domingo, maio 31, 2020

Vida escolar remota - ROSELY SAYÃO

ESTADÃO - 31/05

Muitas famílias estão perdidas nessa situação; escolas também, já que nem sempre elas se lembram que não dá para oferecer o mesmo ensino anteriormente planejado e cobrar a mesma aprendizagem dos alunos

Mais ou menos a metade dos alunos das escolas públicas de São Paulo acessa aulas online; a porcentagem de alunos de escolas particulares que consegue manter contato com a escola e os professores deve ser um pouco maior, mas não muito. É que, quando consideramos escolas particulares, em geral pensamos nas escolas grandes e mais conhecidas, mas a maioria delas é pequena, está localizada em bairros, acolhe estudantes da vizinhança, cobra mensalidades baixas e são carentes de recursos tecnológicos e de formação de professores.

Bem, mas se pelo menos metade dos estudantes está continuando seus estudos de maneira remota, isso significa que milhares de famílias estão às voltas com essa novidade. E não tem sido fácil para os pais acompanhar os filhos nessa empreitada. Por isso, é bom esclarecer alguns pontos.

Os alunos têm realizado a famosa educação a distância (EAD)? Não: eles estão tentando aprender com seus professores mediados pela tecnologia. Estes criaram rapidamente meios de manter seus alunos estudando, em geral transformando o ensino presencial em remoto. Não se constrói uma metodologia de educação a distância de um dia para o outro: exige formação específica dos docentes, por exemplo.

A EAD oferece tutores remotos a quem os alunos podem recorrer quando enfrentam dúvidas ou dificuldades em determinados tópicos, realiza trabalhos que ocorrem simultaneamente com alunos e professor em tempo real – a chamada atividade síncrona – e também as atividades assíncronas, ou seja, as que não ocorrem ao mesmo tempo, além de distribuir os conteúdos a serem ensinados em diferentes desenhos de plataformas e ambientes. É muita diferença!

É, então, ensino domiciliar, ou homeschooling, que a criançada está praticando? Também não! No ensino domiciliar, os filhos não são matriculados em escola e, portanto, não há a participação dela nos estudos. Apenas os pais, parentes ou mesmo os profissionais contratados por eles são responsáveis pela aprendizagem das crianças da família.

Esclarecido o fato de que os alunos estão estudando e realizando tarefas escolares numa situação de emergência, ou seja, muitas vezes com oferta de trabalhos improvisados, o que as famílias podem fazer para ajudar os filhos?

Como manter o filho atento às videoaulas, que podem ter duração de mais de uma hora? Como obrigar o filho a ficar conectado nas atividades escolares? Como ajudar nas tarefas?

Muitas famílias estão perdidas nessa situação; escolas também, já que nem sempre elas se lembram que não dá para oferecer o mesmo ensino anteriormente planejado e cobrar a mesma aprendizagem dos alunos.

Para você ter ideia, de uma rápida enquete em minha página de rede social em que tive a colaboração de muitas mães e pais que contaram como está sendo o ensino escolar nesse período, vou citar alguns exemplos narrados. Há alunos do ensino médio tendo até 9 horas de aulas por dia; crianças de 3 (3!) anos tendo aulas expositivas pelo menos uma vez por semana e duas, quando têm 5 anos; e crianças de 9 a 12 anos de idade que passam a manhã assistindo às aulas e ainda recebem tarefas de casa.

Calma lá, minha gente! Desse jeito, vamos acabar enlouquecendo famílias e alunos. Dá para lembrar que eles estão estressados, ansiosos, angustiados, inseguros e com receios com a pandemia? A conta de tanto trabalho e de tantas cobranças sobre eles virá depois, sabia?

E, como se não bastasse, há escolas fazendo provas neste período. O que podemos avaliar nesse contexto? O aprendizado do aluno, a adaptação dele ao ensino remoto e às estratégias que a escola criou? Ou será que avaliaremos se a metodologia criada pela escola está adequada? Essa última alternativa é a melhor possibilidade.

As crianças vão aprender como aprendiam antes? Provavelmente, não. Algumas vão aprender em outro ritmo, outras não conseguirão focar a atenção para aprender tudo o que seu potencial permitiria e outras, ainda, resistirão bravamente à ajuda dos pais. Mas – surpresa! –, algumas aprenderão bem mais!

Vamos lembrar: a escola básica tem a duração de 12 anos letivos, minha gente. Alguns meses a menos – dois, três ou até seis – não vão comprometer a vida de nenhum aluno.

Os trabalhos escolares de seu filho estão conturbando a vida familiar e a pessoal dele? Converse com a escola, apresente a situação sem rodar a baiana e peça sugestões. Este é um bom momento para recriarmos em outras bases a parceria escola-famílias.

Seu filho não consegue ficar atento às aulas? Saiba que na escola isso também ocorre, com a diferença de que, lá, há um enquadre pedagógico e, em casa, não. Outras crianças da mesma sala conseguem? Lembre-se que as crianças são diferentes, o que não significa que sejam piores ou melhores na aprendizagem.

Em resumo: não se estresse, nem estresse ainda mais seus filhos com a vida escolar remota.

É PSICÓLOGA

A disputa - LEANDRO KARNAL

ESTADÃO - 31/05

Parecia que a inteligência e a filosofia eram afogadas em uma lama sulfurosa


Drusila Camargo e Maria Antônia Palhares são duas excelentes filósofas. Cursaram a graduação quase ao mesmo tempo na USP. Ambas realizaram dissertação e tese na mesma instituição e terminaram por morar na França para estudos de pós-doutorado. Drusila tornou-se referência na obra do matemático e lógico brasileiro Newton Carneiro Affonso da Costa. Maria Antônia abraçou o empirismo inglês e virou a mais abalizada tradutora do escocês David Hume na língua portuguesa.

Quase a mesma idade, mesma alma mater, proximidade acadêmica: tudo levaria a supor que o rio da amizade fluiria solto entre as duas ilhas de sólido conhecimento. Nada mais falso. Por vários motivos, desde a graduação, ambas desenvolveram poderosa ojeriza. Odiavam-se, seria mais correto afirmar. Os orientandos sabiam que não poderiam fazer curso com a rival. Os dois grupos formaram partidos distintos, mutuamente excludentes e que desconfiavam dos neutros. Os próximos a Maria Antônia batizavam os seguidores da outra como “drusílios”. Os que eram orientados por Drusila passaram a usar a personagem “Tonha da Lua” (da novela Mulheres de Areia) para descrever Maria Antônia. Despontava nos corredores da FFLCH da USP uma verdadeira escola teatral: os grupos imitavam a rival, ora com frases formadas de absurdos lógicos ou com a voz de Marcos Frota na segunda versão da novela, simulando alguém com problemas cognitivos. Os orientandos formaram um exército de haters. Não havia chance de conciliação. Drusila era Cartago e Maria Antônia encarnava Roma: só haveria espaço para um império do Mediterrâneo Ocidental na Cidade Universitária. Delenda!

Curioso: ambas eram produtivas como autoras e pesquisadoras e, igualmente, apreciadas como professoras. As duas escreviam para os maiores jornais de São Paulo em louvados artigos de divulgação científica. O único inconveniente era quando alguém tocava no nome da outra. Despontava a deusa Nêmesis. Parecia que a inteligência e a filosofia eram afogadas em uma lama sulfurosa. Os olhos se transformavam, as mãos se crispavam e a voz de ambas perdia o equilíbrio emocional.

O tempo passou e surgiu a aposentadoria. Duas brilhantes carreiras coroadas de conquistas e agraciadas com o título final de professoras eméritas da USP. Cerimônias lindas e, como manda o bom senso, realizadas em datas e prédios bem distantes.

O destino é sempre bizarro. Depois de reuniões no antigo prédio da reitoria, aconteceu de uma pegar o elevador do quarto andar e a outra no terceiro. Hora do lusco-fusco, pressa: nenhuma percebeu até ser tarde demais. Constrangimento profundo, quase físico. Mas... eu falava de destino bizarro. Não há acidente que não possa ser piorado. Segundos após a constatação constrangedora, a energia entrou em colapso no edifício. Agora, no escuro, as rivais estavam condenadas a desfrutar da companhia uma da outra. Drusila soltou a primeira frase com verbo: “Ocorrer uma desgraça assim em uma sexta-feira!”. A outra vociferou: “Eu não sou uma desgraça! Você que é vergonha da Filosofia brasileira”. As primeiras frases foram seguidas de 20 minutos de acusações, ou melhor, insultos. Ambas temiam pelo momento em que uma delas partisse para o ataque físico. Cada uma se encostou em um canto do breu. Maria Antônia segurava livros junto ao rosto para evitar um soco furtivo. Drusila retirou os óculos com a mesma preocupação. No meio da torrente de ódio, uma delas fez a pergunta que não queria calar: “Por que você me odeia tanto?”. Instalou-se súbito silêncio. Odiavam-se há décadas, riam-se uma da outra, ironizaram tudo, porém, confrontadas com a questão original, não tinham clareza do primo mobile, o primeiro motor que colocara todo o sistema da raiva em movimento. Por que se odiaram? O silêncio foi ainda mais constrangedor. Duas mulheres brilhantes, de imenso sucesso e com vida amorosa satisfatória. Não poderia ser inveja ou cobiça, ambas tinham em grau próximo o que (Acho que seria: próximo do que) era notável na outra. As mães do ódio não sabiam quem era o pai. Partenogênese?

A pane elétrica seguia criando circunstâncias. Maria Antônia refletiu muito e proferiu a frase, honesta enfim: “Você é uma mulher brilhante. Eu sempre invejei seu... cabelo. Como você pode chegar a essa idade com esse cabelo”? Drusila foi alvejada pela sinceridade e disse que o seio da rival era impecável. Ali estava o não dito, o recalcado de tantos anos. Surgira um pai envergonhado. Sim, o cabelo de Drusila era de um brilho intenso. O seio da outra teria feito Hume entrar em combustão espontânea. Depois das frases, silêncio absoluto.

Quando, enfim, a energia voltou, ambas saíram em silêncio. Combateram estereótipos do feminino toda a vida. Na rua, preocupados, os maridos estavam nos carros aguardando. Ao chegar junto ao titular de medicina da USP, a esposa ouviu o dr. Palhares reclamar da reunião de departamento. “Aquele canalha do Paul Gustavo, o careca da nefrologia, fez outra piadinha em sala sobre mim.” Maria Antônia sorriu ao imaginar qual a parte do corpo do rival que incomodava ao marido. Boa semana para aqueles que não invejam ninguém.

Boletim de ocorrência - MARTHA MEDEIROS

ZERO HORA - 31/05

Quando me dei conta de que havia sido vítima de estelionato


22 de maio de 2020, 17h06min. Estava desde o início da manhã em frente ao computador tentando escrever um novo texto, mas não conseguia digitar uma única palavra. Alegar falta de assunto, impossível. Não dá para dizer que o mundo anda um tédio, tudo indica que o apocalipse se avizinha, e os terrores são sortidos, basta conferir os sites de notícias, jornais, telejornais. Então o que estaria acontecendo que eu não conseguia me manifestar sobre nada? Foi quando me dei conta de que havia sido vítima de estelionato: a inspiração foi apenas a primeira falta que percebi, mas o butim era bem maior.

Levaram também minha inocência. Fico envergonhada de admitir, mas eu ainda tinha alguma. Não dá para se entregar às evidências o tempo inteiro, a gente acaba ficando cínica em relação à vida. Eu tinha um restinho de inocência no bolso, para alguma emergência. Ela me fazia pensar: vá que não sejam tão dementes, vá que prestem para alguma coisa. Naquela tarde, vi que meu bolso estava vazio.

Além da inspiração e da inocência, passaram a mão no meu discernimento. Já não sei o que é bom ou ruim pra mim. Cheguei a fantasiar uma ruptura. Abandonar as redes sociais, vender meu apartamento e meu carro, desistir de ser colunista, me mudar para um local distante e viver para a leitura, as caminhadas e as visitas dos amigos. Aí concluí: seria uma involução. Sei que já não sou garota, mas desistir desse jeito?

Ainda há projetos a realizar e é importante me manter ativa na profissão que escolhi. No segundo seguinte, concluí o oposto: seria uma evolução. Cultivar a paz de espírito longe do caos urbano, se distanciar da toxidez da política, me alimentar melhor, ouvir música, falar menos: é preciso ficar velha pra isso? Continuo sem resposta.

Eis a razão deste B.O. que discrimina minhas perdas. Não sei bem a quem acusar. O capitalismo? O fascismo? O comunismo?

Gostaria que um inquérito fosse aberto e, se possível, reaver o que me foi tirado. Não é pouco. Eu vivia melhor. Eu era mais alegre. Reconhecia os problemas do Brasil, mas ainda gostava de morar aqui. E também achava que seria feliz morando em certas cidades do mundo. Agora nenhum lugar me parece ideal - a não ser a tal casa isolada em algum ponto distante: fantasias resistem a qualquer vírus.

A idiotice e a ignorância assumiram a chefia e ninguém parece interessado em me ressarcir da ausência de algo belo em que continuar acreditando. Meus olhos estão secando com a luz azul dos celulares. As pessoas andam desiludidas e com medo de apertarem-se as mãos. Os teatros estão vazios. E ninguém mais conversa sobre o amor. Faltava mais nada, roubarem também meu romantismo.

Esperanças - LYA LUFT

ZERO HORA - RS - 31/05

O jeito é bancar o guerreiro e não entregar os pontos


(Aqui respondo ao pedido especial de alguém que ainda não conseguiu meu livro As Coisas Humanas, que aguarda livrarias abertas, portanto sendo comprado online.)

Não vou falar de cidade, Estado, continente, nem mesmo planeta.

Pois esses, eu sei, são terra de seus habitantes, por sorte e azar deles. Falo desta terra interior, e da vida, que pouco se controla. Que nos surpreende tão lindamente às vezes, e em outras com uma patada mortal, o trator existencial passando por cima da gente - e fim de uma alegria, uma felicidade, uma luz, uma pessoa amada. (Ou uma trágica pandemia destruindo boa parte do mundo que conhecíamos.)

Mas gosto de pensar neles, de curtir esses presentes positivos que o destino nos traz. Como quando abro a janela e diante de mim, um luxo que não me pertence e que só curto do meu apartamento: um parque bem cuidado com vários jacarandás. Em outras épocas, paineiras em flor parecem um sorvete de morango se derramando sobre as outras árvores mais baixas (sim, gulosa desde criança).Ou alguém me diz, inesperadamente, encantadoramente: "Tu és uma vó muito divertida!", e isso me ilumina um dia inteiro. Ou cai da agenda um poema que alguém me escreveu há décadas, e ainda vale. Valeu mesmo que essa pessoa tenha sumido, morrido, ou esteja logo ali e tenha esquecido o poema.

Ou num aeroporto estrangeiro, uma brasileira toque meu ombro para perguntar se eu sou eu, sorrir, abraçar e dizer uma porção de coisas boas sobre meus livros. Espantando assim meu desconforto com aviões e aeroportos. Fazendo eu me sentir em casa, mesmo quase do outro lado do mundo.

Mas não somos terra de ninguém na medida em que coisas boas nos habitam: projetos ou sonhos, realizações ou desejos, pessoas, memórias, experiências inesquecíveis, livros, filmes, não faz mal. Somos terra povoada por muita coisa: que seja boa, que seja bela, que nos ajude.¶

Pois viver pode ser interessante, instigante, mas em algumas fases cansa, e como. Cansa abrir os olhos interiores antes de descerrar as pálpebras e dar-se conta: mais um dia. Ter um artigo para escrever, contas a pagar (até isso é a vida!) e livros para ler, muitos e bons. E a casinha da serra nos esperando, com flores, bugios, singulares borboletas de um azul muito pálido e vizinhas e amigas -, e quando quero, quietude maravilhosa olhando as árvores, que digo minhas porque a vida me presenteou com elas e acho que me protegem.

Enfim, o jeito é bancar o guerreiro e não entregar os pontos, pensando que não há só desgraça e discórdia, e quem sabe vamos todos nos abraçar, e rir, e relevar todos os mal-entendidos e brigas que, acreditem, não valem a pena. (Grande ilusão da minha infância.)

Pois o bom é poder ser território de amores, amizades, desejos, trabalhos, conquistas e mesmo fracassos, mas estando aqui, estando vivos - ah, e, apesar de tudo, curtindo as esperanças.

O buraco é fundo - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 31/05

Renda básica de cidadania seria um grande salto civilizatório, mas não sairia barato


Na semana passada, escrevi sobre a proposta de renda básica de cidadania (RBC) dos professores da UFPE (bit.ly/3di1Vua). A RBC eliminaria a pobreza e reduziria a desigualdade, medida pelo índice de Gini, a uma velocidade duas vezes maior que a queda vista entre 2002 e 2014.

O custo líquido do programa em 2017, já considerando as reduções que ocorreriam em outros gastos públicos em razão da diminuição de outros benefícios, seria de R$ 750 bilhões, uns 11% do PIB. Segundo as simulações dos autores, uma alíquota linear de 35,7% de imposto sobre todas as rendas financiaria a RBC e os demais gastos públicos custeados pelo IRPF, entre outros, o Fundo de Participação dos Estados.

Os desafios são enormes. Imposto linear sobre todas as rendas significa o Estado brasileiro passar a enxergar a informalidade. Significa abrir mão das isenções que há no IRPF —saúde, educação, pessoas acima de 65 anos e moléstia grave—, que, segundo a SRF, somam R$ 45 bilhões.

É comum as pessoas acharem que é possível financiar a RBC com imposto sobre o capital. Elas ecoam a visão de que não se tributa rendimento do capital no Brasil pois a distribuição de dividendos é isenta.

Há desinformação. A alíquota legal de Imposto de Renda sobre o capital para empresas que operam no regime do lucro real é de 34%, e de 45% se a empresa for do setor financeiro. Trata-se de alíquota relativamente elevada, configurando uma antecipação de impostos, ou seja, cobrança na fonte do imposto sobre o lucro, como ocorre com o imposto sobre a renda do trabalhador celetista.

Segundo Sergio Gobetti e Rodrigo Orair, em artigo na Revista de Economia e Política (bit.ly/3dh2CUJ), nos países da OCDE a média das alíquotas cobradas sobre o lucro, consolidando IRPF e IRPJ, é de 43,1%. Vale lembrar que em países mais pobres a tributação sobre o capital é menor.

Acredita-se que seria possível financiar a RBC aumentando a tributação sobre o lucro dos bancos. Se a alíquota fosse de 75% —não sei se algum banco continuaria a operar por aqui com esse nível de imposto—, em vez da alíquota média real de 28%, observada no quadriênio 2016-2019, a receita adicional anual para o Tesouro seria de R$ 34 bilhões, menos que as desonerações do IRPF.

Há mecanismos legais para pagar impostos abaixo da alíquota legal —por exemplo, os bancos, em vez da alíquota legal de 45%, pagaram 28% no quadriênio 2016-2019. Pode-se discutir a racionalidade ou a oportunidade tributária desses mecanismos. Pode-se mudar a legislação para reduzir as possibilidades de redução da alíquota efetiva ante a alíquota legal. Mas a realidade dura da vida é que “tributar lucro de banco” está longe de gerar os recursos que financiarão a RBC.

Há também as demais empresas do setor real da economia e as que operam no lucro presumido e do Simples. As alíquotas legais vão de 34% até 5% para alguns setores do Simples.

A receita reportada pela SRF e a informação do lucro total das Contas Nacionais do IBGE indicam que a tributação média sobre o lucro foi, no quadriênio de 2016-2019, de 22,5%. Se aplicássemos a alíquota de 35,7%, a elevação da receita do imposto sobre os lucros seria de R$ 106 bilhões ao ano.

Tributando os bancos em 75%, os demais lucros em 35,7% e eliminando todas as isenções do IRPF, chego a um ganho de receita de R$ 200 bilhões, ainda longe dos R$ 750 bilhões necessários para financiar a RBC.

A RBC será um grande salto civilizatório. Mas não será barato. Teremos que aumentar pesadamente a carga tributária sobre todos nós, inclusive sobre todos nós que nos achamos “de classe média” e, portanto, “que já pagamos muito imposto”.

Samuel Pessôa
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.

A ética da vacina - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 31/05

O provável é que prevaleça o egoísmo, como foi com os ventiladores


Não há garantia de que conseguiremos desenvolver logo uma vacina contra a Covid-19, mas essa não é uma aposta absurda. Mais de cem grupos de cientistas se empenham nisso, e nunca houve tantos incentivos para criar um imunizante. Já existe até o sinal verde do grupo de ética da OMS para que voluntários humanos sejam infectados com o Sars-CoV-2. Isso pode acelerar os testes.

As questões éticas, porém, não se encerram com o desenvolvimento do fármaco. Na verdade, só começam. Um desafio quase tão formidável quanto o de criar a vacina é o de produzir bilhões de doses, distribuí-las e aplicá-las. Dobre esse esforço no caso de a imunização exigir duas doses. Um programa de vacinação com cobertura global talvez requeira mais tempo para ser executado do que o que foi necessário para criar o medicamento.

Nesse contexto, a questão da prioridade de acesso ganha relevância. Que países receberão os primeiros lotes? E, dentro de cada nação, quem terá direito às primeiras doses? Não é demais frisar que estamos aqui falando de vidas e liberdades.

No nível internacional, o mais provável é que prevaleça o egoísmo, como ocorreu com os ventiladores.

Mas o laboratório vencedor da corrida pela vacina quase certamente a licenciará para que seja fabricada em diferentes partes do mundo. O Brasil, como tem o Butantan e a Fiocruz, talvez se salve. Acabarão ficando para o fim da fila os países que não detêm nenhuma capacidade de produção.

E quais grupos devem ser os primeiros em cada nação? As diretrizes são mais ou menos consensuais.

Pessoas que atuam na linha de frente e as mais vulneráveis devem ter prioridade. O difícil é traduzir isso em recomendações concretas. É fácil ver que os trabalhadores em saúde e os idosos devem estar no alto da fila, mas o que dizer das inúmeras categorias que ficam nas zonas cinzentas, como comerciários, quinquagenários, gente com sobrepeso...

O que falta é coragem - VERA MAGALHÃES

O Estado de S.Paulo - 31/05

Safra de líderes políticos tíbios e pautados pelas redes sociais agrava nosso pesadelo


Da internet vieste, à internet voltarás. Esse parece ser o pesadelo que assola os atuais líderes políticos brasileiros, de todos os partidos, em todas as instâncias. Aqueles que os eleitores colocaram em postos de comando sem saber que dali a poucos anos seríamos assolados por uma pandemia.

Do presidente ao vereador, os incumbidos de tomar decisões que definirão se sairemos antes ou depois desse pesadelo, com mais ou menos mortes e no fundo ou a meio caminho dele no poço econômico, todos pautam suas ações pela repercussão nas redes sociais, por um cálculo mesquinho de perdas e ganhos políticos e por pouca ou nenhuma ciência, o que explica que estejamos no pior dos mundos sob todos os ângulos.

A covardia é um dos atributos que mais contribuem para a maneira tresloucada com que Jair Bolsonaro investe contra as instituições, o bom senso e a saúde pública. Trata-se de um Forrest Gump, aquele personagem que chegou lá por acaso. Estava passando no momento exato da História em que a corrupção desbragada cometida pelo lulopetismo levou uma parcela da sociedade a um surto de eleger qualquer coisa menos um petista.

Bolsonaro sabe que se não fossem o petrolão, as redes sociais e a facada que levou em 6 de setembro de 2018 jamais chegaria à Presidência da República com seu clã da rachadinha, seus amigos milicianos, seu passado desairoso no Exército e na Câmara, sua absoluta falta de ideias sobre qualquer coisa, seu time de ressentidos vingativos e seu saco de gato ideológico que junta tudo de mais atrasado que existe em termos de teorias da conspiração disponíveis no mundo.

Por isso vê inimigos em toda parte e, quando colocado diante de um desafio concreto que o obriga a governar, não tem a menor ideia de o que fazer. Aí faz o que sabe: cria encrenca, cria fantasias – que podem ser nióbio, pílula do câncer, mamadeira de piroca ou cloroquina, ao sabor do momento – e sai atrapalhando qualquer esforço de conduzir o navio para longe do iceberg.

Deputados, senadores, governadores e prefeitos, eleitos na mesma onda de pane coletiva da razão, olham para um presidente desgovernado e agem entre a omissão e uma crítica medrosa.

Pior: muitos deles acabam cedendo aos mesmos critérios anticientíficos e irrazoáveis para lidar com a pandemia. Não há outra explicação a não ser capitulação à pressão do próprio Bolsonaro, de empresários e de prefeitos para o governador de São Paulo, João Doria, que vinha adotando um discurso de que pautaria suas ações pela ciência e por dados, ter tomado uma medida tão desastrosa quanto anunciar a abertura da economia a partir desta semana, inclusive na capital, quando está morrendo mais gente do que nunca e os hospitais vão colapsar. Faltou coragem de persistir na linha que ele mesmo traçou, e o desvio de rota pode custar muito mais caro.

E os presidentes da Câmara e do Senado, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre? São espectadores robustos de um espetáculo diário de diminuição do tamanho do Parlamento, enquanto se limitam a notas de repúdio descoladas da gravidade do momento.

Se os eleitos estão atados à própria covardia, resta o Judiciário, que tem agido. Como o rol dos pusilânimes inclui também o procurador-geral da República, Augusto Aras, que dorme e acorda sonhando com uma vaga no Supremo, cabe à corte tentar impor freios à barbárie e ao contrassenso. O problema é que há meios legítimos e outros questionáveis para que o tribunal exerça esse seu papel de freios e contrapesos.

Diante dessa balbúrdia institucional, o melhor para o brasileiro é continuar em casa o quanto puder, porque se depender de seus homens públicos não há segurança para sair na rua sem saber se vamos ser assolados pelo vírus ou por um golpe de Estado. Ou por ambos.

‘Os erros terão cor verde-oliva’ - MÍRIAM LEITÃO

O Globo - 31/05

Historiador José Murilo de Carvalho vê risco crescente de ruptura no Brasil e avalia que as Forças Armadas já estão atreladas aos erros do presidente


A democracia corre riscos no Brasil? Essa foi a pergunta que fiz para o historiador e escritor José Murilo de Carvalho. Ele respondeu: “Corre.” Era difícil imaginar uma resposta assim tão direta, tempos atrás. “Até o início do ano, o risco era pequeno, mas está crescendo, embora, por enquanto, em ritmo menor do que o coronavírus.” Autor do clássico “Forças Armadas e Política no Brasil”, que acaba de ser relançado, José Murilo acha que dificilmente Marinha e Aeronáutica apoiariam qualquer ruptura da ordem.

Ele não está falando, nem se pensa, em um golpe como o de 1964, que aconteceu em outro contexto histórico, mas acha que o artigo 142 da Constituição tem um “caminho aberto para interpretações conflitantes”. Dos muitos sinais dos últimos dias dados por militares que estão no governo, ele acha que o mais grave foi o episódio do general Augusto Heleno, até porque foi respaldado pelo ministro da Defesa:

— A posição do general Heleno é sem dúvida a que mais preocupa, por deixar a entender uma ameaça de intervenção. Pode, em parte, ser atribuída a seu temperamento, mas a nota que distribuiu no dia 22 de maio é ameaçadora. Pode ser interpretada como referência ao que a Constituição diz sobre o papel das Forças Armadas como garantidoras dos poderes constitucionais, isto é, como superpoder, como corte supremíssima.

A Constituição, explica, diz que as Forças Armadas estão sujeitas à autoridade do presidente da República e acrescenta que elas se destinam “à garantia dos poderes constitucionais”.

— Há aí uma enorme dificuldade: como estar sujeitas a um poder e, ao mesmo tempo, garantir os três? É caminho aberto para interpretações conflitantes e dá margem a declarações ameaçadoras como a do general Heleno. Ele faria a mesma ameaça se fosse para defender o Congresso e o STF contra os ataques do chefe do Executivo? — pergunta o professor.

Ele lembra que na história recente esse é o segundo episódio que tem o Supremo como alvo:

— É irônico. O general Villas Boas fez ameaça na véspera do julgamento de Lula no Supremo. Agora, o general Heleno ameaça o mesmo Supremo por, supostamente, perseguir o presidente.

Esses riscos extemporâneos que aparecem no país lembram uma máquina do tempo que nos tenha levado para mais de meio século atrás. Até porque quem presta atenção nas falas bolsonaristas fica com a impressão que ainda estamos naquele mundo. Para um bolsonarista raiz, qualquer pessoa que discorde do presidente é um “comunista”. O professor trata de pôr o passado onde ele deve ficar, no passado.

— Certamente nada como em 1964. Não temos um dos principais condicionantes de então, a Guerra Fria. O comunismo era na época uma realidade no mundo, com adesões no Brasil, inclusive nas Forças Armadas. Hoje é conto de carochinha. A esquerda, se podemos chamar o PT de esquerda, está desarvorada. Grupos civis armados, como os de Brizola em 1964, hoje despontam entre os apoiadores radicais do presidente. Seria curioso se, para garantir a lei e a ordem, e de acordo com a Constituição, o Supremo convocasse as Forças Armadas para combatê-los.

Se por “ruptura” o deputado Eduardo Bolsonaro está falando em endurecimento do regime, como aconteceu em alguns países como a Hungria, por exemplo, isso teria o apoio dos militares?

— Minha aposta é que não. Marinha e Aeronáutica dificilmente apoiariam tal decisão. São forças mais profissionalizadas. Mesmo o Exército hesitaria. O artigo do general Santos Cruz deve representar a posição da maioria do oficialato. O mais crucial é a posição dos generais que permanecem no governo.

O historiador lembra que no início a presença dos generais não significava que o governo fosse militar:

— Mas a constante alegação do presidente de ter apoio militar está deixando esses generais em posição delicada. Eles são corresponsáveis pelas trapalhadas do governo e agora não haverá mais como evitar que a imagem das Forças seja afetada. Os erros terão cor verde-oliva.

Essa situação de temer pela estabilidade democrática foi criada pela retórica belicosa do presidente nesses 17 meses de governo. A saída seria, segundo ele, “o impedimento”, mas acha que ele está protegido pela pandemia:

— Com a quarentena não há rua, sem a rua não há impedimento.

O país se vê às voltas com velhos fantasmas que o governo Bolsonaro mesmo retirou do armário.

Weintraub fez mais uma - ELIO GASPARI

O Globo / Folha de S. Paulo - 31/05

Bolsonaro tem encontro marcado com o TSE



O ministro da Educassão, Abraham Weintraub, comparou a operação contra os financiadores da máquina de mentiras do bolsonarismo à “Noite dos Cristais” de 1938, quando os nazistas queimaram centenas de sinagogas, destruíram milhares de lojas e mataram pelo menos 90 judeus. Weintraub tomou contravapores da embaixada de Israel, do Comitê Judaico Americano e da Confederação Israelita, por banalizar o antissemitismo que desembocou no Holocausto. Comparar as duas situações é confundir hemorroida com hemograma.

Nos seus delírios, o ministro pratica uma ignorância seletiva. Na tétrica reunião do Ministério de 22 de abril ele ouviu seu colega Paulo Guedes dizer que conhece “profundamente, no detalhe, não é de ouvir falar”, diversos programas de reconstrução econômica, entre eles os da “Alemanha na Segunda Guerra e na Primeira, com o Schacht.”

Para uma mente sensível como a de Weintraub, a lembrança de Guedes tinha um aspecto politicamente tóxico. A Primeira Guerra terminou em 1918 e Hjalmar Schacht assumiu a presidência do Reichsbank em 1923. Nesse cargo ele estabilizou a moeda alemã. Em 1930, quando a dívida do país estrangulava sua economia, ele avisou que “se o povo alemão tiver que passar fome, teremos muitos Adolf Hitler”. Não deu outra e, em 1933, Hitler assumiu o governo. Quindim da banca, Schacht era um coletor do Caixa Dois dos nazistas e um ano depois, quando o ministro das Finanças reclamou da perseguição aos judeus, ele o substituiu. Soltou dinheiro para obras públicas e para o rearmamento do Reich.

Ele deixou o comando da economia antes da Noite dos Cristais, mas continuou como ministro sem pasta até 1943. (A Solução Final do extermínio dos judeus foi decidida em 1942).

Schacht foi um alemão emblemático de sua geração, que não sabia o que estava acontecendo. Ele começou a vida no Dresdner Bank, da família Gutman, e não moveu um dedo quando ela começou a ser perseguida. A baronesa Louise morreu em Auschwitz e seu marido, Fritz, foi assassinado no campo de Theresienstadt. Schacht foi absolvido pelo tribunal de Nuremberg, que enforcou uma parte da cúpula civil e militar do nazismo, e morreu em 1970, aos 83 anos. Sua mulher usava um broche, uma suástica de rubis e brilhantes.

Encontro marcado

Jair Bolsonaro está encrencando com o Judiciário (“Temos que botar limites” ou “Chega!”) porque acordou para o fato de que tem um encontro marcado com o Tribunal Superior Eleitoral no julgamento dos pedidos de cassação de sua chapa com o vice Hamilton Mourão. Os processos são seis, dois podem morrer em poucos dias, mas quatro persistirão. Todos eles se referem aos disparos de notícias falsas na rede, tema da investigação conduzida pelo ministro Alexandre Moraes.

Pelo andar da carruagem, o TSE julgará o caso ainda este ano. É a crise da vida anunciada.

Deixando-se de lado a lógica constitucional da cassação de uma chapa no segundo ano de seu mandato, precisará ficar provado que os disparos das mentiras na rede foram praticados com recursos ilegais e que tenham influenciado de forma decisiva o resultado da eleição. A investigação determinada pelo ministro José Antonio Dias Toffoli pode ter uma origem escalafobética, mas as conclusões do trabalho de Alexandre de Moraes serão um fato em si. Pelo que já se sabe, desagradarão os Bolsonaro. Eles têm alguns meses para criar um clima capaz de convencer a população de que o Judiciário que mutilar o Executivo.

Uma coisa é certa: ameaçando a Justiça com a hipótese de um golpe de generais no meio de uma pandemia e no início de uma recessão, Bolsonaro entroniza-se como encarnação da instabilidade política, econômica e sanitária.

Quando ele diz que “ordens absurdas não se cumprem” e oferece cadeiras no Supremo Tribunal como se fossem chuchu de feira confirma que antes de chegar à metade do mandato, tornou-se um criador de problemas. Afinal, quem decide que uma ordem é absurda? Aquele cabo que pode fechar o Supremo?

O correto Queiroz

Outro dia, respondendo ao governador Wilson Witzel, o senador Flávio Bolsonaro lembrou, a troco de nada, que “você ficava ligando para o Queiroz para correr atrás de mim na campanha. Sabia que o Queiroz estava do meu lado. Um cara correto, trabalhador, dando sangue por aquilo que acredita.”

Desde o final de 2018, esta foi a primeira vez que o 01 louvou a figura de Fabrício Queiroz, faz-tudo do gabinete de seu pai.

De vez em quando, Queiroz queixa-se de abandono, pois já temeu que os procuradores tenham um objeto “do tamanho de um cometa para enterrar na gente”.

Falta explicar por que o senador demitiu o “cara correto, trabalhador” que dá o “sangue por aquilo que acredita” pouco antes da realização do segundo turno da eleição presidencial. No mesmo dia, Jair Bolsonaro demitiu a filha de Queiroz, lotada no seu gabinete da Câmara dos Deputados.

A sorte de Witzel

O governador Wilson Witzel é um homem de sorte. A Polícia Federal varejou o palácio onde ele vive e o apartamento onde morou, sem dar um só tiro.

Uma semana antes, numa operação em São Gonçalo, sua polícia, numa operação da qual participou a Polícia Federal, entrou numa casa, deu 72 tiros e matou o menino João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos.

Patrono dos palacianos

Como Bolsonaro ressuscitou a figura do general palaciano, vale um registro. Assim como o patrono da arma da cavalaria é o general Osório (que levou um tiro no rosto durante uma batalha), essa espécie tem no general João Baptista Figueiredo sua maior expressão.

Figueiredo não esteve na Força Expedicionária Brasileira que combateu na Itália, mas fez uma brilhante carreira palaciana.

Em 1964, como coronel, assumiu a Agência Central do Serviço Nacional de Informações. De 1969 a 1974 foi chefe do Gabinete Militar do presidente Emílio Médici e, em seguida, dirigiu o SNI no governo de Ernesto Geisel. Foram 13 anos no palácio e nos seus arredores, interrompidos por apenas três de serviço em quartéis.

Em 1979 Figueiredo chegou à Presidência da República e os patrocinadores dessa ascensão acreditavam que o palácio lhe dera experiência. Enganaram-se. Seu governo foi ruinoso e em 1985 ele deixou o Planalto por uma porta lateral, pedindo para ser esquecido, o que conseguiu.

Boa notícia

A professora Kone Prieto Fortunato Cesario, vice-diretora da Faculdade Nacional de Direito informa: a iniciativa dos ministros Luiz Fux (STF) Benedito Gonçalves e Luis Felipe Salomão (STJ), mais o desembargador Cezar Augusto Rodrigues Costa, conseguiu arrecadar R$ 63 mil para ajudar 240 estudantes cotistas.

O Webinar “A Covid-19 e o futuro das Cortes” teve 190 inscritos e dez advogados, bem como a empresa UCB, fizeram doações.

80 dias de corona - GUSTAVO FRANCO

ESTADÃO - 31/05

As soluções não precisam estar distantes, mas, às vezes, em um município vizinho


Hoje, 31 de maio, domingo em que se comemora Pentecostes, passados 50 dias da Páscoa, faz exatos 80 dias da declaração pela qual a OMS definiu como pandemia o surto da doença causada pelo novo coronavírus (covid-19).

Parece pouquíssimo tempo quando se tem em conta as voltas que o mundo deu, evocando comparações, em vista do que ainda temos pela frente, com o assassinato do arquiduque em 1914 e a invasão da Polônia em 1939.

Entretanto, esta primeira fase da pandemia parece interminável, sobretudo para quem está em confinamento, vivendo dias que passam em angustiante lentidão, noites em claro e tardes caindo como viadutos (saudações, mestre Aldir Blanc).

O sofrimento parece ampliar a sensação do tempo, daí a compreensível ansiedade em iniciar uma “segunda fase” da pandemia, mesmo sem ter tocado nenhuma sirene assinalando o fim do bombardeio, e mesmo que os especialistas não estejam de acordo sobre os novos protocolos.

Vamos adotar um “novo normal”, que não se sabe bem como é, mas gradualmente, experimentando cada novo procedimento, um de cada vez, conforme o estágio da epidemia, e de acordo com o lugar e com a atividade. E sempre com a opção de recuar na presença de uma nova onda, mas tomara que não seja necessário.

Só se sabe que o lockdown não pode ser mantido indefinida e indiscriminadamente.

Já parecia haver acordo que a “segunda fase” da epidemia seria mesmo confusa num país heterogêneo e desigual como o nosso, habitualmente descrito como a Belíndia, no qual a porção belga teria melhores capacidades, relativamente à outra, para lidar com o isolamento social.

Não obstante, a heterogeneidade nos comportamentos dos Estados brasileiros diante da epidemia superou qualquer expectativa quanto à existência de vários Brasis.

É impressionante o contraste, a julgar pelo número de mortos por milhão de habitantes entre os Estados do Sul: RS (7,62), SC (8,14) e PR (8,77), relativamente à região Norte: AM (178) e PA (45). O contraste também é marcante com relação ao Sudeste (SP: 65,8 e RJ: 69,4) e alguns Estados do Nordeste (PE: 83,5 e CE: 92,3), mas não todos (RN: 20,4 e BA:10,4).

Um Estado que tem a cara do Brasil, pela extensão territorial e diversidade, como MG, exibe um número particularmente baixo: 4,56.

O que há em Minas que não se encontra noutros Estados?

É claro que os determinantes desses comportamentos regionais diversificados têm algo a ensinar sobre a dinâmica do contágio, e sobre o desenho de estratégias locais de desconfinamento.

Há muito a entender sobre a relação entre a velocidade de contágio e sua métrica já bem conhecida, o “R-zero”, e fatores geográficos, demográficos e socioeconômicos, as características das cidades e particularmente suas redes de transporte público e mobilidade, bem como as políticas adotadas por diferentes autoridades locais.

As soluções não precisam estar em países distantes, mas, às vezes, em um município vizinho.

Como as situações regionais são diferentes, inclusive pelo fato de a epidemia estar em diferentes estágios, faz todo sentido que o tratamento seja descentralizado, como de fato se passa na administração da Saúde no Brasil, aliás, em obediência à Constituição (Art. 23 ii) que define a saúde como “competência comum” de União, Estados e municípios.

As palavras-chave aqui são consenso, coordenação, transparência e governança, conceitos bem conhecidos de muitos gestores públicos (mas não todos!) e, particularmente, críticos num quadro de emergência sanitária.

Municípios, condomínios, assim como países, podem tropeçar de forma nada menos que bizarra se suas lideranças não souberem trabalhar a coesão social, sem a qual há muitos perigos em atividades simples, como andar de elevador e atravessar a rua.

EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS. ESCREVE NO ÚLTIMO DOMINGO DO MÊS

Algumas lições da covid-19 - JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS


O Estado de S. Paulo - 31/05

Se for para pedir subsídios em Brasília, será melhor nem começar


Após três meses de distanciamento social, muitos Estados e municípios iniciam uma cuidadosa volta à normalidade. Embora em poucos lugares se tenha decretado o fechamento total (lockdown), o confinamento começou a mostrar resultados onde a pandemia se iniciou, que é o Estado de São Paulo. Em particular, no município da capital o processo está mais avançado, como se pode verificar pelo comportamento de uma curva que mostra a evolução da média móvel de sete dias de novos óbitos, que parece estar se estabilizando. Um indicador adicional é que a pressão sobre o número de leitos de UTI disponíveis amenizou.

Durante esse período, um número limitado, porém relevante, de setores teve desempenho satisfatoriamente bom. São eles:

– O agronegócio, que foi capaz de colher uma safra recorde e encaminhá-la para os mercados.

– A logística, incluindo a chamada última milha, que é a entrega no endereço do comprador final.

– O comércio exterior, especialmente na exportação de produtos agrícolas, que tem batido recordes. Em boa parte, isso se deve à automação de terminais e sistemas de despacho de caminhões e trens, que acabou com boa parte do congestionamento nos portos.

– O sistema financeiro, no qual a generalização do “home banking” é anterior ao “home office”. Nenhuma transação deixou de ser feita.

– O segmento de telecomunicações e de tecnologia da informação (TI), incluindo as empresas de base tecnológica.

– Os setores do comércio ligados a alimentação, higiene, limpeza e farmacêutica, bem como suas indústrias fornecedoras.

– Os serviços de saúde e assistência, inclusive com expressiva elevação de emprego e de recursos provenientes de doações do setor privado.

Esses segmentos têm algumas características comuns: todos tiveram muita agilidade na introdução de protocolos para evitar a difusão do vírus, sem parar a produção e colocar em perigo a saúde dos funcionários. Todos atendem às necessidades básicas das famílias.

Têm sido objeto de inovações tecnológicas, elevação da produtividade e redução de custos. Isso é chave. No caso da saúde, são muitos os exemplos: desenvolvimento e produção de equipamentos e serviços, inclusive respiradores, equipamentos auxiliares nos tratamentos e em cirurgias, desenvolvimento de novos testes, nacionalização na produção de certos sais etc.

Vários desses segmentos têm se beneficiado da desvalorização cambial, especialmente porque os itens não comercializáveis, como salários e logística, ficaram mais baratos em dólares. Por exemplo, pela primeira vez na história, a logística de grãos em Mato Grosso ficou mais barata que a logística do Meio-Oeste americano.

Existe uma clara indução para a adoção de processos automatizados, até para garantir o distanciamento social e evitar o contato com cartões e dinheiro ou automação de segurança residencial.

Durante esse período, muitas oportunidades novas se tornaram visíveis, desde as decorrentes da expansão da área da saúde aos diversos serviços prestados a distância e a possibilidade de nacionalização de vários materiais e equipamentos.

É uma chance que não poderemos perder, desde que a nova produção já se inicie minimamente competitiva dada a desvalorização da moeda brasileira. Entretanto, se for para pedir subsídios em Brasília, será melhor nem começar.

* * * * * *
O que mais impressiona na gravação da reunião ministerial é a total falta de propósito, de agenda e de rumo. Uma sucessão de falas desarranjadas, patéticas e algumas alucinadas, incluindo armar grupos de militantes. O maior problema do País, o coronavírus, não foi nem sequer mencionado.

É impossível dar certo qualquer empreendimento com esse corpo diretivo. Especialmente, o Brasil.

E não se pode dizer que isso é por conta do STF.

Economista e sócio da MB Associados.

Quando a manicure ouve o plano Guedes - VINICIUS TORRES FREIRE

Folha de S. Paulo - 31/05

Economia estagnava antes da epidemia e, sem ideias novas, vai ficar no fundo por anos



O que diriam donos de restaurantes ou lanchonetes, manicures, barbeiros, lojistas de roupas e sapatos, mestres de obras ou proprietários de negócios de consertar coisas se ouvissem o plano do governo para reparar a economia depois da catástrofe? Esses são os empresários mais típicos do Brasil. São milhões.

Os seus empreendimentos entram na categoria dos setores econômicos “comércio” e “outros serviços” (que inclui ainda profissionais liberais, saúde e educação privadas, entretenimento, cultura, esportes, hotéis etc.). Produzem mais de 31% do PIB (17% vêm só de “outros serviços”). Notem: o valor da produção da agropecuária é pouco mais de 5% do PIB; o da indústria, 11%.

Tamanho não é tudo, decerto. As contas do PIB são apenas contabilidade: dizem que, em certo período, produziu-se tanto. Não explicam nada. Por exemplo, não dizem se um setor é mais ou menos capaz de arrastar outros consigo (basta pensar nos negócios indiretos sustentados por montadoras, por exemplo).

Mas vê-se aí o tamanho de um problema. O setor “outros serviços”, como era de esperar, levou o maior tombo do PIB do primeiro trimestre.

O que o governo pensa em fazer para tirar o país da depressão da epidemia? Nada além do que fantasiava, tentava, pretendia ou prometia fazer antes da epidemia. É o que tem dito Paulo Guedes e foi o que disseram seus economistas ao comentar o PIB do primeiro trimestre.

O que acontecia com a economia brasileira pouco antes de a epidemia chegar? Nada além do que acontecia desde 2017, crescimento de 1% ao ano. Detalhes adiante.

O que é o programa do governo? O gasto extra para no fim deste 2020; cumpre-se o teto. Reformas: tributária, abertura comercial, mais trabalhista, novas leis de falências, saneamento e gás para incentivar investimento privado; concessões, que virariam obras em 2023, se tanto.

De um modo ou de outro (existem vários modos), é preciso tocar mesmo tais mudanças. Mas dizer que por isso o investimento privado vai voltar em volume considerável, se algum, é pensamento desejante. Essas ideias não têm correspondido aos fatos. Menos ainda sob a baderna subversiva bolsonarista.

A taxa de investimento até 2019 era de 15% do PIB, ainda menor que o nível mais baixo deste século, antes da recessão. Taxa de investimento: quanto do produto ou da renda nacional (do PIB) é destinado a aumentar a capacidade produtiva: novas fábricas, imóveis, máquinas etc.

A economia não decolava antes da epidemia. A indústria de transformação (“fábricas”) estagnara. O setor de serviços crescia a ninharia de 0,7% ao ano. O comércio, ao ritmo medíocre de 1,9%. A soma dos rendimentos do trabalho (“massa de rendimentos”) aumentava pouco e desacelerava desde novembro de 2019.

Na recessão deste 2020, teremos quase dois anos em um: vamos afundar algo próximo do mergulho sinistro de 2015-2016. Do fundo desse poço, o emprego levou dois anos para se recuperar e ficou mais informal, precário e inseguro.

A dívida das famílias em março já estava no nível mais alto da série, em 15 anos. As pessoas perderão empregos, seus negócios, patrimônio e reservas financeiras, se tinham. Os pequenos vão ter ainda menos acesso a crédito, pois suas finanças e garantias serão mais precárias, se sobrar algo.

De onde vai sair capital e/ou crédito para a reconstrução? Havendo recursos, e pensemos aqui também nos grandes, quem vai investir com a demanda deprimida e capacidade ociosa ainda maior do que já havia até 2019?

Uma resposta à altura da crise - ARMÍNIO FRAGA

Folha de S. Paulo - 31/05

Reformas menos impactantes nos deixariam na ciclotimia medíocre de décadas


Em minha última coluna discorri sobre a tempestade perfeita de crises que assolam o Brasil: sanitária, econômica e política. Argumentei que o desafio exigia liderança esclarecida por parte do Executivo. De lá para cá a tormenta recrudesceu.

Já não é de hoje que o governo vem dando sinais preocupantes. Ataques constantes à imprensa. Rejeição à política e ao diálogo. Repressão ao terceiro setor e à cultura. Desdém pela ciência, meio ambiente, questões identitárias, pela própria democracia. O vídeo da reunião de abril confirmou de forma assustadora esses sinais.

Resulta daí grande incerteza. E não surpreende, portanto, que o investimento nacional esteja há tempo parado em seu menor nível histórico.

No campo econômico, a agenda pouco evoluiu. A privatização, a PEC Emergencial (de natureza fiscal) e a abertura da economia não andaram. As cruciais reformas tributária e administrativa não foram sequer apresentadas.

O ambiente político anda crescentemente tenso, como no título do livro “A Batalha dos Poderes”, de Oscar Vilhena Vieira, colega aqui nesta Folha. O governo parece se alimentar do confronto. Chama a atenção nesse contexto a montagem de uma base de apoio em linha rejeitada na campanha. Sugere uma guinada para modo de sobrevivência. Não é um bom sinal.

Independentemente do rumo que a política brasileira vier a tomar, cabe um alerta quanto ao cenário econômico.

A crise econômica tem suas raízes nas equivocadas escolhas da gestão de Dilma Rousseff, amplamente debatidas, embora não devidamente absorvidas. Meu resumo: modelo econômico velho (intervencionista, de baixa produtividade) e crise de confiança por descontrole fiscal a partir de 2014 (fato frequentemente esquecido).

A despeito da aprovação da reforma da Previdência e da introdução do teto para o gasto público, que impactaram positivamente os mercados, faltam ainda condições objetivas para que o teto seja cumprido a médio e longo prazos. Como resultado, o investimento público, que já vinha baixo, caiu para próximo de zero. As despesas livres foram também espremidas e se aproximam de um limite mínimo. Houve sim estabilização da dívida pública (como proporção do PIB), mas de maneira insustentável.

Nesse contexto chega o vírus. O governo saiu gastando agressivamente em saúde e assistência social, corretamente, mas sem planejamento. Como nossa convivência com o vírus pelo visto vai durar bem mais do que se imaginava, o buraco fiscal deve aumentar bastante. Estima-se um déficit primário que pode neste ano chegar a inimagináveis 12% a 15% do PIB (num cenário em que o PIB caia entre 6% e 10%). A implacável aritmética levará a dívida pública dos atuais 75% para mais do que 90% do PIB.

O orçamento chamado de guerra (que veio em boa hora) acertadamente proíbe que os gastos extraordinários adentrem 2021. Mas as pressões para mais gastos serão enormes. A despeito das regras legais, há risco que ocorram (lembremo-nos aqui que a Lei de Responsabilidade Fiscal foi violada a partir de 2014). É bem possível que ano que vem a dívida se aproxime de 100% do PIB.

As enormes e crescentes necessidades de financiamento do setor público forçarão um encurtamento no prazo da dívida. Vejamos como. Um aumento do endividamento como o que está programado gera insegurança e reduz a demanda por títulos de longo prazo. A consequência direta é que sobe o custo da dívida de longo prazo, o que já está ocorrendo. No limite, a demanda pode secar completamente, como em 2002. Nesse contexto, o Tesouro é obrigado a encurtar o prazo de suas captações.

Esse encurtamento pode ocorrer através de vários mecanismos, que a não especialistas parecem misteriosos. Alguns envolvem o Banco Central. Mas no final das contas, o que importa é que o prazo da dívida pública em poder do público vai encurtando. Ou seja, parte da dívida vai se transformando em uma quase moeda.

O encurtamento reduz o custo do financiamento, mas cria a dependência de rolagens frequentes e grandes da dívida. Quando em algum momento os financiadores se assustam, as taxas de juros de curto prazo também ficam pressionadas. Parte do dinheiro pode inclusive querer sair do país, o que pressiona também a taxa de câmbio e, eventualmente, a inflação.

Como bem advertiu Edmar Bacha em evento quinta-feira passada na Câmara dos Deputados, não precisamos ir muito longe para vermos que inflação pode coexistir com recessão: basta ir à Argentina (ou consultar nossa própria história).

Temos assim diante de nós um colossal desafio para 2021 e adiante. Considero gestão temerária estabilizar a dívida pública em patamar superior a 70% do PIB, especialmente com prazo encurtado. Algumas economias avançadas podem fazê-lo, mas não o Brasil, com seu histórico de inflação, confiscos, controles de câmbio e moratórias. Temos que sair dessa! Para tanto, será necessário fazer um ajuste fiscal de 4 a 5 pontos do PIB. Assim se garante que a dívida entre em trajetória crível de queda, o que acalmaria as expectativas.

Além do ajuste macroeconômico, será necessário obter recursos para investimentos públicos em áreas como saúde, tecnologia e infraestrutura, algo como quatro pontos do PIB. A soma bate sim em 8 a 9 pontos do PIB. Não podemos nos iludir —esse é o tamanho do desafio. Tenho plena convicção de que valeria a pena enfrentá-lo.

De onde viriam os recursos? Cabe aqui o que no mundo empresarial seria chamado de um benchmarking. No caso, uma comparação com outros países, em busca de oportunidades para mais economia e eficiência. No Brasil, os gastos com Previdência e funcionalismo atingem cerca de 80% do total das despesas públicas. Na esmagadora maioria dos países esse número não passa de 60%. Se as duas contas fossem para 60%, cifra ainda alta, daria para economizar até sete pontos do PIB (20% dos 35% do PIB de gastos totais).

Como? Do lado da Previdência, com uma reforma adicional que inclua os estados e elimine algumas folgas nas regras. Assim seria possível se obter um total de três pontos por ano. O projeto coordenado por Paulo Tafner em 2018 oferece um exemplo detalhado de como se chega a esse resultado.

Uma reforma da área de recursos humanos do Estado deveria gerar mais três pontos do PIB (além de melhores serviços para a população). A reforma incluiria uma redução do número de funcionários (ao longo de alguns anos), avaliações de todos os funcionários, fim de promoções automáticas, ajustes nos planos de carreira e correções de distorções (como supersalários). Seria possível simular caminhos e criar metas detalhadas.

Há ainda uma terceira fonte de recursos, que viriam de uma redução de subsídios que não fazem sentido econômico ou social. No orçamento de subsídios da União é possível identificar economias de 2 a 3 pontos, sobretudo nas regras dos regimes especiais do Imposto de Renda, que são absurdas sob o ponto de vista distributivo. Esse passo teria o benefício adicional de conferir autoridade moral ao conjunto de propostas, pois deixariam claro que as perdas seriam proporcionalmente maiores para os mais capazes de arcar com elas.

Que fique claro também que sem as reformas as perdas gerais seriam imensas e recairiam sobre os mais pobres.

No curto prazo, creio que com contenção de salários e de contratações no setor público e com a eliminação de subsídios se poderia chegar a um ajuste de três pontos do PIB. As reformas mencionadas aqui cuidariam do restante, ao longo de alguns anos.

Estamos diante de problemas enormes. Felizmente, como demonstrei, existem respostas de igual dimensão. Se adotado, o roteiro apresentado aqui porá o Brasil em uma trajetória de crescimento sustentável e inclusivo. Reformas menos impactantes nos deixariam na ciclotimia medíocre em que estamos há décadas. Nada fazer nos garantiria um final distópico.

Arminio Fraga, sócio da Gávea Investimentos, é presidente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

A boa notícia - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO - 31/05

Há resistência, senso de dever e responsabilidade. O Brasil nunca será uma Venezuela


Para quem imagina, ou teme, que tudo está perdido, eis a boa notícia: as instituições e os setores responsáveis da sociedade se movem contra a escalada que vai de impropérios imbecis a ameaças perigosas. Não há reuniões secretas pela madrugada, apenas a velha e boa troca de impressões, informações e perplexidade, à luz do dia. Em plena pandemia, todos conversam freneticamente e há uma saudável resistência democrática no País.

O primeiro passo é contar a verdade, desmontar a versão de que o presidente Jair Bolsonaro é a vítima e que os palavrões e absurdos de 22 de abril foram “desabafo” de um homem perseguido com sua família, amigos e aliados. Afinal, quem ameaça quem? Quem ataca e quem é vítima? Quem precisa de um “basta, pô!”? Certamente, quem faz discurso em atos que se apropriam das cores e símbolos nacionais, com o QG do Exército ao fundo, para atacar a democracia e a ordem constituída.

E não é de hoje. Quem disse que “basta um soldado e um cabo para fechar o Supremo”? Faz apologia de “rupturas”? Comanda o “gabinete de ódio”? Insiste em intervir em PF, Coaf, Receita? Desafia até protocolos universais de saúde em atos contra o Legislativo e o Judiciário?

O senso de dever e responsabilidade uniu os desiguais do Supremo, pôs as cúpulas do Congresso e de partidos de barbas de molho, mexeu com o instinto democrático da mídia, reanimou velhas associações de belo passado e presente inerte e a até a discreta Sociedade Brasileira de Psiquiatria deu um grito pela democracia. A Igreja Católica anda mais quieta do que a história exige, mas as entidades judaicas acusam indignação com o uso de Israel em vão. Cresce a consciência do que se passa no País, cresce a resistência.

As Forças Armadas não passam ao largo disso. Nelas pululam dúvidas, discordâncias, o temor de quebra de uma imagem exemplar. Em nome do que? Do falso dilema entre defender Bolsonaro dos próprios fantasmas ou ser devoradas por dragões comunistas imaginários que estão sob cada cama, ministério, instituição? Louve-se o silêncio dos comandantes de Exército, Marinha e Aeronáutica. O general Augusto Heleno tentou consertar sua frase sobre “consequências imprevisíveis” e o vice Hamilton Mourão descartou golpes e aventuras militares com desprezo, ironia.

No artigo “O militar surtou”, no Estadão, Manuel Domingos Neto, ex-vice-presidente do CNPq e ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED), lembra a presença decisiva das FA na engenharia, topografia, desenho, infraestrutura, artes, ciência, história, matemática, veterinária, logística, aeronáutica. E provoca: para hoje os militares se imiscuírem com terraplanistas, criacionistas, inimigos da razão? Contra a ciência e as pesquisas? Artigos assim servem de boia para militares que querem distância de fake news e golpes.

O mais objetivamente grave da reunião de 22 de abril foi o presidente encarnar Hugo Chávez: “Eu quero todo mundo armado. Povo armado jamais será escravizado”. Não é bravata. Partiu de quem já condecorou e empregou familiares de líder de milícias, derrubou portarias do Exército sobre armas e multiplicou munições nas ruas, enquanto mete as polícias no bolso. Como ficam as FA se milicianos armados tentarem invadir o Supremo, as polícias lavarem as mãos e o circo da democracia pegar fogo? É melhor prevenir do que remediar.

Em 31/03/2019, no texto “Construir, não destruir”, descrevi o que há de comum entre os projetos do capitão Bolsonaro e do coronel Chávez de alimentar as milícias e espancar Judiciário, Legislativo e mídia para instalar suas crenças e delírios de poder. O Brasil, porém, jamais será uma Venezuela. Nem pela direita, nem pela esquerda. Há resistência e é à luz do dia.

Descarrilando - MARCOS LISBOA

FOLHA DE SP - 31/05

Manifestações do Executivo são assustadoras

Precisamos resgatar a agenda de fortalecimento das instituições


O vídeo divulgado por decisão do STF não deveria surpreender.

O presidente e ministros trataram a política pública como uma briga de garotos de rua. O destempero constatado pelas expressões utilizadas confirma que há tanto indignação quanto despreparo.

Pode haver um iceberg no caminho, como se diz na gravação. As falas veementes, porém, passaram ao largo de temas urgentes. Não houve discussão estruturada a respeito da grave crise da saúde pública ou dos seus efeitos colaterais sobre a renda e a produção.

Em nenhum momento foram analisadas a eficácia das medidas econômicas, como os incentivos à concessão de crédito, ou as muitas propostas da agenda legislativa. Não houve apresentação de um diagnóstico detalhado dos problemas resultantes das opções de política econômica, tampouco a estratégia a ser adotada.

Para quem achava que a desavença sobre o Pró-Brasil era fofoca da imprensa, a reunião mostrou a inconveniente divergência entre os ministros. Um lado desqualificou o outro com argumentos de autoridade e frases de efeito na falta de embasamento técnico.

Trechos da reunião podem preocupar quem acreditava que as manifestações públicas das autoridades eram só parvoíce para agradar a militância e que, a despeito disso, havia técnica na equipe. Nem um nem outro.

A virulência e as insinuações de algumas falas demandam explicações. As afirmações descabidas sobre a economia desnortearam os torcedores que imaginavam haver conhecimento, estratégia e gestão nessa seara. Elio Gaspari pinçou, no último domingo, momentos constrangedores.

Infelizmente, esse cenário não torna a extensão da decisão do Supremo razoável. Reuniões de trabalho devem ser preservadas para garantir a livre troca de ideias, incluindo o direito de falar disparates.

A ocorrência de crime deve ser investigada com análise cuidadosa das consequências das decisões tomadas. Por que censurar a menção a nações estrangeiras, mas divulgar o relato do presidente do Banco Central sobre conversas com autoridades de outros países?

As manifestações do Executivo, recheadas de bravatas e ameaças, são assustadoras. O Judiciário, no entanto, deve tratar dos possíveis crimes com prudência para não alimentar suspeitas de interferências na política.

Nas últimas décadas, consolidou-se a percepção de que o Brasil é uma economia de baixo crescimento e imensas distorções. Mas ao menos a solidez do Estado de Direito, que protege a sociedade da arbitrariedade do Leviatã, assegurava os procedimentos para a mediação de conflitos.

Devemos resgatar a agenda de fortalecimento das instituições, deixando claros suas alçadas e seus limites.

Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.

Tutela militar - JOSÉ MURILO DE CARVALHO

O GLOBO - 31/05

Hoje, a garantia dos poderes constitucionais tornou-se a justificativa preferida pelas FA para definir seu papel


As Constituições determinam o papel dos atores políticos. Vejamos como as nossas definiram o das Forças Armadas.

1824: sem papel político e policial.

Art. 47: “A Força Militar é essencialmente obediente; jamais se poderá reunir, sem que lhe seja ordenado pela autoridade legítima”.

Art. 48: “Ao Poder Executivo compete privativamente empregar a Força Armada de Mar e Terra, como bem lhe parecer conveniente à segurança e defesa do Império”.

1891: com papel político e policial.

Art. 14: “As forças de terra e mar são instituições nacionais permanentes, destinadas à defesa da pátria no exterior e à manutenção das leis no interior. A força armada é essencialmente obediente, dentro dos limites da lei, aos seus superiores hierárquicos, e obrigada a sustentar as instituições constitucionais”.

1934: com papel político e policial.

Art. 162: como em 1891. Acrescenta nas atribuições: “defesa da ordem e da lei”.

1937: sem papel político e policial.

Art. 161: “As forças armadas são instituições nacionais permanentes, organizadas sobre a base da disciplina e da fiel obediência à autoridade do presidente da República”.

1946: papel político e policial.

Art. 176: “As FA [...] são instituições nacionais permanentes [...] sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei”.

Art. 177: “Destinam-se as FA a defender a pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem”.

1967: papel político e policial.

Art. 92: repete 1946, trocando “poderes constitucionais” por “poderes constituídos”.

1988: papel político e policial.

Art. 142: “[como em 1946] organizadas [...] sob a autoridade suprema do PR, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Foi longo e difícil o debate sobre este artigo, feito sob forte pressão do ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves. Mas a disputa deu-se em torno da expressão “garantia da lei e da ordem”. Segundo os críticos, ela podia dar margem a golpismo. Este dispositivo, no entanto, estava presente, com pequenas nuanças de redação, desde a Constituição de 1891, passando pelas de 1934, 1946 e 1967. Hoje, creio que a atribuição mais grave é colocar as Forças Armadas como garantidoras dos poderes constitucionais, presente desde 1891. Houve uma reviravolta na interpretação desse papel. Em 1891, ironicamente, a Constituição proibia o que o Exército acabara de fazer: desrespeitar as instituições constitucionais. Mesmo assim, deixou uma saída intervencionista ao acrescentar “dentro dos limites da lei”. Juarez Távora não viu na limitação qualquer obstáculo à revolta dos tenentes: eles sabiam definir o que era ou não legal.

Hoje, a garantia dos poderes constitucionais tornou-se a justificativa preferida pelas FA para definir seu papel e justificar sua intervenção. A mais recente manifestação desta postura foi o alerta ameaçador do general Augusto Heleno a propósito de eventual apreensão do celular do presidente. A apreensão, se levada a efeito, seria uma tentativa de “comprometer a harmonia entre os poderes”, com “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”. Um dispositivo que, inicialmente, visava a impedir intervenção, passou a ser justificativa de intervenção. A Constituição imperial dizia no artigo 98: “O Poder Moderador [...] é delegado privativamente ao Imperador [...] para que vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos”. Temos uma República julgada incapaz de se autogovernar, sujeita à tutela de um novo Poder Moderador.

José Murilo de Cavalho é historiador

Aras em xeque - MERVAL PEREIRA

O Globo - 31/05

Inábil no seu açodamento, Bolsonaro vem tornando pública sua proposta de “compensação”


O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, tenta sair das cordas com retórica, não com atos. Disse, afinal, em nota que “sente desconforto” com a citação de seu nome para ocupar uma vaga no Supremo Tribunal Federal. O sujeito oculto da frase é o presidente Bolsonaro, que, inábil no seu açodamento, vem tornando pública sua proposta de “compensação” a Aras.

Na verdade, desconforto é o sentimento generalizado entre seus pares, e a opinião pública o identifica como o “Procurador-Geral de Bolsonaro”, conforme a pichação que acordou ontem na sede do Ministério Público em Brasília.

Ele é a peça-chave nos dois inquéritos que correm no STF envolvendo o presidente Bolsonaro, o sobre a interferência na Polícia Federal, e outro das fake news. Se Aras decidir pedir o arquivamento, não haverá denúncia, a não ser que o embate entre Executivo e Judiciário esteja tão radicalizado que, no caso das fake news, por exemplo, um dos ministros atacados, ou vários, entrem com uma “ação penal privada subsidiária da pública”, contestando a decisão do Procurador-Geral. Mas as provas não se perderão. Serão enviadas para a primeira instância, no caso dos que não têm foro privilegiados. E aos tribunais superiores, no caso de deputados estaduais e federais.

Certamente pela complacência de Aras o presidente Bolsonaro se sinta tão à vontade para atacar os ministros do Supremo. Continua fustigando em especial o ministro Alexandre de Moraes, republicando nas redes sociais algumas de suas declarações anteriores, como se evidenciassem contradições do pensamento do relator do inquérito das fake news sobre as liberdades individuais. Mais uma vez temos um problema de semântica, comum aos bolsonaristas radicalizados, e frequente no presidente. Quando Moraes fala em debate de ideias e liberdade de expressão, não está se referindo a mensagens de suas milícias digitais pregando o fechamento do Congresso e do Supremo, ameaçando de morte juízes e políticos que consideram inimigos, e defendendo intervenção militar.

Bolsonaro diz que quer armar o povo para defender a democracia, e dá como exemplo a reação armada contra ordens judiciais que proíbem pessoas de frequentar as praias no tempo de quarentena. Diz que respeita o sistema judicial, mas exorta seus seguidores a não obedecer “ordens absurdas”.

Se diz a favor da liberdade de imprensa, mas instiga seus militantes na porta do Alvorada a atacarem a imprensa profissional. E o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), General Augusto Heleno, o máximo que consegue propor é que os jornalistas finjam que não estão escutando as ofensas. O que realmente incomoda o presidente é a possibilidade de sair de um dos inquéritos, especialmente o das fake news, uma impugnação de sua eleição, ou no STF ou, mais provável, do Tribunal Superior Eleitoral. O ministro Og Fernandes, relator dos casos de impugnação da chapa por irregularidades na campanha eleitoral no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), já faz consulta para decidir se agrega as provas do inquérito de fake news do Supremo ao processo que corre no TSE. O prazo da quebra de sigilo estabelecido pelo ministro Alexandre de Moraes pega a campanha presidencial, o que pode trazer provas que se agreguem ao processo de impulsionamento ilegal de mensagens, com o financiamento das milícias digitais, a mídia que Bolsonaro tem a seu favor, conforme admitiu o próprio. Esses atos falhos, por sinal, vão surgindo à medida que a situação foge ao controle.

Ontem o assessor especial da presidência, Filipe Martins, acusado de fazer parte do “gabinete do ódio”, entregou-se ao responder a críticas no Twitter com uma série de compartilhamentos de mensagens idênticas, revelando ter uma multidão de robôs a seu dispor.

Inércia é cumplicidade - ANTONIO CLÁUDIO MARIZ DE OLIVEIRA

ESTADÃO - 31/05

Reagir ao desgoverno é preciso. Reação pacífica, na hora precisa. E parece ser esta a hora


Os bacharéis em Direito, no curso da nossa História, sempre se destacaram na vanguarda das lutas cívicas e nativistas, em prol dos anseios de liberdade e de democracia do nosso povo. Os estudantes, por seu turno, jamais se ocultaram em salas de aula.

Os acadêmicos das Arcadas transformaram o pátio e o púlpito em frente à faculdade, no território livre do Largo de São Francisco. Também nas ruas, nas praças, em todo e qualquer lugar onde houvesse pessoas, suas vozes eram ouvidas e acatadas.

No final dos anos 30 até 1945, os estudantes pugnaram com ardor e denodo pela queda de Getúlio Vargas, o que aconteceu nesse mesmo ano. Primorosos oradores pregavam a construção de uma sociedade livre e solidária com respeito aos direitos da pessoa humana, à liberdade de opinião e às garantias democráticas. Entre muitos se destacaram Waldir Troncoso Peres, Germinal Feijó e Arrobas Martins.

Proclamavam eles, dentre outras questões, a chocante contradição da convocação dos jovens para lutar na Itália em prol da liberdade, enquanto no Brasil ela nos faltava. Falava-se que a convocação de estudantes era uma retaliação contra aqueles que tantos embaraços criavam ao governo.

Anualmente, uma festa mobilizava todos os estudantes da Faculdade de Direito, com intensa repercussão na sociedade paulistana. Era o Baile das Américas. Em 1943 ele foi realizado no Hotel Esplanada.

Durante o baile, entre uma música e outra, eram ouvidos sonoros “abaixo a ditadura!”. Oradores de tempo em tempo interrompiam as danças e davam contundentes recados contra o governo. Em determinado momento houve absoluto silêncio, para que uma quadra fosse recitada: “Oh! Valente legionário do Corpo Expedicionário,/ por que vais lutar a esmo,/ se a luta cruenta e fria é pela democracia?/ Vamos travá-la aqui mesmo”.

Tais manifestações provocaram a prisão de vários estudantes, incluída a de Hélio Mota, presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto.

Nos dias seguintes São Paulo assistiu a uma chocante demonstração de truculência policial, comandada pelo secretário de Segurança, Coriolano de Gois, e executada pelo major Anísio Miranda, contra os acadêmicos de Direito. Três professores, Luiz Soares de Melo, Waldemar Ferreira e Ernesto Leme, tiveram decretada a sua prisão domiciliar.

A repressão policial continuou com maior intensidade. Na madrugada de 2 de novembro a faculdade foi invadida e numerosos acadêmicos foram presos, literalmente debaixo de cacetadas e de coronhadas.

Entre os primeiros detidos estavam Haroldo Santos Abreu e Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, meu pai. Ambos foram agredidos nas costas e na cabeça. Haroldo, ao ver a viatura descendo a Rua do Riachuelo, onde eles foram detidos, pensou tratar-se do entregador de pão. Foi contestado por meu pai, que disse: “É a polícia, melhor não correr”. Não tiveram tempo sequer de se abrigar na sede do Centro Acadêmico.

Talvez como efeito da pancada que levou, Haroldo teve uma crise não de choro, mas de riso. Ria sem parar, deixando meu pai em pânico. Os policiais poderiam estar se sentindo alvo de gozação. Sua reação era imprevisível. Estavam armados com metralhadoras. No entanto, nada fizeram. Divertiam-se com a inusitada conduta do detido.

Nessa madrugada a faculdade foi vítima de vandalismo policial. Quadros, estátuas, livros, móveis e outros bens foram danificados. Uma pintura de dom Pedro II foi danificada por um golpe de baioneta.

No dia 9 de novembro os estudantes organizaram uma grande passeata para verberar as violências praticadas. Saíram todos pelo centro da cidade de São Paulo com uma mordaça negra a cobrir-lhes a boca, como símbolo do silêncio imposto pelas armas. O povo nas ruas ia aderindo à passeata.

O luto que se abateu sobre toda a academia foi evidenciado pelas tarjas negras colocadas em vários dos seus espaços externos e internos.

Nas imediações do Largo de São Francisco a polícia disparou contra os estudantes. Uma senhora que estava na porta da igreja e o jovem Jaime da Silva Teles, que não era estudante de Direito, foram mortos.

Vários estudantes tiveram ferimentos graves. Dentre eles, João Brasil Vita carregou durante os seus quase 70 anos seguintes de vida uma bala alojada no tórax. Ali foi deixada porque a extração poria sua vida em risco.

Na História do País, essa não foi a única nem a última mobilização de estudantes e da sociedade como um todo em prol de valores superiores que informam uma sociedade que se pretende democrática e justa.

Os fatos narrados acima e outros semelhantes, anteriores e posteriores a 1943, retratam a reação histórica dos estudantes e da própria sociedade sempre que se tornou necessária, em face do autoritarismo instalado ou prestes a sê-lo e em face do desgoverno que deixa o povo desnorteado, intranquilo, sem rumo e à beira do caos.

Reagir é preciso, inadmissível é a inércia, pois ela nos torna cúmplices. Reação pacífica, na hora precisa. E parece ser esta a hora.

ADVOGADO CRIMINALISTA

A tripartição dos Poderes e a democracia - EROS ROBERTO GRAU

ESTADÃO - 31/05

Qualquer insurgência contra o STF é afronta à ordem e à paz social, prenuncia autoritarismo


Os momentos que estamos a viver cá no Brasil, a Terra da Santa Cruz, levam-me a breve reflexão em torno do tema da separação entre Legislativo, Executivo e Judiciário. Separação resultante de tripartição de um todo. Todo que, no entanto, não pode ser despedaçado, pois o Estado é um só, a chamada separação dos Poderes prestando-se unicamente a permitir que atue em plena coerência com os princípios e regras da democracia.

A pequena frase de Charles de Gaulle tudo diz: a autoridade do Estado é indivisível! Antes dele, Hegel, ao afirmar que o Estado distribui sua atividade entre vários Poderes, porém de modo que cada um deles seja, em si mesmo, uma porção da totalidade, de um todo único. O Estado é uma totalidade. Quando se fala da diversidade de eficácia dos Poderes, de sua ação e sua eficiência – diz ele –, é necessário não incorrermos no erro de considerar as coisas como se cada Poder estivesse lá abstratamente, por si próprio. Os três são momentos do conceito de Estado. É primorosa a lição de Carlos Maximiliano ao afirmar que – como no corpo do homem – no Estado não há isolamento de órgãos, mas especialização de funções.

Permito-me ir além, recorrendo ao que Kelsen ensina: o que se refere sob o nome de “poder estatal” é a validez de uma ordem jurídica. Daí que a ideia de uma partição dessa validez é absurda, a suposição do funcionamento isolado de três Poderes sendo insustentável. Não é possível supormos que essa trindade – Legislativo, Executivo e Judiciário – não constitua uma unidade.

A organização estatal em funções torna viável, aprimorando-o, seu funcionamento. O Legislativo produz as leis, o Executivo as aplica e o Judiciário decide. Todos como que vestem um manto de autoridade não porque detenham poderes. Autoridade é o saber o que se deve fazer, serenamente. Os romanos chamavam-na de auctoritas. Por isso todos nós a eles devemos respeito e acatamento. Uma das tarefas primordiais do Estado moderno é a produção de uma ordem jurídica que garanta certeza e segurança jurídicas. Sem elas não haverá como vivermos em liberdade.

Ontem interrompi o que até este ponto vinha escrevendo e agora, 24 de maio, leio no Estadão das minhas manhãs a primeira das Notas & Informações, O Estado paralelo de Bolsonaro. Lá estão afirmados pontos que tenho como extremamente relevantes, incluído o de que, em reunião no mês de abril, ministros defenderam a prisão de magistrados que, em obediência à Constituição, tomaram decisões contra o governo. Mais, investiram contra atos de prefeitos e governadores que, seguindo recomendações de autoridades de saúde, impuseram quarentena contra a pandemia de covid-19. Delinquentes seriam os que respeitam a lei e o bom senso, o que resulta da concepção de que este ou aquele dos três Poderes não seria de todo conformado pela Constituição. Um deles, o Executivo – pasmem! – estaria acima de tudo e de todos! O que, na ponta de tudo, conduz à criação de um Estado paralelo ao Brasil que cá está onde estamos. Estado paralelo que investe contra isso e aquilo, até mesmo contra governadores que impõem quarentena em defesa da vida e ministros do Supremo Tribunal Federal.

Ainda que tudo o que desejava afirmar em defesa do Estado Democrático de Direito lá esteja, na primeira das Notas & Informações da edição de 24 de maio do Estadão, enquanto e como membro aposentado do Poder Judiciário insisto em que, se pretendermos viver honestamente, contribuindo para o bem de todos, será indispensável acatarmos, com dignidade, suas decisões. Não porque elas façam justiça. Pois é certo que, como dizia Kelsen e tenho reiteradamente repetido, a justiça absoluta só pode emanar de uma autoridade transcendente, só pode emanar de Deus. Temos de nos contentar, na Terra, com alguma justiça simplesmente relativa, que deve ser vislumbrada em cada ordem jurídica positiva e na situação de paz e segurança por esta mais ou menos assegurada. Os juízes são servos da Constituição e das leis, servos de um sistema de normas jurídicas que se presta a assegurar um mínimo de calculabilidade e previsibilidade na prática das relações sociais.

Qualquer insurgência contra essa face do Estado que o Supremo Tribunal Federal é afronta a ordem e a paz social, prenuncia vocação de autoritarismo, questiona a democracia, desmente-a, pretende golpeá-la. Por isso é necessário afirmarmos, em alto e bom som, o quanto de respeito e acatamento devemos ao Poder Judiciário e em especial, hoje e sempre, ao Supremo Tribunal Federal. Sobretudo porque – repito – ele não surpreende por sua independência. O Estado é indivisível.

A soberania popular, força que o constitui, permite apenas que ele distribua dentro de si as suas funções. Por conta disso quaisquer ações deste ou daquele dos três Poderes, avançando sobre outro, afronta não apenas sua tripartição, mas a democracia. Ao fim de tudo, se chegarem aonde pretendem, seremos vistos como pobres, tristes, coitados habitantes da Terra da Cruz!

ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR APOSENTADO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI MINISTRO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Ser solidário é bom, mas não basta - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 31/05

Está na hora de lutar para que a sociedade se transforme, de tal maneira que todos os que aqui vivem sejam tratados com um mínimo de dignidade


As doações de empresas e indivíduos para financiar o esforço no combate à pandemia de covid-19 já superaram R$ 3 bilhões. É uma cifra formidável – equivale a mais de um ano de investimento privado em filantropia no Brasil, segundo dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Dessa forma, a elite nacional exibe notável senso de solidariedade em relação aos milhões de cidadãos brasileiros que viram sua renda, já muito baixa, desaparecer em razão dos efeitos econômicos da pandemia e que por isso dependem de ajuda para sobreviver, não só ao coronavírus, mas à miséria.

O problema é que, passada a pandemia e em algum momento no futuro próximo, essa tragédia passará, a elite hoje solidária retomará seus afazeres privados – a “volta ao normal” tão desejada –, mas nada da duríssima realidade de seus miseráveis compatriotas terá mudado. Ao contrário, é bem provável que, ante o derretimento da economia, essa parcela da população retroceda décadas em qualidade de vida, que já hoje é desoladora.

Assim, a solidariedade ante o padecimento desses desafortunados, embora obviamente seja louvável e absolutamente necessária neste ou em qualquer outro momento, não é suficiente. É preciso que a sociedade, em especial sua elite política e econômica, considere inaceitável, de uma vez por todas, que a maioria de seus conterrâneos seja condenada a viver apartada daquilo a que damos o nome de civilização.

Em outras palavras, é preciso que haja consciência social – isto é, a capacidade de entender as vicissitudes dos outros, em especial dos menos favorecidos e, a partir disso, estimular a cooperação política e social para que as necessidades básicas desses cidadãos sejam de alguma forma atendidas, para que eles se eduquem e se preparem para que, a partir de certo ponto, possam sustentar-se e às suas famílias pelo esforço próprio.

Adentramos o século 21, quando as maravilhas das tecnologias digitais multiplicam o conforto e a sofisticação das sociedades, mas há uma parte significativa dos brasileiros que vive como se ainda estivéssemos no século 19 – sem acesso a equipamentos públicos que a esta altura já deveriam ser universais.

Não se pode considerar aceitável, para começar, que 100 milhões de brasileiros ainda não tenham acesso a esgoto tratado ou que falte água potável para 35 milhões, como se todas essas pessoas fossem cidadãs de segunda classe. O novo marco regulatório do saneamento básico, que tem potencial para mitigar esse vergonhoso quadro, continua parado no Congresso – ou seja, os deputados e senadores não se sentem motivados para tratar o assunto com a urgência necessária. Se a eles falta consciência social, é porque tem faltado também a seus eleitores – em especial os que fazem parte da elite nacional. Não surpreende que seja assim: afinal, se até o presidente da República faz piada sobre o assunto, dizendo que “o brasileiro tem que ser estudado” porque “pula e mergulha no esgoto” e “não acontece nada com ele”, é sinal de que muitos achem graça nessa tragédia.

Do mesmo modo, devemos considerar vergonhoso viver em um dos países mais desiguais do mundo em múltiplos sentidos, não somente de renda – indicador que é brutal: em 2019, os 10% mais pobres ficavam com 0,8% da renda média mensal domiciliar per capita, enquanto os 10% mais ricos possuíam 42,9%, segundo o IBGE.

Em razão de tamanho abismo, 6% dos brasileiros vivem em favelas – chamadas eufemisticamente de “comunidades”, forma pouco sutil de dizer que é natural o que é escandaloso. Seus moradores, destituídos de quase tudo, nem sequer têm direito à titularidade de seus barracos – nas “comunidades”, a propriedade é determinada pelos narcotraficantes, verdadeiro Estado paralelo.

E essa é apenas uma amostra do drama de milhões de brasileiros, ao qual se soma agora a pandemia de covid-19, que devastará empregos e renda – a começar, obviamente, pela camada mais pobre da população.

Assim, já não se trata mais de uma crise social. É uma crise vital. Para enfrentá-la, não basta ser solidário. Está na hora de lutar para que a sociedade se transforme, de tal maneira que todos os que aqui vivem, sem exceção, sejam afinal tratados com um mínimo de dignidade – como está inscrito na Constituição e como deveria estar inscrito na consciência coletiva da Nação.

Entre o vírus e o poder - BRUNO BOGHOSSIAN

FOLHA DE SP - 31/05

Bolsonaro teme que crise econômica favoreça políticos de oposição

Ao negligenciar combate ao coronavírus, presidente fala em 'luta pelo poder'


Para entender por que o país continua sem ministro da Saúde no auge de uma pandemia, basta assistir a um trecho da infame reunião ministerial de 22 de abril. Antes de anunciar seu plano para armar a população, Jair Bolsonaro explicou o que o incomoda de verdade.

"A luta pelo poder continua, a todo vapor. E sem neurose da minha parte. O campo fértil para aparecer uns porcarias aí, levantando aquela bandeira do 'povo ao meu lado', não custa nada. E o terreno fértil é esse: desemprego, caos, miséria, desordem social e outras coisas mais. Então essa é a preocupação que todos devem ter", disse a seus auxiliares.

Em dois minutos, o presidente expôs as razões da negligência do governo diante do coronavírus. Bolsonaro orientou sua equipe a trabalhar contra as ações para frear a disseminação da doença por acreditar que os efeitos econômicos da crise podem favorecer políticos de oposição.

Numa ironia do destino, o presidente se mostra atormentado pela ameaça de um salvador da pátria.Ele teme que os eleitores enxerguem em outros campos, em especial na esquerda, soluções que seu governo foi incapaz de oferecer para amortecer os prejuízos com a pandemia ("essa trozoba", no léxico palaciano).

Bolsonaro assumiu o poder abraçado a uma agenda de corte de despesas e revisão de gastos sociais. Quando a renda de parte da população entrou em colapso, foi preciso arrancar à força da equipe econômica um pacote emergencial razoável.

O auxílio de R$ 600 retarda os impactos que afligem Bolsonaro. Tudo indica que a manutenção desse pagamento, criado para ser temporário, será alvo de novas pressões políticas por parte do presidente.

O presidente desdenha dos riscos à saúde da população desde a chegada do coronavírus ao país. O avanço das inevitáveis consequências econômicas dessa crise devem aprofundar ainda mais sua insensibilidade. O discurso gravado em vídeo mostra que a preocupação de Bolsonaro com o bem-estar dos mais pobres está ligada à tal "luta pelo poder".

Bruno Boghossian
Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).

Livre expressão - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 31/05

Apesar de equívocos e risco de excessos, inquérito das fake news deve prosseguir


Se há um ponto em que democracias caminham sobre o fio da navalha, é a regulação da liberdade de expressão. Autorizar qualquer discurso em qualquer situação implica ofender outros direitos fundamentais, como aqueles à segurança, à propriedade, à privacidade, à autoimagem e outros.

Ademais, o advento da internet e das redes sociais ampliou enormemente o potencial de estrago que palavras tóxicas podem causar.

Blindar outros direitos contra discursos que os coloquem em risco tampouco é solução. A liberdade de expressão não apenas está no DNA das democracias liberais como tem valor instrumental.

Pelo menos no Ocidente, os grandes avanços científicos e institucionais obtidos nos últimos séculos estão intimamente associados à livre circulação de ideias, especialmente aquelas que, em algum ponto da história, pareceram blasfemas e mesmo perigosas.

É nesse contexto que se faz necessário entender a discussão em torno das fake news, que se materializa em frentes tão diversas quanto o inquérito que o Supremo Tribunal Federal move para investigar aliados do presidente Jair Bolsonaro, projetos de lei para regular as redes e até em iniciativas de grandes empresas da internet.

Esta Folha, até por ser um órgão de imprensa, defende noção bastante robusta de liberdade de expressão, muito mais próxima do paradigma americano, que se sustenta em autores como John Milton (“Aeropagitica”) e John Stuart Mill (“On Liberty”), que do europeu. E, de fato, as duas tradições, tanto no arcabouço teórico como nas decisões, são muito diferentes.

Na Europa, vários países, embora inequivocamente democráticos, criminalizam o discurso de ódio, a incitação a delitos e mesmo a publicação de informações técnicas que possam ser usadas por terroristas. Ali, alguém pode ser preso até por negar certos fatos históricos, como o Holocausto.

Já os EUA são provavelmente o país que leva mais a sério a liberdade de expressão, permitindo que qualquer grupo exponha qualquer ideia e mobilize seus simpatizantes para defendê-la. É lícito empunhar suásticas, queimar a bandeira nacional e dizer quase tudo, desde que não se coloque em risco iminente a integridade física ou o patrimônio de outras pessoas.

O Brasil fica no meio do caminho. A Constituição traz dispositivos fortes de proteção à liberdade de expressão, mas a legislação infraconstitucional é generosa em proibições. Elas normalmente vêm na forma de veto ao incitamento ou à apologia de crime e de combate ao preconceito e ao racismo.

Embora o STF costume promover a liberdade de imprensa e de expressão com muito mais frequência do que cortes inferiores, não chega a ser muito consistente nessa matéria. Para citar um único exemplo, o ministro Alexandre de Moraes chegou recentemente a censurar duas publicações no âmbito do inquérito das fake news, decisão felizmente revista.

O corolário dessa posição é que, por mais desagradável, cumpre defender o direito de manifestação de bolsonaristas que pedem o AI-5 ou o fechamento do Congresso e do STF. Como disse Mill, é preciso que as más ideias circulem para que as boas possam triunfar.

E o que dizer de autoridades que participam dessas manifestações? Elas são, como qualquer cidadão, livres para dizer o que pensam. No caso de congressistas, a proteção constitucional é ainda mais forte do que a destinada aos demais cidadãos. Mas palavras e atitudes têm consequências políticas.

Se um parlamentar se meter em manifestações contra a democracia, seus pares podem —e deveriam— entender que ele violou o juramento de respeitar a Constituição e cassar seu mandato. Algo parecido vale para integrantes do Executivo, sujeitos à lei que tipifica os crimes de responsabilidade.

A liberdade de expressão, mesmo em sua forma robusta, não significa cheque em branco. Há circunstâncias em que discursos perfeitamente toleráveis em outras situações se tornam delito. Cabe a analogia com o espectador que grita “fogo” numa sessão de cinema sabendo tratar-se de uma mentira. A liberdade dele de expressar-se não se sobrepõe ao direito de terceiros de não correrem risco de vida.

Indivíduos e grupos que fazem uso de palavras exaltadas e notícias falsas podem legitimamente ser investigados para verificar se não incorrem em crimes como calúnia, ameaça, infrações eleitorais e até mesmo formação de organização criminosa com vistas a promover mudança de regime.

Nesse contexto, o famigerado inquérito das fake news encontra chance de redenção. O procedimento, embora dentro da lei (o STF, afinal, define o que é ou não legal), nasceu equivocado. Nunca convém que um mesmo órgão investigue, acuse e julgue. Ainda assim, esta Folha sustenta que o inquérito precisa prosseguir.

Parte das teratogenias iniciais foi resolvida depois que a Procuradoria-Geral da República passou a atuar como acusador no inquérito; falta ainda o endosso do plenário. Ele pode livrar-se de outros inconvenientes se investigar apenas crimes conexos à propagação de notícias fraudulentas, sem tentar coibir a circulação de ideias.

Algo parecido pode ser dito de dois projetos que visam combater fake news a serem votados em breve. Ainda que bem intencionados, podem resultar em censura inaceitável. Como se sabe desde os filósofos iluministas, não se pode regular a priori os conteúdos de mensagens, como fazem as propostas.

Seria mais sensato deixar a cargo das empresas responsáveis apenas marcar como duvidosas as postagens que tenham sido impulsionadas por robôs ou tragam outras marcas da indústria de fake news.

Reunião de horrores - CRISTOVAM BUARQUE

O GLOBO - 31/05

Ministro da Educação de Hitler sentia horror às simples expressões ‘povo judaico’ ou ‘povo cigano’ ou ‘comunista’


Bernhard Rust foi ministro de Hitler para a Educação. Nomeado no primeiro dia do governo nazista, foi fiel até a morte, por suicídio, na rendição da Alemanha. Não se pode dizer que Rust era culpado pela situação da educação alemã em 1933. Apesar de muito melhor que a nossa hoje, a educação alemã sofria consequências da Primeira Guerra e dos fortes constrangimentos impostos pelo acordo de paz que comprometeu as finanças públicas. Tudo isso agravado por hiperinflação e caos político ao longo da década de 1920.

Rust não era o culpado da herança que recebeu, mas, em vez de montar um sistema educacional competitivo na Europa, concentrou-se na ideologia para desarticular o que chamava de cultura comunista e influência de judeus na vida intelectual da Alemanha. Ele via a universidade como antro do marxismo cultural. Einstein era recusado como judeu e a teoria da relatividade vista como parte da conspiração internacional comunista.

Rust não fez parte da engenharia do Holocausto, mas foi um dos criadores do pensamento que serviu de base à execução da solução final para extinguir povos não arianos que faziam parte da Alemanha, especialmente judeus. Ele sentia horror às simples expressões “povo judaico” ou “povo cigano” ou “comunista”. Seu tipo de patriotismo achava que na Alemanha havia um único povo, palavra que só se aplicava aos alemães. Para isso, demitiu professores, impediu escolha de reitores pela comunidade, vetou ideias incompatíveis com a tradição cristã.

Lembrei de Rust ao ouvir a participação do ministro da Educação do Brasil, na reunião de gabinete de 22 de abril. Ele não incentivou solução final para nossos índios, mas lançou a base para que isso ocorra. Não por morte em câmaras de gás, mas por morte lenta devido à negação dos direitos básicos de cada povo indígena. Ao sentir horror, sua cara passou a sensação de nojo ao povo indígena, passou a ideia de que o conceito de povo brasileiro nega permissão para a convivência fraterna com outros povos dentro do Brasil.

Ao dizer que tinha horror ao conceito de povo indígena, e manifestar que apenas o povo brasileiro com sua aparente identidade ocidental e cristã lhe interessa, ele repete o que dizia o ministro nazista para os judeus. Quase 100 anos depois, o ministro da Educação do Brasil senta a base ideológica para a ideia da pureza, se não racial, ao menos cultural, do povo brasileiro cristão e ocidental.

Não é por acaso que, logo após, o ministro do Meio Ambiente declarou que o governo deve aproveitar a atenção da mídia voltada aos mortos pela epidemia, para simplificar procedimentos que permitirão ocupar terras e destruir florestas onde vivem o que seu colega considerou “não povo” indígena. Dizimar as florestas onde vivem os índios é como colocá-los em “câmara de gás” que mata lentamente. Foi isso o que os dois ministros combinaram ser feito sem grandes dificuldades burocráticas, um sentando base ideológica pelo horror ao povo indígena e o outro definindo os meios administrativos para o genocídio. Diga-se a favor deles que talvez não tivessem consciência do que diziam, sem saberem quem foi Rust.

Por isso, nenhum outro ministro, nem o presidente, nem o vice, chamaram a atenção deles para o horror do que tinham dito. Acharam natural os sentimentos de horror com o conceito de povo indígena e com as amarras burocráticas que impedem derrubar florestas.

A reunião de 22 de abril passa a sensação de um ministério unido no uso de palavrões e na concepção de Bernhard Rust. Igualmente triste é imaginar que depois de nossos “Rusts”, dificilmente teremos um presidente com a visão do chanceler Adenauer, que, na primeira reunião para definir as prioridades do Plano Marshall, afirmou que a prioridade na reconstrução da Alemanha seria a educação, para recuperar o tempo perdido em décadas anteriores e corrigir o desastre nos anos nazistas.

Cristovam Buarque é professor emérito da Universidade de Brasília