos estados, que perderam arrecadação e precisam de recursos para cuidar da saúde pública e dos efeitos colaterais decorrentes da pandemia.

No entanto é preciso separar os alhos dos bugalhos. Há anos, a despesa obrigatória de muitos estados, sobretudo a folha de pagamentos, é incompatível com a sua arrecadação.

Vale lembrar que Minas Gerais, com a corda no pescoço, concedeu, irresponsavelmente, reajustes salariais expressivos. Jogou gasolina e depois pede que a sociedade apague o incêndio?

Outros, como o Rio de Janeiro, descumprem seguidamente os acordos assumidos e continuam a gastar como o rapaz destrambelhado que conta com o pai para livrá-lo da encrenca.

O STF concedeu liminar para São Paulo que suspende temporariamente o pagamento das suas dívidas com a União. Resta saber se o alívio será integralmente destinado aos gastos para tratar da calamidade.

O Congresso já havia aprovado compensar os estados pela queda das transferências federais. Agora, demandam que também sejam compensados pela menor arrecadação do ICMS, estimada em R$ 36 bilhões neste trimestre. Esquecem que o país ficou mais pobre.

Como se não fosse suficiente, os estados propõem postergar o pagamento das suas dívidas e fazer novos empréstimos com aval da União, que terá que arcar com o prejuízo em caso de calote. Este cenário é provável dado que muitos já estavam inadimplentes antes da crise.

Os benefícios propostos somam quase R$ 150 bilhões. Entretanto deputados afirmaram que o valor da fatura não chega a R$ 100 bilhões.

Esclarecendo. A conta total do pacote inclui o que já foi dado neste ano e o que mais estava em deliberação. O número da Câmara se refere apenas ao adicional em discussão na última semana, com o argumento de que são contas separadas. Não são. O bolso é um só.

Em qualquer dos casos, o valor é muito superior à queda da arrecadação. Tem gente querendo sair da crise melhor do que entrou.

Os países estão abrindo o cofre para cuidar da saúde e da economia. A ajuda aos estados deveria se limitar a gastos temporários, sem novos empréstimos. No Brasil, porém, o oportunismo usual se aproveita do pânico para pagar despesas que nada têm a ver com a pandemia às custas do endividamento da sociedade.

Como nem tudo é má notícia, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, é a exceção que faz o dever de casa.

Na economia, desde o começo negociou ajustes impensáveis para os demais. Na saúde, convidou quem entende de ciência para verificar o tamanho da encrenca e combater a pandemia. A cereja do bolo foi anunciar que vai cortar o próprio salário em 30%.

Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.

Bolsonaro é burro mesmo - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 12/04
O presidente está cavando sua própria sepultura política, atitude incompatível com inteligência

Em 31 de maio de 2019, quando o mundo era outro, publiquei a primeira coluna em que perguntava se Bolsonaro era um sujeito inteligente, que se vale de estratégias mais ou menos elaboradas para alcançar seus objetivos, ou apenas um oportunista que teve duas ou três intuições corretas e muita sorte. À época, admitia que as duas leituras eram possíveis.

Penso que hoje já é possível responder à questão de forma mais assertiva e concluir, quase definitivamente, que Bolsonaro é burro mesmo. Uma guerra ou pandemia (os efeitos políticos são parecidos) é o sonho de consumo de líderes em dificuldades. Elas oferecem o pretexto ideal para o governante evocar o discurso da união nacional e surfar na subsequente onda de popularidade.

Não é uma coincidência que regimes moribundos frequentemente provoquem um conflito armado para tentar legitimar-se pela guerra, como fizeram os generais argentinos nas Malvinas em 1982. Não deu certo porque perderam no teatro militar, mas praticamente toda a oposição cerrou fileiras com os ditadores.

Levantamento do site The Brazilian Report feito em oito países mostrou que Bolsonaro e o presidente mexicano, que também flertava com o negacionismo, foram os únicos que não experimentaram aumento de aprovação por causa da Covid-19. Mesmo dirigentes de nações que lidam com pilhas de cadáveres, como a Itália e os EUA, recuperaram popularidade.

Mais, a epidemia é um tipo de crise que faz com que políticos que não tenham cargos públicos praticamente desapareçam. Foi o caso de Joe Biden nos EUA. A figura que cresceu ali foi a do governador de Nova York, Andrew Cuomo. Aqui no Brasil, Luciano Huck se apaga, enquanto ganham visibilidade Doria, Witzel, Maia e Mandetta.

A menos que Bolsonaro tenha acesso a conhecimentos privilegiados sobre a Covid-19, ele está cavando sua própria sepultura política, atitude incompatível com inteligência.

Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".

Barreira legal - MERVAL PEREIRA

O Globo - 12/04
O STF tem sido uma barreira de contenção a ações autoritárias do governo nesses tempos da pandemia de Covid-19



O Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido uma barreira de contenção a arroubos autoritários do governo nesses tempos da pandemia de Covid-19. Várias decisões já foram tomadas para definir os limites de atuação dos governos estaduais e municipais na implementação de medidas mais rigorosas de isolamento social, mesmo à revelia do governo federal. O presidente do STF, ministro Dias Toffoli, defende que a segurança jurídica de decisões urgentes seja garantida, mesmo que prazos e exigências legais sejam alterados pela situação excepcional. Somente um ministro, Ricardo Lewandowski, não entendeu o momento especial que vivemos e barrou com burocracia sindicalista a permissão para que as empresas entrem em acordo com os empregados para cortes salariais equivalentes à redução da carga horária de trabalho.

A exigência de intermediação de sindicatos para esses acordos tem criado problemas para as empresas que já os formalizaram, inclusive aumentando os seus custos, pois há sindicatos cobrando taxas de empregados e empregadores para homologar os acordos trabalhistas. Na próxima quinta-feira o plenário do Supremo decidirá essa questão.

O vice-presidente do STF, Luiz Fux, que assumirá a presidência da Corte em setembro, tem se posicionado em entrevistas e artigos a favor da necessidade de “sensibilidade judicial superior ao mero dogmatismo jurídico”.

O valor da saúde pública e a prevalência da ciência em momento sem precedentes devem guiar as ações judiciais, defende Luiz Fux, que cunhou a máxima “coronavírus não é habeas corpus”, para chamar a atenção do perigo que as decisões genéricas de soltura de presos por causa do novo coronavírus representam para a sociedade.

Essa atitude pode criar uma “política criminal perversa e de danos irreversíveis”. De acordo com o ministro Luiz Fux, cada magistrado deve levar em conta as consequências de sua decisão, pois a liberação de presos de periculosidade real é moralmente indesejada pela sociedade.

Exemplo de contenção foi a decisão do ministro Luís Roberto Barroso, que proibiu o governo federal de veicular a campanha publicitária “O Brasil não pode parar”, incentivando a população a retornar à vida normal, pois a situação é “gravíssima” . Na avaliação de Barroso, a propaganda “desinforma” as pessoas. “Em momento em que a Organização Mundial de Saúde, o Ministério da Saúde, as mais diversas entidades médicas se manifestam pela necessidade de distanciamento social, uma propaganda do governo incita a população ao inverso. Trata-se, ademais, de uma campanha ‘desinformativa’: se o poder público chama os cidadãos da ‘Pátria Amada’ a voltar ao trabalho, a medida sinaliza que não há uma grave ameaça para a saúde da população e leva cada cidadão a tomar decisões firmadas em bases inverídicas acerca das suas reais condições de segurança e de saúde”, alertou Barroso.

Também o ministro Marco Aurélio Mello estabeleceu que governadores e prefeitos têm autonomia para determinar restrições à locomoção das pessoas em estados e municípios, tornando sem valor uma medida provisória do governo que estabelecia que somente as agências reguladoras federais poderiam editar restrições à locomoção dos cidadãos.

Na disputa de Jair Bolsonaro com os governadores, venceram esses, com o apoio do Supremo, fazendo com que as medidas de restrição à circulação ganhassem força, embora o governo federal também possa tomar decisões sobre o tema, considerando que, diante da pandemia do novo coronavírus, deve-se “ter a visão voltada ao coletivo”.

O ministro Gilmar Mendes também se manifestou diversas vezes pelas redes sociais, inclusive na crise entre Bolsonaro e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. De acordo com ele, o presidente da República tem todo o direito de demitir ministros de Estado, se considerar conveniente, mas não pode adotar “políticas genocidas”.

No menosprezo à vida e à ciência Bolsonaro é coerente - ROLF KUNTZ

ESTADÃO - 12/04

Defendendo armas e combatendo radares, ele já desprezou a vida


Rainha da Inglaterra? Nada disso. Bolsonaro é muito diferente. Elizabeth II fala corretamente seu idioma, é informada, tem compostura e respeita os limites constitucionais. Nunca menosprezou a cultura, nem a ciência, nem a vida de seus súditos. O presidente brasileiro foi comparado à rainha, impropriamente, porque o ministro da Saúde tem dado pouca atenção a seus palpites.

Além disso, milhões de cidadãos apoiam o isolamento social, contrariando a orientação do assim chamado chefe de governo. Nem no Executivo suas palavras são levadas a sério, como nos primeiros tempos. No entanto, o capitão é a mesma figura, coerente no despreparo, na pobreza intelectual, no menosprezo à vida de seus concidadãos e no desprezo à ciência.

“Infelizmente algumas mortes terão”, disse o presidente, em seu dialeto, no dia 27 de março. “Paciência, acontece, vamos tocar o barco”, acrescentou. Segundo ele, as consequências do esfriamento econômico seriam “mais danosas do que o próprio vírus”. Traduzidas para o português corrente, essas palavras só podem significar: as mortes de alguns milhares de pessoas, nesta altura, são preferíveis às perdas de produto e renda, à quebra de algumas empresas e ao provável aumento do desemprego. Que as perdas econômicas sejam superáveis, ao contrário das perdas de vidas, parece ter pouca ou nenhuma importância para sua excelência.

Esse menosprezo à vida alheia foi novamente exibido, em Brasília, dois dias depois. “Vamos enfrentar o vírus com a realidade”, propôs o presidente. “É a vida. Todos nós iremos morrer um dia”, continuou. E então? Se todos morrerão um dia, será isso um motivo para atravessar a rua sem cuidado ou para jogar bituca de cigarro num posto de gasolina? Ele falou, enfim, como se a certeza da morte como destino final de cada um tornasse a vida um traste sem valor. Detalhe interessante: esses comentários foram feitos durante um passeio em Brasília, no meio de um ajuntamento, situação propícia ao contágio, à multiplicação de doentes e, portanto, ao risco de morte para muitas pessoas.

Ninguém se espantará com essa atitude se lembrar o presidente Bolsonaro nos primeiros meses de mandato. Facilitar a posse e o porte de armas foi uma de suas prioridades. Desemprego elevado e economia emperrada nunca tiveram destaque em seus pronunciamentos, até recentemente. Muito mais importante era armar a população. Ele também se empenhou, em 2019, em relaxar os controles de segurança nas estradas, defendendo a remoção e a redução de radares. Propôs, além disso, a ampliação do limite de pontos por infrações de trânsito.

Mais armas de fogo, mais pontos na carteira e menor controle por meio de radares são claros sinais de desprezo à vida. Tão claros quanto a negação do risco de contágio e de morte pelo novo coronavírus. A comparação da covid-19 com uma gripezinha já virou assunto internacional. Motivo de escândalo fora do Brasil, essa atitude foi citada, num comentário reprovador, pelo primeiro-ministro da Grécia, Kyriákos Mitsotákis. Depois de apontar o erro do presidente brasileiro, Mitsotákis lembrou a proteção da vida como primeira obrigação de seu governo.

Segundo Bolsonaro, a maioria das pessoas precisa trabalhar, muitas delas sem perder um dia. É verdade, mas hoje é preciso, em primeiro lugar, proteger a vida dessas pessoas. É obrigação do Estado. Com alguma demora, o ministro da Economia, Paulo Guedes, assumiu essa tarefa e montou, com sua equipe, um plano de ajuda aos trabalhadores mais vulneráveis e a seus empregadores. O plano pode ter falhas, mas é uma resposta séria à emergência. O governo pouco fez em 2019 para desemperrar a economia e criar empregos. Não por acaso o produto interno bruto (PIB) cresceu apenas 1,1%, taxa menor que a do ano anterior, 1,3%. Mas a equipe econômica se dispôs, enfim, a enfrentar a pandemia, dando atenção aos trabalhadores e suspendendo a arrumação fiscal, com apoio do Congresso.

E o presidente, por que se mostra tão interessado, afinal, pela saúde da economia, depois de haver negligenciado o assunto no ano anterior? Pode ser difícil uma resposta precisa, mas há uma explicação pelo menos compatível com seu perfil: além de atender a pressões empresariais, ele tenta reverter o desgaste político, preocupado com seu grande objetivo pessoal, a reeleição.

O presidente Bolsonaro também é coerente ao desprezar a ciência. O desprezo se manifesta quando ele se opõe ao isolamento social, contrariando a experiência estrangeira, assim como as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Fica também evidente quando ele insiste em difundir o uso da cloroquina. A substância tem sido usada em casos graves, mas faltam dados sobre sua eficiência para outros pacientes. Além disso, cardiologistas apontam efeitos colaterais, com risco de morte. Esse Bolsonaro é aquele mesmo empenhado, em 2019, em negar as informações do Inpe, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. O presidente de hoje, enfim, é o mesmo das queimadas, da recusa da ciência e da guerra à cultura.

JORNALISTA

Opção pela vida - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 12/04
É hora de toda a sociedade aumentar a adesão ao isolamento. Sem isto, a recuperação econômica será mais penosa para toda a Nação

Desde a eclosão da pandemia de covid-19, líderes no mundo inteiro foram instados a responder o que deveria ser prioritário no desenho das ações de enfrentamento da crise: medidas que visam à proteção da vida ou da economia? Para salvar o maior número possível de vidas, dizem quase em uníssono os especialistas, impõe-se o isolamento indistinto da população. Para resguardar a atividade econômica, este recolhimento deveria ser seletivo, ou seja, válido apenas para as pessoas que estão nos grupos de risco – idosos e pacientes com doenças crônicas como diabetes e hipertensão, entre outras comorbidades.

Os líderes mais inteligentes e responsáveis perceberam de pronto que priorizar a vida ou a economia é um falso dilema. Evidentemente, medidas de proteção da vida devem preceder todas as outras. Primeiro, por um imperativo moral, humanitário. Segundo, por uma questão pragmática: não há economia que pare de pé, em nenhum país do mundo, tendo deixado um rastro interminável de mortos. E é isto o que acontecerá se apenas determinados grupos forem isolados. Por ignorância ou má-fé, os que apostam no isolamento seletivo para mitigar os efeitos da pandemia na atividade econômica não levam em conta que, mesmo permanecendo em casa, pessoas nos grupos de risco estarão sempre expostas ao contágio pelo contato com as que foram liberadas para sair às ruas. É elementar.

O presidente Jair Bolsonaro é um dos escassos líderes mundiais que tomaram lado nesta contenda infrutífera, que, se presta para alguma coisa, é para alavancar interesses políticos. Sua opção ficou claramente conhecida por meio de declarações como “Vai morrer gente? Vai. Paciência”, “Esse vírus é igual a chuva. Vai molhar 70% de vocês. Alguns idosos vão se molhar também” e “Pessoas que estão morrendo de covid-19 já iriam morrer de outras causas”. Que tal?

Por sorte, o olhar do presidente da República sobre a pandemia não é o mesmo da esmagadora maioria da população, que fez uma clara opção pela vida. Pesquisa realizada pelo Datafolha com 1.511 brasileiros adultos que possuem telefone celular, em todas as regiões do País, revelou que 76% dos entrevistados apoiam medidas restritivas à circulação de pessoas e fechamento do comércio não essencial para evitar a disseminação do novo coronavírus, ainda que isso prejudique temporariamente a economia e leve ao aumento do desemprego. Apenas 18% dos brasileiros ouvidos pelo instituto de pesquisa disseram ser favoráveis ao relaxamento da quarentena como forma de estimular a atividade econômica, enquanto 6% não souberam ou não quiseram responder.

Entre os que defendem apenas o isolamento de pessoas que integram os grupos de risco, 43% são homens, 49% são empresários e 45% têm entre 35 e 44 anos. Não por acaso, são perfis que correspondem à base de apoio do presidente Jair Bolsonaro.

Outro achado da pesquisa que merece destaque diz respeito à percepção dos trabalhadores informais e dos desempregados, estratos da sociedade que estão entre os mais atingidos pelos efeitos econômicos da pandemia. Embora o presidente Bolsonaro defenda o relaxamento da quarentena para preservar a renda “do camelô, do ambulante, do vendedor de churrasquinho”, 58% dos informais concordam que o isolamento irrestrito é fundamental para preservação da vida neste momento. O mesmo vale para 63% dos entrevistados que disseram estar procurando emprego. Importante ressaltar ainda que a rejeição a Jair Bolsonaro aumentou 10% entre os informais e 4% entre os desempregados, não obstante a defesa que o presidente faz da retomada da atividade econômica que, ao fim e ao cabo, beneficiaria os dois segmentos, ainda que sob forte risco para a saúde pública.

Como se vê, é inequívoco o respaldo social à quarentena. Para a maioria dos cidadãos, está claro que o abalo na economia é certo, seja durante, seja após a pandemia de covid-19, mas a economia pode ser recuperada, vidas, não. É hora de toda a sociedade se engajar ainda mais nas ações de resguardo da saúde pública, o que implica aumentar a adesão ao isolamento. Sem isso, a recuperação econômica será mais penosa para toda a Nação.