sexta-feira, abril 03, 2020

Bolsonaro se alimenta do ressentimento contra a 'tirania dos especialistas' - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 03/04

Desta vez, o lobo existe mesmo e as pessoas têm razão em temer o coronavírus


Aqui de longe, na Europa, acompanhando o cenário de medo e morte que corre por estas bandas, confesso um certo fascínio com a irresponsabilidade de Jair Messias Bolsonaro. De onde vem essa “hubris” que leva o presidente a desprezar um vírus potencialmente letal?

De onde vem a atitude guerreira de desconfiar do confinamento, o único método comprovadamente eficaz para evitar o crescimento exponencial de casos e o colapso do sistema de saúde?

Itália, convém lembrar, tem um bom sistema de saúde, com um número razoável de unidades de cuidados intensivos. Já enterrou 14 mil mortos. Espanha, aqui ao meu lado, mais de 10 mil.

A ignorância não é explicação: há momentos em que o ignorante, assoberbado pela violência das circunstâncias, procura ajuda competente.

A preocupação com a economia seria uma atitude compreensível porque sem dinheiro não haverá saúde para ninguém –razão pela qual a Alemanha pondera criar “certificados de imunidade”, documentos que atestam a recuperação total de alguns cidadãos que poderiam, assim, voltar ao trabalho.

Mas a imprudência de Bolsonaro se alimenta de outras águas: um ressentimento antigo, quase instintivo, contra a “tirania dos especialistas”. A grande diferença, dessa vez, é que o lobo existe mesmo e os especialistas, os verdadeiros especialistas, têm razão em temer o bicho.

Uma boa forma de compreender o impasse do momento é ler um autor singular com um ensaio ao mesmo nível. O nome é Martim Vasques da Cunha, que concedeu uma entrevista importante à Folha a propósito do seu livro “A Tirania dos Especialistas – Da Revolta das Elites do PT à Revolta do Subsolo de Olavo de Carvalho”.

É um ensaio notável e denso, onde o Brasil é apresentado como vítima de duas tenazes.

De um lado, existe o que Vasques da Cunha designa por “revolta das elites”, uma expressão cara a Christopher Lasch, e que significa a adesão do intelectual orgânico à velha tentação demiúrgica de transformar a realidade à luz dos seus princípios iluminados.

As elites das universidades, da cultura, da mídia, gravitando em torno desse planeta imenso chamado PT, foram construindo, ao longo dos anos, uma narrativa que não apenas ignorava a realidade como a procurava suplantar.

E quando essa mesma realidade dava sinais de vida, procurando romper as muralhas fechadas do castelo, a função do intelectual nunca passou por escutar ou compreender o rumor que ascendia do solo e do subsolo. Faz parte do “racionalismo em política” reduzir qualquer dissonância, e, sobretudo, qualquer dissonância de natureza prática, a uma mera questão técnica, que a razão facilmente classifica e resolve.

O que a razão, por si só, não é capaz de classificar e resolver, não demonstra, “ipso facto”, as limitações epistemológicas do sujeito. Mostra, isso sim, as limitações das massas que devem ser simplesmente ignoradas como primitivas que são.

O grande problema, esclarece Vasques da Cunha, é que as massas do subsolo não desparecem. Elas vão se constituindo como um exército vitimário e ressentido, pronto para a sua revolta.

Se juntarmos a esse exército faminto um líder de seita que fez do “curto-circuito de paralogismo” a sua igreja –a transformação do auto-exílio e da auto-marginalidade em fonte de autoridade e poder incorruptível– temos os condimentos para o grande enfrentamento entre as elites do PT e o subsolo de Olavo de Carvalho.

O livro de Martim Vasques da Cunha é precioso para entendermos a constituição desses dois exércitos no século 21 brasileiro. Mas seria um erro olhar para ambos como planetas distantes. Na verdade, são espelhos um do outro no mesmo desejo de poder e na mesma ambição de criar ou recriar o mundo à luz das suas ideias.

Cumprindo o calvário clássico do neurótico, eles se veem como vítimas e como deuses, o que os excluir do círculo da dúvida e da responsabilidade. São perigosos e nem sabem como o são.

“Se nem toda a gente sente o que digo, a falta é minha”, escreveu Montaigne. Mas os especialistas tirânicos, de esquerda ou de direita, do PT ou de Olavo, não têm qualquer falta. Se nem toda a gente sente o que eles dizem, o problema é dos outros e os outros que se danem.

Em condições normais, essa mistura de alienação e “pleonexia” seria cómica –apenas um espetáculo grotesco para divertir os intelectos civilizados.

Em tempos de peste, deixar aos comandos um ressentido do subsolo é uma forma cruel que o destino encontrou para punir esses pequenos deuses.

João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Não é hora de brincar com a sorte - ROGÉRIO FURQUIM WERNECK

O GLOBO/ESTADÃO - 03/04
É alarmante a desarticulação com que o governo federal vem preparando o País para o impacto da crise

Prestes a ser colhido em cheio por uma pandemia devastadora, com desdobramentos econômicos e sociais de proporções dramáticas, o País assiste, perplexo, ao desenrolar, no Planalto, de uma extemporânea e deprimente ópera-bufa que a cada dois dias volta a alimentar o temor de que, a qualquer momento, o ministro da Saúde venha a ser demitido pelo presidente da República. Por duas falhas imperdoáveis: ter insistido numa linha clara e bem fundamentada de combate à epidemia e, pior, ter mostrado mais sucesso do que deveria no desempenho do cargo.

Essa é só uma das evidências mais gritantes da alarmante desarticulação com que o governo federal vem preparando o País para o impacto da crise. Em contraste com países que enfrentam a pandemia em formação cerrada, entre nós a cúpula do governo ainda não conseguiu se mobilizar para levar adiante uma ação nacional concertada de resposta à crise.

Diante da complexidade do que terá de ser enfrentado, as graves limitações do presidente já não podem mais ser disfarçadas. Têm sido escancaradas, a cada dia, à luz do sol. Já não há mais espaço para autoengano. Permito-me reproduzir a seguir o que afirmei sobre Bolsonaro quando pela primeira vez o mencionei em artigo aqui, cinco meses e meio antes das eleições, em 20/4/2018: “A verdade verdadeira é que Bolsonaro, tomado pelo que de fato é, e não por fantasias do que poderia vir a ser, não tem nem estatura nem preparo para ser presidente”. E, tendo dito isso, concluí o artigo com uma frase que se revelou tristemente premonitória: “A esta altura, em meio ao atoleiro em que foi metido, o País já deveria ter aprendido, de uma vez por todas, quão desastroso pode ser entregar a Presidência da República a uma pessoa patentemente despreparada para o exercício do cargo”. Mas, no calor da dura batalha que já vem sendo travada, pouco adianta chorar sobre o leite derramado. A questão agora é saber se, apesar da acefalia de que está acometida a Presidência da República, a crise ainda poderá ser enfrentada de forma minimamente eficaz.

Há quem se anime com a fantástica metamorfose que se observou na Casa Branca nos últimos dias. Bastaram as primeiras informações assustadoras sobre o avanço devastador da pandemia em Nova York para que Donald Trump se desvencilhasse de seu discurso inconsequente e populista e, da noite para o dia, se transformasse em comandante em chefe das forças que darão combate sem tréguas ao coronavírus nos EUA.

Mas é bom ter em conta que, por primitivo que possa parecer, Trump está muito à frente de Bolsonaro na cadeia evolutiva dos animais políticos. E, por mais fixado em Trump que continue a ser, o presidente pode levar mais tempo do que se imagina para mudar sua postura no combate à pandemia.

Enquanto isso, o País não tem melhor alternativa do que se mobilizar para manter e reforçar a precária rede de racionalidade que, a duras penas, ainda vem dando sustentação à articulação de uma resposta consequente à crise na esfera federal. Uma rede que vem tendo como esteios ministros de maior estatura, lideranças do Congresso, ministros do Supremo, governadores, prefeitos de capitais e parte substancial da sociedade civil, liderada pela mídia.

Nesse esforço para manter o presidente sob controle, é importante não confundir seus recuos tácitos com mudanças permanentes e convictas de postura. Basta ter em mente a longa lista de seus ministros e auxiliares que, ao longo dos últimos 16 meses, foram submetidos a processos de fritura. Em quase todos os casos, a demissão foi precedida de lento desgaste, marcado por recuos recorrentes do presidente, que, a cada vez, pareciam sugerir que as razões para demissão haviam desaparecido.

Há muito em jogo. Não é hora de brincar com a sorte. É preciso que Bolsonaro entenda a gravidade da situação e perceba com toda clareza que, se continuar conspirando contra a articulação de uma resposta racional à crise, estará fadado a ser confrontado com um processo de impeachment.

*ECONOMISTA, DOUTOR PELA UNIVERSIDADE HARVARD, É PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA PUC-RIO

Um presidente cercado - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 03/04


Vivemos situação impar na história recente, a de um presidente que para sobreviver precisa desmontar o próprio governo. Para seu desespero, Bolsonaro hoje tem pelo menos três ministros indemissíveis. Aos superministros da Economia, Paulo Guedes, e da Justiça e da Segurança Pública, Sergio Moro, juntou-se nessa crise do Covid-19 o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta.

Guedes, porque representa a garantia de um caminho seguro na Economia, por mais que possam haver discordâncias pontuais sobre sua atuação. Nossa economia não resistiria à demissão do Posto Ipiranga, cuja presença na equipe do candidato Bolsonaro certamente foi fundamental para o apoio de uma classe de eleitores que normalmente não escolheria o capitão sem saber que estaria no comando da economia.

Se não tivesse anunciado com antecedência a presença de Paulo Guedes em sua equipe, o candidato do PSDB Geraldo Alckmin, com Arminio Fraga a apoiá-lo, teria mais chances.

O ministro da Justiça Sérgio Moro tem outra razão para ser indemissível: desde que foi escolhido, com Bolsonaro já eleito, transformou-se na garantia de que o novo governo combateria a corrupção na linha da Operação Lava Jato. De lá para cá, mesmo tendo recuado em alguns momentos do confronto com uma linha mais radical de Bolsonaro, e de ter sido exposto a uma campanha de descrédito claramente política, Moro conseguiu manter-se símbolo do combate à corrupção, mais popular do que Bolsonaro, o que incomoda sobremaneira um presidente inseguro.

Para cúmulo do azar de um presidente paranóico, em plena crise do novo coronavírus surge como guardião da saúde pública o ministro da Saúde Luis Henrique Mandetta, em contraposição involuntária ao próprio presidente, que tomou para si o papel de inimigo da ciência, relativizando a maior crise que o mundo já enfrentou em décadas recentes.

Em momento tão grave, o presidente Bolsonaro tem dado mostras de desequilíbrio emocional perigoso, que emperra a ação de seu próprio governo. Ao postar ontem o vídeo de uma senhora pedindo o exército nas ruas para reabrir o comércio e os negócios, Bolsonaro mostra que quer forçar uma confrontação com setores da sociedade civil e de próprio governo que são hoje majoritariamente favoráveis ao isolamento horizontal.

O Supremo Tribunal Federal (STF) já proibiu o governo de fazer propaganda que fuja à orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do seu ministério de Saúde, mas o presidente não se emenda. Vai contra o próprio ministro da Saúde, fazendo reuniões paralelas sem convidar Mandetta.

Para mediar essa relação conflituosa, o ministro do Gabinete Civil, General Braga Neto, assumiu a coordenação do ministério durante a crise, cabendo a ele o papel de interventor informal do governo. Garante que não haja contestações formais ao presidente, mas assegura que a orientação oficial seja dada por Mandetta, dentro de critérios técnicos, e não políticos.

Bolsonaro atua de maneira paralela, criando seus próprios factoides e ameaçando com decretos que não se concretizam porque seriam o fim do equilíbrio institucional. No espaço cada vez mais reduzido em que atua, porém, ele faz estragos.

É o caso da ordem que deu para que todos os servidores do Palácio do Planalto que estão em regime de trabalho domiciliar voltassem a seus postos, o que provocou a renúncia de um chefe de setor burocrático que se recusou a colocar seus subordinados em perigo.

Em entrevista ao programa Os Pingos nos Is, da Jovem Pan, Jair Bolsonaro voltou a criticar o isolamento horizontal, que Mandetta reafirmou precisar ser intensificado pela falta de material hospitalar, e defendeu uma “forma diferente” de isolamento.

Bolsonaro, que anteriormente já havia ameaçado com um decreto reabrindo todo o comércio e foi obrigado a recuar, ontem disse que tem um projeto de decreto “pronto na minha frente, para ser assinado se preciso for, considerando atividade essencial toda aquela exercida pelo homem ou pela mulher, através da qual seja indispensável para levar o pão para casa.”

Segundo ele, “entre morrer de vírus e de fome, depressão e suicídio, eu, como chefe de Estado, tenho que decidir. (...) vou assinar”. Se esse momento chegar, estaremos diante de uma crise institucional e humanitária sem precedentes, com o presidente da República usando seus poderes contra a saúde pública.

Esclarecimento
O ex-prefeito Eduardo Paes diz, com números, que a realização das Olimpíadas de 2016 no Rio não atrapalhou a Saúde na cidade do Rio de Janeiro.
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