domingo, outubro 16, 2011

"O MINISTRO RECEBIA O DINHEIRO NA GARAGEM" - REVISTA VEJA

"O MINISTRO RECEBIA O DINHEIRO NA GARAGEM" 
 REVISTA VEJA

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ROBERTO POMPEU DE TOLEDO - Laico e religioso


 Laico e religioso
ROBERTO POMPEU DE TOLEDO
REVISTA VEJA

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MAÍLSON DA NÓBREGA - A ilegitimidade de operações do BNDES

 A ilegitimidade de operações do BNDES
MAÍLSON DA NÓBREGA
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CARTA AO LEITOR - UM ESPORTE DE ALTO CUSTO - REVISTA VEJA


Um esporte de alto custo
CARTA AO LEITOR
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JOÃO UBALDO RIBEIRO - Novos horizontes ideológicos



Novos horizontes ideológicos
JOÃO UBALDO RIBEIRO
O Estado de S.Paulo - 16/10/11

Fez-se atento silêncio no bar de Espanha, quando Zecamunista, que havia levado algum tempo sem aparecer, chegou e anunciou que estava criando o IPCA. Passara muito tempo lendo e meditando sobre a realidade nacional e chegara à conclusão de que era necessário encará-la sob nova perspectiva, despir-se dos vícios intelectuais antigos e abrir novos horizontes ideológicos. Nossos problemas precisavam de soluções originais e ele agora tinha a convicção de que o IPCA seria um dos pontos principais dessa nova abordagem. Se o exemplo da ilha fosse seguido em todo o Brasil, o IPCA poderia ser a chave para uma nova era de paz e prosperidade. Abrir-se-iam oportunidades para todos e se formulariam claramente as bases ideológicas que hoje já mais ou menos norteiam as ações dos nossos governantes. E ele não só tinha redigido o ato de constituição do IPCA como havia marcado uma assembleia fundadora, a realizar-se com a presença de representantes de todos os municípios do Recôncavo.

Realmente muito bonito, concordaram todos e, vinda de Zecamunista, só podia ser coisa de quem, como ele, sempre fez altos estudos e usa palavras de que nunca ninguém ouviu falar, como acontece com os grandes sábios e líderes. Certamente, esse tal de IPCA era coisa existente em centros adiantados e agora, como sempre preocupado em manter a ilha na vanguarda, Zeca iria importá-lo, sem dúvida para grande benefício geral. Contudo, ainda que mal se perguntasse e bem se perdoasse a ignorância, em que consistia esse famoso IPCA? Qual a função dele, nos lugares onde já existe?

- Ele não existe em lugar nenhum - explicou Zeca. - É criação minha, quem bolou fui eu mesmo, é mais um pioneirismo nosso. Mas meu plano é mesmo que ele venha a ser implantado em todo o Brasil, porque muitos dos problemas atuais deixariam de existir.

Sim, o IPCA nada mais é que as iniciais do Instituto Popular de Corrupção Aplicada. Como se sabe, rouba-se muito no Brasil e a maior parte dos governantes vê o poder como o caminho aberto para se fazer na vida. Aliás, é como todo mundo, não só os governantes, vê o poder. Estranho é o sujeito que vai eleito ou nomeado a alguma coisa não prosperar economicamente, é um comportamento anômalo. A corrupção está integrada em nossa realidade e não adianta querer eliminá-la.

- Mas, Zeca, você sempre disse aqui que é contra a corrupção.

- Disse e sou, mas isso é no terreno filosófico. No terreno prático, minha posição a favor do povo me leva a encarar a corrupção com novos olhos. A corrupção só é um problema devido à exclusão. O pobre e o remediado são excluídos da corrupção e ficam à margem do esquema geral. Com o Instituto, isso vai ser corrigido, a corrupção vai ficar ao alcance de todos e não somente de uns relativamente poucos privilegiados. Claro, não se vai esperar que o corrupto de um pequeno município atinja os mesmos patamares de um corrupto como um juiz safado, um deputado ladrão, um senador salafrário ou um ministro vigarista. Isso somente ocorre em casos excepcionais, quando o corrupto tem muito talento. Não, o que eu quero é simplesmente democratizar a corrupção, para que ela fique ao alcance de todos, até o cidadão mais humilde.

Já estava tudo ali, em seu caderno de anotações. Em exaustivo estudo, catalogara todas as espécies de golpe aplicado para roubar o dinheiro do governo ou para enriquecer com propinas e subornos. Já podia fechar os olhos e ver como ficaria o pessoal da ilha, caso o esquema viesse a funcionar. Haveria dispositivos especiais para o micro, pequeno ou médiocorrupto, com linhas de crédito adequadas. E seriam implantadas medidas ainda mais revolucionárias, em benefício do proletariado. Por exemplo, foro especial para todos. Por que somente certos ladrões têm direito a foro especial? E também tratamento igual para todos. A Polícia Federal poderia continuar a investigar e prender, mas a regra de prender na segunda e soltar na terça tinha de valer para qualquer corrupto, sem distinção.

- Aliás - disse ele -, agora mesmo me veio outra ideia inovadora, é preciso estar de acordo com os novos tempos. Agora todo mundo tem estatuto e, portanto, vamos criar o Estatuto do Corrupto, vai ser a primeira tarefa do IPCA. Um bom estatuto faz milagres, qualquer coisa que o sujeito queira. Agora mesmo saiu o Estatuto do Jovem. Até 29 anos, o camarada é jovem. Daí para 60, é adulto. Dos 60 em diante (65, dependendo), é idoso. Falta agora fazer o Estatuto do Adulto, esse pessoal não pode ficar desamparado, excluído de cobertura estatutária. Eu creio que a tendência moderna é fazer um estatuto para cada categoria que se definir, sou a favor de estatuto para tudo, Estatuto do Carnaval, Estatuto do Corno, Estatuto dos Fanhos e assim por diante, é uma abordagem que ainda tem a vantagem de já estar sendo aplicada no Brasil, onde todo dia aparece um estatuto novo.

O bom comunista, como ele, sabe aproveitar circunstâncias adversas em benefício de suas causas. Com o Estatuto do Corrupto em vigor, os pobres e semipobres da ilha adquirirão novo status político-econômico, mesmo porque não será esquecido o estabelecimento criterioso de mecanismos para permitir o ingresso deles no multifacetado e fascinante mundo da corrupção. Além de financiamento, treinamento pelo IPCA e estágio em alguns dos órgãos públicos mais notoriamente corruptos, nos três poderes, eles contariam com o Bolsa Corrupção, enquanto não fossem capazes de roubar o próprio sustento. Descobri a filosofia desse governo, disse Zecamunista. Tem como modos de ação o bolsismo e o estatutismo. Cabe a nós, proletários, usar os dois em nosso benefício. Mas o roubismo graúdo não tem jeito, continua com eles mesmos.

HUMBERTO WERNECK - Do caderno de um repórter



Do caderno de um repórter
HUMBERTO WERNECK
O Estado de S.Paulo - 16/10/11

Nos vários dias em que o entrevistamos, eu e um diligente estagiário, para uma reportagem a propósito de seus 80 anos, o escritor Pedro Nava volta e meia repetia:

- Se chover, eu saio de guarda-chuva!

Queria com isso dizer que se sentia pronto para qualquer eventualidade.

Chegávamos com ele a uma reunião de escritores quando, ao vê-lo descer do carro, reparei que tinha nas mãos um guarda-chuva. Acendeu-se em minha cabeça a luz dos grandes achados: tínhamos ali, prontinha, uma legenda - "Nava: Se chover, eu saio de guarda-chuva". Faltava a foto, e lhe pedi uma pose na calçada, antes de entrarmos. O fotógrafo já ia apertar o botão quando o zeloso estagiário correu até o escritor:

- Dr. Nava, deixa que eu seguro o guarda-chuva!

- Claro, meu filho, obrigado - minha mulher ia me puxar a orelha se eu saísse na foto com esse monstrengo...

Lá se foi a legenda. E quase se foi também o garoto, caído em desespero ao perceber o pequeno desastre que tinha provocado.

*

Ao "castelo" italiano daquela revista brasileira de celebridades não faltava uma sala de massagem, e tratou-se de inaugurá-la tão logo lá pousou a primeira leva de famosos. O fotógrafo já desembalava as câmeras quando os castelões se deram conta de que faltava alguma coisa, coisa essa nada irrelevante: massagista. Fácil de resolver! - anunciou, lampeiro, um faz-tudo da produção. Amestrado para prever e prover, ele guardara um jornalzinho do vilarejo próximo, e na seção de anúncios pescou um telefone de massagista, imediatamente contratada.

Dali a pouco, jazia sobre a mesa uma celebridade seminua, já maquiada e besuntada - e a massagista, nada de botar a mão na massa. Vamos lá! - impacientava-se a produtora, sob o olhar apalermado da criatura, que, pressionada, acabou desnudando o equívoco: não sabia massagear. Como não?!

- Io sono una putana! - reagiu a ragazza, ofendida em seus brios profissionais.

*

Estou entrevistando Carlos Heitor Cony para a Playboy, na fantasmagórica redação da revista Manchete, morta fazia tempo, quando o telefone toca - e, tomado de inveja benigna, o vejo receber, impassível, ah, sim, fico satisfeito, a notícia de que era o ganhador do então (1997) mais disputado e valioso prêmio literário do País. Desliga e, vagamente enfadado, se vira para mim:

- Onde estávamos?

Eu nunca tinha visto alguém ganhar R$ 50 mil - equivalentes, à época, a outros tantos dólares - e no minuto seguinte retomar o papo, como se nada houvesse acontecido.

*

Não havia semana em que ele não aparecesse na redação e alugasse um de nós:

- Tremendo furo! - anunciava, brandindo um maço de laudas.

Deixar ler a papelada, ou ao menos saber do que se tratava? De jeito nenhum! Só se nos comprometêssemos a publicar. Ninguém sabia mais o que fazer: o homem era amigo do dono do jornal - mas nem por isso ia bater em sua porta:

- Não vou incomodá-lo, sei como ele é ocupado.

Preferia incomodar um de nós, desocupados:

- Rigorosamente inédito!

Até que alguém criou coragem:

- Se a gente publicar, seu artigo deixará de ser inédito - e não podemos fazer essa sacanagem com você!

E assim nos livramos dele.

*

Estavam em Tóquio, uns dez ou 12 repórteres, para cobrir uma viagem presidencial, e como evidentemente nenhum deles falasse japonês, era fatal que se dependurassem no colega nissei, que os tranquilizou: 'xa comigo!'

No restaurante, chamou o maître - o qual, ao ouvir a primeira frase, passou sem transição da imperturbabilidade nipônica a gargalhadas de comédia italiana. Foi contar aos garçons, que também se puseram a chacoalhar de rir, ante o sorriso apropriadamente amarelo da brasileirada. Quando baixou a fervura da hilaridade, alguém arriscou uma tradução via inglês, e se soube que nosso corpulento compatriota, com seu vozeirão, tinha dito algo assim ao maître:

- Nenê qué papá!

HÉLIO SCHWARTSMAN - Procissão da alegria



 Procissão da alegria
HÉLIO SCHWARTSMAN 
FOLHA DE SP - 16/10/11

SÃO PAULO - O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, está prestes a cometer um pequeno crime contra as crianças da cidade. Ele deve sancionar ainda neste mês o projeto de lei recém-aprovado pela Câmara que prevê a contratação de até 600 professores para darem aulas de religião em escolas municipais.

É claro que pais são livres para educar seus filhos na fé de sua preferência, mas isso deveria ser feito no contexto de seus lares e templos. Assim como igrejas não têm o hábito de ensinar física e aritmética em seus cultos, a escola pública não deveria ensinar religião.

O primeiro argumento é de ordem econômica. Não faz sentido a prefeitura investir recursos numa procissão de 600 professores de religião quando ainda há tantas lacunas no ensino de matérias tão fundamentais como português e matemática.

No que diz respeito ao quadro institucional, a encrenca é ainda maior. Na trilha do governo estadual, o projeto cria um modelo de ensino religioso-confessional, que é difícil de conciliar com o princípio da laicidade do poder público. Pela proposta, de autoria da própria prefeitura, os docentes, formados em sociologia, filosofia, história ou teologia, precisarão seguir as orientações da "autoridade religiosa" que representem.

Isso significa que o professorado estará dividido em feudos eclesiásticos, nos quais cultos majoritários acabarão engolindo os minoritários, e que as tais autoridades religiosas terão poder de definir o que será ensinado aos alunos da rede pública, numa clara violação da separação entre Estado e igreja.

O pecado original, vale lembrar, não é de Paes, e sim da Constituição de 88, que estabeleceu o ensino religioso no ciclo fundamental. Mas a Carta em nenhum momento determina que se rifem cargos públicos -e com eles o futuro das crianças- como parte de um acerto que atende aos interesses eleitorais do prefeito e aos apetites de algumas igrejas.

GOSTOSA


MIGUEL SROUGI - Presidente: sonhar e não ceder


 Presidente: sonhar e não ceder
MIGUEL SROUGI 
FOLHA DE SP - 16/10/11

Presidente, a senhora adotou algumas medidas corretivas diante da corrupção, tragédia que nos assola, mas isso foi só um começo, talvez pouco
Prezada presidente Dilma Rousseff, peço desculpas por encaminhar uma carta por meio desta Folha, mas, como ouvi que em Brasília proliferam os malfeitores, temi que uma missiva endereçada talvez não chegasse ao seu destino.
Como médico, tenho enfrentado embates aflitivos contra os tumores urinários, incluindo o câncer da próstata, que, como a senhora sabe, coloca em risco a existência de um sem-número de patrícios. Hoje, mais incomodado, escrevo para falar de outra doença, que ameaça não só 140 mil homens, mas toda a sociedade brasileira.
Refiro-me ao tumor que tomou o nosso organismo social: autoridades sem o mínimo comprometimento com a decência, locupletando-se sem constrangimento, aplicando golpes contundentes contra o Estado e contra o resto da sociedade.
Ao contrário do câncer de próstata, de causa não bem conhecida, a doença que nos assola teve origem clara, que deve ser lembrada e contra a qual a senhora corajosamente se postou -o período de exceção, em que se construiu uma sociedade sem voz, sem líderes e modelos.
Por isso, foi produzida uma geração permissiva, incapaz de reconhecer seus direitos e de expressar reação. Foi um período sem luzes e sem vigília, que nos legou outro fardo, a ascensão de um sem-número de oportunistas, que se espraiaram e passaram a consumir o Estado. Como nos tumores mais malignos.
Por que um médico dirigindo-lhe um apelo? Certamente por ser também cidadão e justamente por ser médico. Apesar da luta estoica de alguns brasileiros decentes, a saúde foi transformada em balcão de negócios escusos, exaurindo-se os recursos disponíveis.
Pior ainda, tem sido vítima da insensibilidade de outros, que, com o poder de decisão final, têm privilegiado a vida de instituições tomadas pela imoralidade em vez da vida dos cidadãos. Frustram-se os médicos, que, imobilizados, não conseguem cumprir sua missão.
Como combater essa situação iníqua? Talvez da mesma forma como enfrentamos com sucesso o câncer de próstata. Realizando intervenções radicais e, ao mesmo tempo, fortalecendo o organismo agredido. Na presente tragédia, expurgando da vida nacional e punindo exemplarmente o grupo de predadores assentado no poder.
Ademais, com toda a legitimidade que lhe foi conferida pela sociedade brasileira, exigir que as leis e a Justiça representem, de fato, instrumentos de defesa do direito, e não objetos de proteção dos ímprobos e poderosos.
Difícil conseguir isso? Talvez não, se em cada ação indecorosa a senhora punir, sem vacilação, o apequenamento. Também se passar a exigir daqueles que a cercam postura modelar e atitudes proativas, que façam aflorar nos brasileiros a consciência crítica e a cidadania.
Ocorre-me neste momento a versão de Chico Buarque, "Sonho Impossível". Cantava ele: "Sonhar, mais um sonho impossível/ Lutar, quando é fácil ceder/ Vencer, o inimigo invencível/ Negar, quando a regra é vender.../ E assim, seja lá como for/ Vai ter fim a infinita aflição/ E o mundo vai ver uma flor/ Brotar do impossível chão".
Recentemente, a senhora adotou algumas medidas corretivas diante da tragédia que nos assola. Começou a lutar, quando seria fácil ceder. Mas foi só um começo, talvez pouco. Pouco para alguém que, em períodos recentes menos gloriosos da nossa história, conviveu com a truculência e com autoridades que não eram coisa boa.
Agora que a senhora é autoridade, imagine se a sua complacência for mal-interpretada, confundida com aquiescência. E lembre-se a senhora, que tem história para ser o exemplo, que a posição de presidente só foi obtida por deferência da nação brasileira, que colocou, com esperança e fé, seus destinos em vossas mãos. Para terminar a infinita aflição. E para ver uma flor, brotar do impossível chão.

DANIEL PIZA - A arte do apego (e do desapego)



A arte do apego (e do desapego)
DANIEL PIZA
O Estado de S.Paulo - 16/10/11

Os assuntos de A Lebre com Olhos de Âmbar, extraordinário livro de Edmund de Waal (editora Intrínseca, ótima tradução de Alexandre Barbosa de Souza), são muitos. Se você, como eu, é aficionado por artesanato japonês, Proust, Viena fim de século, Primeira e Segunda Guerras, entre outros nomes, endereços e datas, esse é o livro que você nem sabia que esperava. Como as miniaturas "netsuquês" cuja trajetória o autor biografa, o volume parece comprimir questões existenciais e históricas na leveza tátil de suas 320 páginas envelopadas por uma capa de textura notável. Sim, eis mais um tema em que nos faz pensar, a força palpável da polpa do papel como objeto em que as palavras se inscrevem em corrente. Computador não se folheia. E o livro de De Waal aguça o tato como parte do olhar. Depois que o fechei, precisei tocar em alguns objetos e quadros, como se pudesse encontrar mais coisas no que suponho conhecer tão bem.

Assim como o tema, é difícil definir o gênero do texto. De Waal, um ceramista inglês com formação em Literatura em Cambridge, fez uma espécie de mescla entre relato de viagem e ensaio cultural, à maneira de um Claudio Magris (Danúbio), mas que no fundo (ou na superfície) tem a simplicidade de uma narrativa de família. Herdeiro da coleção de 264 miniaturas japonesas que antes era de seu tio-avô Iggie, Ignace Ephrussi, ele decide reconstituir a história dela desde que sua família a adquiriu, na Paris dos impressionistas. Isso o leva a viajar muitas vezes não só para a capital francesa, mas também para Viena (onde Iggie nasceu), Odessa (o porto ucraniano no Mar Negro onde toda essa genealogia judaica se originou) e, claro, Tóquio (onde Iggie morreu). Rever a história da Europa de 1860 a 1950 a partir de uma vitrine de bonequinhos japoneses, quase uma "toy art" de alto refinamento, parece dar o tom da narrativa.

Mas esse tom não é tudo. O que distingue o livro é a sensibilidade de De Waal, sua percepção de arquitetura, design e artes visuais, suas vastas leituras, suas perguntas inesperadas, sua meticulosidade de pesquisador. Não é por seus interesses múltiplos e por sua forma livre que o autor não determina seu assunto com clareza; é pela riqueza de associações, pelo respeito à grandeza da história que tem literalmente em mãos, gestos que seriam dignos de um grande ficcionista. Como artesão, ele se diz interessado na pátina que as coisas adquirem com o passar das épocas, as memórias que se imiscuem no marfim daqueles minúsculos bichos e personagens. Como os objetos são manuseados e como se relacionam com os demais, deslocando "uma parte do mundo em torno de si", é sua questão primária. Não se trata de ficar exibindo com empáfia as informações sobre aqueles bibelôs orientais em mansões europeias; o desejo é entender o contexto, a rede de biografias que evoca, para meditar com o leitor sobre nosso apego ou desapego às coisas. Ao menos para mim este é o tema maior, o motivo que anima toda a composição do livro.

De Waal considera um netsuquê, por levar até dois meses para ser feito, sem somar a destreza que os séculos ensinaram a cada geração, "uma pequena e tenaz explosão de exatidão"; cita Edmond de Goncourt o comparando com um aforismo por sua elegância; vê nele um trabalho ao mesmo tempo preciso e desprendido, com uma noção de tempo nem sempre acessível aos ocidentais. Pede por uma história do tato, que "não é apenas dos dedos, mas de todo o corpo", e conta que sempre lhe perguntam no ateliê se não odeia ver os objetos que fez indo embora do estúdio, em mãos endinheiradas que nem sempre lhes dão o devido valor estético. O autor responde: "Não odeio. Eu ganho a vida deixando que as coisas partam. Você só espera que elas encontrem seu caminho no mundo e tenham alguma longevidade". E esses netsuquês fizeram um caminho e tanto no mundo, independentemente de contar a história de sua família.

De Waal não cai no erro comum aos que investigam genealogia de dar a ela um peso lógico ou simbólico exagerado (como até Pedro Nava cai em suas primorosas memórias). Talvez o fato de sermos descendentes desta ou daquela nacionalidade e ter um certo "sangue" influencie tendências de nosso comportamento, mas não há nada mais fácil para transmitir vaidades ou culpas. Ele não está procurando a si próprio ao viajar e narrar as gerações que o antecederam. Num dos capítulos finais, escreve: "Não há nenhum sentimentalismo, nenhuma nostalgia. Trata-se de algo muito mais duro, literalmente mais duro. É uma espécie de confiança". Não se trata de querer entesourar memórias como se esquecer fosse um pecado, de depositar em coisas uma prova de identidade indispensável. Estou pensando no físico Jayme Tiomno, também por origem judeu russo, que, ao ser trazido para o Brasil, ouviu do pai que tudo que temos está na cabeça, na capacidade de pensar e lembrar o que importa. (Ele me contou isso em entrevista, deixando escapar um pequeno acesso emotivo, que logo tratou de reprimir. Isso só fez o argumento ainda mais poderoso.) Nenhum objeto substitui a memória; pode servir apenas como metáfora ou lembrete.

Me dou conta de que cheguei ao sexto parágrafo e mal resumi o livro, que afinal descreve passo a passo as vidas da família Ephrussi, que começou sua fortuna produzindo e especulando com trigo e depois se tornou dona de bancos, em determinado momento se aparentando aos Rothschilds e outros clãs milionários. Por outro lado, sempre estiveram muito próximos da alta cultura. De Waal alega consistentemente que Charles Ephrussi, editor de uma revista de arte e autor de um livro sobre Dürer, amigo de Degas e Renoir, secretariado pelo ótimo poeta Jules Laforgue, é uma das inspirações para Proust compor Swann, o esteta cosmopolita, habitué de salões aristocráticos, que adere à onda do japonismo do meio artístico francês e, mais tarde, passa ao gosto pelo estilo Império, mais pomposo e assimilado - e que defende Dreyfus e acaba pagando por isso o preço de ver explodir o antissemitismo latente na Belle Époque.

Esse é outro assunto forte no livro, e nos capítulos vienenses ganha tons trágicos. Viktor Ephrussi, que herda os netsuquês de Charles e os deixa no quarto de vestir da mulher, Emmy, colecionadora de roupas e amantes, se sente integrado à alta sociedade austríaca e pensa encarnar o ideal iluminista alemão da "Bildung", da educação erguida sobre clássicos literários. Sua filha, Elisabeth, advogada, ensaísta e poeta, que também ficaria um tempo como guardiã dos netsuquês, se corresponde com o genial Rainer Maria Rilke. Quando vem a Primeira Guerra, que poria fim à era dourada da civilização europeia, eles imediatamente aderem à causa. Mas depois dela se veem pintados como os culpados da derrocada econômica, em cuja esteira se segue o rolo nazista, e com a Segunda Guerra são obrigados a se dispersar em exílios. De Waal nota algo em que eu não havia pensado com clareza: essas famílias judias, de raízes espalhadas da Rússia à França e hegemônicas na Europa Central, também por isso incomodavam o nacionalismo vigente.

Viktor, diz o autor, deixa "sua terra de Dichter e Denker, de poetas e pensadores" transformada "na terra de Richter e Henker, juízes e carrascos", e emigra com apenas uma mala. Coube a Anna, a empregada alemã gentia, salvar os netsuquês da fúria burocratizada de Hitler, os quais foram para a Inglaterra com Elisabeth. É lá que Ignace, seu irmão, voltando da guerra em que atuara como soldado pelas forças americanas, um dia manipula as miniaturas e decide ir viver - com elas - no Japão. Embora fora de moda, ali os netsuquês deixam de ser uma vitrine exótica numa Europa tão criativa quanto destrutiva e, enfim, parecem levar uma vida feliz, com Iggie e seu jovem companheiro japonês, Jiro, onde diferenças culturais aproximam ao invés de afastar. Felicidade não como em comercial de TV, mas a simples sensação de ter mais dias bons que ruins, a realização sempre imperfeita de afetos e vocações, a consciência do que nos faz bem e o acesso frequente e desencanado a esses prazeres.

Leio o livro em alguns dias, ansioso para continuar a cada página folheada, triste ao chegar ao final, mas o objeto semiartesanal de celulose e tinta ganha alguma longevidade em minha mente. Penso nas coisas que levaria caso mudasse de país. Tenho um lado "maverick", sou homem de poucos apegos emocionais: minha mulher, meus filhos, uma pequena parte dos meus livros (os mais manuseados e anotados, com as lombadas mais craqueladas), algumas fotos, objetos e quadros, dentre eles seguramente a estampa japonesa que comprei em Kyoto de um poeta indo visitar um eremita no meio de montanhas e cachoeiras. Gosto do meu apartamento e de meus amigos, mas "já morei em tantas casas que nem me lembro mais" e os amigos viajariam até nós de vez em quando. Ao mesmo tempo, ainda quero realizar alguns sonhos, inclusive comprar isto ou aquilo - quem sabe o netsuquê de um tigre -, e aprender muito. É uma espécie de confiança.

Por que não me ufano (1). No andar de CDs da Saraiva, pergunto se já chegou o novo de Dori Caymmi, que me deixou curioso ao contar que as canções nasceram do incentivo de seu pai, o grande Dorival, para que tivessem melodia mais popular. O vendedor escreve no computador: Caimi. Se alguém que trabalha com música não conhece a grafia de uma família de compositores e cantores como essa, não há são Google que resolva.

Por que não me ufano (2). Não faz sentido ficar só reclamando de que os protestos contra a corrupção tenham reunido poucas pessoas; na capital federal foram 20 mil. A hora é de incentivar. Ocupemos Brasília!

Inté. Tiro três semanas de férias.

Como você, leitor, preciso descansar de mim.

Aforismo sem juízo

"Tristeza não tem fim, felicidade sim." Por isso a queremos sempre de volta

MAC MARGOLIS - A 'Era K' ainda longe de acabar



A 'Era K' ainda longe de acabar
MAC MARGOLIS
O Estado de S.Paulo - 16/10/11

Há pouco mais de um ano, a queda de Cristina Fernández de Kirchner parecia iminente. Em outubro de 2010, seu marido, o ex-presidente Néstor Kirchner, sofreu um enfarte e morreu aos 60 anos. De um só golpe, ela perdia o companheiro, seu maior mentor de campanha e seu cúmplice na poderosa dinastia política mais comentada da região.

De luto e desgastada pela guerra prolongada com lobbies poderosos, a sempre estilosa e combativa presidente argentina parecia subitamente murcha e frágil.

Diplomatas, bisbilhotados pelo WikiLeaks, fofocavam sobre sua saúde mental. Analistas afoitos correram para redigir o obituário da "Era K". O bolo de apostas em Buenos Aires previa não se, mas quando, ela iria jogar a toalha Hermès e desistir da Casa Rosada. Todos se deram mal.

A julgar pelos institutos de pesquisas, Cristina está a caminho de uma vitória histórica, logo no primeiro turno das eleições do próximo domingo.

Os cronistas apressados bem poderiam se redimir, decifrando os motivos que levaram uma das sociedades mais esclarecidas do continente a abraçar a proposta de devolver ao poder um governo dos mais truculentos, arbitrários e descompromissados com as liberdades democráticas dos últimos tempos.

A volta espetacular de Cristina ao sol só é comparável ao breu da fossa que a tragou. Alçada repentinamente ao poder no fim de 2007, o caminho político de Cristina era um campo minado. O país até se recuperava da desastrosa moratória de 2001, mas a economia global começara a balançar, com governos de países ricos forçados a socorrer bancos e empresas.

Foi a deixa perfeita para a Casa Rosada. Com o pretexto de salvar o capitalismo argentino, Cristina encampou-o. Congelou preços, nacionalizou a previdência privada e estatizou a Aerolíneas Argentinas. Também decretou impostos pesados para as exportações agrícolas. Os fazendeiros se rebelaram, travando a distribuição de comida.

O motim chegou ao palácio onde o vice-presidente Julio Cobos desempatou o voto no Senado, garantindo a derrota do imposto rural. Até hoje, com a economia em alta, emprego farto e os shopping centers lotados, os excessos do regime CFK parecem não incomodar.

A política populista de subsídios e de juros frouxos que estimulam a inflação também fortalece o comércio, permitindo aumentos polpudos de salários no setor privado e público.

Até quando? Com o céu anuviado da economia internacional e tempos magros pela frente nos maiores parceiros do país, na China e no Brasil, as comparações futuras podem ser menos lisonjeiras.

"Você pode forçar os limites quando o país está crescendo e há pleno emprego, mesmo quando a economia está sendo mal administrada", diz Daniel Kerner, analista argentino do Eurasia Group. "Mas, em uma crise, tudo pode mudar e depressa." Nem as estatísticas mais amenas do mundo podem ajudar.

DILMA, PEDE PRA CAGAR E SAI...


MÔNICA BERGAMO - Meu Face é um Book



Meu Face é um Book
MÔNICA BERGAMO
FOLHA DE SP - 16/10/11

Usuários de redes sociais procuram fotógrafos profissionais para aparecerem mais bonitos em suas páginas pessoais "Beautifull!!!!", diz Juliane Soares. "Linda essa foto hein, Lari, adoreei!!!", elogia Daniel Santana. "Tá lindaaa!!!", comenta Ale Correa. Essa é a opinião de alguns dos 365 amigos virtuais de Larissa Oliveira sobre a foto de seu perfil no Facebook. Ela caprichou: gastou R$ 100 para ser clicada em um estúdio profissional.

"Vim fazer o ensaio porque quero mostrar quem sou, minha verdade interior", diz Larissa, 23, ao repórter Chico Felitti antes de entrar na sala onde fez o elogiado retrato. Para exibir na internet sua "verdade interior", usou um ventilador que deu movimento aos cabelos, olho sombreado em tons de cinza e azul com rosa. E "algum Photoshop", admite a fotógrafa Carolina Reis.

O estúdio em que ela trabalha, no Centro de SP, criou um pacote "book para redes sociais". Quinze minutos de atendimento dão direito a dez fotos profissionais, com tratamento de imagem que dá "efeito aveludado na pele e corrige 60% dos detalhes". Só que "sem parecer falso, por favor", pede Larissa.

Produção de figurino e maquiagem devem ser feitas em casa, já que o tempo em frente à câmera é curto. "É o melhor jeito de reduzir o preço", diz a dona do estúdio, Bianca Machado. Ela cobra R$ 100 em dias de semana e R$ 120 aos sábados, domingos e feriados.

"Metade das pessoas que atendo só quer foto digital", diz o fotógrafo Alexandre de Oliveira, que tem um estúdio em Belo Horizonte. "E muitas delas só para usar na rede social. Eles pegam o CD com as imagens e nem voltam para pegar o book impresso. Tenho cinco aqui, mofando num cantinho." A sessão mais básica com Oliveira custa R$ 165, e dá direito a 50 fotos armazenadas em um CD. Foi a escolha da secretária Daine Priscila dos Santos, 23. Finalista do concurso Miss Turismo, ela vê o gasto como investimento profissional. "Tudo o que eu faço de foto eu coloco na internet." Podem ir para o ar até imagens sensuais, em que ela aparece sem blusa, encobrindo os seios com os braços. "É uma divulgação que também é profissional. Afinal, meu trabalho sou eu." O público das poses de Daine é composto por 767 pessoas, seus amigos no Facebook. Só eles têm acesso irrestrito "às coisas mais pessoais que eu experimento, e a algum nu artístico".

Ela diz que não se incomoda com comentários inapropriados. "Meu intuito é esse mesmo: quanto mais comentários, melhor. Significa que estão admirando." "Das pessoas que vêm aqui, uns 85% querem fotos para redes sociais", diz a fotógrafa Kelly Oliveira, de Rio das Ostras (RJ). "É para autopromoção. A gente vive uma obsessão com a imagem, tem essa necessidade de se mostrar bonito. E eu sei fazer as pessoas parecerem bonitas. É a minha profissão." "A gente só mostra aquilo que quer", diz Larissa, de SP. Ela queria mostrar o piercing no lábio e o tênis novo, de modelo iate. Mas há quem queira revelar bem mais.

"Já tive que dizer não para uma garota de 15 anos que pediu para fazer álbum sensual para o Orkut", diz a fotógrafa paulistana Carina Fouldenber. "Mesmo com a mãe aqui, menor não pode fazer ensaio sensual. Não dá." Outra restrição dos profissionais é quanto à modificação da foto no computador.

"Aconselhamos a usar só um pouquinho de Photoshop. Quase nada, porque o ângulo e a luz já ajudam muito. Tirando que, se fizer uma pele de porcelana, não vai mais parecer a pessoa", diz Bianca Machado.

Mas há fotógrafo que admite: "Photoshop nos outros é ridículo, mas quando é na gente... Às vezes, é necessário", disse um dos entrevistados, que pediu sigilo do nome. "Fiz uma foto minha mesmo olhando no espelho para pôr no Orkut. Aí não aguentei as rugas e dei uma 'photoshopada'. Dei mesmo, porque tava precisando." "Quando a gente fala em rede social, pensa que é o jovem que vai procurar esse serviço", diz o fotógrafo Alexandre. "Mas não é. Jovem faz a foto em casa, sozinho, e fica boa. É gente mais velha que precisa de ajuda." Bianca diz que a maioria das 20 sessões para rede social que seu estúdio faz por semana é para pessoas que passaram dos 40. "Mulheres especialmente." Ela arrisca uma explicação: "Talvez elas tenham vergonha, se achem muito velhas".

Algumas procuram estúdios em turma. Tiram fotos fingindo que lutam boxe, que estão num baile de Carnaval ou brindando com champanhe. E colocam tudo no Face.

"Eu tive um pouco de vergonha, mas só no começo", conta a professora Miriam Benoti, 57. Ela usou as 30 imagens posadas, algumas delas só de calcinha e sutiã, no perfil que criou em um site para buscar namorado. "Procuro um companheiro, depois de ter sido casada por 20 anos. Penso que, mostrando o meu corpo, me liberto, mostro essa fase nova da minha vida." "Nosso trabalho vai além de tirar foto. É descontrair bastante a pessoa", diz Carina Fouldenber. "Se ela quer recuperar a autoestima, a gente explora mais a sensualidade. Se quer parecer divertida, exploramos o movimento, rindo, pulando. Dá para vender a ideia de uma vida ótima com foto de estúdio." No mês passado, uma senhora mineira procurou Alexandre de Oliveira para fazer as fotos para estampar o convite da sua festa de 60 anos. "Terminada a sessão, com vestido longo, ela perguntou: 'Posso fazer agora uma foto sensual, para usar na internet?'. Eu disse que sim. Ela levantou o vestido e mostrou o joelho".

UGO GIORGETTI - Triste quarta-feira



Triste quarta-feira
UGO GIORGETTI 
O Estado de S.Paulo - 16/10/11


Primeiro a tristeza do Pacaembu lotado. Esse estádio cheio parece que não mais amedronta ninguém. A mim me dá um certo calafrio quando ouço o ruído da torcida antes do jogo, tão animada, frenética, confiante. Penso sempre que algo pode dar errado. E dá.

O que mais me entristeceu foi a entrada do Adriano. Eis aí um jogador com quem simpatizo. Por mais malandro, por mais indisciplinado, Adriano guarda uma certa inocência, uma ar de carioca dos anos 60, com um tremendo sorriso cativante, que, aliás, exibiu antes do jogo, no banco. Quando entrou deu pena. Até o rosto, habitualmente alerta e alegre, se desfez à medida em que sumia em campo. Nem de longe levou perigo ao gol do Botafogo, pior, foi solenemente ignorado pelos zagueiros rivais. Marcado com cuidado, claro, mas, no fundo, com a preocupação que merece um jogador comum. Foi triste e dava para ver que ele estava plenamente consciente disso.

Adriano vive muito do físico, e o físico ainda está longe do que foi. Quando aparece só, já se vê que está gordo. Quando se coloca ao lado dos outros jogadores a diferença é constrangedora. Espero que ele volte. Desse jeito prefiro não vê-lo.

A mesma noite apresentou outro momento deprimente, envolvendo o Palmeiras. Não me refiro ao incidente com o jogador João Vitor. Isso não é mais novidade, nem surpresa. Nada do Palmeiras, em termos negativos, surpreende mais. Já vimos isso recentemente com Vagner Love e Diego Souza.

O que me chamou a atenção e, naturalmente me deprimiu, foi uma outra coisa. A TV, como costume, transmite os jogos que se dão sempre em campo adversário, em outra cidade. Todo mundo sabe disso. Portanto, o jogo do Pacaembu entre Corinthians e Botafogo, a rigor não deveria ter sido transmitido. O jogo que a TV Globo deveria exibir em S.Paulo seria Palmeiras x Flamengo, jogado no Rio. Até jornais noticiaram, porque é o normal. Mas não foi o que aconteceu.

A Globo preferiu contrariar sua prática habitual e mostrar o jogo do Pacaembu. Fez muito bem. Costumes, hábitos e contratos deveriam se curvar à qualidade do espetáculo. E, em vista das últimas e penosas apresentações do Palmeiras que ultimamente os espectadores foram obrigados a assistir, nada mais justo que fosse substituído por um adversário de melhor qualidade.

Foi melhor até para os torcedores do Palmeiras que, muitas vezes, preferem não vê-lo a ver o que veem. Mas que foi constrangedor foi, ver um time de tão grandes tradições, de tão grandes conquistas ser afastado do vídeo como um timeco sem importância. E não era Palmeiras x Sei lá quem, mas Palmeiras x Flamengo, outrora um dos maiores clássicos do futebol brasileiro.

É muito bom, por outro lado, a televisão mostrar que não há cadeira cativa entre os grandes. Camisa só não ganha jogo, nem garante audiência. Mas, foi duro. E para os sampaulinos também a quarta não foi lá grande coisa. Não pelo resultado, pois empatar com o Internacional em qualquer campo não é nada fora do comum. Mas é que também no S.Paulo vi um pouco do espetáculo que se repetiu com o Adriano.

O S.Paulo fez um estardalhaço com a estreia de Luis Fabiano que não devia ter feito. Não pensou no jogador. Não se deu conta que ele precisava de tempo como qualquer outro jogador que depende do físico. Luis Fabiano não é estilista, nem muito refinado. É rápido, entrão, oportunista. Depende de condições físicas ideais. Apresentá-lo como se estivesse inteiro é pedir à torcida que tenha uma compreensão que torcida nenhuma tem. E isso está visivelmente preocupando o jogador.

Seu caso, no entanto, não é nada comparado ao de Rivaldo. Esse jogador, raro no futebol brasileiro, de grande integridade pessoal, de extensa folha de serviços prestados a diversos times, sofre de um mal que acomete quase todo o grande atleta: não saber parar. Ou melhor: não poder parar. A despedida é trágica, o momento de dizer basta é um pesadelo. Mas esperar até a hora que outros tomem a decisão em seu nome é ainda pior. Estranha e triste quarta-feira em S.Paulo.

GOSTOSA


CARLOS HEITOR CONY - Um campo e um tiro


Um campo e um tiro
CARLOS HEITOR CONY
FOLHA DE SP - 16/10/11 

RIO DE JANEIRO - A campanha contra a corrupção, tão necessária e urgente, tem um defeito: falta-lhe um rosto. Ou melhor: a corrupção tem tantos rostos que dificulta a identificação do tumor. Com frequência quase diária, surgem novos e ressurgem velhos nomes, de tal maneira amontoados que o protesto ou a indignação do cidadão se dispersa numa compreensível e impotente generalidade.

Na disputa pela primogenitura, Jacó, filho de Isaac, corrompeu Esaú, seu irmão mais velho, com um prato de lentilhas, Judas vendeu seu mestre por 30 dinheiros -os exemplos são muitos e antigos, a ponto de alguns moralistas considerarem a corrupção um atributo do gênero e da sociedade humanos.

Num caso mais recente e menos importante, um presidente da República sofreu impeachment porque, entre outras façanhas, ganhou um carro Elba. Os casos citados tiveram um rosto.

Fica difícil estabelecer um roteiro para acabar ou diminuir a corrupção, que nos últimos tempos tem a periodicidade de um ciclo lunar, de um eclipse.

Evidente que na classe política, que abastece o poder em suas várias manifestações, desde a Presidência da República ao guarda da esquina, os casos são mais numerosos, têm mais visibilidade, mas deixam sombras no contexto da corrupção, cúmplices que ficam aguardando novas oportunidades.

O problema é moral. Dou um exemplo às avessas da corrupção. Na crise que o levou ao suicídio, Vargas, no início, lutava pelo seu cargo e pela sua dignidade. Dias antes do fim, soube que um de seus filhos comprara um campo no Rio Grande Sul em sociedade com Gregório Fortunato, seu guarda-costas. Vargas chamou o filho, perguntou-lhe se era verdade.

O filho confirmou. A partir daquela confissão, ele não mais lutou. Acabrunhado, deu um tiro no peito.

PAULO DE TARSO LYRA - Os desafetos de Dilma


Os desafetos de Dilma
PAULO DE TARSO LYRA
CORREIO BRAZILIENSE - 16/10/11

O estilo direto da presidente Dilma Rousseff já provocou muitos calafrios em integrantes do governo, parlamentares da base aliada e incautos interlocutores desacostumados com a objetividade impressa pela presidente nas relações pessoais e políticas. Diferentemente do antecessor Luiz Inácio Lula da Silva, que, nas palavras de um antigo conhecido, "faz política para ganhar sempre e abraça adversários com a mesma facilidade com que detona aliados", Dilma tem mais dificuldade em acostumar-se às contemporizações. Por isso, nesses primeiros 10 meses de gestão, colecionou uma lista de desafetos com os quais não quer travar qualquer tipo de contato.

Um dos principais é o presidente da Confederação Brasileira do Futebol (CBF), Ricardo Teixeira. A pouco mais de três anos da Copa do Mundo de 2014, a presidente não faz a mínima questão de esconder que não gosta do cartola. Vários fatores levaram a esse distanciamento. O principal deles são as denúncias de corrupção envolvendo o dirigente esportivo, tanto no âmbito da CBF quanto em decisões da Fifa relacionadas às escolhas das sedes para as Copas do Mundo marcadas para depois de 2014.

Dilma sabe que não pode interferir diretamente na administração da CBF. Como o próprio Ricardo Teixeira afirma, ele administra uma "entidade privada, sem um centavo de dinheiro público". Mas reserva-se o direito de não atrelar a imagem do dirigente à sua imagem. Durante a cerimônia de sorteio das eliminatórias da Copa do Mundo de 2014, Dilma colocou Pelé entre ela e Teixeira. O embaixador da Copa no Brasil foi citado mais de uma vez no discurso presidencial, um deles antecedido pelo epíteto "meu querido". Para Teixeira, um mero e frio "senhor", protocolar.

Os grandes eventos esportivos marcados para o Brasil estão gerando dissabores para a presidente. As Olimpíadas do Rio de 2016 não são exceção. Dilma está sem paciência com o ex-presidente do Banco Central Henrique Meirelles. A intenção inicial da presidente era que Meirelles fosse o grande administrador dos jogos no Rio de Janeiro, o responsável por gerenciar as obras, controlar as licitações, utilizando todo o seu expertise e respeitabilidade internacionais.

Arestas

As brigas políticas com o governador do Rio, Sérgio Cabral, e o prefeito carioca, Eduardo Paes, porém, esvaziaram a influência do ex-presidente mundial do Bank Boston. Mesmo assim, ela queria manter Meirelles no cargo de Autoridade Pública Olímpica (APO). Mas ele não quis, sentindo-se desprestigiado. Dilma nomeou Márcio Fortes para o cargo e avisou a Meirelles que ele seria o representante do governo federal no Conselho da APO. O ex-presidente do BC continuou tristonho e aceitou o convite para filiar-se ao PSD, com a possibilidade de concorrer à prefeitura de São Paulo em 2012.

Cabral também é outro amigo de Lula que está em rota de colisão com a presidente. Dilma detesta que pessoas digam a ela o que tem de fazer. Em recente reunião com o presidente da Petrobrás, Sérgio Gabrielli, a presidente exasperou-se. "Concorra a uma eleição, consiga 56 milhões de votos e sente aqui, nesta cadeira. Então a gente conversa". Em relação a Cabral, a presidente tem emitido sinais constantes de que o governador fluminense ultrapassou, há muito, o limite do bom senso no debate sobre a divisão dos royalties do petróleo. Para não parecer instransigência, Dilma recebeu o peemedebista em uma audiência reservada no dia em que viajaria para a Europa. Dois dias depois, Sérgio Cabral declarou que a presidente deveria "vetar qualquer projeto que ferisse os interesses do Rio de Janeiro". Novo atrito no relacionamento.

Subordinados

As trocas de ministros deixaram sequelas graves no humor presidencial. Nelson Jobim foi o principal deles. Dilma nunca escondeu que preferia tirá-lo do Ministério da Defesa, mas acabou aceitando os apelos de Lula e o manteve no governo. Em oito meses na pasta, falou demais. Disse que nos tempos atuais "os idiotas perderam a modéstia". Admitiu publicamente o que, interna corporis, sabia-se no governo federal: ele votou em José Serra nas eleições de 2010. Por fim, disse que a ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, não conhecia Brasília e a ministra da Secretaria de Relações Institucionais (SRI), Ideli Salvatti, era muito fraquinha.

O escândalo nos Transportes também levou a presidente a riscar de sua caderneta, de uma vez só, o senador Alfredo Nascimento (atual presidente nacional do PR) e o deputado Valdemar Costa Neto (secretário-geral do partido). Valdemar é suspeito de comandar o esquema de corrupção na pasta e Alfredo teria tido a chance dada por Dilma para sanear o ministério. Não o fez e ainda reclamou pelos corredores de ter sido excluído de reuniões para discutir o PAC.

Sem reação

A presidente Dilma Rousseff soube, durante a viagem de volta ao Brasil após o giro por Bélgica, Bulgária e Turquia, que o PSD conseguiria filiar 55 deputados, boa parte deles vindos do DEM. Comemorou o esvaziamento do partido oposicionista. No mesmo voo, foi informada de que Henrique Meirelles virara pessedista. Não esboçou reação. Por enquanto, ele permanece na APO, a menos que expresse claramente o desejo de afastar-se do projeto olímpico. "Não sabemos se ele será ou não candidato em 2012", disse um assessor palaciano.

MARTHA MEDEIROS - Artistas anônimos


Artistas anônimos
 MARTHA MEDEIROS
ZERO HORA 16/10/11

Uma carreira sólida (não os 15 minutos de fama) se constrói também com um fator aleatório que faz toda a diferença: sorte

Ter um espaço para escrever em jornal e uma editora para publicar meus livros é uma sorte, e não apenas consequência do talento. Cada vez que leio um texto num blog, que vejo uma pintura de alguém que expõe na rua ou ouço um cara tocando num boteco sombrio, sei que é quase certo que eles não encontrarão mercado para expandir seu público, não terão a chance de viver do seu dom. E, inevitavelmente, penso na loteria que é essa tal de vida artística.

Assisti dias atrás ao filme Riscado, de Gustavo Pizzi, que já recebeu alguns prêmios em festivais. É a história de uma atriz, interpretada pela ótima Karine Teles, que sobrevive de bicos na noite de uma metrópole.

Ora ela interpreta Marylin Monroe cantando Happy Birthday para octogenários, ora ela se fantasia para distribuir panfletos em bares, ora canta na calçada para atrair fregueses para um salão de beleza, ora faz telegramas ao vivo. Tudo muito digno – e deprimente. Ela é uma atriz. Uma boa atriz. Mas como saberão que ela é uma boa atriz? No filme, ela integra o elenco de uma peça precária, a que só os amigos foram assistir.

O seu palco, mesmo, é na festinha dos outros, onde ela faz uma breve aparição e depois some sem que ninguém mais lembre dela. Terminado o “expediente”, ela acende um cigarro e vai para a fila do ônibus, enquanto aguarda o telefone tocar com alguma proposta mais animadora, que a tire desse mundo da figuração. Até o dia em que surge a oportunidade de trabalhar numa produção internacional, com papel fixo e importante. Mas será que existe mesmo conto de fadas?

Há os que poderiam bailar lindamente, se pudessem frequentar uma escola. Os que poderiam cantar, pintar, ser atletas, estilistas ou músicos, não tivessem que se dedicar a um “trabalho normal” para ajudar nas despesas da casa.

E há os que, mesmo frequentando perifericamente o mundo em que sonham entrar, como a personagem do filme, mantêm-se à margem até o fim dos dias, sem um minuto de protagonismo, sem jamais ver seu nome nos créditos.

O que é que define a trajetória de um artista? Levando-se em conta que ele entende mesmo do riscado (daí o título do filme) e que é um sujeito responsável e de caráter, o que mais precisaria acontecer? É uma pergunta que milhares de candidatos ao reconhecimento se fazem, mas não há uma resposta exata.

Uma bailarina do Faustão será chamada um dia para o elenco de um musical? E estando nesse musical, evoluirá depois? A primeira vez que vi Claudia Raia, ela tinha 16 anos e dançava na montagem brasileira de A Chorus Line.

Acabou virando uma grande estrela. Pelo talento, óbvio, e por conspirações cósmicas que ninguém explica. Uma carreira sólida (não os 15 minutos de fama) se constrói com carisma, perseverança, presença de espírito, facilidade de se relacionar, inteligência, dedicação, disponibilidade, bagagem cultural e com um fator aleatório que faz toda a diferença, mencionado lá no início do texto: sorte. A sorte de alguém colocar o olho em você e apostar.

Loteria.

PAULO SANT’ANA - Greves infames


Greves infames
 PAULO SANT’ANA
ZERO HORA - 16/10/11

Não me sai da goela esta última greve dos Correios. Ela prejudicou profundamente milhões de brasileiros.

Só vou dar o meu exemplo porque sobre ele tenho conhecimento epidérmico. Eu tenho um cartão de crédito cujo pagamento faço em todo dia 10. Não me veio até o dia 10 de outubro o DOC correspondente, que sempre me é trazido pelos Correios.

Então, além da incomodação febril que me deu, tendo de telefonar várias vezes para a sede do meu cartão de crédito em São Paulo, tive de pagar a prestação do dia 10 de outubro com juros.

Pergunto: de quem devo cobrar os juros que paguei e a indenização pelos terríveis incômodos que tive com o incidente? De quem tenho de cobrar isso?

Assim como eu, milhões de brasileiros. De quem vão cobrar as indenizações?

Temos de cobrar essas indenizações, em primeiro lugar, do sindicato de servidores dos Correios, que gerenciou esta greve. Cada cidadão brasileiro lesado pelos incômodos dessa greve tem de reaver seus prejuízos financeiros e existenciais derivados dessa greve infame desse sindicato.

Em primeira instância. Em segunda instância, tínhamos de cobrar nossas indenizações do governo, que não se organiza para livrar os usuários dos Correios, a cidadania brasileira, desse tipo de transtorno sério e joga toda a população nessa roda-viva de aflições.

Não pode continuar assim. Então um sindicato organiza uma greve que dura 26 dias, esculhamba as vidas pessoais de milhões de brasileiros. Depois de 26 dias, os grevistas têm parcial ganho de causa, com isso obtêm ganhos salariais – e o povo que foi lesado fica sem sequer uma satisfação dos responsáveis por essa bagunça, quanto mais indenização pelos danos sofridos?

Não pode ser assim. Não foi uma greve aceitável de três ou quatro dias. Foram 26 dias de greve. Isto é demais! Isto é um absurdo! Isso é um desrespeito à nação!

O mesmo com as pessoas que não puderam pagar seus compromissos financeiros por causa da greve dos bancários. O mesmo. O sindicato dos bancários tinha de indenizar os lesados. Houve um homem que foi preso, mostrou-o a televisão, por não ter conseguido recolher o valor da prestação da pensão alimentícia que lhe cabia pagar, em face de que as agências de bancos de sua cidade estavam todas fechadas. Foi preso. Recolhido à cadeia. Por força da greve.

Quem é que vai indenizar esse homem?

Isto é um abuso, isto provoca asco!

Quando haja uma greve estúpida como essas dos Correios e dos bancos, o governo tem de organizar medidas de emergência: por exemplo, ninguém terá de pagar juros pelo atraso das correspondências, ninguém irá para a cadeia por não prestar a pensão alimentícia. Em suma, ninguém sofrerá qualquer prejuízo financeiro ou moral inerente às greves infames.

Que greves infames!

MARCELO GLEISER - O filme da sua mente



O filme da sua mente
MARCELO GLEISER
FOLHA DE SP - 16/10/11


Será que um dia você poderá visualizar os seus pensamentos e torná-los acessíveis em arquivos visuais? Imagine assistir os seus sonhos como se fossem um filme!
Parece coisa de ficção científica, certo? E se outra pessoa (ou o governo) ganhasse acesso ao que ocorre na sua mente? Ou se víssemos o que ocorre na mente de um paciente em coma? As possibilidades médicas são enormes, as complicações éticas também. Supondo que essas tecnologias virem realidade, onde devemos parar? Será que prisioneiros deverão ser submetidos a leituras cerebrais para que o júri possa confirmar o seu veredicto?
Continuamos longe de ver o que ocorre em nossas mentes. Mas não tão longe quanto costumávamos estar. Num experimento recente, voluntários assistiram a videoclipes enquanto sua atividade cerebral era registrada usando ressonância magnética funcional (fMRI). Com os dados coletados, computadores foram capazes de reconstruir parcialmente as imagens que os voluntários viram. Não é o mesmo que ver dentro de suas mentes, mas ver o que suas mentes viam, um feito já bem impressionante.
Como afirmou o cientista cognitivo Jack Gallant, da Universidade da Califórnia em Berkeley, que é um dos autores do estudo, "é um grande avanço para a reconstrução de imagens internas... abrimos uma tela para assistir os filmes que passam em nossas mentes".
Dentre os inúmeros benefícios dessa tecnologia, podemos imaginar o dia em que pessoas deficientes (ou qualquer outra) poderão comandar computadores com suas mentes. No experimento, os voluntários tiveram de ficar sendo escaneados por horas, para que a máquina de fMRI registrasse o fluxo sanguíneo do córtex visual, a região do cérebro que processa a visão.


Num computador, os pesquisadores dividiram o cérebro em pequenos cubos, chamados voxels (pixels volumétricos). A informação dos clipes que chegava ao córtex era medida pelo fMRI, enquanto o computador gravava o tipo e o local da atividade neuronal correspondente a cada imagem, criando um mapa da informação segundo a segundo.
O computador então comparou essa informação com 18 milhões de clipes tirados do YouTube, buscando padrões semelhantes. Os cem mais parecidos eram combinados, e as imagens eram usadas para reconstruir os clipes originais.
Não há dúvida de que esses são apenas os primeiros passos de uma nova tecnologia, e que ninguém pode ainda ver o que se passa na sua cabeça. Dois desafios importantes são a baixa velocidade com que as máquinas atuais de fMRI registram a atividade neuronal (é por isso que a reconstrução é de segundo a segundo) e o tamanho limitado da videoteca usada para comparação.
(Por exemplo, nos 18 milhões de videoclipes do YouTube não havia um com um elefante, de modo que aquela parte da correspondência foi prejudicada.) Porém, como é o caso com novas tecnologias, os primeiros passos podem ser lentos, mas o progresso ocorre mais rápido do que o esperado.
Talvez nossa geração não tenha de censurar nossos sonhos para maridos e mulheres; mas é bem provável que a geração de nossos filhos não terá tanta sorte.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor de "Criação Imperfeita".

JULIANA FRANK - A viúva de quatro



A viúva de quatro
JULIANA FRANK
FOLHA DE SP - 16/10/11

Estou viva! Estou viva! Essa frase cotidianamente repetida por mim é uma mensagem galhofenta aos fantasmas de meus quatro finados maridos. Eles me fitam de lá, da tediosa nuvem azul. Eram todos tão avarentos. Espero que os mortos vivam de graça!
Sei que usam pijamas blue-escolares. Vez por outra, tocam violino. E quando, por intermédio das coincidências (ou má distribuição da renda celestial), acabam se encontrando, cumprimentam-se de forma civilizada, na comunhão silenciosa de quem sabe o quanto o outro penou. "Arlette", um nome vilanesco, brada o coro dos quatro excelsos do céu em direção ao inferno. Vai que o diabo é surdo.
Que esses quatro, que desejam minha partida, saibam: o paraíso se abrirá para mim em vida, já que na morte terei de derrubar a porta. E só saio deste inferno por um que arda melhor. De qualquer forma, não morrerei de tédio, não apodrecerei de células revoltas, tampouco hanseníase na língua hei de ter. Eu, a Highlander de calcinha, morrerei contente, sem nenhuma cicatriz.
Foda-se o além-túmulo e o lugarejo para onde me enviarão. O que importa é a vida vivente e meus olhos incendiários, que ainda e por muito esmagarão cromossomos ípsilon. Seguindo meu pensamento, rebolo sem música nas calçadas de passos apressados em meio à cidade maluca. São Paulo tem muitos homens que desejam a demissão, o divórcio, a invencível solidão por uma boceta que se saiba pensante e é.
Minha profissão está diretamente ligada à minha boceta. Tentei ser quenga, relutei para seguir minha real inclinação. Sou uma vidente do passado. Tudo começou na puberdade, época em que as tardes inúteis me inspiravam a massagear o clitóris. De repente, tive o superpoder de alcançar o passado de meus vizinhos.
Aqueles vizinhos óbvios, que fofocavam, nem podiam imaginar onde eu guardava seus segredos. Na xana cassandríca! Na visioboceta! Paro diante dela, faço movimentos confusos para que a dita não delire, orgástica que é, e enfim recebo revelações vivenciadas em pretéritos imperfeitos. Todo passado é infausto.
A visioboceta, no correr dos anos, passou por violentas tribulações com meus ex-maridos, completamente invaginados por mim. Isso a deixou mais afiada. Quem sofre sabe alguma coisa, e não é diferente com os órgãos reprodutores de visiones. Em menos de três segundos ela consegue ver o seu passado, a sua mãe de banhas multiplicadas. A vista que seu pai viu, o princípio que te pariu a filhosofar-te.
Uma pena, minha visioboceta não pôde ver a morte de meus três maridos, nem eu, ocupada que estava em transar com o coveiro em meio ao fogo-fátuo. Nicolau, meu quarto varão enterrado. Imprescindível em minha biografia! Morreu de burrice vitae, tolo e inócuo como nasceu. Dos outros três lembro-me apenas de "Roverfal", ou "Falfal", ou "ponta firme pau mole", eis o melhor marido em matéria de herança, merece a lembrança.
Não matei nenhum deles, como sua maldade há de imaginar. Todos morreram por justa causa. Se me recordo vagamente de cada um, é devido às ações retropremonitórias que acabam por ocupar os fundamentos de minhas partes baixas. Deixo as memórias para meus clientes, sequiosos por visões proclamadas em gemidos. Sim, eles tentam tocar-me, mas a vidência é sexualmente transmissível.
"É tudo muito turvo", diz a boceta profética, "é tudo embaçado", assim ela começa, depois vai mostrando fatos episodiais. "Como quando sua mãe revelou que o seu pai era uma foto emoldurada na parede" -geme a boceta a um cliente.
"Meu filho, essa é mais uma mentira incógnita de sua mãe, que apenas comprou a foto de um militar na época da dita para preencher o vazio paternal na parede e em sua pobre vida" -dessa vez, fui eu quem disse, colhendo os furos da história; afinal, se esse pai fosse general, o cara teria uma boa aposentadoria e não reclamaria do meu preço.
Mas dou um desconto aos clientes mais assíduos, como esse que me visita todo dia e até tentou fazer um plano eterno, oferecendo matrimônio e o escambau. Nada disso me anima. Ultimamente, prefiro deixar a vida pra lá!
Outros tantos adoram que eu narre seus passados. Nem se atrevem a perguntar sobre o futuro, sabem bem que a vida é como um roteiro cinematográfico sem a eternização das imagens. No céu é proibido ejacular, meus falecidos maridos logram gozar com Arlette espetada no garfo vermelhão. Ora vão! Vão plantar dentaduras nessas bocas desocupadas! Minha campainha uiva, sempre mais um cliente urgindo relembrar. Meu bolso sorri no presente. E minha visioboceta jorra um gozo memorável. 

MERVAL PEREIRA - A travessia


A travessia
MERVAL PEREIRA 
O GLOBO - 16/10/11

O documentário "Tancredo, a travessia", de Silvio Tendler, que será lançado oficialmente no final do mês, complementa a trilogia que teve início com "Jango" e "Anos JK" no relato da história recente do país, mas se supera na captura da alma conciliadora de Tancredo Neves e na revelação da sua matreirice política que estava sempre a serviço da democracia, como salienta o ex-presidente Fernando Henrique em seu depoimento.
Definitivamente, Tancredo não era um político banal e eu mesmo tive um exemplo marcante dessa sua argúcia, que me ensinou muito no trato das coisas políticas.
Dias depois do atentado do Riocentro, ocorrido em 1º de maio de 1981, eu, que escrevia a coluna da página 2 do GLOBO chamada "Política Hoje Amanhã" e passava a semana em Brasília, no dia 4, peguei o voo pela manhã, tendo como companhia o senador Tancredo Neves, que vinha de um encontro com o então governador do Rio, Chagas Freitas.
Fomos conversando sobre a gravidade dos acontecimentos até que, como quem não quer nada, Tancredo comentou: "Homem corajoso esse Chagas. O relatório oficial da polícia confirma que havia mais duas bombas no Puma".
Dito isso, mudou o rumo da conversa com a autoridade de quem não queria se aprofundar no assunto.
A informação era simplesmente bombástica, sem trocadilho: se no Puma dirigido pelo capitão Wilson Machado havia outras bombas, ficava demonstrado que ele e o sargento Guilherme Pereira do Rosário eram os responsáveis pelo atentado, e não vítimas, como a versão oficial alegava.
Telefonei para a redação do GLOBO no Rio dando a notícia para o Milton Coelho da Graça, que era o editor-chefe da época, e ele, empolgado, disse-me que fosse para o Congresso tentar tirar mais informações de Tancredo.
No seu gabinete no Senado, Tancredo estava cercado de pessoas, pois o ambiente político estava bastante conturbado.
Consegui puxá-lo para um canto e pedi mais informações "sobre as duas bombas encontradas no Puma".
Tancredo me olhou sério, colocou sua mão em meu ombro e perguntou, como se nunca houvéssemos conversado sobre o assunto: "Você também ouviu falar disso, meu filho?".
A notícia foi manchete do GLOBO do dia 5 de maio.
No documentário sobre sua vida e seu calvário de 38 dias, há diversos episódios que contam bem essa capacidade que Tancredo tinha de fazer política com gestos e poucas palavras. Mas certeiras.
Quando Jango faz seu longo retorno da China, depois da renúncia de Jânio à Presidência da República, enquanto no Brasil se negociava sua posse com a resistência de setores militares, Tancredo vai ao Uruguai, última escala do retorno, conversar com o vice-presidente.
O PTB, partido de Jango, exige que um seu representante vá participar da conversa. Só que, quando Wilson Fadul chega ao aeroporto, o avião de Tancredo já havia decolado.
Digno representante do PSD mineiro, Tancredo queria conversar a sós com Jango. E conseguiu convencê-lo a aceitar o parlamentarismo, cuja alternativa seriam "as mãos sujas de sangue".
Anos mais tarde, quando já negociavam o apoio da Frente Liberal à sua candidatura à Presidência da República no Colégio Eleitoral, Tancredo foi confrontado com uma exigência do vice-presidente Aureliano Chaves, seu adversário político da UDN mineira.
Aureliano disse que só apoiaria Tancredo se ele lhe escrevesse uma carta aceitando vários pontos que colocava como inegociáveis.
Para espanto dos dissidentes do PDS que foram lhe levar as exigências, Tancredo aquiesceu logo em escrever a carta.
Mas também impôs sua condição: só a escreveria se recebesse primeiro a resposta de Aureliano dando seu apoio. E assim foi feito.
O próprio Tancredo diz a certa altura do documentário que "mineiro radical" não existe, e explica que no dicionário, Tancredo quer dizer "conciliador", "parcimonioso".
Mas nunca deixou de assumir atitudes firmes, quando precisava. Segundo ele, um político "não pode cometer temeridades, mas tem o dever de correr riscos".
E ele correu: na reunião ministerial do Palácio do Catete, pouco antes do suicídio de Vargas, defendeu a resistência.
Discursou nos enterros tanto de Getúlio quanto de Jango; acompanhou Juscelino quando o ex-presidente, cassado, teve que depor em Quartéis do Exército.
Criou o PP para marcar o caráter conciliador de sua política, mas retornou ao PMDB quando o governo militar ditou novas regras eleitorais que prejudicavam a oposição dividida.
Foi o único do PSD a não votar em Castello Branco para presidente, ele que o havia promovido a general a pedido de uma parente quando era primeiro-ministro, e por isso não foi cassado depois do golpe militar.
O documentário deixa bem claro, através principalmente de depoimentos de seu neto, o hoje senador Aécio Neves, a preocupação de Tancredo com a reação dos militares à posse de Sarney como presidente.
Por isso adiou até quando pode uma operação, para tentar chegar ao dia da posse que, para ele, seria "a garantia da transição".
A tal ponto estava obcecado com isso que na véspera da posse, já não podendo mais se levantar, recebeu de seu futuro Chefe do Gabinete Civil vários atos para assinar, e os assinou na cama, afirmando: "Isso é a garantia de que não vai haver retrocessos".
E estava certo, pois no dia seguinte, quando o Ministro do Exército do governo Figueiredo, General Walter Pires, tentou impedir a posse de Sarney, foi comunicado por Leitão de Abreu de que ele já não era mais ministro.
O Diário Oficial daquele dia já saíra com todos os atos de nomeação do novo governo, que não foi comandado por Tancredo, mas por Sarney.
Aécio Neves diz que as últimas palavras que ouviu do avô e guia político foi: "Eu não merecia isso".

JOSÉ SIMÃO - Ueba! Bordel Palazzo Berlusconi!


Ueba! Bordel Palazzo Berlusconi!
JOSÉ SIMÃO 
FOLHA DE SP - 16/10/11

Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República!
Bombas da semana: em Rosário, na Argentina, abriram um bordel chamado Palazzo Berlusconi. Isso que é homenagem. Bunga bunga em ritmo de tango. E ele vai pra inauguração? Vai, de Aerolíneas Argentinas, de econômica!
E essa: "Encontrados fósseis no Maranhão da cobra mais antiga do país". Adivinha quem é? Rarará! E essa do Sensacionalista: "Falso Steve Jobs é visto em loja da Apple na China". Não tão mais falsificando só iPhone, tão falsificando o Steve Jobs. E a realidade dos Estados Unidos: antes eles tinham Steve Jobs, Bob Hope e Johnny Cash. Agora eles não tem mais nem Jobs, nem Hope e nem Cash. E essa piada pronta: "Nobel de Economia vai pra dois americanos". Devem ser os únicos que não quebraram. Ou que ainda não foram descobertos! Casa de ferreiro, espeto de pau!
E o pensamento do dia: se corrupção desse caroço, o Brasil seria uma jaca! E eu vou organizar uma Marcha PELA Corrupção: Roubei, mas não fui eu! Camisetas à venda: roubei, mas não fui eu! Copa 2014! Agora vai: vão contratar as empreiteiras que constroem os pedágios para construir os estádios. Se eles construírem os estádios com a rapidez com que constroem pedágios, o Itaquerão fica pronto amanhã!
E o final da "Fazenda 4"? Ops, Fazendo de 4! Moral da "Fazenda": pior do que ser ex-famosa é ser ex-gostosa! Deviam botar os caracteres embaixo das participantes. Bruna Surfistinha: ex-famosa e ex-gostosa. Monique Evans: ex-famosa e ex-gostosa! E a Joana Machado, barraqueira e ex-namorada do Adriano, ganhou o surreality show: R$ 2 milhões. Ganhou R$ 2 milhões, mas gosta mesmo é de barraco.
O que você vai comprar com R$ 2 milhões? Vou comprar briga. Rarará! Ela já quebrou quatro carros dos jogadores do Flamengo. Devia mudar o nome pra Joana Desmanche! E o Adriano já amarrou ela na arvore.
Aliás, sabe por que o Adriano amarrou a namorada na árvore? Pra ela ficar AMARRADONA! Essa é a biografia: barraqueira, ex-namorada do Adriano e já foi amarrada em árvore. A biografia só não é melhor porque ela não teve um filho com o Latino. Rarará! E um leitor me disse que o Adriano está mais magro.
Mais magro que uma vaca premiada. Rarará! Ô, esculhambação! Nóis sofre, mas nóis goza!
Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

GOSTOSA


PAULO COELHO - Ushiba e o adversário

Ushiba e o adversário
PAULO COELHO
DIÁRIO DO NORDESTE - 16/10/11

Criado pelo japonês Morihei Ueshiba (1883-1969), o Aikido é a única arte marcial que pratiquei, e na minha opinião é uma das mais interessantes. Quero publicar algumas de suas ideias a respeito dos confrontos pelos quais temos que passar:

A) quem tem um objetivo na vida, irá se defrontar com uma força oposta; para eliminar esta força, é preciso aprender como fazê-la trabalhar a seu favor.

B) um verdadeiro guerreiro jamais sacrifica seus amigos para derrotar o adversário; portanto, ele tem que aprender a detectar e resolver os problemas antes que eles se manifestem.

C) a melhor maneira de enfrentar-se com o adversário é convencê-lo da inutilidade de seus gestos. O guerreiro mostra que seu objetivo não é destruir nada, mas construir sua própria vida. Quem caminha em direção ao seu sonho busca a harmonia e o entendimento antes de qualquer coisa, e não se importa de explicar mil vezes o que deseja, até ser escutado e entendido.

D) não fique olhando o tempo todo os problemas que estão no seu caminho: eles terminarão por hipnotizá-lo, impedindo qualquer ação. Tampouco fique concentrado demais nas suas próprias qualidades, porque elas foram feitas para serem usadas, e não para serem exibidas.

E) a força de um homem não está na coragem de atacar, mas na capacidade de resistir aos ataques. Desta maneira, prepare-se - através de meditação, exercícios, e uma profunda consciência de seus propósitos - para aguentar firme e continuar no caminho, mesmo que tudo e todos a sua volta procurem afastá-lo de sua meta.

F) a derrota acontece antes da vitória. A chave para ganhar é saber perder - mas não desistir.

G) em situações extremas, principalmente quando você já está quase perto do seu objetivo, o Universo irá testar os seus propósitos, exigindo o máximo de sua energia. Esteja preparado para grandes provas, à medida que o sonho se torna realidade.

H) não olhe sua vida com ressentimento, e esteja preparado para aceitar tudo aquilo que os deuses lhe ofereceram; cada dia traz em si a alegria e a fúria, dor e prazer, escuridão e luz, crescimento e decadência. Tudo isso faz parte do ciclo da natureza - portanto não tente reclamar ou lutar contra a ordem cósmica. Aceite-a, e ela lhe aceitará.

I) se o seu coração for suficientemente grande, ele será capaz de acolher todos aqueles que se opõem ao seu destino; e uma vez que você os tenha acolhido com amor, será capaz de anular a força negativa que seus adversários traziam.

J) quando perceber que um adversário se aproxima, avance e lhe diga palavras delicadas. Se ele insistir na sua agressividade, não aceite a luta a não ser que ela vá lhe acrescentar algo; neste caso, utilize a força do oponente, e não gaste a sua energia.

L) saiba o momento correto de usar cada uma das quatro qualidades que a natureza nos ensina. Dependendo das circunstâncias, seja duro como um diamante, flexível como uma pena, generoso como a água, ou vazio como ar. Se a origem do seu problema é o fogo, não adianta contra-atacar com mais fogo, porque isso só irá aumentar o incêndio: neste caso, apenas a água será capaz de combater o mal. Nunca o problema pode lhe ensinar como reagir a ele - só você tem poder para isso.

FERREIRA GULLAR - Política sem sonhos

Política sem sonhos
FERREIRA GULLAR
FOLHA DE SP - 16/10/11

Estou longe de me ver como um comentarista político, de modo que as considerações que às vezes faço aqui, em torno desse assunto, na verdade atendem à necessidade que tenho, como qualquer pessoa, de entender o que está acontecendo e pode ser que atendam também à necessidade de um ou outro leitor. De qualquer maneira, além do mais, me divirto com isso, já que pensar "certo ou errado" é a minha cachaça.

E foi assim que, meses atrás, levantei aqui a hipótese de que os dois partidos nascidos de uma discordância ideológica radical com o regime militar "PT e PSDB" já esgotaram sua vida útil e, agora, surgiram novas lideranças, com outra história e outra visão do problema político, do modo de formulá-lo e conduzi-lo.

Dizendo de outra maneira: a nova geração de políticos, que vem substituir a de Fernando Henrique, Lula e José Serra, não teve que enfrentar a ditadura, não conheceu o exílio e, por essa e outras razões, tem uma visão menos ideológica, mais pragmática das questões políticas e sociais. Em razão disso, Serra não chegará à Presidência da República e o PT, se continua no poder, é porque já deixou de ser um partido (pretensamente) revolucionário: hoje é um partido sem compromissos ideológicos, que, para se manter no poder, aliou-se a cobras e lagartos, do PC do B, que já nada tem de comunista, aos evangélicos do bispo Macedo.

Pois bem, e não é que, de repente, Gilberto Kassab, prefeito de São Paulo, inventa um outro partido que, segundo ele mesmo, não era nem de direita, nem de esquerda, nem de centro? Alguém diria então que não era um partido. Essa foi minha conclusão, em face da primeira notícia, uma vez que os partidos nascem para pôr em prática uma opção política ou ideológica. Então, que partido seria esse, que vinha para defender nada, sem tomar nenhuma posição? Ele agora diz que o PSD é de centro.

Em abril deste ano, quando Kassab anunciou a criação do PSD, escrevi uma crônica qualificando-o de oportunista por inventar um partido que, sem projeto para o país, visa somente o poder.

Errando e aprendendo. Para minha surpresa, porém "e de muita gente mais", o partido inventado por Gilberto Kassab cresceu em seis meses de maneira surpreendente, a ponto de se tornar, ao que tudo indica, a terceira maior representação na Câmara dos Deputados, desbancando o PSDB.

Realmente, não fui o único a me espantar, e não era para menos. Às vésperas de findar o prazo para a inscrição de candidaturas às eleições do ano que vem, o número de prefeitos filiados ao PSD chegava a 600, e o de vereadores, a mais de 6 mil. Segundo a avaliação dos entendidos, o PSD lançará cerca de 12 mil candidatos a vereador e 1,4 mil candidatos a prefeito.

Isso significa que milhares de políticos, filiados a outros partidos, os abandonaram para se inscreverem no partido de Kassab. Dezenas de prefeitos dos mais diversos Estados deixaram seus partidos e a ele se filiaram. Os governadores do Amazonas e de Santa Catarina também mudaram de barco, arrastando consigo prefeitos, deputados e vereadores. Ao que tudo indica, o PSD se tornará em breve o terceiro maior partido do País.

Qual a razão disso? Como se explica tal fenômeno? Certamente haverá mais de uma razão para que tanta gente deixe seu partido e embarque numa aventura como essa, já que ninguém sabe ao certo quem é Kassab nem o que será esse partido, que não diz a que vem.

Surpresa maior ainda foi, no apagar das luzes, a filiação de Henrique Meirelles, presidente do Banco Central durante o governo Lula que pertencera ao PSDB e depois ao PMDB. Ele transferiu seu título de eleitor de Goiânia para São Paulo a fim de se candidatar, pela novel agremiação, a prefeito da capital paulista. Mas ele afirma que sua filiação ao PSD não tem objetivo eleitoral, pois visa tão somente ajudar na construção de um grande partido nacional. Ou seja, o lugar está vago.

Se vai fazê-lo ou não, pouco importa. O que fica evidente, porém, é que Kassab, ao se dar conta do vácuo político surgido do esgotamento do PT e do PSDB, viu que era chegada a hora de criar um partido que, ao contrário daqueles, não se define ideologicamente e no qual, por isso mesmo, cabe todo mundo.

NOURIEL ROUBINI - A instabilidade da desigualdade


A instabilidade da desigualdade
NOURIEL ROUBINI
FOLHA DE SP - 16/10/11

Os protestos pelo mundo expressam a preocupação de classes diante do maior poder nas mãos das elites


Este ano foi caracterizado por uma onda mundial de inquietações e instabilidades sociais e políticas, com participação popular maciça em protestos reais e virtuais: a Primavera Árabe; os tumultos em Londres; os protestos da classe média israelense contra o alto preço da habitação e os efeitos adversos da inflação sobre os padrões de vida; os protestos dos estudantes chilenos; a destruição dos carros de luxo dos "marajás" na Alemanha; o movimento contra a corrupção na Índia; a crescente insatisfação com a corrupção e a desigualdade na China; e agora o movimento "Ocupe Wall Street", em Nova York e em outras cidades dos Estados Unidos.

Embora esses protestos não tenham um tema que os unifique, expressam de diferentes maneiras as sérias preocupações da classe média e da classe trabalhadora mundiais diante de suas perspectivas, em vista da crescente concentração de poder nas mãos das elites econômicas, financeiras e políticas.

As causas das preocupações são bastante claras: alto desemprego e subemprego nas economias avançadas e emergentes; capacitação profissional e educação inadequadas, entre os jovens e trabalhadores, o que impede que concorram no mundo globalizado; ressentimento contra a corrupção, inclusive em formas legalizadas como lobbies; e a alta acentuada na disparidade de renda e riqueza nas economias avançadas e nas emergentes.

É claro que os problemas que muitas pessoas enfrentam não podem ser reduzidos a um só fator. A desigualdade cada vez maior tem várias causas: o ingresso de 2,3 bilhões de chineses e indianos na força mundial de trabalho (reduz o número de empregos e os salários dos operários de baixa capacitação e dos executivos e de administradores cujas funções sejam exportáveis, nas economias avançadas); mudanças tecnológicas baseadas em diferenciais de capacitação profissional; a emergência inicial de disparidades de renda e riqueza em economias que antes tinham renda baixa e agora apresentam rápido crescimento; e tributação menos progressiva.

As companhias de economias avançadas estão reduzindo seu pessoal, devido à demanda final inadequada, que resulta em excesso de capacidade, e à incerteza quanto à demanda futura. Mas reduzir o número de funcionários resulta em queda ainda maior na demanda final, porque isso reduz a renda dos trabalhadores e amplia a desigualdade. Porque os custos trabalhistas de uma empresa representam a receita profissional das pessoas e com isso a demanda que elas geram, uma decisão que é racional para uma empresa específica pode ser destrutiva em termos agregados.

Resultado: os mercados livres não geram suficiente demanda final. Nos EUA, a redução nos custos trabalhistas diminuiu acentuadamente a participação da renda do trabalho no PIB. Com o crédito exaurido, os efeitos de décadas de redistribuição de renda e riqueza -do trabalho para o capital, dos salários para os lucros, dos pobres para os ricos, e dos domicílios para as empresas- sobre a demanda agregada se tornaram severos, devido à propensão marginalmente inferior a consumir entre as empresas/proprietários de capital/domicílios ricos.

O problema não é novo. Karl Marx exagerou em seus argumentos favoráveis ao socialismo, mas estava certo ao alegar que a globalização, o capitalismo financeiro descontrolado e a redistribuição de renda e riqueza do trabalho para o capital poderiam conduzir à autodestruição do capitalismo. Como ele argumentou, o capitalismo sem regulamentação pode resultar em surtos regulares de excesso de capacidade produtiva, consumo insuficiente e crises destrutivas recorrentes, alimentadas por bolhas de crédito e ciclos de expansão e contração nos preços dos ativos.

Qualquer modelo econômico que não considere devidamente a desigualdade terminará por enfrentar uma crise de legitimidade. A menos que os papéis econômicos relativos do mercado e do Estado sejam recolocados em equilíbrio, os protestos de 2011 se tornarão mais severos, e a instabilidade social e política resultante terminará por prejudicar, a longo prazo, o crescimento econômico e o bem-estar social.



NOURIEL ROUBINI é presidente da Roubini Global Economics, professor da Escola Stern de Administração de Empresas (Universidade de Nova York) e coautor do livro "Crisis Economics".



Este artigo foi distribuído pelo Project Syndicate.



Tradução de PAULO MIGLIACCI