segunda-feira, maio 04, 2020

O mercado da pandemia e o niilismo - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 04/05

A gourmetização da exploração será oferecida como nova tendência de negócios

Os últimos séculos nos legaram um hábito de controle: computadores, celulares, longevidade, vacinas, anticoncepcional. A contingência parecia acuada no seu canto como algo cafona.

Eis que ela volta à cena, na forma descrita pela literatura trágica: cruel, randômica e carregando no seu coração a cegueira não humana dos elementos indiferentes do universo. O vírus é niilista na sua estrutura cosmológica.

A fúria motivacional se constituiu, nos últimos anos, em paradigma do mundo corporativo, da educação e, logo, da filosofia e da teologia. O paradigma do coaching se fez cosmologia. E, com o mercado da pandemia, esse processo só se radicalizará porque as pessoas estão em pânico. Sob pânico, a exploração cresce exponencialmente.
Ricardo Cammarota

O mercado da pandemia faria Adam Smith (1723-1790) se perguntar de forma mais radical ainda quais seriam os danos causados pelo enriquecimento das nações aos sentimentos morais. Adam Smith era um filósofo da moral, como, aliás, a maioria dos iluministas britânicos dos séculos 18 e 19. O mercado da pandemia faria nosso filósofo enrubescer de vergonha.

Se a ganância, o egoísmo e o oportunismo sempre foram “paixões negativas” que produzem riqueza, fato não ignorado por Adam Smith, o mercado da pandemia comprovará seu temor original de forma mais radical.

O pânico das pessoas diante da visita cataclísmica da contingência, pondo em dúvida nossos avanços na vida social, econômica, política e global, já dá indícios de que o mundo pós-pandemia será mais hostil, controlador e explorador do que foi até aqui.

Purpurina e “gourmetização” da exploração serão oferecidos como novas tendências de negócios em todos os níveis. Aliás, a comparação feita pela primeira ministra alemã Angela Merkel entre o que vivemos e a Segunda Guerra Mundial se revela cada vez mais evidente.

Nas guerras, as virtudes se tornam raras, e não o contrário. Como já descrevera o grande Tolstói (1828 1910) no seu “Guerra e Paz”, romance que se passa nas guerras napoleônicas, as guerras e as batalhas são eventos em que imperam a covardia, a sorte e o azar como senhores do mundo.

Sua conhecida concepção de história, discutida a fundo pelo filósofo Isaiah Berlin (1909-1997) em seu livro “Pensadores Russos”, revela um Tolstói descrente em qualquer sentido histórico maior, uma espécie de anti-Hegel convicto.

Reduzidos ao medo e à precariedade moral, econômica e política, homens e mulheres perdem certas virtudes sociais construtivas e se lançam, como podem, à acomodação e à miséria ética. Foi essa a grande causa do colaboracionismo em escala monumental durante a ocupação nazista nos países da Europa.

Políticos, empresários, artistas, intelectuais, pais e mães de família, em grande maioria, em silêncio, atravessaram a ocupação nazista fazendo qualquer negócio em nome de refeições mínimas no seu dia a dia.

Já vemos os sinais: busca de fama às custas do medo das pessoas diante da pandemia, aumento do nível da exploração do trabalho em nome do marketing, redução de grande parte da população às esmolas dos Estados, defesa de “passaportes de imunidade” para as pessoas trabalharem e, no Brasil, irresponsabilidade na gestão política.

Se alguns acham que a ciência sairá fortalecida moralmente com a pandemia, suspeito que esse juízo não seja tão óbvio. À primeira vista, a espera desesperada pela vacina e por medicamentos nos faz crer nesse fortalecimento da visão social da ciência.

Todavia, ao olhar um pouco mais atento, a ciência tem demonstrado sua multiplicidade contraditória de comportamentos, que vão desde as virtudes de pesquisa que animam muitos dos melhores cientistas e instituições até a busca vaidosa pelas luzes da fama, além de sua vocação totalitária quando erguida ao pedestal da política.

Enfim, o vínculo entre o novo mercado da pandemia e o niilismo já se faz sentir aos olhos de quem sempre soube que esta profunda descrença no mundo nos espreita pela fresta da porta. Arriscaria dizer que um grande desafio espiritual pós-pandemia será não sucumbir ao niilismo mais uma vez.

Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.

Um mundo sem bar - GILBERTO AMENDOLA


Crônica de SP: um mundo sem bar

Não tem nada a ver com porres, ressacas ou qualquer comportamento autodestrutivo; bar é a celebração da vida, do amor, da inteligência e do companheirismo
O Estado de S.Paulo - 04/05


Eu não quero viver em um mundo sem bar. Não sei qual vai ser o novo normal depois do fim da quarentena, mas, definitivamente, não quero viver em um mundo sem bar.

Não é pelo álcool, acreditem. Se fosse só por beber, ficaria em casa com meu estoque de garrafinhas. Não tem nada a ver com porres, ressacas ou qualquer comportamento autodestrutivo.

Ao contrário, amigos. Bar é a celebração da vida, do amor, da inteligência e do companheirismo. No final da linha evolutiva traçada por Darwin, podem apostar, o que se vê é um homem sentado no balcão de um bar, tomando sua cervejinha em paz.

Sem bar, o que nos resta é o meteoro (ou a pandemia).

Bar é igreja, startup, salão de beleza, consultório psiquiátrico, UTI, SUS, ONU, OMS... Bar é meio ambiente, Ministério da Cultura, Economia, Educação, Justiça e Direitos Humanos.

O bar é a arena das nossas maiores emoções. Bar é o consolo de quem perdeu. O pódio dos campeões. E o olimpo de quem não quer competir.

Sou um sujeito adaptável. Posso viver sem muitas coisas. Abro mão de quase tudo que possa resultar na aglomeração de seres humanos e, consequentemente, facilitar a disseminação da nojenta da covid-19. Ou seja, estádios de futebol, festivais de música e clubes de swing não mais contarão com a minha presença pelo tempo determinado pelas autoridades.

Mas um mundo sem bar é um mundo pior.

É um mundo sem happy hour, sem aquela olhadinha para o relógio perto do fim do expediente, sem a gravata frouxa e torta no pescoço, sem aquele suspiro de alívio ao se aboletar em um banco e encostar os cotovelos no balcão.

Um mundo sem balcão de bar é um mundo muito pior. É um mundo sem a nossa tábua de salvação, sem a lousa em que rabiscamos projetos, fugas e desastrados sonetos de (des)amor.

Eu não quero viver em um mundo sem bolovo, shot de Cynar, caipirinha, dry martini ou negroni. Não quero viver em um mundo sem amendoim, porção de azeitona ou pururuca. Eu não quero viver em um mundo sem saideira. Eu não quero viver em um mundo em que eu não possa desenhar no ar aquele gesto universal que, em qualquer idioma, significa “fecha a conta, por favor”.

Um mundo sem bar é um mundo sem as melhores pessoas. Como deve ser ruim um mundo em que nenhum garçom nos chame pelo nome, em que nenhum bartender saiba qual o nosso coquetel preferido, em que nenhuma musa nos lance um olhar de desprezo ao deixar o recinto com o cara errado.

Um mundo sem bar é um mundo sem empatia. É um mundo sem amor ao próximo. É um mundo de indiferença. Um mundo cheio de “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”.

Vai por mim! Mesmo que esse próximo esteja na mesa ao lado falando bobagens, contando mentiras ou piadas ruins, ele também será digno desse sublime amor de bar. Mesmo que seja um mala, um inconveniente, alguém exaustivamente alegre ou infeliz como um cactos, ele sempre será digno do infinito amor de bar.

No bar, todo desconhecido ganha um voto de confiança imediato. Todo estranho confirma Rousseau – e é bom por natureza.

O bar é a nossa maior invenção. É a nossa alma coletiva. Nosso colo de mãe. Bares funcionam como postos de abastecimento da humanidade.

– Enche aí meu coração com sua melhor gasolina aditivada de alma.

Um brinde, saúde!

Eu não quero viver em um mundo sem bar.

Quando tudo isso passar, vou sair de casa e ir direto para um balcão. Quem puder que me siga.

Surge uma criptomoeda governamental - RONALDO LEMOS

FOLHA DE SP - 04/05

e-RMB é vinculada à moeda chinesa e operada pelo banco central do país

No meio da crise da Covid-19 surge a primeira criptomoeda governamental, o e-renminbi (e-RMB). Havia muito tempo já se especulava se as moedas virtuais não seriam mais cedo ou mais tarde adotadas por Estados nacionais.

Esse momento chegou. A China lançou na semana passada e está expandindo testes com esse ativo virtual, vinculado à moeda chinesa e operado pelo banco central do país.

Cidades como Pequim, Chengdu e Shenzhen são algumas das primeiras a atuar no projeto. Por exemplo, funcionários públicos dessas cidades vão começar a receber salários na nova moeda virtual a partir de maio. Um aplicativo específico de carteira virtual é utilizado para fazer transações.

No entanto, a facilidade de uso é total. Isso ocorre porque na China a maioria dos pagamentos já é hoje digital. Tudo se paga pelo celular.

Moradores de rua, por exemplo, carregam placas com seu código QR, porque sabem que o celular é a única forma de receberem um auxílio (quase ninguém carrega dinheiro em papel). Só que esses pagamentos digitais ainda eram atrelados ao dinheiro convencional. A ideia é que agora possam funcionar também com base na nova moeda virtual.

Tudo isso contrasta fortemente com a situação do Brasil, país em que 1 de cada 3 adultos não tem sequer conta bancárias. As imagens de pessoas dormindo nas ruas em longas filas na porta de agências da Caixa para tentar receber o auxílio emergencial dão conta do tamanho da calamidade que a exclusão financeira provoca.

Países como a Índia e a China promoveram, nos últimos dez anos, um processo de bancarização gigantesco. O Brasil ignorou essa questão e agora paga um preço enorme por isso, cobrado em vidas.

Com a nova moeda virtual, a China aprofunda a digitalização da sua economia, com possíveis repercussões globais.

É curioso notar que o que acelerou a moeda virtual do país foi justamente a publicação pelo Facebook do seu projeto chamado Libra. No projeto, a empresa propunha criar uma moeda virtual global, que poderia servir de alternativa monetária ao dólar.

Lançado com grandes expectativas, o projeto do Facebook acabou paralisado. Produz agora um efeito concreto, de ter impulsionado a China a correr e tomar uma iniciativa similar, não em nome de uma empresa, mas sim de um país.

A medida é também um movimento preventivo contra a crescente politização do dólar. A moeda americana vem sendo progressivamente utilizada como instrumento de política externa. Em 2019, empresas europeias foram ameaçadas de exclusão do sistema de compensação internacional do dólar pela rede Swift por estarem vendendo para o Irã.

Para se precaver desse movimento, a expectativa é que o e-RMB seja um passo na criação de outro sistema de transações monetárias internacionais que não precise da rede Swift (criada em 1973) para serem completadas. Em vez dessa rede, adota-se estrutura baseada em blockchain, de aplicação global. Só que, em vez de atrelar-se à imprevisibilidade de várias criptomoedas, vincula-se a uma moeda fiduciária emitida por um Estado nacional.

Esse pequeno passo pode ser o bater de asas da borboleta capaz de influenciar o curso natural das coisas e provocar um furacão do outro lado do mundo.

READER
Já era Achar que criptomoeda é coisa de maluco

Já é Explosão de criptomoedas autônomas, como bitcoin, ether e lumen

Já vem A corrida das criptomoedas estatais, em que o vencedor leva tudo

Ronaldo Lemos
Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

Sem Moro e Guedes, circo de Ernesto Araújo perde sentido - MATHIAS ALENCASTRO

FOLHA DE SP - 04/05

Com demissão de um e desprestígio de outro, aliança animada por chanceler passa a depender de militares

Donald Trump virou as costas para Jair Bolsonaro. Numa tentativa de se livrar da fama de negacionista, o presidente americano passou a se referir ao Brasil como um exemplo de descontrole da pandemia do coronavírus. O aliado estratégico virou o homem doente da América Latina.

Mas o distanciamento de Trump não é unicamente imputável ao desgaste provocado pela crise sanitária.

Para a Casa Branca, as investidas de Eduardo Bolsonaro e Ernesto Araújo nunca passaram de uma reprise latino-americana de "Debi & Lóide", um filme amador dirigido por Steve Bannon. Na realidade, três outros atores sustentavam a diplomacia populista.
O presidente Jair Bolsonaro, acompanhado, entre outros, por Paulo Guedes (de gravata azul e cabelos brancos), Sergio Moro (com as mãos juntas) e Ernesto Araújo (de olhos fechados), em cerimônia em homenagem ao Dia da Bandeira, em Brasília - Pedro Ladeira - 19.nov.19/Folhapress

Personagem de importância subestimada na relação entre Brasil e Estados Unidos, Sergio Moro é respeitado em Washington por sua atuação na investigação da Odebrecht.

Foi graças à parceria entre a Polícia Federal e a Drug Enforcement Agency que Fuminho, número dois de Marcola, acabou detido em Moçambique recentemente.

Paulo Guedes é conhecidamente o fiador do bolsonarismo na Faria Lima e, por extensão, em Wall Street.

Por fim, o acordo de cooperação assinado na Flórida pelo Exército brasileiro consta como o único legado concreto da política externa bolsonarista.

O sucesso de Bolsonaro residia na criação de um circo, animado por Ernesto, para dissimular uma aliança tremendamente convencional de atores jurídicos, militares e financeiros na qual ele e seus familiares controlavam a narrativa, mas não apitavam quase nada.

Com a demissão de Moro e o desprestígio de Guedes, a aliança passou a depender da hierarquia militar, que já está sentindo a pressão.

Um ponto de tensão é o imbróglio em torno da Embraer, descartada pela Boeing e agora desejada por chineses, num negócio apoiado pelo vice-presidente Hamilton Mourão. A disputa de influência entre China e Estados Unidos será um dos fatores a ter em conta no caso de processo de impeachment.

A perda do monopólio da agenda americana pelo bolsonarismo explica o último surto de Ernesto. Ao atacar o embaixador Rubens Ricupero e outros ex-chanceleres, ele quis deixar claro que já não é ministro, tampouco diplomata, mas um fanático de um governo em declínio.

A sua odiosa analogia entre campos de concentração nazistas e isolamento social enfureceu influentes organizações judaicas brasileiras e americanas, o que deve obrigar Trump, atento às implicações eleitorais da sua diplomacia, a desmontar o circo de uma vez por todas.

Passados dois anos, a aliança do Brasil com os Estados Unidos continua deixando os analistas perplexos.

Eleito em parte pelo agronegócio, Bolsonaro poderia ter alinhado a diplomacia aos interesses do setor e feito do Centro-Oeste o equivalente brasileiro do Texas para a política americana —uma província rica em recursos naturais que garante o poder político de dinastias nacionais.

Em vez disso, acabou optando por uma subserviência desnecessária aos Estados Unidos, que arruinou a sua aliança com o agronegócio e trouxe pouco mais do que umas selfies e uns likes.

Caberá, no futuro, aos historiadores tentar entender essa bizarrice do bolsonarismo.

Mathias Alencastro
Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).

Cotovelo civilizador de Pujol e risco de um golpe sem golpe. Cuidado, STF! - REINALDO AZEVEDO

UOL - 04/05


O presidente Jair Bolsonaro sempre teve uma alma golpista. Desde quando estava no Exército, de onde foi chutado. Especulou explodir algumas bombas em quarteis e mandar para os ares o sistema de abastecimento de água do Rio para protestar contra baixos salários. É o que se chamava à época e se chama ainda hoje "subversão". Foi ser político. Nessa condição, foi um incansável pregador da... subversão da ordem.

Não é diferente como presidente. Consta que estaria descontente com o general Edson Leal Pujol, comandante do Exército. Até agora, este não emitiu sinas de dar bola para conversa mole do golpismo. As Forças Armadas, diga-se, também o Exército, sempre que isto não afetou seu serviço essencial, adeririam às medidas de distanciamento social.

Parece que Bolsonaro gostaria de substituir Pujol — é o velho gosto de mandar, a vã cobiça. Não buliria com Ilques Barbosa Junior, Comandante da Marinha, e Antônio Bermudez, Comandante da Aeronáutica. Se o fizer, ou conta com o apoio de Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa, ou, então, decide humilhá-lo. É verdade que o governo virou uma cornucópia, uma fonte de renda extra, para fardados da reserva. Pergunto: forças regulares do Estado brasileiro merecem esse tratamento?

Sim, senhores! Bolsonaro tem alma disruptiva. Ele quer o confronto. E, se vocês perguntarem por quê, não encontrarão a resposta. É mentira que o Congresso não o deixe governar. O Parlamento lhe deu o que nenhum antecessor teve: a reforma da Previdência. Vai lhe dar uma PEC do Orçamento de Guerra que lhe confere plenos e totais poderes para enfrentar a crise. O governo quer asfixiar os Estados por intermédio da reposição — menor do que deveria ser — do ICMS. Até isso deve conseguir com a ajuda de Davi Alcolumbre.

A dita sequência de derrotas sofridas no Supremo só aconteceu porque este é um governo que flerta com o absurdo, assim como seus aliados próximos. Lembro.

- Queria determinar por decreto a abertura da economia nos Estados. Pode? Não.

- Queria usar a crise para estuprar a lei de acesso à informação. Pode? Não.

- Queria dar um truque para prorrogar vigência de Medidas Provisórias. Pode? Não.

- Queria fazer uma campanha em favor da volta ao trabalho, contra política adotada pelo próprio Ministério da Saúde. Pode? Não.

- Queria suspender a CPI das Fake News. Pode? Não.

- Queria expulsão sumária de diplomatas venezuelanos. Pode? Não.

- Queria nomear um diretor-geral da PF depois de evidenciar que este tinha como tarefa atender a interesses não republicados. Pode? Não.

Como? O STF não deixa Bolsonaro governar, ou é Bolsonaro que pretende governar como se não houvesse leis?

De modo reiterado, como vemos, chama para o centro do debate as Forças Armadas e tenta fazer delas suas aliadas no esforço de emparedar os outros dois Poderes — como se, de fato, estes buscassem asfixiá-lo. Dá-se precisamente o contrário.

O problema de Bolsonaro é que ele trata as instituições, e isso inclui as Forças Armadas, como se fosse o fundo do seu quintal, a sua área de despejo.

COTOVELO

Na quinta-feira passada, assistimos a um lance meio patético, constrangedor. O presidente foi a Porto Alegre para participar da posse do novo general do Comando Militar do Sul. E, todo alegre, tentou dar a mão aos militares, como não se deve fazer. Pujol foi o primeiro a lhe oferecer o cotovelo, sendo seguido depois pelo general Geraldo Antônio Miotto.

A rigor, convenham, é questionável se a solenidade deveria ter acontecido nestes dias. Acontecendo, que se tomem os cuidados mínimos, segundo recomendação da ciência. Não com o presidente da República. Pujol teve de lembrar àquele que a Constituição define como chefe supremo das Forças Armadas qual é a regra do jogo.

Será que o presidente vai mesmo querer promover trocas no comando das Forças Armadas para que estas sejam mais leais à sua deslealdade à Constituição e às regras do jogo? É o que vamos ver.

CRISE INSTITUCIONAL

Depois que liminar do ministro Alexandre de Moraes impediu a posse de Alexandre Ramagem no comando da Polícia Federal, Bolsonaro chegou a dizer na sexta que "quase houve uma crise institucional". Ninguém entendeu o que quis dizer. Sim, acreditem: ele cogitou a possibilidade de não atender a uma determinação do Supremo. Afinal, como disse, "quem manda sou eu".

Seus incendiários recomendam que ele insista no nome do delegado. Em sua fala deste domingo, há uma clara ameaça ao Supremo. Destaque-se este trecho da fala:
"As Forças Armadas estão ao lado da lei e da ordem, da democracia e da liberdade, também estão do nosso lado. E Deu acima de tudo. Vamos tocar o barco. Peço a Deus que não temos (sic) problema nesta semana porque chegamos no limite. Não tem mais conversa. Daqui para a frente, não só exigiremos: faremos cumprir a Constituição".

Dito de outro modo: "Se eu for contrariado de novo, vou fazer cumprir a Constituição porque estou com as Forças Armadas". No caso, entenda-se por "cumprir a Constituição" exercitar o "quem manda sou eu". É mesmo? Será que vai dar um golpe? Fechar o Supremo? Cercar o Congresso? Censurar a imprensa?

Prestem atenção a uma coisa importante. Não creio que haja insensatez o suficiente entre os militares da ativa para apoiar um autogolpe. Penso que os militares do Alto Comando sabem o que isso significaria para um país cuja reputação, mundo afora, já não merece nem mais a lata do lixo.

Mas também não podemos viver com Poderes intimidados, acovardados, como se o golpe, na prática, tivesse sido dado. Por isso, sempre que o senhor Jair Bolsonaro resolver afrontar a Constituição, é preciso que seja tolhido e mantido nos limites da Carta.

A única crise séria em que o Judiciário pode meter o Brasil é não cumprir a lei.

Quanto aos militares, dizer o quê? Alguém como Bolsonaro só prospera em meio a divisões, conflitos e rasteiras. Gostamos de pensar que as Forças Armadas não cairão nessa armadilha. Ocorre que estamos experimentando o incômodo de vê-las crescentemente comprometidas com um governo que não tem apreço nenhum pela institucionalidade, pela ordem, pela regra do jogo. Ou os militares que convivem com ele e que o conhecem o têm como exemplo de disciplina?

No ato deste domingo, o presidente deu a senha: está à procura de um novo confronto com o Supremo. O primeiro magistrado que piscar na aplicação do marco constitucional estará dando a sua contribuição ao golpe sem golpe, a uma espécie de golpe branco.

E isso não pode acontecer.

O presidencialismo de coalizão voltou - CARLOS PEREIRA

O Estado de S.Paulo - 04/05

Ter ignorado o presidencialismo de coalizão pode custar a sobrevivência do governo



As relações entre instituições políticas, regras do jogo, e escolhas/preferências individuais são muito complexas. Em muitas ocasiões, as regras existentes podem deixar de fazer sentido para algumas pessoas ou mesmo para a própria sociedade. Nessas ocasiões em que as regras em vigor não mais conseguem oferecer os resultados esperados, mudanças institucionais têm maiores chances de acontecer.

O presidente Jair Bolsonaro foi eleito negando as virtudes do presidencialismo de coalizão. Propôs um rompimento com o que chamou de jogo da política tradicional e se comprometeu com a implantação de uma suposta “nova política”. Preencheu as expectativas de uma parcela do eleitorado de “limpeza” da política, construindo uma plataforma essencialmente antipartido, enfatizando a imagem de que todas as siglas e seus membros seriam iguais e fariam parte de uma mesma elite corrupta. Ao associar diretamente o estilo predatório de presidencialismo de coalizão praticado pelos governos do PT à corrupção, Bolsonaro alimentou no eleitorado uma espécie de aversão à própria política.

Uma vez eleito, Bolsonaro se comportou de forma consistente com o que havia prometido durante a campanha. Se negou a montar uma coalizão de governo, acreditando que poderia governar na condição de minoria. Adotou uma estratégia conhecida como presidencialismo plebiscitário, estabelecendo conexões diretas com seus eleitores e ao mesmo tempo negligenciando as instituições numa espécie de cruzada contra todos que lhe oferecessem resistência.

Se estava de fato insatisfeito com o presidencialismo de coalizão, deveria ter aproveitado a força do início de seu governo e ter proposto uma reforma no sistema político. Preferiu nadar individualmente contra a corrente ao invés de propor mudanças institucionais que viessem a reduzir os problemas governativos decorrentes da ausência de uma coalizão majoritária dentro do presidencialismo multipartidário.

Dois choques recentes fragilizaram profundamente o governo Bolsonaro, reduzindo drasticamente seu apoio junto à sociedade, colocando em xeque sua escolha de continuar governando sem uma coalizão: um exógeno, a subestimação dos impactos da pandemia do novo Coronavírus; e outro endógeno, a saída de Sérgio Moro do Ministério da Justiça.

Esses eventos obrigaram Bolsonaro a se voltar para a antes demonizada coalizão como forma de sobrevivência política. Busca apoio do conhecido “Centrão”, formado por partidos políticos heterogêneos, ideologicamente amorfos e não programáticos.

Ao corromper suas promessas de uma “nova política” junto ao seu eleitorado mais cativo, Bolsonaro realiza um dos maiores estelionatos eleitorais da história recente. Substitui legitimidade eleitoral por sobrevivência. Sua conversão tardia ao presidencialismo de coalizão pode ter se dado em condições muito mais adversas que as que teria encontrado se tivesse construído uma coalizão majoritária e estável desde o início do seu governo.

Ainda é cedo para vaticinar o futuro do presidencialismo de coalizão a la Bolsonaro. Afinal de contas, antes tarde do que nunca. Entretanto, será muito difícil que Bolsonaro consiga impedir que os seus novos aliados inflacionem o preço do apoio.

Como esse é um jogo de repetição, é esperado que o Centrão aja de forma estratégica e aumente o valor da contrapartida para o suporte político a cada novo sinal de vulnerabilidade. Afinal de contas, o céu é o limite quando se perceber que o que está a prêmio é a cabeça do presidente.

O paradoxo de Bolsonaro - DEMÉTRIO MAGNOLI

O GLOBO - 04/05

O cenário é sombrio para o presidente da ‘gripezinha’


Meio a meio, duas vezes. A pesquisa Datafolha realizada na esteira da demissão de Sergio Moro indicou 45% favoráveis à deflagração de processo de impeachment e 48% contrários. O instituto também registrou queda de apoio ao isolamento social, agora em 52%, contra 46% que querem a “volta ao trabalho”. Paradoxalmente, a mesma emergência sanitária que precipitou a crise do governo mantém Bolsonaro à tona — e não apenas porque impede manifestações públicas.

O cenário é sombrio para o presidente da “gripezinha”. O “estado de guerra”, como regra universal, dá coesão às sociedades em combate ao “inimigo comum”. Pelo mundo afora, os governos ganham popularidade na emergência do coronavírus. O Brasil, onde metade dos eleitores pede a adição de uma crise institucional à crise da pandemia, é a única saliente exceção.

Moro entrou em confrontação letal com Bolsonaro, cindindo a coalizão política e social de sustentação do governo. O ex-juiz, ex-ministro e sempre candidato leva ao campo de batalha o “Partido dos Procuradores”, duas legendas parlamentares (PSL e Podemos) e uma camada de eleitores incensados pela narrativa da luta contra a corrupção. Segundo o Datafolha, 52% avaliam que, no intercâmbio de acusações, a verdade está com Moro, contra escassos 20% de crentes na palavra presidencial.

Mas os números são caprichosos, solicitando leitura mais sofisticada. O governo mantém apoio de 33% dos eleitores, e o desempenho de Bolsonaro na crise sanitária tem o aplauso de 27% e uma resignada aceitação de outros 25%. Vitória na derrota: o presidente resiste, ainda sem ventilação mecânica. A solução do mistério encontra-se na dependência e nos sofrimentos impostos pela emergência sanitária, subestimados entre analistas que fazem quarentena com vista para o mar.

Dezenas de milhões começam a receber os esquálidos, mas vitais, R$ 600, que levam a assinatura oculta do presidente. Cinco milhões de trabalhadores formais já perderam seu empregos ou experimentam cortes salariais. Multidões de comerciantes assistem, impotentes, à destruição de negócios que garantem a renda familiar. Cumpre não confundir essa vasta parcela da população com o núcleo militante bolsonarista, que reage a estímulos ideológicos extremistas.

O apelo da “volta ao trabalho” cala fundo no Brasil que não pratica o nobre esporte do home office. Uma sondagem conduzida pelo cientista político Carlos Pereira e publicada no “Estado de S. Paulo (20/4) mostra nítida correlação positiva entre apoio às ações de Bolsonaro na pandemia e a vivência de prejuízo econômico pessoal. O medo de um vírus de consequências incertas atenua-se diante da certeza da perda de meios dignos de subsistência.

A cláusula de exceção, detectada pela sondagem, é o conhecimento direto de pessoa que faleceu sob a Covid. Dois terços dos óbitos no Brasil concentram-se em cinco regiões metropolitanas. Num país de 217 milhões de habitantes, quase ninguém conhece algum dos mais de 7 mil mortos, especialmente em milhares de cidades do interior.

Bolsonaro não perde eleitores, mas os substitui. Saem os admiradores incondicionais do xerife da Lava-Jato. Entram os órfãos da quarentena, espalhados social e geograficamente. Qualificá-los como ignorantes ou incultos nada revela sobre eles. Diz muito, porém, sobre a bolha de classe que delimita o olhar dos analistas.

“Não vão botar no meu colo uma conta que não é minha”, reclamou Bolsonaro, referindo-se à sinistra contabilidade das mortes. O presidente, que não se descolou de Trump tanto assim, cobra de outros a dívida do emprego mas recusa a fatura dos óbitos. Ele nem simula governar, operando como agitador de rua. De um lado, clama contra os governadores e provoca aglomerações. De outro, abstém-se de usar suas prerrogativas para reabrir escolas federais ou liberar acesso às praias e parques nacionais — e seu novo ministro da Saúde jura respeito às determinações estaduais de isolamento social.

A curva da Covid no Brasil tem a forma de um morro em meia-laranja. Já a curva de nossa epidemia política vai adquirindo as feições dramáticas de um Everest.

Louco à solta em Brasília - RUY CASTRO

FOLHA DE SP - 04/05

Se você acha que já leu esse diagnóstico em algum lugar, acertou

Suponha que Jair Bolsonaro, espumando e em camisa de força, seja submetido a um exame psiquiátrico. O resultado poderá ser Transtorno Delirante Persistente, síndrome que inclui alucinações, sensação de perseguição e desconexão com a realidade. O paciente rejeita medicamentos, não admite que está doente e diz que não precisa de ajuda.

Você identificou Bolsonaro em cada item desse diagnóstico. O Transtorno Delirante se manifesta nas alucinações em que ele se vê praticando um autogolpe, fechando o Congresso e o STF e se entronizando como um ditador sustentado pelos militares. O delírio o faz acreditar que a insignificante manada de apoiadores, reunida diante do Planalto para ofender seus adversários e os demais Poderes, representa "o povo brasileiro". Ao juntar-se a eles, Bolsonaro oficializa as ofensas e, ao invocar as Forças Armadas, torna-as cúmplices de suas alucinações.

Vejamos a sensação de perseguição. Bolsonaro vive em permanente estado de terror contra inimigos que só ele enxerga e que, se não existirem, precisam ser criados, até mesmo entre os aliados --porque é disso que ele se alimenta. Os agentes dessa perseguição são todos os que, ao seu lado, ousam ganhar um mínimo de luz própria ou deixam de servi-lo nos níveis inatingíveis que exige dos subordinados.

A desconexão com a realidade também é flagrante. Bolsonaro é o último pitecantropo vivo a enxergar comunistas em toda parte. Nem seu herói Donald Trump acredita mais nisso.

Se o primeiro parágrafo desta coluna lhe pareceu familiar —como se você já o tivesse lido em algum lugar—, acertou. Trata-se do diagnóstico dos dois laudos médicos oficiais das equipes que examinaram Adélio Bispo, o portador de insanidade mental que esfaqueou Bolsonaro em Juiz de Fora, em 2018. Adélio foi internado numa penitenciária federal em Campo Grande (MS). Mas Bolsonaro está à solta em Brasília.

Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

E daí? A pulsão da morte - FERNANDO GABEIRA

O GLOBO - 04/05

No mesmo dia em que foi treinar tiro ao alvo, Bolsonaro disse sua frase histórica diante dos mortos na pandemia

‘Entre mortos e doentes/ No meio dessas bananas/ Os meus ódios e os meus medos? E daí?”

Essa poderia ser uma versão sinistra de Bolsonaro para a bela cancão de Milton Nascimento “E daí?”.

Sua reação diante dos mortos pelo coronavírus não me surpreende. Creio que posso entendê-la, pois, de certa forma, venho falando dela desde o princípio do governo. Eu a chamei nos meus artigos de namoro com a morte. Era uma forma de sistematizar minhas críticas.

Umberto Eco afirma com razão que por trás de um regime e sua ideologia há sempre um modo de pensar e de sentir, uma série de hábitos culturais, uma nebulosa de instintos obscuros e de pulsões insondáveis. É essa pulsão de morte que contesto na política de armas, na retirada dos radares das estradas, no afrouxamento das regras de transporte de crianças nos carros.

No mesmo dia em que foi treinar tiro ao alvo, Bolsonaro disse sua frase histórica diante dos mortos na pandemia. Creio que entendo o que há por trás disso. Ele acredita na tese da imunização do rebanho. Nela, a saída é a inevitável contaminação da maioria para que se resolva de uma vez o problema.

Muitos cientistas afirmam isso. Pode ser que tenham razão. No entanto, o isolamento social torna espaçada essa contaminação, permite que os sistemas de saúde não entrem em colapso: salva vidas.

Bolsonaro até que compreende essa tese. Mas responde com outra: necessidade do crescimento econômico.

A pandemia coloca hoje em discussão o crescimento pelo crescimento. Amsterdã prepara-se para buscar modelos sustentáveis, depois da crise, com o argumento de que o crescimento pelo crescimento é, na verdade, a filosofia da célula cancerosa.

Durante a pandemia, manifestantes contra o isolamento social fizeram buzinaços diante de hospitais em São Paulo. A mensagem que queriam passar era da volta ao trabalho. Assim como não importava o conforto dos doentes hospitalizados, também não importavam as mortes que viriam de uma suspensão prematura da quarentena.

Nesse clima nacional, uma influenciadora digital dá uma festa em plena quarentena e lança o grito: “foda-se a vida”, uma versão tupiniquim do “viva a morte”.

Trabalho com essas resistências no cotidiano. Outro dia, resenhei o artigo de um médico americano que falava do avanço silencioso da pneumonia em pessoas atacadas pelo vírus. Para evitar tantas mortes, ele sugeria que se usasse um oxímetro para medir constantemente o nível de oxigênio no organismo.

Uma leitora reagiu furiosa a esse texto. Nunca mais me leria pois, segundo ela, não compreendo como o Brasil é pobre e não tem condições de pensar nesses instrumentos.

O oxímetro custa em torno de R$ 100. O que ela queria dizer é que estamos condenados pelas circunstâncias a um grande número de mortes.

As pessoas que não se resignam diante das mortes com a pergunta “e daí?” são vistas como personagens trágicas que se rebelam contra o destino.

É nesse contexto de namoro com a morte que se dá também a petrificação do pensamento, a recusa à modernidade, a negação de fenômenos planetários que podem nos inviabilizar como espécie.

Insisto nesse ponto porque a história nunca estará completa se nos detemos apenas no aquecimento global e deixamos de lado os hábitos culturais e as pulsões que o nutrem.

Quando escrevermos a história da passagem dessa peste pelo Brasil, não poderemos esquecer que ela foi politizada, tratada como um vírus comunista, e uma nuvem de suspeição se ergueu contra os que queriam combatê-la de frente.

Com um tempo e alguma pesquisa, talvez possamos estabelecer um paralelo com a chegada dos colonizadores ao continente. Um conjunto de mitos impediu que fossem vistos na sua dimensão real. E isso precipitou a ruína das civilizações aqui existentes.

Ao longo do caminho, tenho enfatizado algumas ideias. Uma delas é a necessidade de uma ampla frente pela vida para se opor à política da morte.

A outra é a confiança de que as pessoas mudam, nem todas é verdade, mas mudam. Quantos não concluíram, depois de atingidos, que o coronavírus não é apenas uma gripe comum?

Outros, certamente, começarão a respeitar a ciência, podem chegar ao ponto de admitir que a Terra é redonda, que vacina garante a sobrevivência e que a humanidade está realmente ameaçada pela degradação ambiental.

Uma aliança pela vida pressupõe uma tática diferente da radicalização que produziu Bolsonaro.

Bolsonaro propaga o vírus da anarquia institucional - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 04/05


Não é verdade que Jair Bolsonaro sofra de insanidade. Ele usufrui dela com extraordinário prazer. O problema não está no gozo que a falta de senso proporciona ao personagem. O insuportável é que, sendo o insano momentaneamente presidente, ele queira impor ao Brasil a sua loucura.

O país foi convertido em zona de guerra. Os brasileiros são torpedeados em duas frentes. Numa, o coronavírus mata em escala pandêmica. Noutra, o Brasil sofre ataques do seu próprio presidente. Bolsonaro diz "e daí?" para os milhares de mortos e propaga o vírus da anarquia institucional.

No exercício cotidiano do seu descaso sanitário, Bolsonaro tomou gosto pelas aglomerações, especialmente as de conteúdo golpista. É como se o presidente de 57,7 milhões de votos sonhasse com uma democracia sem Legislativo e sem Judiciário, na qual ele comandaria o governo civil mais militar que o país já conheceu.

Por sorte, Bolsonaro ainda não realizou o seu sonho. Ao contrário, conspira a favor da realização dos seus piores pesadelos. Há duas semanas, discursando para um ajuntamento de golpistas na frente do QG do Exército, Bolsonaro proclamou: "Não queremos negociar nada."

Neste domingo, Bolsonaro ornamentou outro ato antidemocrático. A pauta da manifestação sofreu dois acréscimos. Além das pauladas retóricas no Congresso e no Supremo, houve pancadaria contra jornalista e xingamento a Sergio Moro, o mais novo "comunista" dos devaneios bolsonaristas.

Dessa vez, Bolsonaro afirmou que não vai mais "admitir interferências" no seu governo. "Chegamos no limite", disse. "Acabou a paciência." Ele espera não ter problemas durante a semana. Do contrário, "não tem mais conversa". A Constituição "será cumprida a qualquer preço."

Bolsonaro esclareceu que não está só. Enxerga do seu lado "o povo", "as Forças Armadas" e "Deus". Quer dizer: a era bolsonarista transcorre em dois mundos: o de Bolsonaro e o real.

No mundo de Bolsonaro, uma aglomeração de adoradores se confunde com "o povo". Generais que fracassam na tentativa de presidir o presidente simbolizam o "apoio" dos quarteis. E o populismo místico do presidente estimula nas almas mais ingênuas a crença em uma aliança do governo com o plano celestial.

No mundo real, ouve-se nas janelas e nas varandas o som das panelas. Escuta-se ao fundo o silêncio constrangido dos comandantes militares. De resto, a conversão de personagens como Roberto Jefferson e Valdemar Costa Neto em heróis da resistência revela que Deus está acima de todos mas terceirizou ao Tinhoso as negociações com o centrão.

No mundo de Bolsonaro, o presidente "chegou no limite". No mundo real, Bolsonaro ultrapassou todos os limites. Contra o coronavírus não há outro remédio que não seja o isolamento social que Bolsonaro desrespeita. Por sorte, contra o vírus da anarquia institucional há vacina disponível. Chama-se Constituição.

Bolsonaro ainda não notou, mas o país vem se imunizando contra o vírus presidencial. A despeito dos seus arroubos, o presidente manda cada vez menos. Suas decisões são refeitas e desfeitas ora no Congresso, ora no Supremo. Cresce nos poderes vizinhos a impressão de que talvez seja necessário aumentar a dose da vacina.

Bolsonaro insiste na desobediência institucional - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 04/05

Radicalização no ataque às instituições ameaça quebrar juramento que fez na posse


O presidente Jair Bolsonaro parece ter decidido se manter de vez na trajetória de desobediência institucional para fazer um teste mais forte dos limites que a Constituição impõe ao Executivo. Os arroubos autoritários de Bolsonaro, da família e de seguidores mais sectários vêm de antes da posse. A liberdade de expressão é um direito, mas todos podem ser responsabilizados se atentarem contra preceitos também constitucionais. Dessa forma, com idas e vindas e correção de desvios por força da Lei, vive-se na democracia, em liberdade e aperfeiçoamento constante.

O que tem feito o presidente é algo diferente e mais grave, pelo cargo que ocupa. Tem pregado a sedição, com ameaças claras à ordem constituída. Vai muito além da irresponsável militância que exerce contra o isolamento social, e leva seguidores a fazerem o mesmo, preocupado exclusivamente com seu projeto eleitoral, que teme ser prejudicado caso demore a retomada da economia devido à epidemia do coronavírus. Junta-se a um grupo de autocratas bizarros e coloca o Brasil na companhia isolada de Bielorússia, Turcomenistão e Nicarágua. Não se preocupa com a marcha sem recuo da Covid-19 no país para ultrapassar, ontem, 7 mil mortos e 100 mil contaminados.

A participação de Bolsonaro em mais uma manifestação antidemocrática em Brasília, duas semanas depois da primeira, marca a radicalização do presidente. Naquela, na entrada do Quartel-General do Exército, entre slogans em favor de um golpe militar e um novo AI-5, ele soltou um pouco enigmático “não queremos negociar nada”. Nesta última aglomeração, desta vez em frente ao Planalto, também com ataques de militantes ao ex-ministro Sergio Moro, o presidente foi adiante na sua visão autocrática do poder, repetindo a leitura canhestra que faz da Carta: “Queremos a independência verdadeira dos Três Poderes (...). Chega de interferência. Não vamos admitir mais interferência”, avisou o presidente, aproximando-se de um chavismo de direita — todos os poderes nas mãos do Executivo, com Judiciário e Legislativo no papel de figurantes. O que é inaceitável. Para reforçar o caráter autoritário e ilegal do ato, bolsonaristas atacaram repórteres do jornal “O Estado de S.Paulo”, agredindo a própria liberdade de imprensa.

O presidente repete a postura que teve na posse do ministro da Justiça e Segurança Pública e do advogado-geral da União, André Mendonça e José Levi, quando reclamou do impedimento de nomear o delegado Alexandre Ramagem para a direção-geral da PF determinado pelo ministro Alexandre de Moares, do STF, a pedido do PDT. São os freios e contrapesos da democracia funcionando, contra o que Bolsonaro se revolta. Mas tem de obedecer, é assim que funciona. E terá de continuar a funcionar. Mesmo que não goste de investigações que ameaçam filhos e podem iluminar os porões que sustentam manifestações como a de ontem, uma investigação sob a responsabilidade do ministro Alexandre de Moraes, não por acaso objeto de agressões do bolsonarismo e causa de irritações do presidente.

Bolsonaro, nesta radicalização, começa rasgando o próprio juramento que fez na posse, conforme o artigo 78 da Carta: “Prometo manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro (....)”. Na política e na saúde, ele vai em sentido contrário. O presidente aceitou as regras constitucionais para se eleger deputado federal e presidente da República. Agora quer virar a mesa, o que é inconcebível.

Bolsonaro garantiu que as Forças Armadas estão ao seu lado nesta empreitada inconstitucional. Estaria certo disso depois de ter se reunido, sem registro na agenda, com chefes militares. A ver se as Forças Armadas aceitam manchar sua imagem reconstruída com muito esforço, profissionalismo e disciplina.

Há duas semanas, o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, depois do ato no QG do Exército, reafirmou o compromisso das Forças Armadas com a Constituição, promulgada há 32 anos, num processo político de redemocratização em que foram fundamentais. E continuam sendo nessas três décadas contínuas de estabilidade democrática, o mais longo período de normalidade sem interrupções em 131 anos de República.

Marcha dos covardes - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 04/05

Incitados pela conduta do presidente, celerados agridem democracia e imprensa


No domingo (3), Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, numa sucessão de eventos que infelizmente se tornam habituais no Brasil, um punhado de celerados se reuniu em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília, para defender, entre outras coisas, o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal e uma intervenção militar.

Mais uma vez, o presidente Jair Bolsonaro achou por bem juntar-se aos manifestantes e gritar palavras de ordem que os legitimam. Ele sabe que as bandeiras afrontam a Constituição, mas não se importa. É o agitador de sempre, o antiestadista, o eterno deputado medíocre do baixo clero.

De novo, entre as sandices proferidas pelo atual ocupante do cargo máximo do Executivo brasileiro, estavam ataques ao jornalismo. A prática de Bolsonaro é macaqueada de seu inspirador norte-americano, Donald Trump, que já definiu a imprensa norte-americana como “inimiga do povo”, uma expressão popularizada, ironia das ironias, pelo ditador comunista Josef Stálin na União Soviética.

Palavras têm consequências. Mais ainda se ditas e repetidas por líderes políticos.

No mesmo ato de domingo, um repórter-fotográfico do jornal O Estado de S. Paulo e o motorista que o ajudava na cobertura foram agredidos com chutes (pelas costas), murros e empurrões. Profissionais da TV Globo, do portal Poder 360 e desta Folha também sofreram ataques físicos ou verbais.

Algo semelhante havia ocorrido no dia anterior em Curitiba, durante o depoimento do ex-ministro da Justiça Sergio Moro na sede da Polícia Federal, a partir de acusações que implicam o presidente em crimes de responsabilidade.

Bolsonaristas que antes inflavam balões com o rosto do ex-juiz agora o ofendiam com impropérios —e atacavam a imprensa. Um cinegrafista de uma afiliada da TV Record teve a câmera empurrada.
Ao saber do ocorrido no domingo, Bolsonaro respondeu: “Pessoal da Globo vem aqui falar besteira. Essa TV foi longe demais”.

A fala infelizmente é coerente com a prática. Levantamento feito pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) mostra que nos primeiros quatro meses de 2020 o presidente investiu contra a imprensa 179 vezes, 38 delas só em abril.

O protesto do fim de semana teve como gatilho uma decisão de ministro do STF que impediu Bolsonaro de nomear um apaniguado como diretor-geral da Polícia Federal, que investiga Bolsonaro e família. Trata-se do sistema de freios e contrapesos de um regime democrático em funcionamento.

Uma imprensa livre e independente faz parte desse sistema. Ela seguirá vigilante, apesar das agressões da marcha dos covardes.

Quando se tolera o intolerável - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 04/05

As denúncias não podem ser esquecidas sob a alegação do caráter excepcional da covid-19. Tolerar o intolerável é abrir a porta para desmandos ainda maiores

Aos que pregam acomodar a situação política, sem fazer especial caso das acusações do ex-ministro Sérgio Moro contra o presidente Jair Bolsonaro, vale lembrar a experiência de 2005, quando lideranças políticas optaram por poupar o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do mensalão. O País sofre até hoje as consequências dessa transigência com a ilegalidade.

Em junho de 2005, envolvido em denúncias de corrupção nos Correios, o deputado Roberto Jefferson (PTB) revelou a existência de um esquema de compra de votos realizado pelo PT, o mensalão. Segundo o então presidente do PTB, o partido de Lula pagava mesadas de R$ 30 mil para que parlamentares votassem a favor do governo na Câmara.

Instaurada no mesmo mês, a CPI dos Correios foi ocasião para que o País tomasse conhecimento de como o PT operava no poder, num amplo esquema de corrupção. Diante dos escândalos, José Dirceu renunciou à chefia da Casa Civil, sendo substituído por Dilma Rousseff. O presidente do PT à época, José Genoino, também teve de deixar o cargo. Houve vários indiciamentos. Os mandatos parlamentares de Roberto Jefferson e José Dirceu foram cassados. No entanto, o presidente Lula foi estranhamente poupado.

Em agosto de 2005, no auge da crise, Lula reconheceu a existência de ilegalidades no governo. Em pronunciamento nacional, o então presidente da República disse que tinha sido “traído por práticas inaceitáveis das quais nunca teve conhecimento” e pediu desculpas pelos “erros” cometidos. Era o primeiro mandato presidencial de Lula, e houve uma acomodação da oposição, com base num raciocínio que se mostrou completamente equivocado. A ideia era de que não havia necessidade de um processo de impeachment, já que, diante de tantas denúncias, Lula não seria reeleito. Bastaria esperar as eleições de 2006.

Longe de enfraquecer o PT, a tolerância com Lula no mensalão facilitou a permanência do partido no poder. Se mesmo com todas aquelas revelações Lula era deixado intacto, a consequência era de que ele poderia fazer, a partir daquele momento, o que bem entendesse. Depois, o País teve o dissabor de ver até onde o PT foi capaz de ir. Petrolão, aparelhamento ideológico e a desastrada política econômica petista são alguns exemplos da falta de limites.

Agora, em vez de Roberto Jefferson, tem-se o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, denunciando a insistência de Jair Bolsonaro em interferir politicamente na Polícia Federal (PF). No dia 24 de abril, o ex-juiz da Lava Lato não pediu demissão do cargo por divergências políticas. Ele acusou o presidente Bolsonaro de querer “ter (na chefia da PF) uma pessoa do contato pessoal dele, que ele pudesse colher informações, relatórios de inteligência. (...) Não é o papel da Polícia Federal prestar esse tipo de informação”. Segundo Moro, “o presidente também me informou que tinha preocupação com inquéritos em curso no STF e que a troca também seria oportuna na Polícia Federal por esse motivo”. No mesmo dia, uma prova contundente dessa acusação foi apresentada ao País. Em conversa de WhatsApp com o então ministro Sérgio Moro, o presidente da República indicou que a investigação de deputados bolsonaristas era mais um motivo para trocar a chefia da PF.

As acusações são gravíssimas e é preciso investigar. Não há manobra política capaz de apagar as denúncias de Sérgio Moro. A interferência do presidente da República na PF, algo que não ocorreu nem mesmo nos desastrosos governos petistas, como lembrou Sérgio Moro, não pode ser relevada por um acordo político. Trata-se de denúncia que envolve aspecto central do Estado de Direito - a capacidade de o poder público investigar com isenção as violações da lei.

Sendo tão graves, as denúncias também não podem ser esquecidas sob a alegação do caráter excepcional da crise da covid-19. A pandemia não foi motivo suficiente para deter o ímpeto do presidente Jair Bolsonaro de remover Maurício Valeixo da Superintendência da PF. Não cabe agora valer-se dela como desculpa para não investigar. A experiência de 2005 com Lula ensina: tolerar o intolerável é abrir a porta para desmandos ainda maiores.