sábado, maio 02, 2020

Mudanças virão. Mas quais e quando? - CELSO MING

ESTADÃO - 02/05

Há pela frente um mundo de novidades em potencial, uma vez passada esta crise do coronavírus



Alguns comentaristas têm observado que, uma vez passada esta crise do coronavírus, nada será como antes. É conclusão apressada, em alguma proporção destituída de sentido de realidade.

Esta não parece ser a maior nem a mais letal das pandemias que atacaram o Planeta. No passado, a partir das consequências produzidas pela peste negra, pela sífilis, pela febre amarela e, até mesmo, pela gripe espanhola, para o bem ou para o mal, alguma coisa sempre se transformou, mas não a ponto de trocar drasticamente o paradigma, como dizem para o que virá desta vez. Passada a tempestade, nem sempre vem apenas a bonança. Podem vir outras coisas, inclusive a enchente.

Uma crise como esta é sempre uma boa oportunidade para alterações de rumo, mas não se pode desprezar a força das mazelas que sempre acompanharam a trajetória do animal humano. Mas, ainda assim, alguma coisa vem para ficar ou, então, virá para produzir uma mudança já em curso, que deverá ganhar velocidade.

Nem sempre se pode prever a direção que irá tomar. Os dirigentes da indústria automobilística, por exemplo, sentem que a tendência é a de uma curva fechada logo aí, mas não sabem quando acontecerá nem com que intensidade. Por essas e outras, a Fiat resolveu consultar os antropólogos, como foi noticiado na semana passada.

As transformações a que vinham sendo submetidas as relações de trabalho deverão agora se intensificar. Como já vinha sendo observado nesse campo, a questão mais grave é o aumento do desemprego, num ambiente de utilização intensiva de tecnologia poupadora de mão de obra.

Parece cada vez mais inevitável a adoção de sistemas de renda mínima destinados a reduzir o impacto da dispensa de mão de obra sobre o poder aquisitivo do consumidor. O diabo é que programas como esse implicam disponibilidade de recursos públicos. E, no entanto, os Tesouros, que já vinham sendo moídos, hoje são quase só bagaço.


Investir no trabalho de casa pode significar redução de despesas para empresa, como transporte para funcionários e menores áreas para escritório Foto: Daniel Teixeira/Estadão 

A não novidade mais comentada é a cada vez maior adoção do trabalho em casa. Isso pode não valer para as linhas de produção ou para a prestação de serviços pessoais, mas será cada vez mais demandado para outras formas de trabalho. A experiência do confinamento mostrou que o home office tem tudo para ser mais praticado, mesmo em tempos normais. Algumas modificações na legislação e nos acordos sindicais serão inevitáveis. Esse sistema não pode, por exemplo, manter a adoção de cargas rígida de trabalho, com a “bateção” de ponto, contagem de horas extras e prática de banco de horas, porque não são procedimentos sujeitos a controles diretos. A generalização de sua adoção obrigará maior abertura dos arquivos da empresa e a interconexão confiável entre sistemas de informática. A nova prática pode, também, dispensar enormes áreas de escritório, reduzir despesas com condução e com restaurante interno. Mas aparecerão outras despesas necessárias para garantir eficácia ao trabalho fora da sede da empresa.

A arquitetura das residências deverá prever novas áreas específicas de trabalho e a instalação de aparelhos inteligentes, cujo uso será intensificado com a chegada da conexão 5G. Enfim, parece inevitável a readaptação dos espaços interiores e a redefinição das áreas de convivência urbana.

Outra experiência desses tempos de isolamento que produzirá repercussões é a do ensino em casa. As crianças e os jovens foram confinados abruptamente em suas residências, o que prejudicou a programação de estudos do ano. Mas fica a abertura para maior utilização do sistema que os anglófonos chamam de homeschooling. Isso começou lá atrás com os tais cursos por correspondência e agora pode ganhar novos incrementos com videochamadas e outros recursos digitais.

Não é demais repetir o que já ficou dito em outras oportunidades. O comércio eletrônico e as práticas de delivery devem agora se intensificar. As redes comerciais que não se prepararem para a adoção desses serviços correm o risco de perder participação de mercado. Os shopping centers já vinham sentindo essa quebra de rumo bem antes do coronavírus. As lojas estão se transformando em showrooms. Como as vendas são finalizadas pela internet, a participação dos shoppings no faturamento das lojas já vinha caindo. É uma relação que terá de ser repensada. Nem tudo num shopping pode ser transformado em lazer e praça de alimentação.

Enfim, há pela frente um mundo de novidades em potencial. Falta saber como e quando acontecerão.


Se Valdemar põe os pés na Saúde, tudo é permitido - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 02/05

As circunstâncias conspiram a favor da lógica. Os fatos é que não ajudam. Condenado por corrupção, Valdemar Costa Neto, dono do PL (antigo PR), compôs a bancada do mensalão na penitenciária brasiliense da Papuda. Desde então, criou-se para os presidentes que negociam cargos com partidos um dilema hamletiano: barrar Valdemar ou barrar Valdemar?, eis a questão. Jair Bolsonaro optou pela única alternativa não disponível.

O capitão da "nova política" recebeu as demandas do Valdemar, dialogou com Valdemar, barganhou com Valdemar... Eis que, de repente, Bolsonaro concordou em entregar para o Valdemar, entre outros cofres, a Secretaria de Vigilância em Saúde. O órgão pende do organograma do Ministério da Saúde. No momento, é chefiado por Wanderson Oliveira, cujo semblante e ponderação tornaram-se conhecido dos brasileiros graças à crise do coronavírus.

Wanderson compõe a mesa de autoridades nas entrevistas sobre o avanço do vírus. Cabe a ele trocar em miúdos os números da tragédia. Revelou-se um servidor público de mostruário. Egresso da Fiocruz, é doutor em epidemiologia. Dos seus 20 anos de carreira, dedicou 15 à pasta da Saúde. Pois Bolsonaro, veja você, resolveu trocar Wanderson por um apadrinhado do Valdemar. O nome do substituto ainda não veio à luz. Diz-se no Planalto que será um técnico. Conversa mole.

Na máquina estatal, não basta ser técnico. É preciso saber a serviço de quem estarão as habilidades técnicas. No caso da Secretaria de Vigilância em Saúde, o substituto de Wanderson subordinará seu talento aos interesses de Valdemar, não ao interesse público. Em condições normais, a troca seria apenas absurda. Em tempos de pandemia, o escambo ganha ares de escárnio.

Parafraseando o que disse aquele irmão Karamázov do Dostoiévski sobre a ausência do Todo-Poderoso —"Se Deus não existe, tudo é permitido"— pode-se concluir o seguinte: Se um afilhado do mensaleiro Valdemar chega ao comando da Secretaria de Vigilância em Saúde, tudo é permitido no governo Bolsonaro.

Ueba! A República dos Parças! - JOSÉ SIMÃO

FOLHA DE SP - 02/05

O novo ministro chamou o Bozo de profeta; só se for profeta do Apocalipse!


Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! E a quarentena da senhora Rivotril: “Meu novo sonho de consumo é uma máquina de lavar compras”.

Eu quero. O Brasil inteiro quer!
Fê/Folhapress

E eu quero distanciamento social de lives! Brasileiro sofre: agora teve que aprender a falar live e call. Neste ano não teve o Dia do Trabalho. Teve o Dia do Call!

E olha este anúncio: “Vende-se pôster de biblioteca para usar como fundo em videoconferência”. Reparou que todo jornalista agora entra no ar de casa e com uma biblioteca? A maior biblioteca é a da Miriam Leitão! A mais bonita é a da Cris Lobo! Vou fazer o ranking das bibliotecas!

E atenção! Retratação do Bolsonaro! O chargista Reinaldo revela a retratação do Bolsonaro: “Eu não quis dizer ‘E DAÍ?’. Na verdade, eu quis dizer CAGUEI!”. Rarará! O Brasil bateu recorde de mortos por corona. Caguei! Rarará!

E o novo “Telecatch”: Bozo x Alexandre do Supremo. Pato Desarranjado x Kinder Ovo! Aliás, o Alexandre parece um vibrador! Rarará! “O Ramagem não pode ser diretor da PF porque é parça do Carluxo.” “Pode, quem manda sou eu.” “Não, quem manda sou eu.” Agora quer um diretor tampão pra PF! Que tal o Sempre Livre? Quem é o novo diretor da PF? O Sempre Livre! Rarará!

E o novo ministro da Justiça é parça do Bozo. Chamou de profeta. Só se for profeta do Apocalipse!

Tudo parça. Vivemos numa PARÇOCRACIA! Rarará! E esta: “Motéis continuam firmes na pandemia e aceitam aglomeração”. Convide-21! Portugal liberou motéis. Mas só pode entrar um por vez! Rarará!

E o tuiteiro Camilotti: “O presidente não quer saber o número de mortos mas quer todos os relatórios da PF”.

Piadas Prontas! “Médico, prefeito de Santarém, no Pará, acredita que sol quente mata a Covid e não fecha o comércio.” O vírus só se espalha à noite, é notívago! Ele tá confundindo vírus com vampiros. Vampírus! Rarará.

Rio: “ Mulher tirou calcinha e colocou no rosto pra entrar no Guanabara!”. Seguranças impediram que ela entrasse sem máscara e aí ela tirou a calcinha e fez como máscara. E os vírus saíram correndo! Essa calcinha já acordou, suou e pegou dois ônibus! Pior, a mulher é amiga da mãe de um amigo meu! Rarará!

E a maior aglomeração da pandemia é na frente da Caixa! Pra retirar os R$ 600. A fila dá volta em dez quarteirões. Na Bahia, uns caras fizeram até churrasco na fila! O churra dos 600! Rarará!

E o meme do dia: “Alguém sabe informar se irão repor esses feriados que estamos perdendo?”. Rarará! Depois dessa pandemia eu quero férias! Rarará!

Nóis sofre, mas nóis goza!

Que eu vou pingar o meu colírio de cloroquina!

José Simão
Jornalista, precursor do humor jornalístico.

Espiral da morte - RODRIGO ZEIDAN

FOLHA DE SP - 02/05

Não parece que faremos distanciamento direito antes de termos corpos empilhados na rua


Se tivéssemos parado o país há seis semanas, é muito provável que, com distanciamento social rigoroso, estaríamos hoje saindo da quarentena, a exemplo de outros países.

Em artigo na Science, um grupo de cientistas revelou que o distanciamento rigoroso na China reduziu a um sétimo os contatos sociais diários. Isso foi suficiente para conter a escalada do coronavírus no país.

Na última semana, o total de casos na China não chegou a cem. O isolamento já acabou em Pequim. Não é mais necessário se registrar para entrar em prédios, a Cidade Proibida abriu nesta sexta-feira (1º), e o Congresso Nacional do Povo chinês começa no dia 22, com 3.000 autoridades públicas presentes. Se repetirmos o que deu certo lá e na Europa, ainda poderemos evitar a catástrofe completa aqui.

Infelizmente, nosso presidente é responsável pelo afrouxamento das medidas de distanciamento social. Em artigo no prelo, Tiago Cavalcanti, professor em Cambridge, e colegas mostram, através da localização de 60 milhões de celulares, que, em áreas nas quais o presidente é mais popular, ao fazer discursos sobre a "gripezinha", cai a obediência às regras de distanciamento em vigor.

Do lado da economia, a equipe econômica volta com a ladainha de que "as reformas vão nos tirar da crise". Não vão. Reformas dão resultado a longo prazo. Elas não têm nenhum papel no meio de uma pandemia global.

Na terra dos números mágicos, dos 23 milhões de testes em 30 dias, agora o ministro inventou outro, de que a União teria R$ 1 trilhão em imóveis a serem vendidos para abater a dívida pública. Se houvesse esse patrimônio todo (não há) e o governo começasse a vender o máximo possível, esse processo terminaria em dez anos.

Enquanto isso, o presidente do Banco do Brasil dá entrevista a favor do Estado mínimo; vai segurar empréstimos, mostrando que ideologia importa mais que salvar vidas e empregos.

As reformas não saem porque o governo é incompetente, e não por outra razão. Este é um dos momentos mais importantes da nossa história. As ações do governo são a diferença entre morrerem 20 mil, 50 mil ou mais de 200 mil brasileiros.

Keynes dizia que a longo prazo estaremos todos mortos. Os conservadores do governo vão conseguir provar que o keynesianismo está errado. Vão nos matar a curto prazo mesmo.

Nossa única salvação é um cavalo de pau, com uma quarentena séria que achate a curva de casos e nos permita reabrir a economia em pouco mais de um mês e meio. Na China, o processo todo demorou três meses.

Há um único bom sinal para reiniciarmos o distanciamento social, e desta vez direito: já criamos a infraestrutura para auxiliar famílias e empresas nesta crise, apesar da resistência inicial do governo. Cerca de 50 milhões de brasileiros já sacaram o auxílio emergencial. As pequenas empresas conseguem algum acesso a crédito. Mas a fila ainda é grande, e esses programas vão ter que ser estendidos para além de três meses.

Para sair da quarentena, precisamos de pelo menos 14 dias com número de casos novos caindo, capacidade de testar quem seja preciso e rastrear casos para encontrar onde estão maiores focos. Contudo, só pode deixar o distanciamento social rigoroso quem entrou.

Temos primeiro que sair da espiral da morte: o aumento de casos superlota hospitais, a doença se espalha mais e aumenta a sua letalidade.

Infelizmente, não parece que faremos distanciamento direito antes de termos corpos empilhados na rua.

Rodrigo Zeidan
Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

O mosquito que derrotou o imperador romano – reflexões sobre o coronavírus - Y. DAVID WEITMAN

ESTADÃO - 02/05

Em poucas semanas pudemos ver quanto o mundo mudou para melhor


Não é a primeira vez que o nosso país sofre uma epidemia. Em 2015 houve um surto de zika, vírus transmitido pela picada de um mosquito. Naquela época todos nos lembramos de ter visto nos jornais uma conclamação do governo federal a eliminar os criadouros das casas, cujo título, bem chamativo, era “Um mosquito não é mais forte que um país inteiro”.

Já então essa frase me chamou a atenção, pois me remeteu a um trecho do Talmud (Lei Oral judaica) a respeito da morte do imperador romano Tito. Titus Vespasianus Augustus faleceu no ano 81 da era atual, com a idade de 41 anos. Os historiadores discutem a causa dessa morte precoce. Alguns afirmam que foi febre alta, enquanto outros concluem que foi tumor cerebral, malária ou, eventualmente, um assassinato encomendado por Domiciano, seu sucessor.

No Talmud Babilônico (Guitin 56b) consta o seguinte: “Tito, quando retornava de Jerusalém, onde destruiu o Templo e incendiou a cidade, blasfemava e vangloriava-se por ter vencido o D’us de Israel. Naquele momento, uma Voz Celestial lhe respondeu: ‘Tito, quando você desembarcar na Itália, a mais inferior das Minhas criaturas, o mosquito, o espera!’. Quando chegou a Roma, onde foi aclamado, um mosquito entrou por seu nariz, penetrou em seu cérebro e ali ficou picando, causando-lhe enorme dor. O sofrimento de Tito durou sete anos, até ele morrer”. Esse é o relato de sua morte prematura de acordo com as fontes judaicas (similar à opinião de que foi tumor cerebral ou malária, transmitida por um mosquito).

Porém os livros místicos (Tanya, cap. 24) explicam por que o mosquito é chamado de criatura inferior, “pois ele se alimenta, mas não excreta; entra, mas não sai” (realmente, no mundo dos insetos, existe um neuróptero que, em certa fase, possui uma abertura para o alimento, mas não para as fezes). Fica o ensinamento de que cada criatura deve contribuir com algo para este orbe, até mesmo os animais que excretam fezes que retornam ao meio ambiente em forma de fertilizantes. No entanto, esse tipo de mosquito, que apenas absorve (suga o sangue de outros), mas não doa, representa o epítome do egoísta, a criatura mais baixa possível. Assim como o mosquito derrotou o imperador Tito, pessoas que emulam a atitude desse inseto interesseiro e egoísta podem destruir um país inteiro.

Se isso era verdade a respeito do mosquito de Tito (e da zika), o que dizer do coronavírus, um microrganismo sem capacidade própria, que só se pode multiplicar dentro de células vivas de outro organismo? O parasita par excellence, que só se pode reproduzir invadindo outro ser vivo. Pior que o mosquito, o vírus da covid-19 é o paradigma do egocentrismo, receber sem doar, pegar sem contribuir e ainda prejudicar ao máximo.

Assim como existe uma luta implacável da medicina e da tecnologia moderna para conter o vírus e seus efeitos nocivos, não há dúvida de que existe também uma forma de combatê-lo espiritualmente. A promoção da solidariedade, o amparo ao próximo, a mão estendida e qualquer atitude altruísta são os antídotos para o mal deste vírus.

O corona obriga a nossa sociedade a desinfetar as mãos de qualquer contato com egoísmo e a soberba individualista que possa macular a nossa alma. O compromisso com o bem-estar do próximo deteve o rumo individualista do mundo contemporâneo. Finalmente o homem enxergou que não pode isolar-se numa ilha imaginária pensando apenas em seu sucesso e sua felicidade. O planeta é interconectado: alguém espirra em Wuhan e outra pessoa é afetada em Milão; um aperto de mão em Barcelona tem consequências em Nova York. Precisamos uns dos outros e somos influenciados uns pelos outros. Se um microrganismo pode semear tanto caos e destruição, nossas boas ações tanto mais podem ter efeito global.

Em poucas semanas pudemos ver quanto o mundo mudou para melhor. As pessoas apreciam mais o lar e a família, cultivam novas formas de relacionamento com o semelhante e com o Todo-Poderoso, preocupando-se principalmente em não infectar ou prejudicar os outros. O esforço comum para salvar o próximo e o planeta prevalece acima de qualquer interesse pessoal. Mesmo no isolamento, o ser humano solitário tornou-se mais solidário. Surgiram experiências magníficas de amparo social aos mais vulneráveis, exemplos louváveis da defesa da dignidade humana, numa sociedade em que a injustiça social existe.

Tudo isso são manifestações verdadeiras e genuínas de amabilidade e generosidade do ser humano, criado à imagem de D’us. Em especial a dedicação e a devoção do que há de melhor entre nós: médicos, enfermeiros, policiais, profissionais de farmácias, supermercados e outros serviços essenciais, que, apesar do risco, não poupam esforços para cuidar da população com carinho.

Ao contrário do mosquito e do vírus, voltamos à direção horizontal saudável, dar e receber, que, afinal, também é parte da direção vertical, visto que “amarás ao próximo como a ti mesmo” é um mandamento Divino. E Rabi Akiva (contemporâneo de Tito) já dizia: “Este é um conceito básico da Torá”.

RABINO-CHEFE DA CONGREGAÇÃO BEIT YAACOV, SÃO PAULO, É ESCRITOR E PALESTRANTE

Transações tenebrosas - ADRIANA FERNANDES

O Estado de S.Paulo - 02/05

Não há tempo para esperar acomodações de interesses políticos diversos para aprovar a ajuda financeira aos Estados e municípios


A pandemia da covid-19 mudou a noção de tempo e urgência. Não há tempo para esperar acomodações de interesses políticos diversos para aprovar a ajuda financeira aos Estados e municípios, enquanto a população brasileira assiste atônita a matemática da morte com o avanço da doença.

Já se passaram 19 dias da aprovação do projeto na Câmara. O texto está no Senado, com votação prevista para este sábado. Mas nada garante a sua aprovação. Pelo contrário. O projeto modificado terá que retornar para a Câmara para nova votação e o mais provável é que nem mesmo ocorra na próxima semana.

O acordo fechado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, diretamente com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, para o repasse de R$ 60 bilhões está provocando brigas justamente pela regra de divisão dos recursos. Os senadores dos Estados mais prejudicados estão se sentindo traídos.

Para ter domínio do projeto e coordenar a articulação do apoio ao texto que irá à votação, o próprio presidente do Senado assumiu a relatoria. O parecer foi divulgado com explicações detalhadas acompanhado de um arquivo em PowerPoint de fazer inveja (isso não é ironia) aos idealizadores do polêmico programa Pró-Brasil.

Faltou Alcolumbre, porém, mostrar a tabela principal. A que compara o valor a receber pelos Estados e municípios entre o texto do Senado e a proposta da Câmara, motivo de rompimento entre Paulo Guedes e o presidente Rodrigo Maia.

Acontece que diversas tabelas preparadas por assessores econômicos dos parlamentares, entre elas, a do relator do projeto na Câmara, deputado Pedro Paulo, começaram a circular mostrando que o Amapá, o Estado do presidente do Senado, ocupa o segundo lugar no topo do ranking que mostra a divisão dos recursos quando comparado com o número de habitantes. Atrás apenas de Roraima.

Os Estados onde a pandemia é mais grave, e que deveriam receber a maior parte do dinheiro, não vão receber o bolo maior. Se não bastasse o clima ruim com a divisão dos R$ 60 bilhões prometidos por Guedes em quatro meses, a subsecretária do Tesouro, Pricilla Maria Santana, em videoconferência assistida pelo repórter Daniel Weterman, do Broadcast, revelou que foi feita uma divisão de rateio que nem o Tesouro conhecia por “critérios políticos”.

Como assim? O governo fechou um acordo em que a secretária responsável pela relação do Tesouro com os governos regionais não podia se meter porque o assunto era político.

O desgaste tem sido grande. Lideranças do Senado já avisaram que o valor do socorro pode subir para R$ 80 bilhões para acomodar as reclamações. Quem perde muito está reagindo. A começar por São Paulo, epicentro da pandemia no Brasil.

O senador paulista José Serra é o mais indignado. O tucano apresentou uma proposta para preservar o objetivo do projeto que veio da Câmara. Na justificativa, ele diz que a nova proposta estabelece critérios pouco transparentes, beneficiando mais os municípios pouco afetados pela queda da arrecadação tributária.

À coluna, o economista José Roberto Afonso, especialista em contas públicas e assuntos federativos do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), afirma que proposta do Senado é uma irresponsabilidade porque aposta na divisão regional e ignora os critérios técnicos que pautam tributação, orçamento e saúde. Guedes, por outro lado, se diz confiante no acerto do acordo.

Quando o político prevalece sobre o técnico, porém, não tem com dar certo. No cenário atual, no limite, mesmo que não queira politicamente, o governo terá que socorrer os governos das unidades mais ricas, se o colapso for eminente.

Os graves problemas na distribuição do auxílio emergencial de R$ 600, com filas nas agências da Caixa e desespero das pessoas para receber o benefício estampados todos os dias, mostram que sozinho o governo federal não pode tudo. Mesmo que a verba esteja na sua mão.

Se o governo tivesse organizado uma parceria genuína com Estados e prefeituras, talvez, a distribuição do auxílio estivesse hoje com menos problemas. É a prova também que não basta o dinheiro. É preciso boa gestão. Por isso, as ações de saúde para o combate do coronavírus estão para trás na execução das despesas do Orçamento, com mostrou reportagem do Estado.

A Brasília do Palácio do Planalto, da Esplanada dos Ministérios e dos gabinetes agora virtuais dos parlamentares continua virada de costas para o País. No seu pior momento, está metida em transações tenebrosas.

A coluna pede desculpas por ter insistido, nas últimas semanas, no tema federativo. Mas o resultado da negociação das próximas horas e dias vai dizer muito como muitas cidades estarão em condições de enfrentar os efeitos da covid-19.

Apagão estatístico - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 02/05


Os tempos estranhos a que se refere o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello levam a que, no Brasil, a tecnologia não possa ser usada para auxiliar o combate à Covid-19. Políticos da esquerda e da direita usam a mesma alegação, proteção aos direitos individuais, para tentar impedir que os celulares sejam usados para monitorar o distanciamento social, no caso pioneiro de São Paulo, ou para fazer pesquisas do IBGE.

No caso do governador João Doria, ele foi acusado por partidos de direita, capitaneados pelo deputado Eduardo Bolsonaro, de promover uma invasão aos direitos individuais ao usar os celulares para identificar a mobilidade social nesses tempos de pandemia. Como vários países fazem, e até mesmo o próprio governo, cujo ministério de Ciência e Tecnologia havia feito um acordo com as operadoras telefônicas com o mesmo objetivo.

Nesta quarta-feira, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julga ação direta de inconstitucionalidade (ADI) da OAB e dos partidos PSDB,PSB, PSOL e PCB contra a medida provisória que permite ao IBGE usar a lista de assinantes das companhias telefônicas para fazer pesquisas neste período em que o distanciamento social exige a utilização de mecanismos não presenciais alternativos (telefone, vídeo, e-mail) para manter o fluxo de informações que evite o que já está sendo classificado de “apagão estatístico”, como alertaram vários ex-presidentes do IBGE em carta aberta.

Para a OAB, a MP viola dados sigilosos de brasileiros e não apresenta mecanismos de segurança para minimizar o risco de acesso e o uso indevido deles. Não apenas a salada de siglas chama a atenção, mas a incongruência, pois o PSDB é o partido que tem em João Doria seu principal líder. Nem Eduardo Bolsonaro tem razão em criticar o monitoramento celular para identificar aglomerações, nem tem sentido a ação do PSDB e demais partidos, liderada pela OAB.

Susana Cordeiro Guerra, presidente do IBGE, explica que crise do COVID-19 obrigou o IBGE a adiar o Censo Demográfico para 2021, e não está permitindo que seus entrevistadores percorram as residências coletando as informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a PNAD, a principal fonte de informações do país sobre emprego, educação, renda e condições de vida da população brasileira.

O IBGE fez também um convênio com o Ministério da Saúde para pesquisa domiciliar especial sobre o COVID-19, instrumento fundamental para ajudar a planejar a saída do confinamento imposto pela crise sanitária.

Os problemas encontrados pelo IBGE, que já tinha obstáculos específicos de países em desenvolvimento, como o receio da violência que dificultava o contato do pesquisador nos domicílios e o acesso a certas áreas das cidades dominadas pela bandidagem, são comuns a mais de 200 países que têm institutos de estatísticas oficiais. Em Nova York, por exemplo, há políticos que, em vez de barrar as entrevistas por telefone, estão enviando cartas a seus eleitores pedindo que cooperem com os institutos oficiais de pesquisa.

Em diferentes continentes constata-se a reorganização dos institutos de pesquisa, com exemplos nas Américas (Argentina, Canadá, Chile, Colômbia, EUA e México), na Europa (Espanha, Finlândia, França, Holanda, Itália, Portugal, Reino Unido e Suécia) na Oceania (Austrália). No período de 16 de março a 16 de abril de 2020, foram identificadas, segundo o IBGE, medidas comuns adotadas, entre elas: “adoção de modalidades alternativas de pesquisa, de acordo com a natureza e as características de cada operação, para substituir a coleta de campo nas pesquisas contínuas e as atividades presenciais de coleta de dados”.

Os mecanismos não presenciais alternativos estão sendo recomendados pela comunidade estatística internacional, enquanto a emergência mundial da saúde continuar: “uso de registros administrativos para produção de estatísticas, adoção de entrevistas por telefone, preenchimento de formulários pela web e/ou e-mail, entre outros, preservando o sigilo e o rigor técnico das estatísticas oficiais”.

Ter acesso à lista de assinantes das operadoras telefônicas é o mesmo que consultar os antigos catálogos telefônicos que a tecnologia tirou de circulação. Mas em qualquer país civilizado, é possível acessar o catálogo telefônico digital através da internet.

O fisiologismo à Bolsonaro - GUILHERME AMADO

Revista Época

O abraço escancarado no centrão não chega a surpreender: a exemplo da guerra à corrupção, o fim do fisiologismo sempre foi só discurso


O Palácio do Planalto fez uma caçada no domingo 19 ao telefone dos ex-deputados Roberto Jefferson e Cristiane Brasil, pai e filha, expoentes do centrão, mesmo que hoje sem cargo. Jair Bolsonaro queria falar diretamente com Jefferson, curioso para saber o que o pivô do mensalão revelaria mais tarde numa live sobre um suposto plano de Rodrigo Maia para derrubar o presidente da República. Bolsonaro logo soube o que pretendia o ex-companheiro de Câmara e partido. Jefferson está disposto a fazer com Bolsonaro o mesmo que fez com Fernando Collor e com Michel Temer: ao perceber a decadência de um governo e a fragilidade política de um presidente, estender a mão. Atacaria Rodrigo Maia, sem apresentar fato que sustentasse o tal golpe por vir, em troca disso.

Claro que se trata de uma aproximação despretensiosa, baseada nos mais elevados princípios da República. De cristão para cristão. Mas quis o destino que o namoro, para usar a terminologia presidencial, se desse na mesma semana do divórcio litigioso com Sergio Moro. A saída do símbolo da Lava Jato — para o bem e para o mal — e a entrada de Jefferson para a base do governo foram simbólicos de uma ruptura na prática com algo que Bolsonaro só fez no discurso, ao longo da vida parlamentar e também como presidente: o tal do combate à corrupção. Embora sua eleição tenha ocorrido em parte no embalo do papo de enfrentar o crime de colarinho-branco, nunca houve de fato um esforço do presidente para tanto. O abraço escancarado no centrão de Jefferson, Valdemar Costa Neto, Arthur Lira e Gilberto Kassab tem ocorrido sem constrangimento. O que não chega a surpreender: a exemplo da guerra à corrupção, o fim do fisiologismo sempre foi só discurso.

O bolsonarismo só havia tirado da cartola um novo tipo de fisiologismo, desde a formação inicial do governo. Ou não é fisiologismo nomear militares porque são militares e não necessariamente pela qualificação técnica? Evangélicos por serem evangélicos? Um veterinário sanfoneiro para a presidência da Embratur? Uma blogueira para coordenar o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional? Um deputado investigado por criar candidaturas laranjas como ministro? Tentar emplacar o filho — o filho — como embaixador nos Estados Unidos? Bater o recorde de emendas parlamentares liberadas para aprovar a reforma da Previdência? Nada disso difere de aceitar um indicado do centrão.

Mesmo o centrão tem cargos desde o começo. Basta perguntar a qualquer líder dos novos partidos com relação direta com Bolsonaro — PP, PTB, Republicanos, PSD — sobre o que o DEM, esse também do centrão, vale lembrar, tem ou já teve no governo. Foi o único a ter três ministérios, Agricultura, Cidadania e Saúde, até a saída de Luiz Henrique Mandetta. Embora a legenda diga que os ministérios não são indicações da cúpula partidária, é inevitável lembrar que só a sigla com as presidências do Senado e da Câmara teve tantas pastas. O partido nomeou ainda para o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). No Ministério da Saúde, o ex-deputado José Carlos Aleluia (DEM-BA) ganhou uma assessoria e o também ex-deputado Abelardo Lupion (DEM-PR) uma diretoria.

Roberto Jefferson foi um dos poucos réus políticos do mensalão que admitiu ter pego dinheiro: R$ 4 milhões pagos pelo PT. Ficou um ano em regime fechado e depois cumpriu a pena em casa. Hoje, é réu na Justiça Federal do Distrito Federal, acusado de integrar uma organização criminosa no governo Temer, para a concessão de registros sindicais em troca de propina — acusação que ele refuta. Seu plano, agora, é levar Bolsonaro de volta ao PTB.

Bolsonaro foi do PTB de Jefferson, bem como foi também do PDC, PPR, PP, PFL (hoje DEM), PSC e, ufa, do PSL. O delator do mensalão acha que o partido deve voltar a ser o lar do presidente. “Estou do lado do capitão. Faço a defesa dele de coração, com minha alma, brandindo a espada sagrada que tenho em defesa do legado que recebi de meus antepassados”, disse à coluna, afiado em jeffersonês castiço. Perguntado se quer cargos, é rápido no gatilho: “Sabe qual cargo eu quero do governo Bolsonaro? Quero trazer para o PTB o cargo de presidente da República. Eu quero que Bolsonaro venha para o PTB. Ele já foi do partido e tem tapete vermelho para voltar com o grupo dele. Bolsonaro vai conhecer um partido de verdade, de homens de verdade, que não correm da luta”.

Até outro dia, pouco antes de Bolsonaro bater recorde no número de pedidos de impeachment em tão pouco tempo — já foram 31, em 15 meses de governo — a relação entre centrão e bolsonaristas não era, ao menos publicamente, boa. “Deus nos livre e guarde do centrão”, escreveu a bolsonarista Bia Kicis. “Eu sou contra qualquer acordo com o centrão”, defendeu Alê Silva, também defensora do governo. “Nos foi colocado na mesa pelo centrão duas opções. Uma verdadeira chantagem. Não vamos ceder”, bradou Luiz Lima, outro do PSL pró-Bolsonaro. Mas os três deputados federais foram às redes sociais nesse tom antes da agonia de Bolsonaro fazê-lo rifar Moro para controlar a Polícia Federal e insistir numa conexão com os partidos de centro.

Agora, o que está se tentando formar é uma só base, que vai congregar bolsonaristas e centrão. Sem rubor de nenhuma parte e com o beneplácito de generais com assento no Planalto, a exemplo dos ministros Augusto Heleno, Luiz Eduardo Ramos e Walter Braga Netto.

A militância digital parou da noite para o dia de atacar o centrão nas redes sociais. “Virei rei nas redes sociais de meu estado. Não apanho mais”, contou, pedindo sigilo, um dos líderes partidários que se sentou com Bolsonaro e que está pleiteando um dos cargos que era do DEM.

Agora longe dessa turma, Moro perdeu quase todas as batalhas que travou em seus 15 meses de governo. Saiu menor do que entrou e maculou sua biografia, podendo impactar até o destino jurídico de Luiz Inácio Lula da Silva. Ainda se espera, afinal, do voto de Celso de Mello, que pode desempatar o 2 a 2 do pedido de anulação da sentença de Lula, que tramita na Segunda Turma do STF sob o argumento de que Moro se mostrou publicamente parcial ao integrar o governo do opositor do homem que prendera. Ao deixar o cargo, disse estar à disposição do país, no que alguns políticos viram um sinal de que entrará para a política — o que ele segue negando.

Enquanto Moro estuda seu futuro, as peças do xadrez bolsonarista se movem rápido. Uns sempre mais rápidos do que outros. Disse Roberto Jefferson à coluna, referindo-se à mais poderosa deputada bolsonarista hoje e até outro dia afilhada de Moro: “A Carla Zambelli, por exemplo, é uma moça honrada. Tenho a maior admiração por ela”.

A China em página inteira - DEMÉTRIO MAGNOLI

Folha de S. Paulo - 02/05

Operação geopolítica da China na pandemia terá implicações de longo prazo


Na aurora de 7 de fevereiro, o nome de Li Wenliang surgiu numa inscrição imensa, desenhada na neve, à margem de um rio chinês.

Três meses e uma pandemia depois, em 29 de abril, a página A5 da Folha foi inteiramente ocupada por um informe publicitário que canta as glórias da China. As duas imagens contam uma história —ou melhor, a inversão de uma história. A operação terá implicações geopolíticas de longo prazo.

O médico Li Wenliang, um dos primeiros a soar o alarme da nova doença, foi calado pelo Estado, contraiu o coronavírus e morreu. A notícia correu nas redes sociais, convertendo-o em herói popular: o símbolo da perversidade do regime.

A página publicitária na Folha traz a voz de Xi Jinping, dublada por um "especialista" brasileiro, um diplomata chinês e o médico-burocrata responsável pela medicina tradicional chinesa. É o segundo funeral de Li Wenliang: o panegírico da "eficiência" sanitária do sistema totalitário.

O primeiro pilar da "guerra da informação" deflagrada por Xi Jinping é a manipulação das estatísticas de óbitos. Segundo os números oficiais, a China encerra sua epidemia com 4.600 mortos, 13 vezes menos que os EUA, onde o vírus continua a ceifar 2.000 vidas por dia.

Deborah Birx, a chefe da força-tarefa dos EUA para a Covid, classificou a contabilidade chinesa como "irreal". A palavra quase apareceu num relatório da Comissão Europeia, mas foi suprimida por temor à represália do principal fornecedor de respiradores, máscaras e EPIs.

O segundo pilar é a campanha de "filantropia sanitária", pela transferência gratuita desses equipamentos e materiais a países em desenvolvimento. Nessa frente, o governo chinês divide o trabalho com Jack Ma, fundador do Alibaba, a "Amazon do Oriente". A iniciativa faz parte de um projeto muito mais ambicioso, a "rota da seda sanitária", que almeja converter a China em ator global no setor multibilionário da indústria farmacêutica.

O surto do ebola na África Ocidental, em 2014, foi o palco da aventura pioneira chinesa na política sanitária internacional. Na ocasião, a China cooperou com os EUA, cumprindo papel coadjuvante. Já na "rota da seda sanitária", ela opera unilateralmente, projetando influência no Sudeste Asiático, na Ásia Central e na África.

A escolha do etíope Tedros Adhanom para a chefia da OMS, em 2017, alavancada por um lobby chinês, converteu a organização em trampolim para a diplomacia sanitária de Xi Jinping na África, que utiliza a Etiópia como cabeça de ponte.

O FMI estima violentas quedas do PIB anual nos EUA (-5,9%), na Zona do Euro (-7,5%), no Reino Unido (-6,5%) e no Japão (-5,2%), mas discreto crescimento na China (1,2%). A crise do coronavírus acelera as tendências prévias de deslocamento do eixo econômico global. Mas o triunfo geopolítico chinês, apoiado na falsificação da história, deriva essencialmente dos fracassos ocidentais.

Os EUA praticaram o esporte primitivo do negacionismo, retrocederam para o isolacionismo e, no fim, renunciaram a disputar influência com a China na OMS. Trump tenta, pateticamente, livrar-se da responsabilidade pela negligência, atribuindo a pilha de 65 mil cadáveres ao "inimigo estrangeiro" (o "vírus chinês") e disseminando teorias conspiratórias (o "vírus de laboratório"), enquanto faz da emergência sanitária um pretexto para radicalizar a xenofobia.

Do outro lado do Atlântico, a União Europeia fechou descoordenadamente suas fronteiras internas e reativa a tensão entre Alemanha e o trio França/Itália/Espanha em torno das estratégias de resgate da economia.

"Para a China, tudo serve a uma utilidade política; um número nada significa para eles", explica Ai Weiwei, o célebre artista dissidente chinês, referindo-se à macabra piada estatística. A China da página A5 soterra a China da inscrição na neve fofa. Ao mentiroso, as batatas.

Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

Quem não curte um fila - JULIANNA SOFIA

Folha de S. Paulo - 02/05

Fila 'cultural' de Onyx é desculpa para incompetência do governo


Da linhagem dos obscurantistas do bolsonarismo para os quais o problema do Brasil é o brasileiro, o ministro Onyx Lorenzoni (Cidadania) credita à "nossa cultura" um dos motivos para as filas nas agências da Caixa para sacar o auxílio emergencial de R$ 600.

Zombaria diante do desespero de trabalhadores em jornadas penosas de espera de até oito horas. Se é traço cultural, a atual administração esmera-se em reforçá-lo.

Entre março e abril, ao menos 1 milhão de trabalhadores perderam seus postos de trabalho e teriam direito ao seguro-desemprego. Foram 804 mil os que garantiram o recebimento do benefício. Outros 200 mil não conseguiram acesso a agências do Sine, nem funcionaram os meios remotos para obter o auxílio. "Temos uma pequena fila, que estamos dando conta rapidamente", explicou o secretário Bruno Bianco (Previdência e Trabalho).

Foi na gestão de Jair Bolsonaro que, desde meados do ano passado e depois de mais de uma década, segurados do INSS passaram a reviver o pesadelo do atraso na concessão de benefícios previdenciários. Uma fila cujo pico atingiu 2,3 milhões de aposentadorias e auxílios represados em 2019 e só deve ser zerada no segundo semestre deste ano. A demora permitiu ao governo empurrar para 2020 uma despesa de R$ 2,3 bilhões --uma espécie de "pedalada social".

Sob as barbas de Onyx, uma outra espera. Embora empregue superlativos para tratar dos pagamentos do Bolsa Família, ele andou esquecendo que ainda há 200 mil famílias vulneráveis que solicitaram o benefício há mais de 45 dias e aguardam resposta. A fila afeta pessoas em extrema pobreza em mais de 700 municípios.

É preciso reconhecer presteza em certas ações do ministro, no entanto. Como revelou o repórter Renato Onofre, Onyx indicou seu professor particular de inglês, há pouco conhecido e em início de carreira, a uma vaga no ministério —salário de R$ 10 mil. Bastou a divulgação para o processo ser rapidamente cancelado.

Um presidente que odeia pelas manhãs - ASCÂNIO SELEME

O GLOBO - 02/05

Presidente se vê esvaziado dos ensinamentos do dia quando se deixa contaminar pela ignorância da noite


Quase todo mundo sabe que política é a arte do entendimento, a busca do possível, a técnica de guiar ou orientar um grupo, uma comunidade, uma cidade, um estado ou uma nação através de argumentos e medidas que atendam ao interesse da maioria. É isso o que se espera do homem público, seja ele um veterano conservador ou um novato reformador. Ele precisa pensar muito antes de tomar uma decisão, calcular antecipadamente o impacto de cada passo que for dar, cada frase que for pronunciar. Procurar não cometer erros e evitar turbulências que o atrapalhem alcançar o objetivo da maioria. Ter jogo de cintura, buscar a paz. Exatamente o contrário do que faz cotidianamente o presidente Jair Bolsonaro.

Quando as coisas chegam a um ponto de ebulição capaz de gerar uma explosão, o bom político recolhe-se, cala-se, conta até dez, dorme sobre o problema para ter tranquilidade para decidir no dia seguinte. Comete o conhecido “sleep on it”, que é a técnica de deixar a matéria esfriar antes de nela tocar, ou consultar o travesseiro antes de reagir. Com Bolsonaro ocorre o oposto. Ele quase sempre amanhece atazanado, pronto para dar uma bronca em repórter, para reagir ao que considerou um insulto recebido na véspera, a reverberar sobre algo que por prudência deveria ter sido deixado para trás ou sobre o qual seria melhor discorrer com a calma das manhãs.

Duas razões parecem estar por trás dessa volúpia matinal do presidente. A primeira e mais evidente é que no “sossego do lar”, Bolsonaro passa horas sem ouvir seus assessores, seus generais, aqueles que tentam e muitas vezes conseguem colocar freios em seus ímpetos. No Alvorada, quando a noite cai, o presidente só tem os seus filhos, os três zeros que entopem sua cabeça com as ideias que ele vai desovar ao longo do dia e expelir de modo mais direto e sem rodeios na entrevista que dá na porta do palácio aos jovens repórteres atônitos, que produzem as principais manchetes de quase todos os dias.

A segunda razão tem natureza emocional. Bolsonaro sente-se encorajado pela claque que amanhece diariamente com ele na saída da residência oficial. Dá para ver como ele se regozija com os aplausos e palavras de apoio quando fala, quando ofende jornais ou manda jornalista calar a boca, quando desce o pau em governadores, deputados e senadores ou quando ataca ministros do Supremo Tribunal Federal. Percebe-se em alguns momentos que ele fala e olha para a claque rindo, buscando incentivo, que obviamente obtém. Essa turma o incensou mesmo quando defendeu o fim do isolamento e disse que a Covid-19 não passava de uma gripezinha.

Se da claque não se deve esperar mesmo muita coisa, afinal essa turma é composta por seguidores e admiradores fiéis e cegos, o mesmo não devia se dizer do presidente. Mas é o que ocorre. Não se pode esperar muito de Jair Bolsonaro. Sobretudo pelas manhãs. O ataque ao ministro Alexandre de Moraes é um exemplo da clássica frase “de onde menos se espera daí é que não sai nada mesmo”, do Barão de Itararé. Quando sai alguma coisa, vem nesse formato que atenta contra o mais elementar dos mandamentos do bom político, que é não permitir que a coisa fuja do seu controle. No episódio, Bolsonaro entregou o controle ao Supremo, que reagiu em coro contra ele.

E não adianta tentar explicar os arroubos presidenciais pela lógica bolsonarista de que o mundo mudou com o fim da política clientelista. Até porque essa máxima besteira, que há muito tempo tinha sido explodida, foi agora soterrada pelo acordo com o centrão. E depois não é disso que se trata. O que ocorre é que o presidente se vê esvaziado dos ensinamentos do dia quando se deixa contaminar pela ignorância da noite. Woodrow Wilson, que governou os Estados Unidos de 1913 a 1921, produziu um frase que qualquer brasileiro adulto que acompanhou a política nacional dos últimos 20 anos entende bem: “Nos assuntos públicos a burrice é mais perigosa do que a desonestidade, porque é mais difícil de ser combatida”.

Se a comissão for instalada
Quem conhece bem Brasília e sabe como funciona o Congresso garante que se Rodrigo Maia aceitar um pedido impeachment, abrir o processo e instalar a comissão especial, a sorte de Bolsonaro estará selada. A enxurrada que segue um movimento como este é inexorável, garantem os entendidos.

Quem, presidente?
Responsabilidade não é o forte do ocupante da principal cadeira do Palácio do Planalto, mas tem horas que ele passa dos limites. Foi o que fez mais uma vez numa das suas falas desta semana. Ao afirmar que o governo federal está fazendo o que pode para atender à pandemia, sobretudo dando dinheiro aos estados, Bolsonaro acusou sem provas: “O que mais nós temos por parte de alguns estados é desvio de recursos”. Como são tantas as barbaridades ditas pelo presidente, ninguém deu bola para esta grave acusação, nem os governadores.

Traíra
Quando tudo voltar ao normal na Esplanada dos Ministérios, se de fato voltar e se for com estes ministros e este governo, a vida de Rogério Marinho vai virar um inferno. Paulo Guedes identificou em Marinho o autor da ideia do programa Pró-Brasil, que acabou conseguindo desmontar. Os gastos previstos seriam um atentado contra o projeto de ajuste fiscal do ministro da Fazenda. Guedes afirma que seu ex-secretário da Previdência e atual ministro do Desenvolvimento Regional agiu às suas costas: “Ele é um traidor, vou dizer isso na cara dele”, avisou Guedes a Bolsonaro quando derrubou o programa.

Reportagem
Quem são os dez ou 12 deputados bolsonaristas que a Polícia Federal está na cola? Suspeito que seja gente do velho centrão já dando ordens a Bolsonaro.

Minas merecia mais
O governador de Minas Gerais, Romeu Zema, é mais do que mal informado. Na entrevista que deu para a “Folha de S. Paulo” esta semana, disse que “a classe política bate em Bolsonaro porque ficou sem privilégios”. A análise do governador é rasteira e rápida. Zema deve ser daquelas pessoas que dizem ser contra as manifestações em favor do fechamento do Congresso, do Supremo e pela volta do AI-5, mas que “entendem a razão da população desiludida”. Francamente, governador, Minas merecia coisa melhor.

Argumento não falta
O centrão de Roberto Jefferson (mensalão, corrupção passiva e lavagem de dinheiro), Ciro Nogueira (Lava-Jato, propina da Odebrecht), Valdemar Costa Neto (mensalão, Lava-Jato, corrupção passiva e lavagem de dinheiro) e Artur Lira (Lava-Jato e violência doméstica) diz que Bolsonaro está descriminalizando a política ao abrir espaço para seus membros no governo. Faz todo sentido. Aliás, os olhinhos desses ilibados cavalheiros brilharam como nunca com o natimorto Programa Pró-Brasil, que previa gastos R$ 250 bi em obras. Que fartura seria, que farra, Bob.

Piantella sem sentido
O Piantella de Brasília, que fechou e está passando o ponto, não fazia mesmo sentido em seguir funcionando. O restaurante era o templo do entendimento político da capital do Brasil, uma espécie de extensão do cafezinho do plenário da Câmara. O lendário Ulysses Guimarães tinha lá uma mesa cativa, de onde costurou, com outros grandes nomes como Tancredo Neves, Teotônio Vilela e José Sarney, a Lei da Anistia, a derrota da ditadura no Colégio Eleitoral e a Constituição de 1988. Nos dias de hoje, onde nenhum entendimento é possível, o Piantella tinha perdido sua razão de ser.

Teto para servidor
Está pronto para votação desde 2018 o projeto que regulamenta o teto remuneratório do servidor público. O texto do deputado Rubens Bueno (Cidadania-PR), relator da matéria na comissão especial instalada na Câmara para esse único fim, está dormindo numa gaveta do presidente da casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), há quase dois anos. Por que? Rodrigo que responda se o lobby dos funcionários é muito forte e ele não aguenta a pressão. O projeto estabelece uma série de limitações que impede o rompimento do teto, prevendo até mesmo a prisão de dois a seis anos do gestor que quebrar a regra. O texto pode ser uma alternativa à anunciada suspensão de reajustes no serviço público como contribuição para a crise provocada pelo coronavírus.

Sinal de alerta
Revelação de que a Convid-19 pode destruir neurônios acendeu o sinal de alerta do Palácio do Planalto. Cada um sabe onde lhe aperta o sapato.

E daí? - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 02/05

Epidemia acelera em meio a isolamento em xeque e mais descaso de Bolsonaro


Se estimar a curva aproximada de uma epidemia viral se mostra complexo em países de menor porte, o esforço assume caráter divinatório em um local como o Brasil.

Isso dito, há uma expectativa entre autoridades de saúde de que este mês de maio registrará o pico das infecções —com as óbvias divergências regionais. Natural, pois, que se questione a eficácia de medidas de isolamento social aplicadas por todo o país.

A experiência internacional tem favorecido graus diversos de fechamento e de reabertura da sociedade para o controle da curva de infecção pelo Sars-CoV-2.

Não há solução universal, como a necessidade de adoção da rigidez em Singapura provou. Mas uma coisa é certa: é o principal instrumento à mão enquanto vacinas e remédios eficazes não chegam.

No Brasil, o debate foi sequestrado a partir da insistência de Jair Bolsonaro em minimizar a Covid-19. Com 6.329 corpos até sexta-feira (1º), o presidente logra rebaixar seu patamar de humanidade e discernimento a cada semana.

Na terça passada, atingiu um novo nível do abismo ao ser questionado sobre o fato de o país ter ultrapassado a China, berço da crise, em número de óbitos.

“E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”, foi a pérola turva emitida pelo chefe de Estado. Nem Donald Trump chegou a tanto.

Na quinta, Bolsonaro afirmou que as restrições impostas por chefes municipais e estaduais haviam sido inúteis, apesar de haver casualidade entre elas e o ritmo da epidemia. No 1º de Maio, desejou que todos voltassem ao trabalho.

A desinformação propagada como cálculo, dado que a inevitável tragédia econômica à espreita deverá dificultar sua sobrevivência política, além de tudo é fútil.

Não se imagina imagem pior a ser associada a um político, e no presidencialismo brasileiro o titular do Planalto é destinatário de quase tudo, de pilhas de caixões a sacos com corpos pelo país.

Mas Bolsonaro —que, além de tudo, falta com a transparência ao se recusar a exibir seu próprio exame para a doença, supostamente negativo— teima, e a redução no apoio às quarentenas que se verifica pode ser ao menos parcialmente colocada em sua conta.

Estudo de brasileiros apresentado na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, mostra a partir do cruzamento de dados de georreferenciamento e votação de Bolsonaro em 2018 que, quando o presidente profere suas tolices, o isolamento cai mais em seus redutos.

É um pequeno exemplo, ao qual podem ser somadas inúmeras manifestações de apoio aos ditames do aspirante a curandeiro.

Enquanto isso, autoridades mais sérias se preparam como podem para o pior, como a manutenção e eventual endurecimento das regras de isolamento da cidade de São Paulo demonstram.

Pandemônio - MIGUEL REALE JÚNIOR

ESTADÃO - 02/05

Comportamentos de Bolsonaro indicam possível anormalidade de personalidade

Em entrevista ao programa Câmera Aberta, da Band, em 1999, Bolsonaro, indagado se, caso fosse presidente, fecharia o Congresso, respondeu: “Não há a menor dúvida. Daria golpe no mesmo dia”. Nessa entrevista defendeu a tortura e disse que o Brasil “só vai mudar, infelizmente, quando partirmos para uma guerra civil (...) matando uns 30 mil (...). Vão morrer alguns inocentes. Tudo bem. Em toda guerra morrem inocentes”.

Ao votar no impeachment, ele o fez em homenagem ao torturador coronel Brilhante Ustra, “o pavor de Dilma Rousseff”, disse.

Pela segunda vez, em plena pandemia, dia 19/4, Bolsonaro foi à manifestação dominical contra o Congresso Nacional e a favor da ditadura. Antes da fala de Bolsonaro, circunstantes gritavam “Fora Maia”, “AI-5”, “Fecha o Congresso”, “Fecha o STF” e carregavam faixas pedindo “intervenção militar já com Bolsonaro”, que em seu discurso falou: “Eu estou aqui porque acredito em vocês. Vocês estão aqui porque acreditam no Brasil” – adotando como seu, portanto, o teor do encontro.

A identificação com essa reunião se comprova ao pretender interferir a favor dos manifestantes, com a mudança do diretor da Polícia Federal: na mensagem enviada a Moro, ministro da Justiça, Bolsonaro reproduz nota do site O Antagonista segundo a qual a PF está “na cola” de 10 a 12 deputados bolsonaristas.

O presidente, então, escreveu: “Mais um motivo para a troca”. Patente, destarte, que buscava intervir no inquérito determinado pelo ministro Alexandre de Moraes instaurado para verificar “a existência de organizações e esquemas de financiamento de manifestações contra a democracia e a divulgação em massa de mensagens atentatórias ao regime republicano”. A nomeação de pessoa íntima para a diretoria da PF, cuja posse foi obstada pelo STF, é prova do interesse de demissão do então dirigente para se imiscuir nas investigações.

A atitude de Bolsonaro em face da pandemia, “uma gripezinha”, mostra indiferença pelo que poderia acontecer se desrespeitadas as normas de isolamento e quarentena determinadas pela OMS e pelo ex-ministro Mandetta.

Na última terça-feira, 28, indagado sobre o aumento do número de mortes, o presidente deu resposta agressiva: “E daí? Lamento. Eu sou Messias, mas não faço milagres”. A soberba, todavia, revela-se no uso das expressões “eu sou a Constituição”, “tenho a caneta”, “o presidente sou eu”, “quem manda sou eu”.

Tais comportamentos indicam possível anormalidade de personalidade, a merecer análise médica acurada.

Já opinei ser a interdição um caminho eventual para Bolsonaro. Não estava a fazer blague. As atitudes habituais permitem supor possível transtorno de personalidade, falha profundamente estudada por Odon Ramos Maranhão, titular de Medicina Legal (Psicologia do crime, 2.ª ed. Malheiros, 1995, cap. 7) e objeto de classificação pela CID-10, a Classificação Internacional de Doenças da OMS, em livro específico sobre doenças mentais (Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento, editor Artes Médicas, pág. 199).

Nessa classificação, o transtorno de personalidade antissocial tem por características a “indiferença insensível face aos sentimentos alheios; uma atitude flagrante e persistente de irresponsabilidade e desrespeito a regras; a baixa tolerância à frustração; a incapacidade para experimentar culpa e propensão a culpar os outros”.

Poderia haver, eventualmente, transtorno de personalidade paranoide, cujos sintomas seriam, por exemplo, “combativo e obstinado senso de direitos pessoais; tendência a experimentar autovalorização excessiva e preocupação com explicações conspiratórias”.

Outra publicação respeitada é o DSM-5, da Associação Psiquiátrica Americana, que em http://www.niip.com.br/wp-content/uploads/2018/06/Manual-Diagnosico-e-Estatistico-de-Transtornos-Mentais-DSM-5-1-pdf.pdf, nas páginas 645 e seguintes, estuda os tipos de transtornos da personalidade, cabendo destacar: “1- paranoide, caracterizado por desconfiança e suspeita tamanhas que as motivações dos outros são interpretadas como malévolas; 2- antissocial, cujo padrão é desrespeito e violação dos direitos dos outros; 3- narcisista, que apresenta sentimento de grandiosidade, necessidade de admiração e falta de empatia”.

Atentemos para o comportamento reiterado de Bolsonaro, ao longo do tempo, em favor de situações que geram dor, em apoio a manifestações pelo fechamento do Congresso e do STF, chegando a agir, como presidente, para não se apurar devidamente a organização do ato de domingo 19 de abril; em campanha contra o isolamento social, única medida possível para reduzir mortes; usando a trágica expressão, “e daí?” acerca do aumento do número de mortes; no gosto pelo aplauso popular, pois, no domingo 15 de março, ao ser ovacionado em frente ao Planalto falou: “Isso não tem preço”.

São esses os sinais indicativos de possível enquadramento nas categorias psiquiátricas acima lembradas, o que cumpre ser verificado por experts em medida adotada em defesa do País.

No meio da pandemia, um pandemônio.

ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

A corte de Bolsonaro - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 02/05

O presidente age como se ainda estivéssemos sob a Constituição de 1824 e como se ele fosse o imperador. 'Quem manda sou eu', disse recentemente


Na extinta monarquia brasileira, conforme o artigo 99 da Constituição de 1824, “a pessoa do imperador é inviolável e sagrada” e “ele não está sujeito a responsabilidade alguma”. Ou seja, o imperador não respondia pelos seus atos, sendo estes, em si mesmos, a expressão da lei. Essa figura do Poder irresponsável, acima de todos os outros, foi extinta com a Proclamação da República, em 1889. A primeira Constituição republicana, de 1891, estabelece a “responsabilidade do presidente” (Capítulo V) e os diversos crimes de responsabilidade pelos quais o presidente poderia ser acusado (artigo 54), como desrespeito à Constituição e improbidade administrativa.

O presidente Jair Bolsonaro age como se ainda estivéssemos sob a Constituição de 1824 e como se ele fosse o imperador. “Quem manda sou eu”, disse recentemente Bolsonaro, invocando, pela enésima vez, um poder que ele considera ilimitado. Neste caso específico, Bolsonaro quer ter poder de nomear amigos para dirigir a Polícia Federal (PF) e fazê-la trabalhar para atender a seus interesses e aos de seus filhos, que aparecem em investigações da PF.

Bolsonaro não se conforma que outros Poderes limitem o seu, como aconteceu na quarta-feira passada, 29, quando o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes suspendeu a nomeação de Alexandre Ramagem, amigo da família presidencial, para chefiar a PF, em razão de evidente desvio de finalidade. “No meu entender, uma decisão política. Política!”, esbravejou Bolsonaro, tentando desqualificar a decisão do ministro Alexandre de Moraes.

Com espírito imperial, Bolsonaro avisou que vai insistir na nomeação, desautorizando a Advocacia-Geral da União (AGU), que havia informado que não recorreria da decisão. O problema, como explicou a própria AGU, é que não há mais do que recorrer, já que a nomeação de Alexandre Ramagem foi tornada sem efeito pelo próprio Bolsonaro. Se quiser insistir nisso, o presidente terá que reeditar a nomeação, em franca afronta ao Supremo.

O presidente disse que “desautorizar um presidente da República com uma canetada”, em referência ao ato do ministro Alexandre de Moraes, pode levar a uma “crise institucional”, e rogou: “Eu apelo a todos que respeitem a Constituição”.

Ora, o respeito pela Constituição deve começar pelo presidente da República, cujas nomeações devem observar os princípios da impessoalidade, da moralidade e do interesse público. Bolsonaro, ao contrário, não quer que seus ministros e assessores trabalhem pelo País, e sim como despachantes de interesses privados, tanto os de sua família como os dos amigos.

O presidente vive a infernizar ministros e assessores que não se curvam a suas vontades – os ex-ministros da Saúde e da Justiça que o digam –, enquanto favorece os sabujos que, malgrado sua incrível incompetência, não lhe economizam encômios. Na corte bolsonarista, em breve quase não haverá ministros, apenas amigos do rei.

Aos cortesãos, não faltarão prebendas. Como mostrou recentemente uma reportagem Estado, o presidente Bolsonaro cobrou da Receita Federal uma solução para as dívidas tributárias de igrejas evangélicas, cujos líderes são seus entusiasmados apoiadores. A Receita descobriu que as igrejas estavam usando a remuneração de pastores, também chamada de “prebenda”, que é isenta de tributos, para distribuir participação nos lucros e pagar remuneração variável, ou seja, de acordo com o número de fiéis. Bolsonaro não viu nenhum problema em exigir pessoalmente do secretário da Receita, José Barroso Tostes Neto, que alivie as multas.

Esse caso ilustra bem o tipo de influência que Bolsonaro quer exercer nos órgãos da República, que, ao contrário do que pensa o presidente, devem atuar nos limites da lei e conforme o interesse público. É com esse espírito que Bolsonaro ainda pretende colocar um funcionário de sua estrita confiança na chefia da PF para transformá-la em polícia particular. Sabe-se lá onde isso vai parar, razão pela qual o Supremo vem tomando seguidas decisões que mostram ao presidente que o tempo do soberano irresponsável já passou faz mais de um século.