domingo, março 09, 2014

Que fim levou Bo Derek? - MARTHA MEDEIROS

ZERO HORA - 09/03

Eu estava em plena adolescência quando assisti no cinema ao filme Mulher Nota 10 com uma estreante chamada Bo Derek. A comédia contava a história de um cantor que um dia viu uma loira espetacular vestida de noiva e ficou obcecado por ela. O que aquela mulher tinha de nota 10? Que eu lembre, apenas um tremendo corpaço. Mas foi o que bastou para eu e mais umas tantas meninas da minha idade desejarem ser 10 também.

Mal sabíamos que estava em curso uma revolução que iria nos exigir muito mais do que um corpaço: iria nos exigir independência financeira, atitude, cultura, talento, sucesso profissional, inteligência acima da média, um bom casamento, filhos notáveis, um farto círculo de amigos, um apartamento bem decorado, uma ótima mão para a cozinha, conhecimento sobre política, economia, artes plásticas, jardinagem e comércio exterior, muita feminilidade, um guarda-roupa de matar de inveja a editora da Vogue, um rosto lisinho, um cabelo lisinho, dotes sexuais de humilhar o Kama Sutra e, para aguentar o tranco, o tal corpaço de parar o trânsito, claro.

Nem titubeamos. Parecia fácil. Daríamos conta. E demos, se abstrairmos o padrão cinematográfico das exigências.

Até que descobrimos que tínhamos tudo, menos a coisa mais importante do mundo: tempo. Deixamos de ser donas dos nossos dias, viramos escravas da perfeição, passamos a buscar a nota 10 em todos os quesitos, feito uma escola de samba, e ganhamos o quê? Um stress gigantesco e uma tremenda frustração por não conseguir manter tudo no topo: o casamento, a profissão, os seios. Nunca mais uma escapada de três dias num sítio, nunca mais pegar uma matinê num dia da semana, nunca mais passar a tarde conversando na casa de uma amiga, nunca mais deitar no sofá para ouvir nossa música preferida. Tic-tac, tic-tac. Proibido relaxar.

Trégua, por favor. Não estamos numa competição. Ninguém está contabilizando nossos recordes. A intenção não é virar uma campeã, e sim desfrutar a delícia de ser uma mulher divertida e desestressada. Por que isso precisa conflitar com a independência? Proponho uma pequena subversão: agrade si mesmo e a mais ninguém. E não brigue com o espelho, pois ter saúde é o único item de beleza indispensável, e isso só se enxerga por dentro. Trabalhe no que lhe dá gosto, aprenda a dizer não, invente sua própria maneira de ser quem é, e se for gorda, fumante, esquisita e sozinha, qual o problema? Aliás, sendo você mesma, dificilmente ficará sozinha.

Lembra das garotas nota 10 da sua sala de aula? Cá entre nós, umas chatas. Não aproveitavam a hora do recreio, não deixavam a blusa para fora da saia, não matavam as aulas de religião, só pensavam em ser exemplares. Pois tiveram o mesmo fim da Bo Derek: nunca mais se ouviu falar delas.

Quisera ser um gato - FERREIRA GULLAR

FOLHA DE SP - 09/03

Alegra-me a confiança de um bicho que não fala a minha língua, que não sabe quem sou eu 


Fora os fantasmas que me acompanham e me fazem refletir sobre o sentido da vida, vivo eu, neste apartamento, com uma gatinha siamesa. Que é linda, não preciso dizer, mas, além disso, é especial: quase nunca mia e, quando soa a campainha da porta, se arranca. Nem eu sei onde ela se esconde.

Ela é, portanto, muito diferente do gatinho que, antes dela, me fazia companhia e que se foi. Morreu de velho, já que nunca havia adoecido durante seus 16 anos de vida. Quando adoeceu, foi para morrer. Não preciso dizer que fiquei traumatizado e não quis mais saber de outro gato. Amigas e amigos me ofereceram um substituto para o meu gatinho, e eu respondia que amigo não se substitui.

Os anos se passaram, a dor foi se apagando, até que um belo dia, minha amiga Adriana Calcanhotto chegou aqui em casa com um presente para mim: era uma gatinha siamesa. Faltou-me coragem para dizer não, mesmo porque a bichinha me encantou à primeira vista. Manteve-se arredia por algum tempo, mas logo me aceitou e nos tornamos amigos.

Hoje me sinto praticamente lisonjeado pelo fato de que, por medo ou desconfiança, enquanto ela foge de todo mundo, me busca pela casa, sobe em minhas pernas e ali se deita, isso sem falar que, todas as noites, dorme em minha cama.

Confia em mim, sabe que gosto dela e que pode contar comigo para o que der e vier. Essa confiança de um bicho que não fala a minha língua, que não sabe quem sou eu, mas só o que sou dentro desta casa, me alegra.

E às vezes, olhando-a dormir na poltrona da sala, lembro que para ela a morte não existe, como existe para nós, gente. Ela é mortal, mas não sabe, logo é imortal. A morte, no caso dela, é apenas um acidente como outro qualquer, dormir, comer, brincar, correr; só existirá quando acontecer, sem que ela saiba o que está acontecendo.

Neste ponto é que a invejo. Já pensou como a vida seria leve se não tivéssemos consciência de que ela acaba? Seria como viver para sempre, tal como ocorre com a gatinha.

E enquanto penso essas tolices, ela --que se chama Gatinha-- se levanta, vem até mim e começa a se roçar nas minhas pernas, insistentemente. Só então me dou conta de que está pedindo que eu vá até a cozinha e ponha ração no seu prato. Ela não sabe que é mortal, mas sabe muito bem que necessita comer e que quem lhe providencia a comida sou eu.

A verdade é que vivemos os dois neste apartamento cheio de livros, quadros e móbiles (feitos por mim, não por Calder, ou seja, falsos móbiles) e nos entendemos bem. A Gatinha é diferente do Gatinho, é de outra geração, a geração do pet shop. Por isso mesmo, ela não come carne nem peixe, só come ração.

Consequentemente, ao contrário do Gatito, que subia na mesa para xeretar meu almoço, ela não está nem aí para comida de gente, só quer saber de ração. E tem mais: só pode ser aquela ração; se mudar, ela não come, cheira e vai embora.

Aliás, isso criou um problema sério, quando a ração que Adriana trouxera terminou. Como não entendia de rações, ao ver que a dela acabara, fui a um pet shop aqui perto para comprar e, como não tinha a dela, decidi comprar qualquer outra, mas fui advertido pela dona da loja de que teria que ser da mesma ração.

Fui a outra loja, bem mais longe, e lá também não tinha a tal ração. Pedi a meu neto que a comprasse num pet shop do Humaitá, bairro onde ele mora, e nada, lá também não havia. Desesperado, liguei para Adriana que, imediatamente, me fez chegar aqui em casa dois pacotes com a raríssima ração que a gatinha comia. Respirei, aliviado.

Depois aprendi que para evitar que ela morra de fome, no caso de faltar sua ração exclusiva, há que ter em casa uma ração parecida e ir misturando à sua até que se acostume. Coisas de gatos modernos, muito diferentes daqueles que, outrora, vagabundeavam aqui pelos telhados e pela rua.

Mas, se mudou a ração, não mudou a razão que me fez adotá-la como minha companheira de todas as horas, que me acorda, pontualmente, às seis horas da manhã, vindo cheirar meu rosto sob o lençol. E agora a vejo, ali, a poucos metros de mim, deitada na poltrona, livre da morte, nesta tarde de março, num determinado ponto da Via Láctea, onde moramos.

Sono de criança - FABRÍCIO CARPINEJAR

ZERO HORA - 09/03

Quando criança, errar é poesia. Quando adulto, errar é malandragem.

Não deveria ter crescido. Porque cresci sem mudar. As pessoas é que mudaram seu olhar sobre meu temperamento. Não sou perdoado por falhas, lapsos, gafes.

Antes era engraçado, hoje sou irresponsável. Antes era distraído, hoje sou preguiçoso. Antes era charmoso, hoje sou idiota.

Você não tem ideia do esforço que faço todo dia para ser adulto.

Tomo café de propósito, e não Nescau, que adoro, para não me entregar.

Nos anos 80, ainda em meus dez anos, recebia a tarefa de comprar coisas que faltavam para o jantar no armazém.

Não anotava o que minha mãe queria. Buscava memorizar, e me atrapalhava.

Não foram poucas as vezes em que ela solicitava pêssego e pegava abacaxi, ela esperava por mostarda e trazia catchup, ela aguardava por salsinha e surgia com alface.

As palavras formam vizinhanças estranhas em minha cabeça.

Num finzinho de tarde, parei novamente na frente do balcão com a missão de levar pão e doces, já que tínhamos visita.

A balconista me encarava enquanto eu resgatava, dos longínquos sons da memória, a encomenda materna. A fila atrás impacientava a atendente, suas sobrancelhas subiam à touca.

Lembrei de cara do pão de 1/2. Mas e o doce? Qual era o doce? Recordava que havia merengue na receita, mas não vinha o nome. Nem existia uma vitrine para apontar:

— É este!

Na ânsia de resolver, falei alto:

— Me dá um bocejo?

A moça, intrigada, rebateu a esquisitice:

— O quê?

— Me dá 300 gramas de bocejo? — especifiquei.

— Bocejo, meu filho? — ela questionou, para logo completar. — Tenho sono, só que não posso bocejar para ti agora, estou trabalhando.

As pessoas na minha cola começaram a rir. Mas rir ajudando, rir acolhendo, rir me amparando.

— Não seria sonho?

— Não, não, não.

— Não seria papo de anjo?

— Não, não, não.

Dez minutos depois, Zé, o dono do lugar, gritou do fundo dos corredores:

— Não seria suspiro? A Dona Maria adora suspiro.

— Sim, sim, sim! Suspiro!

Fiquei conhecido na infância como o piá que desejava comprar bocejo no armazém.

Pedi bocejo, saí suspirando.

Naquele tempo, enganar-se não era crime. Era licença poética.

Coça-coça - LUIS FERNANDO VERISSIMO

O Estado de S.Paulo - 09/03

Ele: - Me coça atrás?

Ela: - Aqui?

- Um pouco mais pra direita.

- Aqui?

- Para a direita. Para a direita!

- Calma. Aqui?

- Aí, aí. Um pouco mais pra cima.

- Assim?

- Aí!

- Pronto.

- Agora um centímetro pra baixo.

- Você acha que eu não tenho mais o que fazer?

- Benzinho, só mais um pouquinho.

- Tá bom... Assim?

- Pra cima!

- Não precisa gritar.

- Eu não estou gritando. É que você...Aí. Bem aí. Agora coça.

- Assim?

- Aaahn... Sim, sim...Maravilha...

- Chegou?

- Não. Mais um pouquinho.

- Chegou.

- Não para. Você não sabe que este é o momento de maior intimidade de um casal? Mais do que o sexo, mais do que tudo? A fêmea coçando as costas do macho. Não é bonito isso?

- E o macho coçando as costas da fêmea?

- Também é bonito. Menos comum, mas bonito. Não para! E tem sido assim desde sempre. Desde a pré-história. Nós ainda éramos macacos e um coçava as costas do outro. As fêmeas catavam piolhos no pelo dos machos - e comiam os piolhos! Não é lindo? Comiam os piolhos. Isso é que é amor. E você ainda se queixa porque eu só peço para você me coçar as costas. Não estou pedindo que cate piolhos. Coçar as costas do parceiro ou da parceira foi o primeiro gesto de solidariedade e empatia do mundo. A civilização partiu daí. Mais pra cima um pouquinho. Aí, aí! Deus não criou Eva para que Adão tivesse companhia no jantar e os dois eventualmente procriassem. Deis criou Eva para coçar as costas de Adão.

- Chega.

- Só mais um pouquinho. A estabilidade de um casamento pode depender da disposição da mulher para coçar as costas do marido. Para catar os seus piolhos, metaforicamente falando.

- Vem com essa...

- Você não acredita? Sei de homens que recorrem a amantes para coçar suas costas. Tem sexo com a mulher mas procuram uma intimidade maior com amantes que cocem as suas costas. Na prospecção de possíveis amantes, o que mais conta para o homem não é a beleza do rosto ou das formas, é o comprimento das unhas. Sabia? Não para! A recusa da mulher a coçar as costas do marido é motivo para divórcio em qualquer tribo ou sociedade avançada do pla... Mais para a direita!

- Sabe de uma coisa? Vá arranjar outra para coçar as suas costas. Pode arranjar. Só não traga para dentro de casa.

- Benzinho...

- Pra mim, chegou!

Rescaldos de Momo - JOÃO UBALDO RIBEIRO

O GLOBO - 09/03

Sic transit gloria, assim passa a glória. E a paisagem é indiferente; testemunha tudo, mas não conta nada. É o que ocorre a quem vê agora o boteco sossegado e quase silencioso, três ou quatro fregueses tamborilando nas mesas e olhando para o espaço, a televisão vagamente ligada num programa que ninguém sabe qual é, as fileiras de garrafas com um ar comportado de ponto facultativo, um pernil entediado exposto no balcão de vidro. E, no entanto, não faz bem pouco tempo que, como todos os anos, este mesmo recinto modorrento foi palco de inúmeros eventos notáveis, cuja maioria até ignoro, de tão farta a coleção. Vai-se sabendo aos poucos, à medida que mentes ressaqueadas e atacadas de uma das muitas formas de amnésia que assaltam os cérebros alcoolizados se recuperam e passam a rememorar o temido passado.

O dr. Amoroso, renomado facultativo por todos tido em alta conta, faz do bloco objeto de várias de suas pesquisas científicas. Não deixa de ser mais um mártir da ciência, porque as pesquisas frequentemente o levam a frequentar a boemia, o que é muito mal interpretado por uma minoria invejosa. Mas ele encara tudo isso com coragem, dedicação à investigação científica e desprendimento e hoje dispõe de uma base de dados invejável. Esse mesmo dito latino que eu citei tinha sido, fazia poucos anos, objeto de um desastroso equívoco, porque, depois de ouvi-lo repetido, um certo Moreira, que nunca mais dera as caras por ali, entendeu que era uma dica de cocheira a respeito de uma determinada Maria da Glória, que também costumava frequentar o estabelecimento. “Essa Glória transa”, entendeu Moreira ao ouvir o ditado e, confiando cegamente no informante, partiu para a ação, só que a Glória não transava, ou pelo menos não transava com o Moreira — e foi um dia em que a casa foi quase inteiramente destruída, enquanto a Glória demonstrava ao Moreira sua posição quanto ao problema.

— É um belo estudo de caso — disse o dr. Amoroso. — Mas eu preciso de um sociólogo para me ajudar na minha tese de que, no carnaval, a única coisa em que as pessoas pensam é sexo, mesmo quando estão bebendo para esquecer o sexo. Nesse caso, eu tive de dedicar o tempo todo a consertar a cara do Moreira.

O restante do vasto corpo médico da casa se dedicou às tarefas habituais. Explicar o uso de todas as marcas de — esqueci agora os eufemismos — remédios para conseguir ereção, com especificações detalhadas. Explicar as consequências de todas as misturas de bebidas concebíveis, inclusive cerveja com guaraná e gim com cachaça. Explicar o que é coma alcoólico e se quem entra em coma alcoólico pode ser cremado por engano. Explicar se é verdade que inúmeros velhotes morrem estrebuchados, quando vão com muito entusiasmo aos dares-e-tomares, especialmente na companhia de fogosas jovens de cinquenta. Esmiuçar pormenores escabrosos sobre o “boa noite, Cinderela". Confirmar que elas se queixam de que a juventude masculina de hoje em dia não está com nada e elas preferem os coroas, pois nessa geração não tem mais homem como antigamente. Dar pareceres negativos sobre o que o companheiro de mesa está sentindo é infarto ou AVC. E, finalmente, comparecer à tarefa que invariavelmente cumprem em massa, com maior empenho no carnaval, ou seja, avaliar as muitas virtudes das moças e senhoras que desfilam pela calçada. Dr. Amoroso, compondo sonetos e elegias, sempre capitaneia esse pelotão, mas ainda não me ficou muito claro como isto se encaixa em suas pesquisas.

Dick Primavera não apareceu durante os festejos. Desde o início, o movimento feminino em torno do lugar que ele costumeiramente ocupa era acentuado, chegando a causar pequenos tumultos passageiros. Mas ele havia zarpado, em seu veleiro intercontinental, num cruzeiro em local ignorado, de onde só voltaria bem mais tarde. Contudo, sempre atento aos compromissos e à preservação de sua imagem, estabeleceu o SOS Coração Partido, em que as mais aflitas recebiam notícias recentes dele, bem como um número 0800, através do qual as telefonadoras poderiam deixar seus endereços, para receberem em casa uma carta dele impressa e personalizada, com foto romântica e asseverando amor perene. Está previsto um comitê de recepção para seu regresso ao boteco, mas parece que pouquíssimos homens serão convidados.

Nenhum desses sucessos, contudo, poderia ser suspeitado, entre as paredes quietas do boteco e suas mesas somente agora sendo ocupadas por fregueses mais antigos. Amadeu chega, com suas palavras cruzadas. Greg Belga também chega, bebe três chopes em dezoito segundos e se queda meditabundo, olhando para a rua. O senhor que sempre bebe uma cachacinha e um chope e depois vai embora, mira em frente, praticamente para lugar nenhum. O que sempre encomenda uma quentinha cochicha seu pedido ao pessoal do balcão. E assim começava e prometia terminar o dia, quando de longe aponta uma bicicleta elétrica de última geração e dela apeia o comandante Borges. Talvez agora as coisas mudassem, algo viesse sacudir aquele marasmo.

Mas o comandante não estampava a habitual catadura belicosa. Pelo contrário, sorriu para os presentes, comentou como fazia um belo dia. E, depois de abancar-se, disse ainda que seria também um belo ano, porque ele iria descansar. Havia levado tempo para perceber o óbvio. Nem depois do carnaval este ano vai começar, só depois da Semana Santa. Mas aí vem a Copa e o ano não chega a começar. Acaba a Copa, vêm as eleições e o ano ainda não começa. Acabam as eleições e o ano também acaba, sem ter nem começado.

— Com o que está aí, menos um ano vai ser um alívio — disse ele. — A única coisa boa que o governo fez.

A mula manca - LUIS FERNANDO VERISSIMO

O GLOBO - 09/03

O que dizer da Maria Sapatão, que de dia era Maria e de noite era João? Cantava-se tudo isso sem medo de reprimenda



“Sassaricando”, o musical das marchinhas de carnaval reunidas por Rosa Maria Araújo e Sérgio Cabral (rima intencional), continua um sucesso e ainda não entrou em recesso (outra!). É um espetáculo para ser visto mais de uma vez, que eu mesmo vi três (outra!). Incluindo a versão infantil, linda, com a Lucinda (chega). Além da boa música, bem interpretada, “Sassaricando” é um tratado sociológico involuntário, o retrato de um certo Brasil — o Brasil de antes do duplo sentido. A não ser para quem vê algum tipo e alusão erótica na perna de pau do pirata — e, claro, no próprio verbo “sassaricar” — todas as marchinhas de antigamente são de uma inocência límpida. O que não falta em muitas delas é o que hoje se chamaria de incorreção política. Uma declara que a única coisa a fazer com mulher feia é matá-la, uma espécie de eutanásia que, supostamente, qualquer delegado ou juiz da época entenderia. Várias outras fazem a apologia da bebida em excesso e brincam com o vicio do alcoolismo, glorificando a danada da cachaça, que ninguém quer que lhe falte. A homofobia entrou no mundo das marchinhas antes de o termo se tornar conhecido: a cabeleira do Zezé só podia significar uma coisa, visto que ele não era nem bossa nova nem Maomé. Que cortassem o cabelo do veado. E o que dizer da Maria Sapatão, que de dia era Maria e de noite era João? Cantava-se tudo isso sem medo de reprimenda ou revide. Que ninguém, naquele Brasil, entenderia.

Não sei quando a inocência começou a acabar. A Rosa Maria e o Sérgio preferiram não incluir, que eu me lembre, nenhum exemplo da transformação. Talvez ela tenha começado com a “Indio quer apito”, uma anedota musicada sobre o que o índio exigia da madame com incontinência flatulosa. Não sei se antes ou depois apareceu uma marchinha que dizia “Não importa que a mula manque, o que eu quero é rosetar”. Foi a música mais cantada do carnaval de não me pergunte quando. O que queria dizer a mula manca? E, especialmente, o que era “rosetar”? Recorrer ao dicionário não adiantava. O Aurélio dizia que “roseta” era um tipo de espora. O “rosetar” da música seria, então, usar as esporas nos flancos, presumivelmente da mula manca, para fazê-la andar. Uma explicação que não satisfazia. Que estranha ambição seria aquela, de impelir um pobre animal claudicante com esporas? Mas “arrá”, diziam os mais sabidos. Quem não entendia o que era “rosetar” ainda não tinha vivido. O que a marchinha significava era que nada, nem uma “mula manca” — duplos sentidos à vontade — impediria que a partir de então se rosetasse sem parar no país. Há quem date daí o nascimento do Brasil moderno.

Saudades - CAETANO VELOSO

O GLOBO - 09/03

Estar a pé entre os foliões é situação propriamente carnavalesca, pela qual já nem esperava este ano, e que ainda não tinha experimentado no renascente carnaval de rua carioca


Muito estimulante a experiência de entrar num bloco na Cinelândia. Isso é coisa que não me acontece desde 1956. Fiquei meio resfriado e tinha desistido de brincar carnaval. Vi blocos passarem na praia do Leblon e nas ruas de Ipanema. Fiquei horas parado entre a Vinicius e a Farme, dirigindo, e, ao contrário do que acontece em engarrafamentos de meio de ano, não me irritei. Olhar as pessoas no carnaval, os esboços de fantasias, a leve embriaguez (na maioria era mesmo muito leve), os beijos que não são propriamente roubados, tudo me interessava e muitas vezes comovia. Mas estar a pé entre os foliões é situação propriamente carnavalesca, pela qual já nem esperava este ano, e que ainda não tinha experimentado no renascente carnaval de rua carioca. O fato de estar na frente do Cine Odeon aumentava minha emoção. É lugar do começo de minha adolescência. Ri muito por, num primeiro momento, parecer-me que eu estava em Salvador, no Bloco dos Mascarados, que Margareth Menezes puxou por tantos anos. Esse bloco carioca, chamado Viemos do Egito, estava, por algum motivo que não entendi, desencontrado de sua banda, o que o limitava a usar música gravada. Um carrinho de som, do tamanho da berlinda do Círio de Nazaré (mas não erguido tão alto), começou a tocar “O canto da cidade”, na gravação antológica de Daniela Mercury. Eu repetia, rindo, “A cor dessa cidade sou eu”, e confirmava: estou na Bahia! A galera cantava junto.

Toda uma densidade da história recente (e já nem tão recente) do carnaval brasileiro passava pela minha cabeça. A essência de ser de rua do carnaval; a lembrança dos trios elétricos — os donos da rua já em 1960 e desde 1950 — sendo, no entanto, as únicas entidades carnavalescas a não terem corda, diferentemente das escolas de samba, das grande sociedades, dos afoxés e dos blocos com banda de metais; o extraordinário crescimento da indústria da axé music, com suas centenas de profissionais pontuais e competentíssimos, de cantores a motoristas especializados, de empresários a técnicos de som; o vasto repertório moderno baiano de canções propriamente carnavalescas (o qual merece mais de uma antologia); a construção do Sambódromo, tão polêmica no começo; a organização do carnaval do Recife partindo de pressupostos que se opunham ao que tinha acontecido em Salvador, onde o empreendedorismo de gosto capitalista predomina; a volta às ruas da juventude carioca.

As semelhanças com o carnaval baiano foram, na Cinelândia, pouco a pouco sendo desmentidas por observações de Duda, um amigo meu de Salvador que passava carnaval no Rio pela primeira vez. Não era tanto o fato de não haver corda: muitos blocos soteropolitanos não têm. Era principalmente a ausência de conhecimento prévio do itinerário a ser seguido e, gritante, a inexistência de policiais patrulhando. Com algumas gravações de Carmen Miranda e de grupos de forró, o Viemos do Egito se moveu da Cinelândia em direção ao Aterro, guinando para a Lapa ou a Glória. Voltei para casa antes de ver aonde o bloco chegaria. Mas vi bem o quanto ele era pacífico e doce. Muitos beijos entre pessoas que podiam ter chegado juntas ou encontrado umas às outras ali e naquele momento. Nenhuma das canções que saíam da berlinda foi tão cantada pela pequena multidão quanto “O canto da cidade”. Isso me fez chegar em casa com um restinho de gosto de Bahia. Mas com uma sensação profunda de ter estado imerso em realidade muito outra.

Faz anos, passei um carnaval no Rio justamente para não brincar. No domingo, fui ver uma exposição no CCBB com Antonio Cicero e Marcelo Pies. Ao sairmos dali, percebi que havia certa movimentação na esquina da Rio Branco. Nostálgico de minha puberdade (e sempre com saudades do carnaval), pedi aos meus amigos que me esperassem: eu queria só dar uma olhada na avenida. Para minha surpresa, ela não estava meio vazia, ocupada apenas por pais de família de bermudas mostrando quase nada a suas crianças, como vi, assombrado, acontecer nos anos 1980. Havia muita gente e blocos, batuques e cantos. Meu coração bateu. Voltei para o Arpoador, onde estava morando. Vi que a Praia de Ipanema estava cheia de gente. Pedi a meus amigos para irem olhar comigo. Nenhum bloco mais tocando, mas restos de multidão, alegre sujeira nas calçadas, vendedores no meio do asfalto, beijos. Fiquei certo de que o carnaval de rua do Rio estava renascendo e que a prefeitura ainda não tinha visto. Torci. Agora, gigantismo, relativo descontrole — e o nó da greve dos garis. Mas o mero fato de o carnaval carioca, nosso carnaval central, estar de volta às ruas, para além das cordas de concreto da Sapucaí, é enormemente significativo para mim.

O esperado - FRANCISCO BORBA RIBEIRO NETO

GAZETA DO POVO - 09/03

Ele teria sido eleito para realizar uma “faxina no Vaticano” e “colocar as coisas nos eixos”, para usar expressões coloquiais que são tão queridas por ele próprio. Mas o papa Francisco acabou se revelando muito mais.

No primeiro aniversário de sua eleição, que comemoramos na próxima quinta-feira, a coisa mais evidente para qualquer analista é que Bergoglio era “o esperado” – aquele por quem todos anseiam, ainda que não se deem conta até o encontrarem. O homem mais comentado pela mídia internacional em 2013 (eleito personalidade do ano até por uma revista gay), que foi a maior barreira à ação militar dos EUA na Síria, ultrapassou em muito – como fenômeno cultural – os muros de sua própria Igreja.

Num mundo em crise, que carece desesperadamente de líderes políticos e referências éticas, Francisco tornou-se rapidamente o sinal de que “algo novo é possível”, não só no campo religioso, mas também no político e econômico. Religiosos e não religiosos se apegaram a ele não apenas como sinal de renovação na Igreja Católica, mas como sinal de uma liderança capaz de amar realmente as pessoas.

Na Bíblia se diz que “o amor é mais forte que a morte”, mas toda a racionalidade política ocidental desde Maquiavel foi construída negando esta afirmação. O mundo é regido por vontades e poderes, e tudo o mais é artifício ideológico visando encobrir a dominação.

Mas a própria realidade foi mostrando que a vida, os relacionamentos, até mesmo a política, não podem ser reduzidos a isso. As pessoas sentem que é necessário que exista alguma coisa a mais, é necessário que em algum lugar possa existir amor e esperança, para que a vida possa ser humana, possa ser vivida.

Onde encontrar este amor e esta esperança, onde encontrar este respiro de humanidade nos calabouços do individualismo e dos jogos de poder? O mundo espera sempre pela resposta a esta pergunta, e Francisco tornou-a palpável.

Com seu exemplo, o papa atual vai mostrando que é possível viver numa postura de doação e de amor ao outro. E nos faz perceber o quanto precisamos estar perto de alguém assim, de quanto até mesmo almejamos ser assim para sermos mais felizes.

Sem dúvida a grande novidade de Francisco se deve a sua capacidade de comunicação. Suas palavras não são tão novas assim; representam o melhor de 20 séculos de doutrina católica. Mas com seus gestos conseguiu dar a esta mensagem uma força e uma credibilidade como há muito não se via.

Hoje podemos imaginar que o cardeal Bergoglio causou um impacto semelhante em seus colegas cardeais no conclave em que foi eleito papa. E isso permite entender melhor “o método” que a Igreja (ou a Providência, para os que têm fé) escolheu para esta reforma atual.

Papa Francisco não está mudando a Igreja porque é um grande administrador ou porque tenha demonstrado uma sagacidade política particular. Suas medidas de caráter administrativo estão vindo lentamente e terão impacto, sem dúvida, mas um impacto muito menor que aquele gerado por sua própria pessoa. O caminho da mudança vem com o anúncio renovado do “poder do amor”, que se liberta de suas deturpações piegas ou de suas armadilhas individualistas.

“O futuro a Deus pertence”, dizemos, mas o papa Francisco já deixou sua marca nos destinos da Igreja e do mundo. A única questão é saber até que ponto seu exemplo encontrará eco no coração das pessoas, tanto dentro quanto fora da Igreja.

Superministérios tucanos - ILIMAR FRANCO


O GLOBO - 09/03

O PSDB está propondo no programa de governo de Aécio Neves a presidente a criação de dois superministérios, que ficariam responsáveis pela gestão dos demais. O Ministério de Desenvolvimento Econômico, que não existe hoje, abrigaria Planejamento, Fazenda, Indústria e Comércio. O de Desenvolvimento Social ficaria com a gestão da Saúde e da Educação.

Empurrando com a barriga
Grupo de diplomatas está cobrando do Itamaraty a conclusão do processo administrativo contra o embaixador Américo Fontenelle, afastado do cargo de cônsul-geral do Brasil em Sydney por praticar assédio moral contra os funcionários. O processo administrativo foi prorrogado três vezes e já dura sete meses. A reclamação feita em ofício à Corregedoria do Serviço do Exterior do Ministério de Relações Exteriores foi protocolada dia 18 de fevereiro e deu prazo de dez dias para esclarecimentos sobre a demora. Não houve resposta. O Sindicato de Servidores do Itamaraty entrou com mais um pedido de informações e cobra “respeito” da Corregedoria.




"Sou vítima de fogo amigo. Nada é do meu mandato e de minha gestão".
Manoel Dias Ministro do Trabalho, sobre investigação da PF para apurar esquema de contratação de funcionários-fantasmas

Programa prevê corte e reforma
O Ministério de Desenvolvimento Econômico foi criado no governo Collor e depois extinto. Um dos coordenadores do programa de governo tucano, o deputado Eduardo Barbosa (MG) detalha que há previsão de corte dos atuais 37 ministérios. Aécio Neves pediu que conste do programa reforma tributária no 1º ano de governo caso seja eleito.

Operação Tabajara
O governo prometeu, mas não editou portaria com os valores das diárias dos policiais federais que atuarão na Copa do Mundo.
O valor atual está defasado: varia de R$ 124 a R$ 225 para comida e acomodação, a depender da cidade.

Preteridas
A ministra Ideli Salvatti e a exdeputada Angela Amin (PP) são as mais bem colocadas em Santa Catarina para a disputa ao Senado, com percentuais que variam de 18% a 30%, mas não têm aval de seus partidos para concorrerem ao cargo. Pelo PT, deve disputar Cláudio Vignatti; e, pelo PP, Joares Ponticelli, ambos com índices entre 5% e 8%.

Poder da caneta
A presidente Dilma nomeará até o fim de sua gestão cinco ministros do STJ. Eliana Calmon se aposentou em 2013, e sua vaga está aberta. Saem até outubro Gilson Dipp, Ari Pargendler, Arnaldo Esteves Lima e Sidnei Beneti.

Inovando
O ministro Aloizio Mercadante pediu o envio de lista tríplice ao seu gabinete para decidir a indicação de secretários executivos de outros órgãos. Avisada por ministro que ficou ofendido, a presidente Dilma desautorizou a ideia.

Campanha aberta
A definição dos petistas nas comissões da Câmara passou pela campanha em curso do vice-presidente André Vargas (PT-PR) à presidência da Casa. Ele já está arregimentando aliados para disputar contra o PMDB.

EDUARDO CAMPOS gostaria de deixar o governo de Pernambuco com sinalização de Marina Silva de que ela será sua vice. Até agora, nenhuma palavra.

À mesa com o PIB - VERA MAGALHÃES - PAINEL


FOLHA DE SP - 09/03

Num gesto para acalmar o empresariado, que intensificou as críticas a Dilma Rousseff, Guido Mantega (Fazenda) convidou 17 pesos-pesados do PIB para almoço em São Paulo na terça-feira. O ministro pretende ouvir mais do que falar. Em vez de exibir números, dará a palavra a cada um dos presentes para críticas e sugestões sobre a condução da economia. A lista inclui nomes como Benjamin Steinbruch (CSN), Murilo Ferreira (Vale), Jorge Gerdau Johanpeter e Raul Calfat (Votorantim).

Argamassa Estarão presentes ainda representantes de Odebrecht, Andrade Gutierrez, OAS e Camargo Correa, quatro das principais empreiteiras do país. O setor concentra críticas a Dilma Rousseff e abriga defensores da tese do ªvolta Lulaº.

Time O almoço, que será na sede do Banco do Brasil, na avenida Paulista, também reunirá expoentes dos ªcampeões nacionaisº, que obtiveram incentivos do BNDES no governo Lula para expandir seus negócios, como Marcos Jank, da Brasil Foods, e Joesley Batista, do grupo JBS.

Imersão Mantega já inicia amanhã sua agenda de aproximação com o setor produtivo: receberá a diretoria da Anfavea, também em São Paulo. Na quarta, será a vez de ouvir os principais representantes do varejo. Na semana que vem, o ministro terá um encontro com os bancos.

Vai Em seminário sexta-feira, o presidente do PT, Rui Falcão, reproduziu duas frases que costuma ouvir de Lula sobre um possível retorno em 2018. A primeira: ªSe me aborrecerem muito, eu voltoº. Falcão fez a ressalva de que amenizara o vocabulário.

Não vai Quando quer negar a possibilidade de disputar de novo a Presidência, segundo o dirigente petista, Lula costuma se comparar ao ex-piloto Michael Schumacher: ªNão posso fazer igual a ele, que foi sete vezes campeão, mas, na volta, não fez sequer uma pole positionº.

Gravando! A pressa do PSB por formalizar a chapa de Eduardo Campos e Marina Silva, com a tradicional imagem dos dois juntos, com os braços erguidos, é usar a informação de que a ex-senadora será vice do candidato à Presidência no programa de TV da sigla, no dia 27.

Da paz Partidos que decidiram se retirar do "blocão" de deputados insatisfeitos, como o PP e o PDT, se comprometeram a não impor derrotas ao governo nas votações desta semana.

Dominado Por isso, o Planalto não enxerga riscos de aprovação da comissão externa que investigaria negócios feitos pela Petrobras, articulada pelo grupo ligado a Eduardo Cunha (PMDB-RJ).

É nosso Parlamentares do PMDB definiram nova forma de pressionar o governo, em desagravo ao líder do partido, eleito "inimigo número um" pelo Planalto depois que elevou o tom dos ataques ao PT, após o Carnaval.

R.S.V.P. O grupo do líder peemedebista diz ter força suficiente para que sejam aprovados nas comissões da Câmara pedidos de convocação de ministros de Dilma.

Logo ali Petistas e peemedebistas identificaram elemento extra na crise entre os dois partidos: a antecipação da disputa pela presidência da Câmara, em 2015. Deputados enxergam movimentação de André Vargas (PT-PR) para comandar a Casa e reação da cúpula do PMDB.

Todos por um A bancada do PMDB na Câmara chegou a sugerir nos bastidores que Vital do Rêgo (PMDB-PB) não aceite o convite para assumir o Ministério do Turismo. Apesar disso, os próprios deputados duvidam que o senador vá recusar o convite.

Tiroteio

Dilma desmontou o setor elétrico com a MP 579, e não por falta de aviso. Agora o contribuinte que pague a conta do remendo.
DE ELENA LANDAU, consultora do setor elétrico, sobre o governo socorrer as distribuidoras de energia para arcarem com custo extra das termelétricas.

Contraponto


Bate-pronto

Ao chamar Romário (PSB-RJ) para discursar, Vitor Penido (DEM-MG) equivocou-se ao tratá-lo por vascaíno.
- Presidente, só para fazer uma correção: apesar de ter um grande carinho e respeito pelo Vasco, meu time de coração é o América -registrou Romário.
- Desculpe-me. Falei porque sou vascaíno -justificou, ao que foi interrompido por Mandetta (DEM-MS).
- E o meu Botafogo, deputado Romário?
- V. Exa. também tem bom gosto, tenho muito carinho pelo Botafogo, até porque foi o time em que eu mais fiz gols na minha carreira -provocou, arrancando risos.

De índios e petróleo DENISE ROTHENBURG


CORREIO BRAZILIENSE - 09/03

Ainda que resolva hoje alguma partícula de seus problemas com o PMDB, a presidente Dilma Rousseff não terá tranquilidade no Congresso, onde até os índios ameaçam o governo. Três caciques de tribos de Santa Catarina, Mato Grosso e Rondônia procuraram a Frente Parlamentar de Agricultura e Agropecuária para mudar a política indigenista brasileira. Querem ter liberdade para entrar no mundo dos negócios como qualquer outro brasileiro nato.

A ideia é tratar desse tema na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, enquanto, no plenário, a batalha ficará por conta do Marco Civil da Internet. Para completar o bolo, vem mais uma investida da oposição em prol da comissão externa para fiscalizar a Petrobras. Juntando esses problemas com a crise na área de energia — na qual não está descartado um novo aumento de tarifa — é confusão para mais de metro marcando a abertura política do ano eleitoral.

Coerência jurídica

Pelo visto, é certo que o voto do ministro José Antônio Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), será a favor de que o processo contra o ex-deputado Eduardo Azeredo (PSDB-MG) volte para as instâncias inferiores. Afinal, Toffoli foi rápido no gatilho ao remeter o processo contra o ex-ministro de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior Fernando Pimentel (PT) de volta à primeira instância, porque ele deixou o cargo. Informação política jurídica: Dias Toffoli foi o último ministro indicado ao Supremo pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Sinais
A simetria das ações entre o senador Aécio Neves e o governador de Pernambuco, Eduardo Campos, tirou todas as dúvidas sobre a união deles num possível segundo turno na eleição presidencial. Em solo pernambucano, o PSDB fechou com o PSB, assim como em Minas Gerais, o PSB fechará com os tucanos. Para Lula e Dilma, esses movimentos mostram que o PT pode perder as esperanças de ver Eduardo de volta à base lulo-dilmista.

Continhas
Os peemedebistas fizeram as contas e descobriram que Dilma Rousseff não consegue mais isolar o líder do PMDB na Câmara, Eduardo Cunha. Isso porque o parlamentar fluminense tem total apoio da bancada e quase 200 votos na convenção do partido que analisará a hipótese de desembarque do governo. Para tirar esse poder, só mesmo se vier um ministro do partido mais forte do que Cunha para atrair os deputados.

PT deu “chapéu”
O PMDB, que se sente escanteado na reforma ministerial, percebeu agora que faz figuração na área de telecomunicações. O mesmo PT, que fez do deputado Vicente Candido presidente da CCJ, acaba de guindar o conselheiro Jarbas Valente ao posto de vice-presidente da Anatel. Valente é ligado a João Rezende e ao ministro Paulo Bernardo. O conselheiro Marcelo Bechara, que era uma das esperanças do PMDB para a vaga, ficou a ver navios.

CURTIDAS

O périplo de Joaquim I
Joaquim Barbosa estava na última sexta-feira em Angola, depois de passar por Gana e Quênia, segundo ele, “para colher experiências”. Em Angola, assistiu à abertura do Ano Judicial e foi recebido à tarde pelo presidente José Eduardo dos Santos.

O périplo de Joaquim II
Como nos outros países, o ministro proferirá uma palestra, mas sem a presença da imprensa. Disse que a conversa é entre magistrados e se recusa a conceder entrevistas. Depois da polêmica provocada durante sua visita à Costa Rica, quando ele criticou a imprensa brasileira, classificando-a como uma certa inclinação de direita, ele prefere os jornalistas bem longe de suas palestras mundo afora.

Restam cinco
O senador Rodrigo Rollemberg (PSB-DF) fechou a candidatura ao GDF. Falta o mais difícil, aliados. Isso porque tem apenas quatro partidos fora das órbitas da reeleição de Agnelo Queiroz ou da dupla Arruda-Roriz: PDT, PSol, PPS, PSD e SDD. É por aí que ele buscará seus apoios.

Roaming
O deputado Eduardo Cunha passou o carnaval em... Veneza. E, a contar pelos tuítes que ele postou e os telefonemas que atendeu, os deputados que ficaram aqui imaginavam o líder sentado numa gôndola de celular e tablet em punho, em vez de se deixar levar pelos labirintos da cidade.

Angela Merkel, a mulher da hora - DORRIT HARAZIM

O GLOBO - 09/03

Para quem acompanha em sobressalto o agravamento do conflito na Ucrânia e seus sombrios desdobramentos geopolítico-militares, um consolo: poderia ser pior. Até 1991, quando se tornou independente da União Soviética, a Ucrânia tinha estocado em seu território o terceiro maior arsenal nuclear do mundo.

Muitas dessas armas estavam armazenadas justamente na Península da Crimeia. Vale lembrar que o desastre nuclear de Chernobyl, de 1986, ocorreu a menos de cem quilômetros de Kiev, berço das manifestações populares de novembro que desembocaram no confronto atual.

O cenário de agora também só não é mais crítico porque entre os negociadores das várias potências envolvidas no embate com a Rússia de Vladimir Putin há, felizmente, um estadista. Ou melhor, uma estadista.

Em meio à dezena de líderes mundiais convocados pelas circunstâncias a se posicionar diante da crise e a dimensionar suas sequelas, apenas a chanceler alemã Angela Merkel tem a estatura e a visão de História adequadas ao momento.

É a única a entender o que diz Putin, no sentido concreto e figurado — não apenas porque ambos falam fluentemente alemão e russo, podendo dispensar intérpretes, mas porque ambos têm a vida pessoal e a carreira política marcadas pela mesma fatia da história europeia da era soviética. Não importa que a vivência de cada um tenha sido em lados opostos.

Em seus nove anos como chanceler, Merkel aprendeu a conhecer o homem que serviu como oficial da KGB no país comunista onde ela cresceu, e que desde 1999 manda na Rússia, ora como presidente, ora como primeiro-ministro. Putin, por seu lado, aprendeu a respeitar essa filha de pastor luterano ao longo dos inúmeros encontros que já tiveram.

Testou-a logo na visita de estreia da alemã recém-empossada a Moscou. Para perplexidade dos diplomatas da comitiva da chanceler, o anfitrião presenteou a visitante com um insólito cãozinho pequinês preso a uma coleira curtíssima — inofensivo para a maioria das pessoas, porém desconcertante para quem sofre de cinofobia. Desde que fora mordida por um cachorro na infância, Merkel tem um medo absoluto de qualquer tipo de canino.

Apesar de estreante na cena mundial, a chanceler também deixou sua marca. Levantou assuntos cabeludos que nenhum de seus antecessores abordara com Putin, como a ameaça aos direitos humanos na Rússia e a garantia de fornecimento de energia para a Europa através do gasoduto da Ucrânia, que já naquele ano de 2006 sofrera um primeiro solavanco. A alemã também recebera durante uma hora, oficialmente, representantes de entidades russas de direitos civis.

Passado um ano e mais alguns encontros secundários depois, os dois voltam a se reunir. Desta vez em Bocharov Ruchei, palácio de verão de Putin em Sochi. E quem adentrou o majestoso salão atapetado junto com o anfitrião, para recepcionar a convidada? Koni, o imenso Labrador preto que o presidente russo gosta de apresentar como membro da família. Apesar de Koni ser de uma raça notoriamente dócil, a visão deve ter sido absolutamente aterrorizante para Angela Merkel. Para Putin, mestre da “diplomacia psicológica" aprendida na KGB, deve ter sido um deleite.

Quando os fotógrafos entraram no salão para o registro oficial de imagens do encontro, Koni rondava a cadeira em que a chanceler se mantinha sentada. No semblante, um exercício de controle de pânico.

Mas Merkel não piscou. Talvez tenha ganho ali o respeito do homem cujas intenções finais, para além da crise na Ucrânia, o mundo todo gostaria de adivinhar. Até porque, como já ensinou George Kennan, o mais celebrado intelectual-diplomata do século 20, “dependemos muito mais das intenções do que da capacidade do adversário, uma vez que sua influência resulta num problema político e psicológico, não militar”.

Além de capitanear a multifacetada União Europeia para uma posição comum em relação aos desdobramentos contínuos em Kiev, Moscou e agora na Crimeia, Angela Merkel é, no momento, o canal diplomático mais valioso entre Vladimir Putin e Barack Obama. Talvez seja ela a única pessoa com capacidade para interpretar de forma confiável as intenções de cada um — e mandar os necessários sinais de alerta ao outro.

Há muito tempo as duas superpotências da Guerra Fria não tinham visões tão díspares de um mesmo conflito.

Meses atrás atrás, durante uma entrevista para a revista “New Yorker", o presidente Obama comentou que os tempos da Guerra Fria eram outros e que nos dias atuais ele sequer precisava de um George Kennan.

Considerando-se que justo neste momento de alta toxicidade diplomática os Estados Unidos sequer têm um embaixador em Moscou (o posto está vago há três meses), não só Obama como o país precisaria e muito da expertise de alguns dos grandes pensadores americanos do pós Segunda Guerra.

Kennan, como se sabe, concebeu a estratégia do containment — a contenção global do comunismo por meios políticos, diplomáticos e ações de espionagem — em seu posto de embaixador adjunto na União Soviética, em 1946.

Encerrada a Guerra Fria, alertou contra os riscos de uma expansão da Otan em direção ao Leste europeu e contra qualquer iniciativa ocidental capaz de arranhar o orgulho da Rússia derrotada. Quando um assessor do então presidente Ronald Reagan lhe pediu conselho sobre como lidar com Mikhail Gorbachev, o novo chefe do Kremlin da era pós-soviética, Kennan ensinou que se tratava de um povo “em muitos aspectos inseguro que necessita de manifestações de respeito por seu prestígio".

Em 1994, aos 90 anos de idade (morreu com 101), referindo-se à política externa da Rússia, escreveu em seu diário que sete décadas de comunismo tinham distorcido uma grande civilização e que era necessário ter simpatia por “esse país tragicamente ferido e espiritualmente diminuído” para compreender seus movimentos erráticos no cenário internacional.

Angela Merkel assinaria embaixo. Putin talvez também.

Indústria e câmbio - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 09/03

Na semana passada, argumentei que há toda uma tradição do pensamento econômico que supõe que a especialização produtiva de uma economia é essencial para determinar as possibilidades de crescimento. 

Em nosso continente essa tradição se materializou na escola de pensamento da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), da ONU. A interpretação cepalina do desenvolvimento econômico afirma que a especialização das economias na produção de bens primários as condenaria à pobreza. 

A oferta excessiva de bens primários, fruto da especialização produtiva, levaria o preço de mercado desses bens a algo próximo de zero. A renda da economia, portanto, tenderia a pouco mais que na- da. Como afirmei, esse é o pesadelo cepalino. 

Assim, a política econômica deve privilegiar a diversificação produtiva. É necessário subsidiar o investimento em diversos setores, principalmente os mais dinâmicos, para a economia sair da armadilha da especialização em bens primários.

Há um problema lógico no argumento cepalino. A perda de termos de troca para o país, em razão da redução do preço dos bens primários, produzirá, em um regime de câmbio flutuante, desvalorização cambial. Esta, por sua vez, funciona como proteção natural à atividade produtiva local. Consequentemente, haverá diversificação produtiva e estímulo à produção de outros setores. É surpreendente que o pensamento da Cepal nunca tenha produzido resposta convincente a essa crítica. 

De qualquer forma, vários estudiosos na América Latina e no Brasil em especial foram convencidos pelos argumentos cepalinos. Para estes, a indústria de transformação tem papel de liderança no processo de desenvolvimento. 

Dois motivos justificam a importância da indústria. Primeiro, a indústria de transformação é capaz de gerar ganhos tecnológicos que transbordam para os demais setores. Essa característica justifica o papel de liderança do setor.

Segundo, a indústria de transformação gera empregos de melhor qualidade. Diferentemente dos serviços, que geram empregos com baixíssimos salários, ou do setor de bens primários, que produz estrutura muito concentrada de rendimentos --alguns poucos empregos com salários elevadíssimos e os demais empregos precários--, a indústria cria majoritariamente empregos com bons salários.

20 anos do Real: significado e futuro - PEDRO MALAN

O ESTADÃO - 09/03

Passados 20 anos, deitou raízes entre nós a percepção de que é obrigação de qualquer governo preservar a estabilidade do poder de compra da moeda do País. E vale lembrar, mais uma vez, que para os envolvidos com o Plano Real e sua consolidação o controle da inflação nunca foi um objetivo único, um fim em si mesmo, uma estação a que se chegasse, e pronto.

Para nós, a agenda brasileira pós-1994 seria a própria agenda do desenvolvimento econômico e social do País. O que o Real fez foi permitir que o Brasil, antes drogado pela inflação desmedida, pudesse descortinar de forma menos obscura a natureza e a dimensão dos outros (inúmeros) desafios por enfrentar. Procurando tornar-se um país capaz de crescer de forma sustentável, com inflação sob controle, mais justiça social, finanças públicas em ordem e maior eficiência nos setores público e privado.

Como sabemos, 20 anos são pouco para a magnitude dessa empreitada. E também que a capacidade que têm governos (e sociedades) de identificar desafios, riscos e oportunidades depende da qualidade do seu entendimento sobre o seu passado. É difícil que alguém saiba para onde vai (ou pode ir, ou gostaria de ir) se não sabe de onde veio, como veio e como se encontra agora.

E o que temos agora? Temos hoje cerca de 20 anos de inflação relativamente civilizada desde o lançamento do Real. Não é coisa pouca para um país que foi recordista mundial de inflação acumulada nos 30 anos do início dos anos 1960 ao início dos 1990. Temos hoje mais de 20 anos desde que restabelecemos o nosso relacionamento com a comunidade financeira internacional, renegociando nossa dívida externa pública com credores privados e oficiais.

Temos hoje mais de 20 anos desde que demos um salto qualitativo e quantitativo no processo de abertura de nossa economia ao comércio internacional. Temos hoje bem mais de 20 anos desde que iniciamos o processo de privatização/concessão no Brasil, infelizmente interrompido durante longo tempo e só recentemente retomado. Temos mais de 20 anos de autonomia operacional do Banco Central na condução da política monetária - e existe hoje uma percepção mais ampla de quão fundamental para o País é preservar a credibilidade dessa instituição.

Passaram-se 17 anos desde que resolvemos problemas de liquidez e de solvência bancária, tanto no setor público quanto no setor privado - e desde então nunca mais tivemos problemas sérios em grandes bancos. Temos mais 15 anos, feitos em janeiro de 2014, de um regime de taxa de câmbio flutuante. Teremos, em junho agora, 15 anos do regime monetário de metas de inflação. Temos quase 14 anos desde que, em maio de 2000, foi aprovada a crucial Lei de Responsabilidade Fiscal.

Temos 13 anos decorridos desde o início dos processos de transferência direta de renda para as populações mais pobres do País por meio dos vários programas que foram criados a partir do ano de 2001- consolidados e ampliados pelo governo Lula a partir de outubro de 2003. Como é sabido, qualquer governo em qualquer parte do mundo constrói, sim, sobre avanços alcançados pelo país na vigência de administrações anteriores. O Brasil não é exceção a essa regra. Olhando os últimos 20 anos, há elementos de continuidade e de mudança, assim como há acertos e erros em todos os governos.

Mirando à frente, deveria ser possível, com um mínimo de boa-fé, honestidade intelectual e de recusa ao uso de rotulagens vazias, buscar construir as convergências possíveis (ou clarificar diferenças de forma honesta) pensando na próxima geração. A seguir, apenas dois exemplos de questões sobre as quais um debate sério me parece inadiável, para um país que pretende, e pode, mostrar que é capaz de escapar da chamada "armadilha da renda média", que aqui ainda é cerca de um quarto da renda média atual dos principais países desenvolvidos.

O Brasil tem hoje a quarta maior população urbana do mundo. E esta aumentou em mais de 150 milhões de pessoas nos últimos 60 anos. Nossas carências sociais e de infraestrutura urbana são enormes e se expressam sob a forma de demandas por mais e melhor saúde, educação, emprego e renda e por mais e melhor infraestrutura de transporte, energia e saneamento. Que são tidas, todas, como altamente "intensivas em Estado". Que para tal precisaria tributar, endividar-se e gastar ou transferir os recursos assim obtidos - sempre escassos em relação às demandas e expectativas. Nosso futuro depende de mais clareza nessa discussão - e sobre prioridades no uso de recursos escassos. Há prioridades que estimulam maior crescimento, outras que o inibem. A questão não é sobre a necessidade de Estado, mas sobre a forma como governos específicos atuam.

O outro desafio vem da extraordinária velocidade de transcrição demográfica no Brasil. A população brasileira, que crescia a 3,1% ao ano na década de 1950 e a 2,4% no início dos anos 80, está crescendo a 0,7% ao ano nesta década. Na qual a faixa etária até 29 anos está diminuindo. A faixa até 39 anos diminuirá na próxima década, quando a população estará crescendo a 0,44% ao ano. Como escreveu Fabio Giambiagi, esse é "um desafio cujas dimensões ainda não foram percebidas pela opinião publica - e, o que é mais grave, nem pelo governo".

Os efeitos dessa transição já se fazem sentir hoje na oferta de mão de obra e na população ocupada. A partir de agora, o crescimento da população ativa "garante" pouco mais que um ponto porcentual de crescimento do produto interno bruto (PIB). Como mostram vários estudos, crescer muito além disso (1.2% a 1.4%), só com aumentos de produtividade. Que dependem de acumulação de capital físico e humano por trabalhador, de inovações técnicas e de mudanças nas áreas previdenciária, trabalhista e tributária.

Agenda para os próximos 20 anos. Com o Real.

As elétricas nas eleições - SUELY CALDAS

O Estado de S.Paulo - 09/03

O desvio e o desperdício de dinheiro atravessam a história da gestão pública no Brasil. Desde a volta da família real a Portugal, quando Dom João VI levou o que restava dos cofres do Banco do Brasil, a classe política se aproveita do poder de manipular verbas e desviá-las para fins diversos. O desperdício é a marca de políticos habituados a esbanjar o dinheiro da viúva. Se os valores subtraídos desde os tempos do Império tivessem sido aplicados com honestidade e zelo, o Brasil teria hoje os indicadores econômicos e sociais da Suíça ou da Dinamarca, seria próspero, culto e sem pobreza. Como a história foi outra...

Presidentes, governadores, prefeitos, parlamentares e burocratas agem assim de olho no financiamento de campanhas eleitorais e no enriquecimento ilícito, por desleixo com a coisa pública ou mesmo por pura incompetência. O caso das seis distribuidoras estaduais de energia elétrica empurradas para a Eletrobrás perpassa por todas essas motivações.

Situadas na Amazônia, onde a população pobre e a distância demográfica desfavorecem a cobrança da conta de luz, elas já nasceram deficitárias, mas seus prejuízos foram potencializados pelo sistemático uso político de sucessivos governadores que delas extraíram dinheiro para campanhas eleitorais, inflacionaram as folhas de salários com apadrinhados e nomearam gestores de confiança para servir aos interesses do governador, não para garantir à população um serviço público de qualidade. Após a intervenção da Eletrobrás, a influência dos governadores na sua gestão reduziu, mas não desapareceu e continua mais forte do que se esperava.

As seis distribuidoras dos Estados do Amazonas, Rondônia, Acre, Roraima, Piauí e Alagoas não pagam pela energia que compram das geradoras da Eletrobrás nem repassam para a União as taxas cobradas nas contas de luz dos consumidores (se uma empresa privada assim agir, o governo federal decreta intervenção na hora, como fez com a Celpa, do Pará). De janeiro a setembro de 2013, as dívidas das seis somavam R$ 938 milhões e, em 2012, acumularam prejuízo financeiro de R$ 1,33 bilhão (33% maior que em 2011). Esses resultados se ampliam pelo acúmulo de anos de más administrações.

A Aneel reconhece que elas só não faliram porque a Eletrobrás as assumiu, mas assiste a tudo inerte. "Quando entra o governo e transfere as empresas para a Eletrobrás, não cabe à Aneel opinar", justifica o diretor-geral da agência, Romeu Rufino. Se assim for, a Petrobrás pode inundar a Baía de Guanabara com óleo sem ser multada pela ANP. A Eletrobrás até deseja, mas não consegue vender as empresas, seja por pressão dos governadores sobre a presidente Dilma Rousseff, seja porque só encontrarão compradores se nelas for injetada uma bolada de dinheiro para sanear as dívidas.

No ano passado a estatal contratou o Santander para apresentar ao governo federal os números da sangria e sugerir soluções. O estudo do banco propôs a privatização total ou de 51% das ações e dimensionou em R$ 1 bilhão a R$ 1,2 bilhão o valor de mercado das seis juntas. Mas elas precisam de pelo menos R$ 3,5 bilhões em investimentos só para se adequarem aos padrões de qualidade definidos pela Aneel, sem contar com as dívidas e outros penduricalhos que antecedem uma privatização capaz de atrair compradores.

A presidente Dilma está consciente da urgência de uma solução para o problema, até porque as concessões das seis empresas vencem entre 2015 e 2017 e ela pode usar a antecipação da renovação das concessões por mais 30 anos como trunfo para atrair investidores privados e melhorar o preço de venda das empresas. E o que fez Dilma? Adiou para 2015. Afinal, se ela privatizar em ano eleitoral, corre o risco de perder aliados em seis Estados e votos preciosos numa campanha eleitoral incerta. E ainda enfrentar a gritaria de sindicatos que farão oposição à privatização. Ou seja, como ocorre desde sempre, o oportunismo eleitoral prevalece sobre o interesse público, as seis empresas seguem sugando dinheiro anos a fio e a população banca pagando impostos.

A Rússia nasceu em Kiev - MIRIAM LEITÃO

O GLOBO - 09/03

A crise da Ucrânia é grave e complexa. Bem mais do que se poderia supor pela reação inicial dos Estados Unidos ao propor sanções econômicas. “Ninguém pode isolar a Rússia”, diz o embaixador Ronaldo Sardenberg, que já representou o Brasil em Moscou na época da União Soviética. Os dados de comércio e energia mostram como é forte o entrelaçamento com a Europa.

A Alemanha e a Rússia têm um comércio bilateral que no ano passado chegou a US$ 106 bilhões, isso é praticamente um quarto de todo o comércio do Brasil com o mundo, para se ter uma ideia. Desde o acidente de Fukushima, a Alemanha desativou sete de suas usinas nucleares e aumentou a importação de gás dos russos. Hoje, 40% de todo o gás que o país consome são fornecidos pela Rússia, origem também de 25% do gás consumido na Europa. Metade dele passa pela Ucrânia. Mas até isso é dizer pouco da complexidade aterradora desse evento.

— Rússia e Ucrânia têm uma longa e tumultuada história. A Rússia nasceu em Kiev (foram um país só nos séculos IX e XII). Foi a primeira capital e só depois foi São Petersburgo, e, por fim, Moscou. A Crimeia foi doada por Nikita Kruschev à Ucrânia. Na época, não tinha grande valor. Hoje, é uma península com turismo dinâmico, além de ser estratégica para a Rússia. A Ucrânia foi a sede da resistência aos soviéticos, e o Exército Vermelho só a derrotou em 1930. A população ucraniana em grande parte é russa. No século XIX, houve a guerra da Crimeia, que opôs a Rússia às potências do Ocidente. Enfim, nada é simples nesse caso e tudo tem profundas raízes históricas — diz o embaixador.

Do ponto de vista diplomático, a decisão do Parlamento da Região Autônoma da Crimeia de propor referendo deixou o Ocidente sem argumento. Como os defensores da solução democrática, de que se ouça o povo, pode ser contra ouvir o povo? A tese de que o referendo é contra leis internacionais é muito fraca.

— A Rússia não é mais poderosa como foi quando União Soviética, mas seus intensos laços econômicos com a Europa, a dependência energética, tornam impossível a proposta do isolamento que a diplomacia americana propôs. A Alemanha, por sua vez, além dos interesses econômicos e energéticos não vê com bons olhos a interferência americana na Europa, na qual ela hoje tem comando — lembra.

O governo impopular da Ucrânia foi derrubado pelas manifestações de rua. Não conseguiria se manter. Mas Vladimir Putin diz que foi um golpe de Estado contra a ordem constitucional. A biografia de Putin não o faz mestre nesse assunto. Quem foi chefe da KGB nunca será verdadeiramente um democrata. Lá não se ensinava essa disciplina. Por outro lado, a diplomacia russa comandada por Serguei Lavrov tem demonstrado enorme competência em vários casos recentes; enquanto a diplomacia americana exibe nesse caso uma visão superficial da complexidade dos eventos.

A Rússia, por sua vez, já é parte do sistema financeiro internacional e é, portanto, punida ou premiada pelos fluxos de capitais, dependendo da conjuntura. Na semana passada, ela teve mais uma demonstração disso com seu esforço de vender US$ 11 bilhões num único dia para segurar a desvalorização do rublo e ainda viu a bolsa despencar. Ela tem enormes reservas cambiais — calculadas em US$ 493 bilhões — mas sofreu uma fuga de capitais de US$ 60 bilhões no ano passado. A alta de juros de 1,5 ponto percentual anunciada pelo BC russo na segunda-feira vem na hora em que se projeta o crescimento de apenas 1% do PIB para este ano.

A Ucrânia está exposta a uma crise econômica de grandes proporções. Segundo a consultoria inglesa Capital Economics, a Ucrânia tem uma necessidade de financiamento externo de US$ 80 bilhões este ano e tem apenas US$ 15 bi de reservas. Precisa de um aporte urgente de US$ 25 bilhões e uma missão do FMI já foi para o país. Ocidente e Rússia oferecem ajuda do mesmo tamanho: €12 bilhões. Não por acaso: disputam influência no país que dá à Rússia entrada no Mar Negro e passagem para o gás.

— Não se está discutindo a Ucrânia, mas sim até que ponto vai a área de influência da Rússia — disse o embaixador Ronaldo Sardenberg.

Nesse tabuleiro complexo, o melhor é não subestimar o conflito e torcer por uma saída diplomática. Sem isso, haverá um centro de instabilidade político-militar do lado da zona do euro, quando ela começa a se recuperar da crise econômica.

Administrar as diferenças - HENRIQUE MEIRELLES

FOLHA DE S. PAULO - 09/03

Em viagem à África, fiquei impressionado com Botsuana, país organizado, próspero em termos regionais, democrático, com instituições relativamente estáveis e ausência de tensões étnicas e conflitos comuns no continente.

A explicação consensual é que as fronteiras de Botsuana foram estabelecidas de forma autônoma em linhas étnicas e culturais, ao contrário do padrão imposto pelas potências coloniais, que misturaram segundo seus interesses, etnias e culturas diferentes ou mesmo antagônicas. Essa difícil convivência cobra, até hoje, preço enorme em vidas, bem-estar e produção.

Há, normalmente, grande resistência ao separatismo. Dá-se grande valor à preservação das integridades territoriais dos países. Mas recente análise da história mostra que isso nem sempre é correto.

Na antiga Tchecoslováquia, tchecos e eslovacos se separaram pacificamente tão logo se tornaram senhores de seu destino. República Tcheca e Eslováquia são hoje nações prósperas e ativas no âmbito europeu. Já na Iugoslávia, outra criação artificial, a separação foi sangrenta. Mas, vencida a etapa brutal e desumana dos conflitos, Croácia, Bósnia, Macedônia, Montenegro, Eslovênia e Sérvia são hoje países estáveis.

Há também povos de culturas distintas vivendo bem juntos. Exemplo mais importante é o da Suíça, onde alemães, franceses e italianos convivem num país próspero, democrático e estável. Na Bélgica, grandes tensões políticas entre flamengos e franceses não minam a paz e a prosperidade nacional.

Já povos artificialmente separados tendem a se reagrupar, como no caso das Alemanhas Ocidental e Oriental, reunificadas assim que possível.

São exemplos europeus adequados à reflexão sobre a crise na Ucrânia e o separatismo na Crimeia. É preciso distinguir diferentes contextos. De um lado, a questão geopolítica da Rússia, que tem dificuldade em aceitar seu poder cadente e um histórico de truculência na preservação de territórios e áreas de influência --como fizeram muitas grandes potências no passado. Por outro lado, a Crimeia tem maioria de origem russa que pode preferir ser parte da Rússia que da Ucrânia.

Aliás, a Crimeia era parte da Rússia até 1954, quando foi anexada à Ucrânia por ordem do líder soviético Nikita Kruschev (1894-1971). Mas um referendo marcado por intimidação e suspeitas de frau- de pode não ser uma solução adequada.

O fundamental é levar em conta todos os fatores da complexa equação ucraniana. A reação contra a truculência do presidente da Rússia, Vladimir Putin, é apropriada. Mas deve-se também respeitar os desejos e a tradição cultural dos russos da Crimeia.

O voo do besouro - CELSO MING

O Estado de S.Paulo - 09/03

Como o pesadão besouro, tão pesadão, o Brasil tem dificuldades para voar. Mas a temporada trouxe novos limitadores de voo.

Na semana passada, 15 associações do setor elétrico advertiram o governo para a situação delicada do suprimento de energia. A seca esvaziou os reservatórios (veja gráficos) e há ponderadas dúvidas sobre a real capacidade de as usinas térmicas darem conta do recado. É por essas razões que certos analistas chegam a aplaudir o baixo crescimento: imaginem o problemão se, em vez de 1,5% ao ano, a economia estivesse rodando a 3% ou 4%, como pretendia o governo.

As dúvidas crescentes sobre a capacidade de geração de quilowatts trazem de volta a velha discussão dos economistas sobre o potencial de crescimento da economia. Mas este não é o único fator a cercear cruelmente a capacidade de produção no País.

Um dos mais lembrados é o baixo nível do investimento, que não consegue chegar aos 19% do PIB. Está ligado ao também baixíssimo nível de poupança do brasileiro, avaliado em apenas 13,9% do PIB, pelas Contas Nacionais do quarto trimestre de 2013. (Este foi o foco do comentário desta Coluna no dia 6.)

A inflação à altura dos 6% ao ano é outra barreira. Qual não seria a inflação dos preços livres, de 7,3% em 2013, se o PIB estivesse avançando os tais 3% ou 4% ao ano? E quanto mais o governo teria de represar os preços administrados para conter a escalada? Seria inevitável, também, que o Banco Central puxasse os juros ainda mais para cima para provocar a convergência para a meta de 4,5% ao ano. E não convém parar por aí. O aprofundamento do represamento dos preços administrados (especialmente o dos combustíveis e os da energia elétrica) agravaria as distorções por ele provocados. Seria inevitável, por exemplo, transferência ainda maior de recursos do Tesouro para as concessionárias de energia de modo a cobrir a diferença de custos dos combustíveis queimados nas termoelétricas. E se aprofundariam os desarranjos no setor do açúcar e do álcool.

Outro limitador do crescimento econômico é o mercado de trabalho. A escassez de mão de obra, especialmente da qualificada, não é apenas fator de alta de custos do sistema produtivo, como ainda quinta-feira o Banco Central advertiu na Ata do Copom. É variável cerceadora, que comparece cada vez mais às novas equações do investimento.

E há o gargalo de dólares. O forte aumento de importação de derivados de petróleo para dar conta do consumo e do funcionamento das usinas térmicas já pressiona a balança comercial, como mostraram as estatísticas dos dois primeiros meses do ano. O rombo em Conta Corrente fechou em 2012 a 2,4% do PIB, saltou para 3,7% do PIB em 2013 e ainda não parou de aumentar. Este é mais um sintoma de que o consumo avança a níveis excessivos.

Finalmente, a inexorável questão fiscal. O Tesouro não é mais a fonte inesgotável de recursos. Não pode mais operar políticas contracíclicas, como catapultas do crescimento econômico.

Ou seja, crescer mais do que está crescendo parece hoje mais problema do que solução para este besouro.

Há vida depois do Brics - MARCELO COUTINHO

O GLOBO - 09/03

Até o momento, o governo não tem nenhuma ideia do que fazer com a próxima cúpula que reunirá aqui Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul


O clichê de que o “mundo americano” já teria acabado inebriou muitos desde a crise global de 2008. Uma precipitação. Com o dólar refortalecido e a crise de confiança abalando os ânimos dos países emergentes, muitos se perguntam hoje se há vida após o Brics. Uma tremenda virada de mesa.

Na última reunião de Davos, todos ouviram boquiabertos, de autoridades e analistas internacionais, que o Brasil saiu da condição de emergente para a de subemergente ou “frágil”. Na economia não perfilamos mais ao lado da China, mas da problemática Turquia. De repente, redescobriram as mazelas nacionais. Crescemos pouco, com baixo investimento e inflação alta.

Voltamos a aparecer nos noticiários como aquele país que está entre os dez piores do mundo em analfabetismo adulto, que tem uma desigualdade monstruosa, os juros mais abusivos, mas de onde os capitais escapam pelos dedos e há até bolha imobiliária. No entanto, sempre encontramos consolo em alguns vizinhos em pior situação, como a Argentina e Venezuela.

Desde 2009 o Brasil não estava tão bem como se dizia. Após oficializarmos o Brics, nada de bom nos aconteceu. A nossa diplomacia cometeu erros grosseiros. O próprio chanceler brasileiro reconheceu, em entrevista ao jornal “Valor Econômico”, no fim do ano passado, que a política externa precisa ser revista.

Até o momento, o governo não tem nenhuma ideia do que fazer com a próxima cúpula que reunirá aqui Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Esperam que uma vitória na Copa recupere a autoestima e que, até lá, Putin em Moscou não torne a Ucrânia em um pesadelo maior. Seria terrível se ainda por cima o Brics se transformasse em um diretório do despotismo global.

Muda-se o chanceler e o Itamaraty continua a cometer erros sérios demais. O gasto exorbitante em hotéis de Lisboa para pernoite rumo a Cuba “socialista”, que acaba de inaugurar um porto típico do capitalismo, não é o único problema. Bem pior é a atitude com relação à Venezuela, que beira o colapso institucional. Já não há mais democracia naquele país, e o governo brasileiro perdeu credenciais para ser conciliador na crise porque se aliou ao autoritarismo chavista, que, depois de tanto alarido anos atrás, hoje se encontra em um previsível beco sem saída, ameaçando causar graves danos políticos e econômicos ao Brasil.

O caos na Venezuela já rebate sobre o restante da região dividida em dois blocos. Enquanto os países do Pacífico liderados por Chile, Colômbia, Peru e México estão se integrando e tentando encontrar novas oportunidades comerciais em um mundo mais complicado, o Mercosul simplesmente afunda em instabilidades e desconfiança, após passar muito tempo à deriva, preterido pelos modismos de acrônimos.

A verdade é que todas as apostas feitas pelo governo brasileiro deram n’água. Os profetas do mundo emergente antiocidental perderam credibilidade, e Dilma agora recorre à velha Europa e ao Papa, que virou pop novamente. A nossa economia se desindustrializou e se tornou deficitária, o dinheiro produtivo sai dos emergentes para as nações mais ricas e novas siglas começam a surgir, porém, sempre deixando uma janela aberta para voltarem atrás mais uma vez, sem pedidos de desculpas ou autocrítica. Afinal, o mundo dá voltas, “a crise é de meia idade”, e há vida depois do Brics.

São Paulo, capital da segurança - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 09/03

Parece piada, mas SP se tornou a capital com a menor taxa de homicídios, na contramão do país

SÃO PAULO É A capital menos perigosa do Brasil. Pelo menos, tem a menor taxa de homicídios, de longe. Para os paulistanos, vai parecer piada ou mentira. Não é.

A incredulidade dos moradores da cidade tem fundamento. Ainda em 2001, a capital paulista era a quinta cidade mais perigosa do país. A taxa de homicídios era cinco vezes maior. Muita gente perdeu parentes e amigos no morticínio, ou disso teve muita notícia.

Neste século, a baixa do número de homicídios em São Paulo foi notável. Trata-se de um sucesso dos governos tucanos, fracos em educação ou transporte, por exemplo.

O dado não é novo, embora ainda mal explicado e pouco conhecido, pois neste ano muito tem se falado da "violência descontrolada" na cidade, uma arenga autoritária que deve ser criticada, ainda mais em ano de eleição.

A taxa de homicídios no Brasil ronda os 27 por 100 mil habitantes desde 1997-98 (13,5 por 100 mil no Estado de São Paulo). Excluindo São Paulo, a média brasileira vai a 32 por 100 mil.

Além de São Paulo, sete Estados conseguiram baixar sua taxa de homicídios, mas para níveis ainda comparáveis aos dos seis ou sete países mais violentos do mundo. Neste século houve uma tendência de homogeneização das taxas de homicídio pelo país. Estados mais violentos em geral ficaram mais pacíficos, e vice-versa. Estados nordestinos, mais tranquilos do que São Paulo em 2001 (com exceção de Pernambuco), agora experimentam morticínio maior, assim como Minas e Paraná.

Como dá para perceber, não há relação entre nível de renda ou desigualdade e taxa de homicídios (o que não quer dizer que violências não têm nada a ver com pobreza e desigualdade, a depender dos tipos de urbanização, cultura, padrões de migração etc. O assunto é bem complicado).

O que houve em São Paulo? O desemprego caiu, a renda cresceu etc. Mas tudo isso aconteceu no resto do Brasil também.

Estudos preliminares indicam que a taxa de prisões e encarceramento esteve associada à redução do morticínio paulista, assim como a apreensão de armas e campanhas de desarmamento. Mais difícil de medir, o trabalho da polícia se tornou mais inteligente

Uma eleição cheia de 'postes' - GAUDÊNCIO TORQUATO

O ESTADÃO - 09/03

A ideia lançada por Lula pegou. A eleição de outubro deverá ser a mais povoada de “postes” nesses tempos cheios de surpresas, reviravoltas e maquinações no terreno político. No Maranhão, Ceará, Pernambuco e Bahia, candidatos tirados do bolso do paletó dos chefes do Poder Executivo começam a “iluminar” o ambiente regional, na esteira da nova liturgia que se instala na paisagem: a elevação de perfis ao altar de governador de Estado sem os escolhidos passarem pelo longo corredor de mandatos parlamentares e, na maior parte dos casos, sem terem obtido um voto popular sequer em suas trajetórias. O fato não chega a ser propriamente novidade, eis que tanto a Chefe da Nação como o prefeito da maior cidade do país tomaram seus assentos sem nunca terem se submetido ao sufrágio universal. Coisas novidadeiras numa cultura política escrita com o lápis de caciques e sob a tradição de costumes passados de pais para filhos, cuja expressão de modernidade é mais a idade dos novos coronéis do que pensamento compromissado com reformas na seara política.

Nos férteis terrenos eleitorais do PT, feitos extraordinários costumam ser creditados ao “feeling” do ex-presidente Luiz Inácio, que escolhe e impõe nomes ao partido, como ocorreu com a presidente Dilma e o prefeito Haddad. Maior liderança popular e mais forte cabo eleitoral do país, “respirando política pelos poros”, como se costuma dizer dele, sua vontade é ordem e sua orientação, lei. Não sobra perfil capaz de contrariá-lo. Seguindo essa vereda, os governadores Cid Gomes, Roseana Sarney, Eduardo Campos, pré-candidato à presidência, e Jaques Wagner, entre outros, dão mostras de que o modo lulista de escolher candidato é “a invenção da vez”. Pode ser até uma forma menos democrática por privilegiar o recorrente mote: “quem é dono da flauta dá o tom”. Mas, inegavelmente, é medida prática. Evita discussões prolongadas entre aliados, acelera a formação de parcerias, antecipa o jogo eleitoral, na medida em que os preteridos passam a seguir outros rumos, enquanto eventuais dissabores passam a ser administrados no balcão de recompensas. Afinal de contas, qual o significado desse novo modus faciendi?

Sobressai, primeiro, a sensação de um sopro de renovação na esfera política. Algo como: se a reforma política está emperrada no Congresso, a sociedade, à sua maneira, pavimenta o caminho de novas lideranças, elegendo perfis assépticos, não contaminados pelo vírus da corrupção, particularmente quadros técnicos com experiência na administração pública. À inércia do poder centrífugo (Legislativo, Executivo), reage o poder centrípeto, a força social organizada, que identifica na planilha de nomes aqueles com capacidade de representar as demandas populares. Portanto, o novo ordenamento condiz com o clima social. Há muito a comunidade clama por partidos com programas claros e consistentes; representantes mais próximos às comunidades; um sistema de votação que contemple quadros de maior expressão eleitoral, sem puxar para a Câmara candidatos de parca votação; figuras que desfraldem os valores republicanos.

As imagens são inescapáveis: o copo de águas sujas transbordou. Ou ainda, não há mais como jogar por baixo do tapete o lixo acumulado pela velha política. O eleitor se mostra cansado de ouvir as mesmas lorotas. A cada legislatura, recorre-se à pregação da reforma política. Às vésperas do pleito, o saldo é zero. Como ir às urnas respirando os ares poluídos que, há décadas, contaminam os pulmões da República? Pouca coisa muda e, ante a inação do Poder Legislativo em matéria eleitoral, as decisões, mesmo homeopáticas e de pouco empuxo na escala dos avanços, acabam sendo tomadas pelo Judiciário. Os últimos retoques no reboco do velho casarão das urnas acabam de ser dados pelo Tribunal Superior Eleitoral, que proibiu o uso de telemarketing em campanhas eleitorais, obrigando, ainda, a adoção de legenda ou a língua de sinais (libras) nos debates a serem promovidos pela TV. Por falta de densidade (responsabilidade do Legislativo), a Justiça Eleitoral usa o pincel para uma rápida camada cosmética. Mais uma questão de lana-caprina.

E assim as frustrações das camadas sociais vão se acumulando e disparando os mecanismos de cognição dos conjuntos eleitorais. O primeiro movimento é na direção das caras novas no palco da política. Na parede dos velhos retratos, a atenção se volta para a última foto, a figura desconhecida, o sinal diferenciado no painel da mesmice. “Quem sabe esta pessoa não faria melhor do que o fulano (quem foi mesmo?) em que votei na última vez (quando mesmo)”? É a dúvida do eleitor. Portanto, os dirigentes tirados da cartola por Lula da Silva e os “postes” que tentarão exibir suas luzes nos próximos meses são, na verdade, extensões simbólicas do ciclo que se abre na política por força de uma nova disposição social, cuja inspiração é a de querer romper com velhos paradigmas. Para chegar à presidência da República, não há mais necessidade de longa carreira política, como a que teve Jânio Quadros. Eleito suplente de vereador, em 1947, assumiu o mandato com a cassação de vereadores; depois, foi o deputado estadual mais votado (1951), em seguida, prefeito de São Paulo (1953), governador do Estado (1955), deputado federal pelo Paraná (1958, mas não exerceu o mandato), presidente da República (1961) e novamente prefeito de São Paulo (1985).

A par dos traços de assepsia política, presentes nos perfis dessa nova geração de dirigentes, o feitio técnico complementa a identidade, a denotar sua agregação à esfera da administração planejada e consequentes programas com foco em prioridades, ações balizadas por critérios racionais e de pouco comprometimento com populismo eleitoreiro. Esse é o dilema que enfrentam, pois a modelagem técnica das gestões nem sempre resulta em urnas fartas. O consolo é constatar que o voto começa a deixar o coração do brasileiro para chegar à cabeça.

Não é o Brasil, senhores! - PERCIVAL PUGGINA

ZERO HORA - 09/03

Não é o Brasil, senhores, mas é Lula, Dilma e seus companheiros!


Dize-me a quem admiras. E eu te direi que isso me basta. Muito tem sido escrito sobre as afeições do governo brasileiro no cenário internacional. Eu mesmo já escrevi sobre a carinhosa saudação de Lula na 10ª Reunião do Foro de São Paulo, em Havana, no ano de 2001: “Obrigado, Fidel, por vocês existirem!”. E, não satisfeito com tão derretida manifestação de afeto, Lula arredondou o discurso com esta faiscante pérola: “Embora o seu rosto esteja marcado por rugas, Fidel, sua alma continua limpa porque você não traiu os interesses do seu povo”. Que coisa horrível! E note-se: é uma adoração coletiva. Interrogue qualquer membro do governo sobre violações de direitos humanos, prisões de dissidentes, restrições às liberdades individuais na ilha dos Castro. Verá que ele, imediatamente, passa a falar de ianques em Guantánamo. Essa afinidade entre nossos governantes e os líderes cubanos é carnal, como unha e dedo. Quando se separam, dói. Noutra perspectiva, parece, também, algo estreitamente familiar. Filial, como quem busca a bênção do veterano e sábio pai, fraternal na afinidade dos iguais, e crescentemente paternal, pelo apoio político, moral e financeiro à velhice dos dois rabugentos ditadores caribenhos. E haja dinheiro nosso para consertar o estrago que a dupla já leva mais de meio século produzindo.
Um pouco diferente, mas ainda assim consistente e comprometida, solidária e ativa, a relação do nosso governo com o delirante Hugo Chávez e seu fruto Maduro. Ali também se estendeu _ e estendida permanece, resolutamente disponível _ a mão solidária do governo brasileiro. Pode faltar dinheiro para as penúrias humanas do nosso semiárido, para um tratamento menos indigno aos aposentados e pensionistas do país, para os portos e aeroportos nacionais, mas que não faltem recursos para pontes, portos e aeroportos na Venezuela e em Cuba. Parece, também, que entramos num infindável ano bíblico de perdão de dívidas. Onde houver um tiranete africano ou ibero-americano em necessidade, lá vai o Brasil rasgar seus títulos de crédito. Quando foi deposto o virtuoso Fernando Lugo, com suas camisas tipo clergyman adornadas com barras verticais que lembravam estolas, nosso governo experimentou tamanha dor, que preferiu perder a amizade dos paraguaios. A parceria se reuniu, expulsou o Paraguai do Mercosul e importou, não a Venezuela, mas o folclórico Hugo Chávez.
Eu poderia falar sobre o silêncio do Brasil em relação ao que a Rússia está fazendo na Crimeia. Aliás, haveria muito, mas muito mais, do mesmo. Mas isso me basta. Percebam os leitores que, em todos os casos, a reverência, o apreço, a dedicação fluem para as pessoas concretas dos líderes políticos, membros do clube, e não para os respectivos povos. Não são os cubanos, mas os Castro. Não são os venezuelanos, mas os bolivarianos Chávez e Maduro. Não eram os paraguaios, mas Lugo. Não são os bolivianos ou os nicaraguenses, mas Evo e Ortega. Não são os povos africanos, mas seus ditadores. Há algo muito errado em nossa política externa. Tão errado que me leva a proclamar: não é o Brasil, senhores, mas é Lula, Dilma e seus companheiros!
Isso me basta. No entanto, ocorre-me uma investigação adicional e para ela eu peço socorro à memória dos meus leitores: você é capaz de identificar uma nação ou um estadista realmente democrático, uma democracia estável e respeitável, que colha dos nossos governantes uma consideração minimamente semelhante à que é concedida nos vários exemplos que acabo de citar? Pois é, não tem.