domingo, maio 10, 2020

'Que fazer?' - J.R. GUZZO

ESTADÃO - 10/05

Opositores não sabem o que fazer para Bolsonaro sair do Planalto antes de 1.º/1/ 2023


É curioso o que está acontecendo hoje no Brasil. A cada dia que passa, o presidente da República faz alguma coisa que parece desenhada sob medida para tumultuar o seu próprio governo, como se tivesse certeza de que o pior desastre que pode lhe acontecer é viver quinze minutos de paz. (Neste momento de confusão extrema, acredite se quiser, conseguiu achar espaço para arrumar uma briga com a sua ministra-secretária da Cultura, a atriz Regina Duarte, cuja relevância no meio das calamidades atuais oscila ao redor do zero. Justo agora? Não poderia ficar para um pouco mais tarde? Não: ninguém aqui vai perder uma oportunidade para sair no braço.) Ao mesmo tempo, as forças que querem tirá-lo de lá antes da hora prevista na Constituição parecem cada vez mais incapazes de armar uma ação coerente, lógica e eficaz para conseguir isso.

É a velha história da vida política: quando todo mundo diz que “agora não dá mais” e, ao mesmo tempo, não se faz nada de concreto além de falar, é sinal de que ninguém está conseguindo agir no mundo das coisas práticas. Se realmente não “dá mais”, então por que continua dando? Não se trata de falta de vontade – é falta de meios. Como tantas vezes ao longo da História, a questão se resume na inesquecível pergunta de Lenin: “Que fazer?” O Revolucionário Número 1 de todos os tempos sabia muito bem que, sem responder a essa pergunta, o Czar continuaria sentado até hoje no trono da Rússia. Em sua volta, todos faziam os discursos mais devastadores, ano após ano - e continuavam no exílio. Lenin, em vez disso, só pensava em sair do exílio e ir para o governo. Não queria ficar indignado. Queria agir.

É o que está faltando hoje para as múltiplas camadas de opositores do presidente Jair Bolsonaro: saber com precisão o que devem fazer para ele sair do Palácio do Planalto antes de 1º. de janeiro de 2023, quando acaba o seu mandato legal na presidência. Nada parece funcionar. Havia muita esperança, por exemplo, no depoimento do ex-ministro Sergio Moro no inquérito que apura as circunstâncias de sua demissão. Mas depois de oito horas de declarações, o que realmente sobrou de concreto foi a afirmação de que ele, Moro, nunca disse que Bolsonaro cometeu algum crime nos quinze meses de relacionamento que tiveram no governo. Um ministro do STF proibiu Bolsonaro de nomear um diretor para a Polícia Federal; ele nomeou outro, igual ao primeiro, e ficou por isso mesmo, pois não dá para continuar vetando todos os nomes que o presidente escolher. Esperava-se que o Supremo se unisse para acertar alguma maneira legal de deter ou depor Bolsonaro; mas os ministros não estão de acordo entre si.

A questão, no fim das contas, não é estabelecer, numa escala de zero a dez, o quanto Bolsonaro é um mau presidente; seus inimigos acham que é onze. A questão é saber quantos dos 513 deputados federais e 81 senadores, exatamente, vão votar a favor de um impeachment – o único caminho disponível para depor o chefe de Estado sem violar a Constituição, coisa que requer força armada e não é possível neste momento no reino das realidades. A “sociedade” não tem voto aí. Ninguém mais, além dos parlamentares, está autorizado a julgar o presidente: ou dois terços dos membros do Congresso concordam em depor o homem, ou ele não sai.

Para quem não quer mais a situação que está aí, a prioridade talvez devesse ser outra - em vez de ficar tentando tirar Bolsonaro agora, que tal começar a trabalhar de verdade para que ele não seja reeleito? O fato é que vai ser preciso ganhar uma eleição em 2022. Se vierem com candidatos parecidos com os de 2018, vamos continuar na mesma.

Nós e ela - LEANDRO KARNAL

ESTADÃO - 10/05

Nossa alegria era a dela, nosso bem-estar a preenchia e nossas doenças a devastavam

Vivo com discreta melancolia meu terceiro Dia das Mães como órfão. Muitos devem compartilhar o sentimento. A data é um desafio para o enlutado. Poderia falar muito da dor da ausência. Hoje, especialmente hoje, enfatizarei a alegria da vida.

Tive mãe e ela não era perfeita. Sei, a frase soa estranha. Olhada a distância e com a sedimentação do tempo, vejo uma mulher extraordinária que enfrentou 80 anos de desafios fortes. Nas respostas que Dona Jacyr deu à vida, houve pontos luminosos e, claro, contradições. Nunca idealizei minha mãe, nem em vida e nem agora. Com o passar do tempo, vi com clareza que os pontos complexos eram parte de um jogo mais amplo e menos romântico. Minha querida mãe, divinizada em tantas mensagens de cartões, era um ser humano como tantos.

Aceitar o limite nos pais é um passo de amadurecimento. Na intenção de me preservar (ou, pelo menos, assim que ela supunha), minha mãe mentiu algumas vezes para mim. Temendo viralizar preocupações, ocultou resultados de exames médicos ou notícias ruins. No fundo, sempre supôs que os filhos, apesar da idade, eram frágeis. Como muitas mães, o gesto estratégico de aparar arestas da vida escondia proteção, controle, amor e fantasias de prole imatura. Ela também teve, poucos é verdade, ataques de raiva (menores e menos frequentes do que os meus). O pecado da vaidade a tomava, quando comparava alguns aspectos da sua ninhada com filhotes alheios. O orgulho estendeu-se aos netos. Todos éramos lindos e brilhantes. Os vizinhos? Arrumados... Simpáticos talvez.

O senso crítico e o relativismo nunca se aproximaram do berço de um Karnal. Foi ignorada a sábia parábola da coruja idealizando seus monstrinhos medonhos. Outro fato: por vezes, eu supus que a cenografia da mesa com todos no Natal era superior ao conteúdo da vontade das pessoas ali presentes. Em outras palavras, imaginei que o mais importante eram o teatro e a aparência. Se todos lá estivessem, tudo correria bem. Bem antes de surgir o termo, era um anseio de “família instagramável”. A mesa completa agrada a todas as mães de forma quase obsessiva.

Ao contrário do meu pai que jamais disfarçou a preferência pela minha irmã, minha mãe era dedicada à prática e ao discurso de igualdade. Tudo era dividido em partes matematicamente idênticas. O que um de nós recebesse, guardadas as questões de idade e de gênero, os outros ganhariam. A palavra empenhada conosco era inabalável. Se prometesse levar às piscinas do clube no primeiro dia da temporada, não importava (como, de fato, não importou) estar devastada por uma gripe de verão. A palavra era maior do que o vírus. Ia conosco ao carnaval e, como meu pai detestava som alto, ficava na mesa a tarde toda enquanto os quatro, fantasiados por ela, rodopiavam no salão. Não bebia e ficava com refrigerante vendo seus rebentos.

Genuinamente, como quase todas as mães, nossa alegria era a dela, nosso bem-estar a preenchia por completo e nossas doenças a devastavam. Virtudes do materno e do feminino na nossa cultura: minha mãe cuidava muito: de nós, do meu pai, da sogra difícil, do meu tio paterno, do meu tio materno, da vizinha. Enfermeira de todos, companhia de noites frias em velórios, acompanhante em hospitais: era uma mulher solidária ao extremo. Foi mãe integral e colaborou enormemente para criar os primeiros netos. Com o último, temporão, já não dispunha de forças para um colo prolongado. Vi, na infância, minha mãe fazendo elaboradas tranças na minha irmã e a mesma técnica ser repetida, 30 anos depois, com as netas. Era atávico e emocionante ver que o tempo passava e o amor e o cuidado se mantinham.

No passado, se me perguntassem o motivo do amor pela minha mãe, eu ofereceria uma resposta correta e sincera: ela me deu a vida, ela me ama incondicionalmente, ela esteve comigo em todos os momentos, ela torcia por mim de forma genuína e apaixonada, ela me via, sabia quem eu era e, mesmo assim, tinha uma ligação inquebrável. Tais afirmações eram e continuam sendo verdade. Hoje, mais maduro e sem ela, vejo que, tendo amado minha mãe também com as imperfeições, entendi que o humano, como eu e como todos, somos dignos do amor. Uma mãe sem jaça teria provocado uma idealização do mundo e a ninguém mais eu teria entregue meu coração.

Dona Jacyr era uma mulher extraordinária, como várias mães, dedicada como quase todas as progenitoras e, acima de tudo, falha como todos os filhos de Eva. Dotada desse afeto impactante e da consciência dos limites do mundo, ela me ensinou a amar. Minha amorosa e imperfeita mãe me fez aceitar meus defeitos gigantescos, procurar ser melhor e estar apto ao afeto para com as outras pessoas. Ela foi capaz de amar me conhecendo e eu incorporei seu lado mais humano e menos angelical igualmente. Agora, com certeza, tenho pleno potencial para reconhecer a humanidade claudicante, os defeitos da maioria e, eventualmente, a maldade no meu coração e na alma de alguns.

Hoje é Dia das Mães e eu desejo a todas uma jornada carinhosa. Que os filhos se entreguem ao mistério do amor materno e que as mães também incorporem a humanidade de cada rebento. Que todos se perdoem, condição imprescindível para a coexistência. Que a compreensão domine e que a compaixão aflore. Feliz dia a tantas admiráveis mães. Nós seremos sempre e para sempre gratos. Boa vida para todos nós.

Não envergonhe sua mãe - MARTHA MEDEIROS

ZERO HORA - 10/05


Gosto muito de um vídeo do Mario Sergio Cortella em que ele comenta a digna atitude de um maratonista espanhol. Em 2012, na reta final de uma prova, Fernández Anaya estava em segundo lugar quando reparou que o queniano à sua frente, que liderava com folga, havia diminuído o ritmo das passadas por acreditar que já tinha cruzado a reta de chegada. Em vez de aproveitar a bobeira do queniano e ultrapassá-lo, o espanhol alertou-o sobre seu equívoco. O queniano retomou o ritmo e venceu.

Logo após, um jornalista entrevistou o espanhol: "Por que você deixou o queniano ganhar?". "Ele iria ganhar, apenas se distraiu uns metros antes da chegada". "Mas você poderia ter tirado proveito". "Que mérito teria minha vitória? Como iria explicar isso para a minha mãe?"

Envergonhar a própria mãe deveria ser o limite ético de todos nós. Na dúvida se está agindo certo ou errado, pergunte-se: o que minha mãe diria disso? Mesmo quando a mãe não é o estandarte moral que se espera, ainda assim, para todo filho, ela é suprema, e não há pior castigo do que desapontá-la.

Fico tentada em falar da mãe de você-sabe-quem, uma senhora simpática que, anos atrás, em entrevista, disse que criou o filho para "não ser estúpido, bruto, nem dizer besteira". Pobrezinha. Mas hoje não é dia de falar sobre decepções maternas. Prefiro falar da alegria das mães de jovens que, solidários, distribuem alimentos para moradores de rua. Prefiro imaginar o orgulho das mães dos médicos, enfermeiros e técnicos de laboratório que estão em plantão permanente nos hospitais e postos de saúde.

Felicitar as mães de voluntários que produzem máscaras e viseiras para doar, mães de psicanalistas que fazem consultas gratuitas por chamada de vídeo, mães de quem disponibiliza filmes, livros e shows de graça nas redes, mães de artistas que vão para as varandas cantar para a cidade, mães de vizinhos que fazem compras para os idosos do prédio, mães de motoristas que dão dinheiro aos pedintes nos sinais de trânsito, mães de filhos que conversam com seus pais através de janelas, que telefonam para eles várias vezes ao dia, que procuram não deixá-los desamparados neste momento tão inédito de nossas vidas.

Enquanto este distanciamento social durar, cada um está fazendo o que pode por si e pelos outros, exercendo o senso de coletividade e a compaixão. As mães dos brasileiros que estão colaborando para que esse período tenha o mínimo de baixas jamais sentirão vergonha de seus filhos. Numa época em que, afora a pandemia, há também uma crise política contaminada por fake news e atos de irresponsabilidade, é um alívio saber que grande parte da população está dando a suas mães o melhor dos presentes: a certeza de que elas fizeram um bom trabalho.

Voltamos ao normal - HÉLIO SCHWARTSMAN

Folha de S. Paulo - 10/05

Fenômenos como Jair Bolsonaro são só manifestação paroxística dessa enfermidade coletiva



“Quando as coisas vão voltar ao normal?” é a pergunta que não quer calar. A palavra “normal” é traiçoeira, já que encerra tanto uma dimensão moral, designando algo nas proximidades de “aceitável”, como uma mais estatística, quando assume o significado de “corriqueiro”. Se nos centrarmos na segunda acepção, a resposta é: “acabamos de voltar”.

Doenças não apenas são uma constante na história da humanidade como também constituem uma das principais forças a modular a evolução das espécies. Elas estão por trás de algumas das mais dramáticas transformações da vida no planeta, como o advento da reprodução sexuada.

Se há uma parcial exceção a essa regra são as últimas sete ou oito décadas, quando uma feliz conjunção de desdobramentos da ciência —a difusão do tratamento de água e esgoto, das vacinas e de agentes antimicrobianos— fez com que os países desenvolvidos experimentassem a sensação de que as doenças infecciosas haviam sido derrotadas.

Com efeito, conseguimos extinguir a varíola e, nas nações mais avançadas, praticamente zerar as mortes por pólio, sarampo, raiva, arboviroses e helmintíases. Países em desenvolvimento iam na mesma trilha.

Essas poucas décadas de sucesso nos deixaram mal acostumados. Perdemos a sensação de angústia que as doenças infecciosas produziam em nossas mentes. Esquecemos que, oito décadas atrás —a geração de meus pais—, ainda se morria por causa de um corte bobo que infeccionasse e as diarreias faziam com que enterrar bebês fosse coisa absolutamente normal.

Paradoxalmente, essa dessensibilização para a gravidade das infecções nos leva a atitudes que ficam entre as suicidas, como deixar de vacinar as crianças, e as temerárias, como não investir em vigilância epidemiológica e no desenvolvimento de novas classes de antibióticos. Fenômenos como Jair Bolsonaro são só uma manifestação paroxística dessa enfermidade coletiva.

De que está morrendo a economia? - VINICIUS TORRES FREIRE

Folha de S. Paulo - 10/05

País está sem diagnóstico e plano para conter o vírus da depressão econômica


A subnotificação de casos e mortes por Covid-19 se tornou assunto corriqueiro no Brasil, assim como a escassez de testes e a falta de planos racionais do relaxar o distanciamento social. Fala-se menos ou quase nada da subnotificação da ruína econômica, da falta de diagnósticos sobre o desastre nas empresas e nos empregos, assim como um plano de contenção da crise e de reativação do país.

No momento, tudo se passa como se o governo federal, em particular, tivesse feito o que pode (ou o que quer) quanto as medidas para atenuar a catástrofe. Quanto ao futuro, por ora o que se sabe de planos é “business as usual”. Espera-se para ver o que vai dar. Quem sobreviver verá. Empresas morrem, é assim o mercado, diz o ministro Paulo Guedes (Economia).

Isto é, prevê-se apenas a retomada das “reformas”, manutenção das regras fiscais e contenção de despesas logo em 2021.

A melhoria da regulação do investimento e um bom plano de concessões atrairiam dinheiro privado para grandes projetos de infraestrutura. Apesar das promessas desde 2017, tal coisa não ocorreu: nem regulação significativamente melhor, nem projetos bastantes, nem carradas de investimento privado, em infraestrutura ou em qualquer outra parte.

No entanto, é fácil perceber que a economia estará em situação muitíssimo pior do que nos anos de quase estagnação de 2017 a 2019 (e como seria este 2020, sem epidemia), de crescimento em torno de 1% ao ano.

Por que desta vez, em 2021 ou depois, seria diferente? De resto, por que as “reformas”, micro ou macro, dependam de leis ou de meras decisões e capacidades executivas, ora invisíveis, andariam mais rápido agora, em ambiente de degradação política ainda maior?

Setores inteiros da economia, ou o que restar deles, não voltarão a funcionar como dantes tão cedo (um ano?). A queda brutal dos rendimentos do trabalho, associada à precaução no mundo pós-distanciamento social, vai conter o consumo; a destruição de poupanças financeiras das famílias terá o mesmo efeito.

A procura de crédito para consumo já despencou nos bancos. Não é razoável acreditar que aumente tão cedo ou que existam tomadores de empréstimo com risco baixo em número bastante no futuro próximo, com o que os bancos também serão cautelosos.

A capacidade ociosa de produção vai aumentar ainda mais. Assim, o investimento privado, já reticente até o início deste 2020, vai continuar na retranca por ainda mais tempo.

Com a massa de rendimentos do trabalho em baixa, desemprego literalmente imenso (nem temos medidas), ociosidade que dispensa investimento, grande destruição de empresas e uma improvável onda de investimento privado em infraestrutura, como o Brasil vai sair do chão? Puxando os cabelos?

De onde virá o aumento da demanda, o aumento da despesa de consumo e investimento? Alguém acredita de fato que a dívida federal vai ser contida com redução de despesas nos próximos anos, redução que já era mínima até antes da epidemia? Ninguém vai pagar mais impostos? Quem? Como?

Alguém acredita que, com tais meras medidas de ajuste fiscal, sempre limitadas, será possível acelerar a saída da depressão? Alguém acredita que será possível evitar medidas de “achatamento da curva de juros longos” e juro zero a curto prazo (sem o que a dívida pública irá para as cucuias)?

Enfim, onde está o diagnóstico deste desastre e um plano de saída? Sabemos disso tanto quanto sabemos do número de casos de Covid-19. Provavelmente, muito menos. Estamos na escuridão, da política à economia.

Bolsonaro errou todas - BRUNO BOGHOSSIAN

Folha de S. Paulo - 10/05

Previsões furadas e palpites sem fundamento provam que a palavra do presidente não vale nada



Em 17 de março, Jair Bolsonaro disse que a Itália sofria com o coronavírus por causa da quantidade de habitantes idosos no país. “São muito mais sensíveis, morre mais gente”, afirmou. Ele sugeriu que os brasileiros, portanto, não deveriam se preocupar com a pandemia.

O presidente errou. Embora seja mais grave para os mais velhos, a Covid-19 matou proporcionalmente mais jovens no Brasil do que em alguns outros países. Entre os italianos, só 5% das vítimas tinham menos de 60 anos. Por aqui, esse percentual é de 30%, segundo os últimos dados do Ministério da Saúde.

No dia 18 de março, Bolsonaro declarou ter informações de que o vírus não se propagaria no país devido ao “clima mais tropical”. Em Manaus, onde os termômetros marcaram 30ºC na última semana, o número de casos ultrapassou 6.000 e a rede de saúde entrou em colapso.

Quatro dias depois, o presidente lançou a previsão de que os óbitos pelo coronavírus não chegariam aos 796 da pandemia de H1N1, em 2009. O Brasil já se aproximou desse número de mortes num único dia.

Em 24 de março, veio o famoso pronunciamento tresloucado de Bolsonaro em rede nacional de TV. “O vírus chegou, está sendo enfrentado e brevemente passará”, inventou, quando o Brasil registrava apenas 46 mortes. Agora, são mais de 10 mil.

Ainda em março, dois dias depois, Bolsonaro disse que o país não enfrentaria a disparada observada nos EUA, “até porque o brasileiro tem que ser estudado, ele não pega nada”. Naquela data, 1.300 americanos haviam morrido. O Brasil bateu a marca em pouco mais de duas semanas.

Em 12 de abril, o presidente arriscou de novo. “Parece que está começando a ir embora a questão do vírus”, declarou, emendando sua campanha pela retomada da economia. Desde então, a contaminação e as mortes diárias dispararam.

Bolsonaro perdeu todas até agora. Mesmo assim, ele ainda tenta se intrometer no trabalho de combate à pandemia. Já está claro que suas palavras não valem nada.

É preciso chorar - LYA LUFT

ZERO HORA - 10/05


Sempre me impressiona a insistência (certamente feita com a maior boa vontade) com alguém que chora a perda de marido, filho, pai, irmão: "Reage! Não chora!".

Ora, como? Como não chorar a perda trágica e irreversível de alguém muito amado? Penso que é preciso chorar, sim, não só porque é natural, mas porque faz parte dos rituais humanos que brotam do fundo da psique, agir com relação a uma dor tão grande, para aos poucos conseguir acomodá-la no peito de algum modo. E dizemos para nos consolar, "com o tempo há de doer menos".

Meus olhos ainda ficam marejados tentando assimilar, por exemplo, a perda de minha amiga Lou Borghetti, morta na plenitude de sua vida e de sua arte, assim como choro por um amigo amado, fraterno, que há um mês sofre entubado num hospital do Rio, vítima do corona. E pela perda de um filho há dois anos e meio - ou foi ontem? Pelas perdas, quero o direito de chorar.

Tenho refletido sobre o trabalho de Borghetti, antes divagado, pois não tenho cacife para bancar a crítica de arte. Penso no que me fascina em suas telas. Cores, cores, cores. Vermelhos ou azuis, mais vezes vermelhos. Sombras muito escuras espreitando ou invadindo. Insinuações de casas, de figurinhas humanas, árvores, montanhas, aqui e ali ouro resplendendo como respingos de sol.

Tudo como eu gosto e procuro na minha literatura: mais sugestões do que definições. O estilo Lou Borghetti. A arte deve ser o território maior da nossa liberdade: a mim agradam a mescla de intensidade e máxima delicadeza, insanidade e lucidez, alusões, rabiscos, pinceladas largas e generosas, ou espaços de silêncio entre palavras. Nas telas de Lou há sinais secretos, que comentei com ela mais de uma vez. Um deles é uma escadinha precária subindo para o nada, que usei em um de meus livros mais recentes, A Casa Inventada, e disse a Lou que tinha "roubado" essa imagem dela. A minha escada se perdia no nevoeiro da morte. Minha personagem começava a subir, mas desistia e voltava para a vida.

A amizade de Lou Borghetti e aquelas horas no seu ateliê me faziam bem. Ela naquele seu esplendor de vitalidade, eu já aquietada pelos anos, meio sem graça por minhas limitações com tintas e pincéis. Nos últimos tempos, ela já doente, introduziu o tema morte mais vezes nesses diálogos, com naturalidade dizia que nós duas a tínhamos encarado olho no olho, eu recém-enfartada, ela lutando com sua enfermidade. Ela havia algum tempo tinha perdido a mãe, eu, um filho: a amizade era solidária também nisso.

Então traduzo aqui versos esparsos do poema da americana Edna St. Vincent Millay, Elegia sem Música, que andei relendo:

"Não me conformo com trancarem corações amorosos na terra dura. É assim, e assim foi desde o começo dos tempos(...): entram na treva, os fortes e os adoráveis.(...). Amantes e pensadores, postos na terra. Docemente lá se vão para a escuridão da tumba. Vão alimentar as rosas. A flor é elegante e sinuosa. A flor é perfumada. Eu sei. Mas não aprovo. Mais preciosa era a luz de teus olhos, do que todas as rosas do mundo. E eu não estou conformada".

Às vezes é preciso chorar. Não me peçam o contrário.

11 mil mortos: Bolsonaro passeia, acha churrasco, faz piada e vê "neurose" - REINALDO AZEVEDO

UOL - 10/05




Com quase 11 mil mortos, Bolsonaro dá um jeito de achar o churrasco com cerveja. Discurso é oportunista e homicidaImagem: Reprodução

As milícias bolsonaristas nas redes e o próprio presidente agora tratam a "Churrascada dos 11 mil Mortos" de fake News. A imprensa teria caído numa ironia do presidente. Não caiu, não.

Estava planejada mesmo. Deveria ter ocorrido no dia 2 para comemorar os 39 anos de Flávio Bolsonaro, completados no dia 30 de abril. Foi adiada para este sábado. Diante da estupefação geral — até alguns bolsomínions acharam a coisa imprópria —, o presidente fez uma provocação e disse que, em vez dos 30 convidados, iria reunir três mil. Mudou de ideia. Preferiu passear de moto aquática no lago Paranoá. Era um dos passatempos prediletos de Fernando Collor quando presidente. Faz algum sentido. Roberto Jefferson, um dos mais reluzentes "colloridos" à época, já se converteu ao bolsonarismo. E à sua facção armada!!! Trato do assunto em outro post.

Neste sábado, o Brasil superou, em muito, a marca dos 10 mil mortos: 10.627. Houve 730 confirmações nas 24 horas anteriores à divulgação. Os infectados já são 155.939. Acrescentaram-se 10.611 novas notificações. O país já ocupa o sexto lugar no ranking de óbitos e só perde para os EUA em registros diários.

O caos no sistema de saúde começa a se espalhar pelo país. A política oficial, orientada pelo Ministério da Saúde, continua a recomendar o isolamento social. Mas não o presidente.

É claro que ele não deveria estar no lago. Circula nas redes um vídeo feito por um grupo que estava numa lancha, desrespeitando também a orientação do governo do GDF. Bolsonaro se aproxima, e o ouvimos dizer ainda ao longe:


-- Tem churrasco aí?
Às gargalhadas, uma mulher responde:
-- A gente veio fazer o teu churrasco, né, cara, hahaha.
E ela acrescenta:
-- Pega um bacalhau, aí. Que querido, cara!
O presidente pergunta:
-- Tudo em paz aí?
E a entusiasmada senhora responde:
-- Tudo em paz.
O presidente faz proselitismo:
-- Se não cuidar, pode entrar em caos o Brasil.
Um homem pergunta:
-- Pode tirar uma foto, presidente?
A animada conviva anuncia:
-- Ah, já tou filmando, pode?
A voz masculina diz:
-- A gente é da aviação, a gente está sentindo bastante.
E Bolsonaro:
-- Aviação, vocês estão 90% no chão. Vai (sic) acabar as férias coletivas...
Um segundo homem afirma mais distante do celular que faz a gravação:
-- Mês inteiro, tem dois voos só. Tá bem complicado.
E o presidente emenda:
-- É uma neurose! Setenta por certo vai (sic) pegar o vírus, não tem como. É uma loucura!"


BOA PARTE DO DESASTRE EM VÍDEO TÃO CURTO

O vídeo que circula por aí é curto: 39 segundos apenas. Mas é um bom retrato de uma outra tragédia que se abate sobre o país: a tragédia moral e ética.

Bolsonaro não fez a churrascada, mas se nota que não mudou a sua disposição para ironizar a tragédia, no que é acompanhado pela mulher. Reitere-se: isso tudo aconteceu no dia em que o Brasil alcançou a marca de quase 11 mil mortos, sendo certo que o país ainda não chegou ao ponto de reversão da curva. Era o segundo dia consecutivo com mais de 700 registros — e isso num fim de semana, quando há uma subnotificação da subnotificação.

Não deixa de ser interessante que o rapaz diga que eles são da área de aviação. Foi por avião que a doença chegou ao Brasil, trazida por endinheirados — e isso inclui o avião presidencial. Mas, agora, quem morre aos montes são os pobres. Muitos deles em casa. Outros tantos, em macas em hospitais superlotados; e há os que se vão na fila à espera da UTI.

Bolsonaro, como se nota, volta a criticar o distanciamento social, alheio ao fato de que temos o caos que aí está com tal prática, embora com uma taxa de adesão bem abaixo do que é necessário.

A sua tese da contaminação dos 70%, no contexto em que ele a aplica, corresponde à defesa do homicídio em massa. Só seria eficaz se muitos milhões de doentes graves — porque aconteceria — fizessem um pacto para morrer em casa, em silêncio, sem procurar hospitais. Também as suas respectivas famílias assistiriam a tudo caladas.

O Reino Unido ensaiou optar pela imunização do rebanho e aplicou tarde nas medidas de isolamento social. É o segundo país em número de mortos. Donald Trump ignorou todos os alertas feitos desde janeiro. Contavam-se, neste sábado, 77.744 cadáveres. Primero lugar disparado. Olhem para a miséria brasileira, muito especialmente para a precariedade das moradias de muitos milhões, e imaginem o que poderia estar em curso no país.

BOLSONARO DEVERIA SER GRATO

Bolsonaro deveria ser grato aos govenadores, que arcam com o custo político da imposição de medidas de distanciamento. A panela de pressão social já teria explodido há muito tempo não fossem as providências adotadas pelos Estados. Além de irresponsável, seu discurso é oportunista.

O que ele quer? Pobres invadindo hospitais? Depredação de prédios públicos por falta de atendimento? Estaria, enfim, frustrado porque, até agora, a carne preta e pobre do Brasil não lhe deu motivos para pedir Estado de Defesa?

O presidente não é tão burro que não saiba que o distanciamento busca apenas distribuir no tempo os doentes. Ademais, a "imunização do rebanho" está em curso. Além das subnotificações, quantos milhares, talvez milhões, já contraíram formas leves e praticamente não detectáveis da doença, contaminando outras pessoas?

O isolamento social não é incompatível com a tal "imunização do rebanho". Insista-se: trata-se de um esforço para distribuir no tempo os doentes graves para evitar o colapso no sistema de Saúde e o risco de desordem social.

DESASTRE BÍBLICO

Como sabe Nelson Teich, a própria saída do distanciamento não poderá ser feita de modo destrambelhado, de uma vez só. Mesmo países que vinha abandonando as restrições tiveram de operar recursos. A Coreia do Sul voltou a fechar os bares. É espantoso que a tese do presidente, vocalizada por ele próprio e por Paulo Guedes na invasão consentida do Supremo, se resuma a deixar que a doença se espalhe.

Se viesse o desastre de proporções bíblicas, a economia ficaria em situação melhor? Da recessão que teremos, quanto realmente se deverá ao isolamento social e quanto a um desastre que é planetário? Por que nenhum outro país optou pela escolha de Bolsonaro?

Reitero: ele fala para se contrapor aos governadores, para tentar tirar qualquer peso de suas costas, para esconder a incompetência escandalosa do seu governo, que não consegue fazer com que a ajuda chegue às pessoas e às empresas com a devida celeridade. Busca bodes expiatórios políticos, alheio aos mortos e à saúde dos vivos.

A retórica não é inócua. Parte considerável da população o tem como líder e exemplo. Posso achar isso absurdo, e acho, mas ele ajuda a espalhar a ceticismo burro sobre o real perigo da Covid-19. No WhatsApp, espalham-se mentiras grotescas sobre caixões que transportariam palha em vez de cadáveres.

Bolsonaro recuou do churrasco, mas não da indignidade e do alheamento. Ele não está nem aí para os quase 11 mil mortos. Afinal, como já pontificou, "todo mundo vai morrer um dia".

E desperta a simpatia de gente, como se vê e se ouve, que não faz grande distinção entre a carne assada numa lancha e aquela enregelada nos contêineres frigoríficos que hoje servem a hospitais porque não há mais vaga nos necrotérios.

É evidente que o presidente não inventou essa, vá lá, "elite". Ela já estava por aí. Faltava alguém que tivesse a coragem de dizer e de fazer o que ela própria diz e faz.

OS PARASITAS

Nós vimos aquela senhora que se diz empresária a molestar enfermeiros que protestavam em Brasília pedindo mais proteção no trabalho e defendendo o isolamento social. Ela afirmou que podia "sentir o cheiro" da profissional de saúde. Censurou-a por supostamente não usar perfume.

A fala remete diretamente ao filme "Parasita", de Bong Joon Ho, que levou uma penca de Oscars. Gostei menos da obra do que alguns amigos meus. Vi certa tendência para a estereotipia, o que sempre me incomoda. O Brasil de Bolsonaro e suas lanchas com churrasco me levam a rever parte das minhas restrições.

Há muito tempo uma elite parasitária e amoral empurra para a morte os pobres de tão pretos e pretos de tão pobres.

Talvez sejam os "trouxas" de que fala Paulo Guedes...


Há 10 mil razões para tratar Bolsonaro como ameaça - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 10/05

As imagens oferecidas ao país por Jair Bolsonaro são flashs de uma inconsciência conscientemente ostentada. O presidente emite sucessivos sinais de que não quer saber o que está acontecendo. Seja o que for, não está acontecendo com ele. Neste sábado, o país ganhou mais de dez mil razões para tratar Bolsonaro não como uma paródia marcada pelo exagero cômico, mas como uma séria ameaça.

No curto intervalo de 55 dias, a pandemia do coronavírus matou mais de dez mil pessoas no Brasil. Neste sábado, dia em que a marca foi ultrapassada, Bolsonaro fez piada com um "churrasco fake" e passeou de jet ski pelo Lago Paranoá. Parou ao lado de uma lancha. Em conversa com simpatizantes, disse: "É uma neurose -70% vai pegar (sic) o vírus. Não tem como. Loucura!"

A frase repete uma cantilena que Bolsonaro entoa desde que o coronavírus fez a sua primeira vítima oficial no Brasil, em 17 de março. Para o presidente, pandemia é apenas um outro nome para "histeria". O isolamento social, por "inútil", só serve para arruinar a economia. Por isso, os brasileiros com menos de 60 anos deveriam submeter-se à infecção "como homens", pois ela é inevitável.

Na definição do poeta Mario Quintana, o autodidata é um ignorante por conta própria. Bolsonaro, que se graduou em ciência lendo a bula da cloroquina, demora a notar que a doença do ignorante é ignorar a sua própria ignorância. O capitão dá de ombros para uma singela evidência médica: quanto menor for a adesão ao isolamento, maior será o número de cadáveres.

O vírus produz multidões de pacientes que não passam pela porta da UTI. Daí a necessidade de atenuar a velocidade do contágio. Sem uma vacina, não há alternativa senão empurrar as ruas para dentro de casa. Mas Bolsonaro gasta baldes de saliva para sustentar que "o país precisa voltar à normalidade". Pense nessa tese do presidente sem pensar no resto.

Esqueça tudo, pense só na retomada de uma hipotética normalidade. Com o isolamento à brasileira, adotado por governadores e prefeitos sem uma coordenação nacional, a pilha de caixões evoluirá rapidamente de patamares inaceitáveis para níveis inacreditáveis. Sem o isolamento, aí mesmo é que a mortandade evolui para a categoria do genocídio, com aval de um governo cujo lema é "Deus acima de todos."

O inquilino do Planalto diz coisas definitivas ao defender a necessidade de religar as fornalhas do país. Mas ele não define muito bem as coisas. O presidente se abstém de levar à vitrine o Plano Bolsonaro de volta à normalidade. Quando a pilha de corpos ainda somava cinco mil almas, Bolsonaro reagiu à indagação de um repórter com o histórico "e daí?"

A resposta empurrou o descaso de Bolsonaro para a fronteira do paraxismo. Um presidente que assume sua insensibilidade com uma crueza que se confunde com a perversidade merece estudo. Parece ambicionar uma admiração semelhante à que despertam os heróis nietzschianos, para os quais a moral convencional é um desafio à sua convicção de superioridade.

Todo ato de crueldade gratuita, sobretudo quando escorado numa noção pessoal de superioridade, desperta uma curiosidade, um fascínio literário. Por isso, talvez, Bolsonaro vem sendo tratado como uma paródia cômica. Mas coloque os dez mil mortos nas suas circunstâcias, enfiados dentro dos respectivos caixões, enterrados sem a presença de amigos e familiares...

Num cenário assim, fica mais difícil tratar a inconsciência conscientemente ostentada por Bolsonaro como coisa de um nietzschiano convicto afrontando os sentimentos do país em nome da preservação dos sinais vitais da economia. Melhor tratar o fenômeno como vilania assumida de alguém que está preocupado em salvar apenas o seu projeto de reeleição.

A forma inconsequente como Bolsonaro fabrica crises espanta. O episódio da marcha do presidente e do seu séquito de ministros e empresários sobre o Supremo Tribunal Federal encaixou-se no enredo de encrencas como uma espécie de apoteose às avessas.

A tentativa de transferir responsabilidades, como se a vida normal pudesse ser restaurada por uma liminar judicial, foi o sinal mais eloquente da inapetência para decisões e da incompetência de um governante que desgoverna o seu país. Até o primogênito do presidente, o investigado Flávio Bolsonaro, compôs o pelotão da insensatez. Mas não ocorreu ao capitão chamar Nelson Teich, ministro da Saúde.

Tudo o que o governo tem de pior, do desprezo sanitário à tentativa de aparelhar a Polícia Federal, do apoio a manifestações antidemocráticas à aliança com o centrão... Tudo isso foi emoldurado pela antiapoteose do Supremo. Aos pouquinhos, o cinismo de Bolsonaro vai ganhando uma doce, uma persuasiva naturalidade.

No vácuo moral a que chegou o país, Bolsonaro parece imaginar que pode fazer ou dizer o que bem entender. Tudo, afinal, pode ser feito ou dito quando nada tem consequência. Não foram dois nem três, desceram à cova dez mil cadáveres. Estima-se que esse número pode dobrar em pouco tempo.

Contra esse pano de fundo fúnebre, o silêncio que cerca Bolsonaro soa como cumplicidade. O que há no Planalto não é um presidente, mas uma ameaça.

O interesse individual e o bem comum - AFFONSO CELSO PASTORE

ESTADÃO - 10/05

Para um presidente populista de direita, um número enorme de mortes é apenas estatística


Em visita ao CDPP em 2018, o professor Robert Pindik do MIT deu uma palestra sobre o custo social do carbono. Emissões de carbono levam ao aquecimento global, e um aumento de 2 graus na temperatura do planeta acarreta custos gigantescos: regiões férteis tornam-se desertos e o aumento do nível do mar alaga cidades litorâneas.

A forma de evitar tal ocorrência é obrigar todos os países a cobrarem um imposto sobre as emissões. Por que tem de ser cobrado de todos os países? Se apenas um deles tributasse as indústrias que queimam carvão, cairia nesse país o retorno privado dos investimentos nos produtos que utilizam o carvão, as fábricas mudariam para outro país que não tributa as emissões, e a poluição mundial continuaria aumentando.

No primeiro capítulo do seu livro Economics for the Common Good, Jan Tirole, o ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 2014, começa discutindo as relações entre a economia e a sociedade, entre o benefício privado e o “bem comum”, usando o exemplo do custo social do carbono. Seu tema é a diferença de motivação na busca do lucro privado e na busca do bem-estar de todos.

Nas decisões sobre políticas públicas esta última é que deve predominar, e além de considerar o efeito de externalidades, como ocorre nas emissões de carbono, é preciso entender a diferença entre retornos sociais e retornos privados. Os investimentos em saneamento básico – esgoto e tratamento da água – têm um retorno privado dado pela diferença entre os custos e as receitas cobradas de quem utiliza tais serviços, que é internalizado pela empresa que produz o serviço. Para chegar ao retorno social é preciso somar a ele os ganhos vindos da melhoria das condições de saúde. O interesse da empresa é maximizar o lucro privado, mas o interesse da sociedade é maximizar o bem-estar social, o que justifica a cobrança de um preço mais baixo por parte da empresa, com o governo cobrindo a diferença através de um subsídio.

Como avaliar o custo social do carbono? Como avaliar o benefício social de um investimento em saneamento básico? Os economistas dispõem dos modelos apropriados, mas para encaminhar a resposta tenho de voltar ao tema de meu último artigo discutindo o papel da taxa de desconto, cujo valor difere entre governos populistas e altruístas.

Governos populistas preferem ganhos imediatos de popularidade e, por isso, suas taxas de desconto são muito altas, o que reduz o valor presente dos benefícios auferidos por gerações futuras. Tais governos não se interessam por investimentos em saneamento, e esta é uma das razões pelo desprezo que o governo populista de Donald Trump tem sobre o custo social do carbono.

Tirole também argumenta que todos nós somos vítimas de falhas de percepção. Os empresários dão maior peso às condições que afetam o seu lucro, o que é importante, mas a maximização do lucro não pode ser o único critério utilizado nas decisões sobre políticas públicas. É compreensível que quem trabalhou por décadas a fio para construir uma empresa se revolte contra uma medida do governo que em uma pandemia impõe restrições que derrubam sua receita e colocam em risco a sobrevivência da empresa. Cabe ao governo deixar claro por que impôs aquela restrição, e garantir que na medida do possível compensará a empresa através de transferências de renda. A percepção de um empresário é obtida pela história de construção de sua empresa, enquanto a percepção do governo tem de ser motivada pela busca do bem comum que, neste caso, justifica a transferência.

Falando sobre percepções Tirole usa o exemplo da fotografia de Ailan Kurdy, um menino sírio de 4 anos encontrado morto em uma praia turca em 2015, que simboliza a tragédia dos que migram para a Europa em condições precárias. O impacto da foto excedeu o da informação sobre as centenas de mortes na travessia do Mediterrâneo. Cita uma frase atribuída a Stalin: “A morte de uma pessoa é uma tragédia, mas a morte de 100 mil pessoas é uma estatística”. Stalin nunca se preocupou com as mortes dos prisioneiros nos Gulags. Ao insistir em sua campanha contra o isolamento social, Bolsonaro revela desprezo pelo número de mortes, atuando para que tudo volte ao normal, ignorando a pandemia. Sem surpresas. Afinal, para um ditador comunista e para um presidente populista de direita, que não respeita as instituições e os valores democráticos, um número enorme de mortes é apenas uma estatística.


Cenário para 2020 e 2021 - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 10/05

Cenário básico do FMI, o considerado mais provável, parece ser relativamente otimista

Há algumas semanas o FMI divulgou o cenário para a economia mundial, referente ao biênio 2020 e 2021. O cenário básico prevê recuo de 3,0% em 2020 e crescimento de 5,8% em 2021.

O cenário anterior à eclosão da epidemia da Covid-19 previa crescimento mundial de 3,3% em 2020 e de 3,4% em 2021.

Assim, se o cenário básico do FMI se materializar, haverá perda de 6,3 pontos percentuais (pp) em 2020 e ganho de 2,4 pp em 2021. Pouco mais de 60% da perda de 2020 não será recuperada.

É compatível, com o cenário básico do FMI, um retorno da economia mundial em 2022 a crescimento na casa de 3% ao ano.

Assim, duas são as características da dinâmica da economia mundial, segundo o cenário básico do FMI: haverá perda permanente em 2020 de aproximadamente quatro pontos percentuais; e a economia deve retomar crescimento à mesma taxa vigente no período anterior à crise.

A perda permanente deve-se ao fato de a crise ser muito concentrada na redução da demanda de serviços: restaurantes e bares, cinemas e teatros, grandes eventos esportivos e artísticos, turismo, entre tantos outros.

A redução do consumo desses itens por um tempo não eleva a demanda após a saída da política de distanciamento social.

Adicionalmente, a taxa de crescimento futuro não deve ser afetada, pois o choque sofrido pela economia foi externo a ela. A grande crise global (GCG) de 2008 foi diferente. A economia mundial e, em particular, a americana, após a retomada, apresentaram taxa de crescimento permanentemente inferior à observada no período anterior à crise.

Aquela crise foi fruto de erros regulatórios que afetaram por mais de uma década a qualidade da concessão de crédito hipotecário para o segmento de baixa renda nos EUA e inflaram o crescimento antes da crise.

A grande hipótese que sustenta o cenário básico construído pelo FMI é a normalização da atividade econômica no período de afrouxamento da política de distanciamento social.

Isto é, que todas as alterações que ocorrerão em nossa rotina para conviver com o vírus, que ainda estará circulando entre nós sem que tenhamos uma vacina (teremos que esperar até o fim de 2021 para termos uma), não afetarão a produtividade.

Será possível convivermos no espaço público, com os devidos cuidados —uso permanente de máscara, manutenção de distância entre as pessoas, realocação das jornadas de trabalho para desafogar os transportes públicos, entre tantas outras—, sem que a produção seja muito afetada.

Por esse motivo, o cenário básico do FMI parece ser relativamente otimista. O Fundo também apresentou outros três cenários mais pessimistas. Mas o cenário “básico” é aquele considerado mais provável.

Para o Brasil, o FMI projeta recuo da economia de 5,3% em 2020 e recuperação medíocre de 1,3% em 2021. O crescimento de 2021 parece muito baixo, mas o número de 2020 é bem próximo do cenário do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV), de recuo de 5,4%. E tudo indica que a atividade no segundo trimestre deste ano recuará 10% ante o mesmo período de 2019.

Difícil saber se o cenário básico do FMI se materializará. Estimativas de meu colega Lívio Ribeiro, do Ibre, sugerem que a China roda no segundo trimestre, ante o mesmo período do ano anterior, ao ritmo de 3,7%. Bela recuperação em comparação com a queda de 6,8% no primeiro trimestre (em comparação com o primeiro trimestre de 2019).

Esses números para a China são compatíveis com o cenário básico, relativamente otimista, do FMI. Oxalá seja uma primeira boa notícia após tanta coisa ruim.​

Samuel Pessôa
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.

Um novo patamar - ROBERTO RODRIGUES

ESTADÃO - 10/05

Devemos investir muito mais em tecnologia, com ênfase em conectividade e digitalização


Com a tragédia da pandemia, o velho conceito da segurança alimentar ganhou um novo patamar. Nos cinco continentes as populações aprenderam que podem sobreviver sem comprar roupas novas, carros ou eletrodomésticos, mas não podem deixar de comprar alimentos. E isso deu um upgrade universal para as atividades rurais em termos de admiração e respeito.

Todo mundo compreendeu que os produtores rurais não podem parar nunca. Precisam tirar leite todos os dias: as vacas não sabem se é feriado ou se há uma pandemia varrendo o planeta, e tem que ser ordenhadas. Na hora de plantar tem que plantar, ou cultivar, ou tratar de plantas e animais ou colher, em cada período do ano como manda a natureza. E abastecer, cumprindo o sagrado papel de preservar a vida.

Há um belo momento de admiração, respeito e até gratidão pelo trabalho no campo. Este reconhecimento deverá ter consequências interessantes para o futuro do agro no mundo.

Por um lado, governos se apressam em reexaminar políticas de apoio aos seus produtores rurais, na expectativa de que eles permaneçam ativos e assim garantam segurança alimentar aos consumidores.

Por outro lado, podem taxar suas exportações para evitar eventual falta de produtos à frente ou, ao contrário, criar mecanismos que inibam importações de terceiros países, exatamente para proteger seus camponeses da concorrência inevitável. E esse neoprotecionismo poderá interferir no comércio mundial agrícola, mesmo que isso ocorra ao arrepio da OMC.

Esses fenômenos estão logo aí à frente. Para compreendê-los e avaliar quais são as oportunidades e os riscos neles contidos, é fundamental estudar as medidas que estarão sendo adotadas pelos governos dos países que são nossos mercados ou nossos concorrentes e, a partir daí, traçar as estratégias necessárias para aproveitar umas e mitigar outras. O Ministério da Agricultura está atento a isso, bem como as modernas lideranças rurais brasileiras. E não há tempo a perder.

Até porque ficou evidente para os mercados que temos condições excepcionais e sustentáveis para atendê-los com produção agropecuária em quantidade e com qualidade adequada, isto é, podemos oferecer segurança alimentar e segurança do alimento. E isso traz outro tema à baila: a pandemia mostrou que os padrões sanitários no mundo estão abaixo da necessidade, e com certeza a régua dos controles sanitários vai subir. Pois também nisso o Brasil tem um modelo muito desenvolvido e eficiente, e pode mostrar ao mundo um invejável sistema de defesa sanitária, sobretudo nas indústrias de carnes e alimentos. Sempre existem aperfeiçoamentos para fazer, mas estamos bem nessa foto.

Resta completar a agenda para vencer as barreiras que eventualmente surgirem, e assim possamos alimentar os nossos 220 milhões de brasileiros e outro bilhão de estrangeiros de mais de uma centena de países com nossos excedentes exportáveis.

Temos que abrir nosso mercado para países de todas as regiões. Somos produtores muito grandes e podemos servir ao mundo inteiro, não fazendo sentido restrições e esse ou aquele mercado, como se escuta, às vezes, em relação à China. No ano 2000, nosso agronegócio exportou US$ 20 bilhões, e a China comprou 2,7% desse montante. Só 19 anos depois, em 2019 o agro exportou US$ 97 bilhões, e a China ficou com 34% disso. Um crescimento espantoso, aquele mercado gigantesco deve ser respeitado e estimulado. E devemos partir para a busca de outros mercados na Ásia mesmo (Indonésia, Filipinas, Malásia), ampliando os que já temos lá (Japão, Coreia), no Oriente Médio, nos países árabes, na Índia, na África e na América Latina, mas sem perder jamais o mercado norte-americano e o da União Europeia, cujo acordo com o Mercosul deve ser agilizado.

Devemos investir muito mais em tecnologia, com ênfase para os temas da conectividade e digitalização, cuidar com rigor dobrado da sanidade, fazer as reformas legais que permitam parceria para investimento em infraestrutura. Precisamos desburocratizar processos arraigados para agilizar o desenvolvimento de setores como a irrigação, buscar capitais externos que estão disponíveis, promover uma real abertura da economia. E tudo revestido com a mais importante variável do futuro: sustentabilidade.

Se tivermos competência para fazer isso, o que passará até mesmo pela melhoria da governança institucional das nossas representações, o Brasil será o grande campeão mundial da segurança alimentar bem antes do que se imaginava.

Além do churrasco - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO - 10/05

Polícia Federal, Forças Armadas e Itamaraty cercados de dúvidas e na boca do povo


Dos ministérios da Educação e do Meio Ambiente, nem se fala mais, mas três instituições historicamente respeitadas e admiradas andam na boca do povo: Polícia Federal, Forças Armadas e Itamaraty. Dúvidas e temor de ingerência na PF, risco de imagem e contaminação política nas FA, uma política externa que atrai perplexidade e crítica mundo afora.

Jogada no centro de mais uma crise política, num país que viveu impeachment duas vezes em três décadas, a PF tem dificuldade de entender o que está acontecendo. O delegado Maurício Valeixo, uma referência, quase unanimidade, foi demitido. Alexandre Ramagem foi impedido de assumir pelo Supremo. Rolando Alexandre de Souza fez as escolhas certas e ia bem, até que, na sexta-feira, foi chamado ao Planalto e o governo tentou novamente emplacar Ramagem.

Os acertos de Rolando desagradam ao presidente Jair Bolsonaro? Essa pergunta não quer calar na PF, onde a percepção é de que está em curso um processo de enfraquecimento do novo diretor-geral, visto agora como “tampão”, achando que tem uma autonomia que na verdade não tem. O foco é a Superintendência do Rio.

Rolando nomeou para o Rio o delegado Tácio Muzzi, elogiado pelos seus pares e bom conhecedor da praça, onde trabalhou com os antecessores Ricardo Saadi e Carlos Henrique – justamente com quem Bolsonaro implica. Saadi, aliás, está na lista de depoentes desta semana sobre as acusações do ex-ministro Sérgio Moro ao presidente. Logo, o que paira na PF é: até quando Rolando Alexandre fica? E Muzzi? E para que novas trocas?

Nas FA, até onde se possa perceber, há três grupos. Os generais do Planalto, apoiando tudo o que seu mestre mandar até o fim, seja lá que fim seja. Os comandos, onde há incômodo com sacolejos entre poderes, atos golpistas até diante do QG do Exército, descaso com pandemia e mortes, churrasco (fake?) no sábado. E as bases, da ativa e reserva, com várias centenas de cargos, DAS camaradas e famílias felizes. Ser leal a quem, ou ao quê?

No Itamaraty, nenhum outro termo define melhor a situação: perplexidade. Num país de diplomacia sólida, estável, baseada em princípios e independência, o atual governo segue cegamente os Estados Unidos e cria atritos e crises com França, Alemanha, Noruega, Argentina, Chile, mundo árabe e, toda hora, com a China.

Em movimento inédito, Fernando Henrique, Aloysio Nunes Ferreira, Celso Amorim, Celso Lafer, Francisco Rezek, José Serra, Rubens Ricupero e Hussein Kalout, de cinco governos diferentes, assinam o manifesto “Reconstrução da política externa”: “Além de transgredir a Constituição, a atual orientação impõe ao País custos de difícil reparação como desmoronamento da credibilidade externa, perdas de mercados e fuga de investimentos”.

Pelo twitter, o chanceler Ernesto Araújo, que guerreia contra o multilateralismo, endeusa Donald Trump, demoniza a China e vive assombrado por um comunismo delirante, acusou os autores de “paladinos da hipocrisia” e o texto de “clichês globalistas”, para desferir: “Não fiquem usando a Constituição como guardanapo para enxugar da boca a sua sede de poder”. Pode ser tudo, menos linguagem diplomática.

Assim, o Brasil atinge 10 mil mortos e vai chegando a epicentro mundial da Covid-19 e ao colapso de redes de saúde e funerária, mas o presidente insiste na apologia da aglomeração, brinca com churrasco para 30 ou 30 mil pessoas, só pensa na PF do Rio e está às voltas com a tal reunião apocalíptica de 22 de abril. Quanto à ida ao STF: segundo arguto personagem, ele procura “sócios para carregar as alças dos caixões”. Porém, o que vale hoje vale amanhã: “Quem manda sou eu”. Não se esqueçam.

Babás fardadas - VERA MAGALHÃES

ESTADÃO - 10/05

Militares no governo apequenam papel que vinham tendo desde redemocratização

Era sabido que o ingresso dos militares no governo Jair Bolsonaro, com papel político central e presença em praticamente todas as áreas da administração, seria um marco histórico, para o bem ou para o mal. A narrativa de que os papéis da instituição e de seus integrantes (da ativa ou da reserva) não se confundem já era falsa em tempos de normalidade democrática e sem uma emergência de saúde pública e econômica instalada.

Na atual conjuntura, em que o presidente afronta o bom senso, as regras sanitárias, as decisões judiciais, os Poderes e a própria Constituição dia sim, outro também, sem descansar nem nos fins de semana, a presença dos generais em postos de comando apequena o papel que as Forças Armadas, disciplinadamente, vinham cumprindo desde a redemocratização: o de zelar pela ordem constitucional.

Esses generais se sentiram afrontados por terem sido arrolados como testemunhas num inquérito que investiga se Bolsonaro cometeu graves violações a essa mesma Constituição ao exigir de Sergio Moro controle da Polícia Federal com fins inconfessáveis.

Mas não demonstraram a mesma indignação com esses e outros atos do presidente que, se esperava, iriam aconselhar e guiar, mas que, hoje se vê, apenas adulam, como avôs amorosos que agem com condescendência diante das diabruras de netos levados.

Em plena crise, o Palácio do Planalto se transformou em creche presidencial. A AGU passou a semana dedicada a tirar da cartola toda sorte de recursos para: 1) impedir que Bolsonaro tenha de mostrar à nação seus exames para covid-19, como decidiu a Justiça; 2) impedir que o vídeo de uma reunião do presidente da República e do vice com todos os ministros em meio a uma emergência nacional fosse entregue ao Supremo, e 3) insistir com o STF pela inexplicável (pela ótica republicana) obsessão presidencial em colocar Alexandre Ramagem à frente da Polícia Federal, mesmo depois de já ter nomeado seu preposto para o cargo.

É papel subalterno, que não condiz com uma estrutura de Estado. O advogado-geral deveria ter a independência de dizer ao presidente que certas batalhas são inócuas do ponto de vista jurídico e tóxicas do político. Mas não: Bolsonaro troca as peças de modo a que os novos ocupantes de cargos entendam que ou atendem seus desejos ou estão fora.

O que nos devolve ao triste papel dos generais. Diante das decisões tomadas, eles se verão nos próximos dias em duas circunstâncias constrangedoras, que em nada condizem com os princípios rígidos da hierarquia militar, pautada pela disciplina e pela seriedade.

Além de terem de depor num inquérito e defender Bolsonaro, podem ser expostos aos olhos do País participando de uma reunião ministerial que, segundo relatos dos presentes, mais se assemelhou a um show de horrores, com o presidente vociferando seus caprichos e instando auxiliares e cometerem infrações e ministros batendo boca entre si, xingando integrantes do STF ou afrontando a China.

E o que esses supostos conselheiros fizeram diante dessa cena dantesca, ou quando seu tutelado anunciou que faria churrasco para 30 pessoas quando 10 mil já morreram numa pandemia? Baixam a cabeça, batem continência, juram lealdade a um governo que já se mostrou incapaz de conduzir o País em meio à maior crise da Humanidade em 100 anos.

Não é bonito o retrato histórico dos homens de farda que resultará da associação voluntária com um capitão reformado que, antes de ser escolhido como solução para vencer o PT, era ridicularizado nas mesmas Forças Armadas. Que os senhores generais percebam, antes tarde do que nunca, que não se espera deles que sejam babás. Mas que honrem as medalhas que ostentam no peito.

O lobby da morte na incursão ao Supremo - ROLF KUNTZ

ESTADÃO - 10/05

Bolsonaro defende reabertura, mas o governo falha até na ajuda já anunciada


O lobby da morte cruzou a Praça dos Três Poderes, na quinta-feira, na marcha do presidente Jair Bolsonaro e de representantes da indústria até o Supremo Tribunal Federal (STF). Numa visita-surpresa, o presidente da República foi pressionar o chefe do Poder Judiciário em busca de apoio a uma atabalhoada reabertura da economia. Exibiu de novo seu desprezo pela vida dos brasileiros e pela ciência médica, dessa vez com apoio, talvez involuntário em alguns casos, de porta-vozes do capital privado. No mesmo dia seria anunciada a morte de mais 610 pessoas, com o total de óbitos elevado a 9.146. No Estado de São Paulo, a extensão da quarentena até 31 de maio, anunciada no dia seguinte, marcou o reconhecimento de um quadro ainda muito adverso e com muito risco de vida. Mas sobra a pergunta: qual a importância da vida, quando a prioridade presidencial é buscar apoio, proteger a si e aos seus de investigações muito inconvenientes e cuidar da reeleição em 2022?

Bolsonaro discursou no STF sem olhar o anfitrião, enquanto a cena era transmitida, também sem aviso, por iniciativa do Executivo. Foi mais uma baixaria bolsonariana, mas com uma novidade notável: a presença de coadjuvantes de elite. O presidente do Supremo, Antonio Dias Toffoli, deu a resposta cabível e em tom civilizado: o isolamento social é a melhor defesa contra a doença, até agora, é preciso dar atenção à ciência e, enfim, cabe ao governo federal buscar entendimento com os governos estaduais e municipais para planejar a próxima etapa.

A tentativa de repartir com o Judiciário a responsabilidade pela reabertura fracassou. O presidente Bolsonaro poderia, ouvindo o ministro Dias Toffoli, ter aprendido algo sobre Presidência e governo. Sairia pelo menos com esse lucro. Mas esses temas permanecem fora de suas preocupações.

A marcha, quase uma invasão, ocorreu sem o ministro da Saúde, empenhado nos últimos dias em defender o lockdown, um amplo fechamento, nas áreas em pior situação. Distante da medicina e da ciência, e de novo citado quase como aberração pela revista Lancet, Bolsonaro ainda falaria, na sexta-feira, de um planejado churrasco para umas 30 pessoas. Programada para domingo, a festinha deveria incluir uma pelada. Federações de futebol têm sido mais cautelosas. Quem gosta de assistir a um joguinho tem assistido a videoteipes, às vezes gravados há meio século.

Voltando à quinta-feira: na saída do STF, o presidente parou na calçada, com o grupo em torno dele, e fez um pequeno comício sobre a paralisia econômica. O ministro da Economia, Paulo Guedes, reforçou a mensagem dramática. Mas ninguém falou sobre os R$ 40 bilhões prometidos para evitar demissões e ainda quase intactos, como informou o Estado na sexta-feira.

Só R$ 413,5 milhões, 1% dessa verba, haviam sido liberados até quinta-feira, cerca de um mês depois de editada a Medida Provisória (MP) 944. Essa MP foi parte do pacote inicial de emergência. Empregadores deveriam sacar esse dinheiro para cobrir salários, mas o acesso é reservado a empresas com folha de pagamento processada num banco. Como em outras ações, o objetivo central foi prejudicado por um detalhe socialmente inútil. Nos Estados Unidos, muitos bilhões de dólares vêm sendo distribuídos com o mínimo de complicações, porque se distingue o essencial do acessório.

Mais uma vez a equipe econômica agiu, no caso dos R$ 40 bilhões, com escasso conhecimento do mundo real. O mesmo desconhecimento foi exibido na montagem do auxílio emergencial a milhões de trabalhadores informais e de baixa renda. As filas, a desinformação de milhares de pessoas e as dificuldades para formalizar o direito ao recebimento comprovam a enorme distância entre os gabinetes de Brasília, especialmente no atual governo, e o dia a dia da maior parte da sociedade.

Enquanto a epidemia avança e mata sem sinais de arrefecimento, a política mais prudente, segundo médicos e economistas de respeito, seria combinar o isolamento com o máximo de ajuda possível aos necessitados. Organizações civis vêm realizando parte desse trabalho, com a distribuição de alimentos e de produtos de higiene e limpeza. Há comida suficiente no Brasil e essa é uma bênção muito especial. Um governo mais ativo e mais comprometido com o socorro aos mais vulneráveis estaria empenhado em coordenar operações de socorro.

Mas o presidente se mostra mais interessado em atender a outras demandas. Tentando ampliar a lista de atividades essenciais, incluiu num decreto segmentos industriais já liberados em muitos Estados para operar. Só se exige, nesses casos, a observância de normas de saúde. Indústrias autorizadas a operar têm reduzido, no entanto, a produção. Nada mais natural, quando falta demanda. Daí a insistência em apressar o abandono do isolamento. É preciso pôr as pessoas na rua, pouco importando o risco de maior contágio, já observado em locais onde a abertura foi descuidada. Quem se importa com isso? Não incluam Bolsonaro nessa lista. Nem as funerárias, já sobrecarregadas, vêm pedindo esse favor ao presidente.

JORNALISTA

Quem semeia vento colhe tempestade - MARCOS LISBOA

FOLHA DE SP - 10/05

O país deve cuidar da saúde e da economia, o que requer ciência e negociação de conflitos

A semana passada revelou, mais uma vez, o descontrole do governo. A Câmara deliberava sobre a proposta de auxílio aos estados e municípios quando ocorreu o inesperado.

A contrapartida pedida pela equipe econômica, e negociada com o Congresso, de não reajustar os salários de muitas categorias de servidores por 18 meses, foi parcialmente derrotada com o apoio do líder do governo.

Ele foi ao palanque e esclareceu que orientara a bancada afrouxar a medida por instrução do presidente, na contramão do que defendia o ministro da Economia. “Eu sou líder do governo, não de qualquer ministério”, esclareceu.

O presidente parece saber pouco do que fazem seus assessores ou da complexidade dos problemas. Para piorar, o capitão reformado se apega às frases de efeito descabidas que talvez tenha ouvido de alguém de passagem e as repete em público como se fossem verdades.

“Querem taxar o sol”, afirmou a respeito de uma discussão sobre a revisão dos subsídios para o setor elétrico.

Há quase um ano, prometeu, com seu linguajar usual, “um projeto que, com todo o respeito ao Paulo Guedes, a previsão de nós termos dinheiro em caixa é maior do que a reforma da Previdência em 10 anos”. Até hoje o país espera saber que medida seria essa.

A sucessão de disparates parece não ter fim. Refém de uma polarização de botequim entre economia e saúde, o governo consegue descuidar de ambas. Caminhamos para ser um dos países que mais vão sofrer com a pandemia.

Será que, em privado, ninguém lhe diz ser constrangedor um presidente saber tão pouco do que fala, incluindo as principais negociações conduzidas pelos seus mais importantes auxiliares? Que as decisões do Executivo requerem técnica e política para enfrentar dilemas difíceis?

O governo, contaminado pelo despreparo do presidente, aparenta acreditar que a política pública se resume a frases de efeito para animar a torcida. Gestão, planejamento, a análise cuidadosa das medidas, incluindo seus possíveis efeitos colaterais, e os detalhes da implementação parecem temas estranhos à atual administração.

A descoordenação prejudica a economia. Parte do governo parece refém de interesses corporativistas. Parte parece defender que a saída da crise seria retomar uma agenda de investimentos liderada pelo setor público. Pelo visto, nada aprenderam com o fracasso dos governos Geisel e Dilma.

Há trabalho de verdade a ser feito. O país deve cuidar da saúde e da economia, o que requer ciência e negociação de conflitos. Apenas distribuir recursos destrambelhadamente pode resultar em fracasso nas duas frentes, além de iniciar uma trajetória insustentável da dívida pública.

Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.

Saltos no escuro - PEDRO MALAN

ESTADÃO - 10/05

A superação desta crise – de saúde, econômica, social – exige engenho, arte e serenidade

“Com Jânio no poder, o Brasil dá um salto no escuro”, registrou premonitoriamente ao final de 1960 Carlos Castelo Branco, o mais influente jornalista político de sua geração, a propósito da eleição de Jânio Quadros. Como é sabido, o próprio Jânio deu o seu salto no escuro em agosto de 1961, ao que tudo indica, esperando voltar por demanda do povo e/ou das Forças Armadas. A História nunca se repete, mas por vezes rima, com frequência ensina e, de quando em vez, a muitos desatina.

A chegada do coronavírus, com sua exponencial velocidade de disseminação e as exigências que impôs à nossa limitada capacidade hospitalar, representa um tipo de salto no escuro com dor, sofrimento e angústia, especialmente para os mais vulneráveis, que são maioria. A ideologia negativista e o achismo multiplicam, também exponencialmente, custos humanos e sociais da crise, e tornam ainda mais assustador esse salto no escuro.

Pressão estrutural por gastos públicos foi o título comum a uma série de três artigos que publiquei neste espaço entre março e maio de 2017. Em meio a uma pandemia, o aumento expressivo de gastos e o endividamento público são inevitáveis para salvar vidas e mitigar os efeitos da parada súbita da oferta, da demanda e de suas consequências sobre pessoas e empresas. É também fundamental, embora menos consensual, evitar que se tomem agora decisões de gastos que assumam depois caráter permanente.

O Brasil será, apontei naqueles artigos, um “estudo de caso” de interesse e relevância globais pela rapidez de sua transição demográfica, tanto no crescimento populacional dos anos 1950 aos anos 1990 quanto na redução posterior nas últimas duas décadas. Nosso bônus demográfico está a se exaurir: a população em idade ativa cresce a uma taxa menor que a de crianças e idosos e vai se estabilizar na próxima década. Somos um país que corre sério risco de ficar velho antes de superar a armadilha da renda média. A urbanização (sem paralelo no mundo) que conheceu o Brasil gerou, por outro lado, demandas que exigiram e exigem de governos respostas em três grandes áreas: em infraestrutura física, em infraestrutura humana e, por fim, com especial força após a democratização, respostas com relação à pobreza e distribuição de renda e oportunidades.

O coronavírus, com suas consequências, acentuará a pressão estrutural por maiores gastos públicos nessas três grandes áreas. E o fará com uma força inédita em razão da forma como veio escancarar, como fraturas expostas, nossas enormes carências, pobreza e desigualdade. Na resposta a essas carências reside o risco de que governos extrapolem os limites de suas capacidades – de tributar, de bem gerir seus gastos, de se endividar, de reformar e de investir. O risco de que adotem cursos de ação que agravem os problemas e os transfiram, acentuados, para futuras gerações. É fundamental, ao longo daqui até 2022, que haja debate sério, baseado em evidências, sobre a composição de gasto público, nos três níveis de governo, e sobre sua eficácia operacional, o que exige avaliação rigorosa dos resultados de planos e programas, e não apenas de intenções e promessas.

Há escolhas particularmente difíceis a fazer. Como sabem todos os que tiveram alguma experiência na vida pública, nem tudo é possível, ou factível, porque desejável. Nunca será demais apontar, como fez recentemente o ministro Barroso (citando Holmes), que “políticas e programas se julgam por seus resultados, não por suas intenções”. Entre ambos, com frequência, “desce a sombra”, como disse um poeta, e por vezes “uma sombra ambulante”, como escreveu, sobre a vida, o dramaturgo maior.

A superação desta crise, que é a um só tempo de saúde pública, econômica, social e humana, exigirá serenidade, engenho e arte. Exigirá o exercício da política entendida como a arte de (tentar) tornar possível amanhã o que parece impossível hoje, ou, como gosta de vê-la Paulo Hartung, entendida como a “arte de pensar as mudanças e fazê-las efetivas”. Na difícil quadra em que nos encontramos, parece definição especialmente apropriada.

Em democracias, a frustração com promessas não cumpridas sempre pode ter solução por meio de eleições regulares, nas datas previstas. No período que media uma eleição e outra é comum surgir assimetria importante entre aspirações e a capacidade de materializá-las. Pensar as mudanças e, sobretudo, fazê-las acontecer no mundo real exigem esforço coletivo, capacidade de articulação, coordenação, convencimento, e busca das convergências possíveis. Só por meio de diálogo, compromissos e mediação entre inevitáveis conflitos de interesses será possível avançar. A última coisa que precisa o Brasil é de uma Presidência da República que, em vez de protagonista da solução, seja parte ativa do problema “quase” político-institucional do País.

“O homem sábio ajusta suas crenças às evidências”, escreveu David Hume. Os negacionistas, com dissonância cognitiva, reforçam ainda mais suas crenças diante de quaisquer evidências contrárias a elas. Isso inclui o risco de novos saltos no escuro, além daqueles que já demos. Até quando o faremos?

ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FHC

Um vírus velho pegou a medicina do Rio - ELIO GASPARI

O GLOBO/FOLHA DE SP - 10/05

Epidemia expôs a ruína da medicina pública do estado


A epidemia expôs a ruína da medicina pública do Rio. Enquanto os governos abrem hospitais de campanha e seus hierarcas dão entrevistas, a cidade tem cerca de 1.500 leitos vazios. Mais de mil deles estão em hospitais federais e universitários. Estão vazios porque as instituições foram sucateadas (e sucatearam-se) em termos de equipamentos e recursos humanos.

O governo do município ofereceu mil vagas para médicos com salários de R$ 4.411 a R$ 11 mil por jornadas de 12 a 30 horas semanais. Apareceram muitos currículos, mas os interessados chegam num ritmo de pinga-pinga.

O Hospital Universitário da UFRJ, no Fundão, tem 200 leitos, ganhou 60 outros e, destes, 50 estão vazios. Ele foi construído sonhando ser o melhor do Brasil. O Hospital dos Servidores do Estado (federal), que já foi o melhor, está com 130 leitos vazios.

Essa desgraça aconteceu por razões compreensíveis e também por motivos irracionais. Se o município oferece mil vagas temporárias e elas ainda não foram preenchidas, os médicos têm seus motivos, ora porque querem ganhar o que acham justo, ora porque não pretendem fazer biscates. Os motivos irracionais aparecem quando se vê o caso dos hospitais universitários federais. Durante o governo de Dilma Rousseff foi criada a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, a Ebserh, e ela contrata celetistas, nada a ver com biscates. A UFRJ recusou-se a aderir às suas normas. Eram muitos os argumentos, mas o que robusteceu as militâncias foi a obrigação de bater ponto. Num debate dessa questão houve tapas e cusparadas.

Na rede privada, o médico é contratado por um salário em troca de uma carga horária. Na pública, vigoram um regime de dedicação exclusiva (com direito a manter a própria clínica em nome de um parente) e uma feira livre onde há os celetistas, as pessoas jurídicas, os terceirizados e os terceirizados dos terceirizados. Nessa barafunda de cargas horárias e vencimentos, há instituições que funcionam, mas avacalhou-se a estrutura.

Essa desorganização foi impulsionada no governo do “gestor” Sérgio Cabral e de seu secretário de Saúde, Sérgio Côrtes. Ambos foram para a cadeia, e Cabral continua lá.

Papagaios de crise
Existem dois tipos de papagaios: o de pirata, que aparece atrás de quem quer que seja, e o de crise. Este é especial, vive no andar de cima e canta o que os ministros da economia querem ouvir. Guilherme Benchimol, da XP Investimentos, brilha nessa espécie, mas exagerou.

Quando a curva dos mortos apontava para a marca dos dez mil e num só dia ia-se para o recorde de 600 óbitos, o doutor disse o seguinte:

“Eu diria que o Brasil está bem. Nossas curvas não estão tão exponenciais ainda, a gente vem conseguindo achatar. (...) O pico da doença já passou quando a gente analisa a classe média, classe média alta. O desafio é que o Brasil é um país com muita comunidade, muita favela, o que acaba dificultando o processo todo”.

De fato, um funcionário da XP foi contaminado pelo vírus em fevereiro, durante uma viagem à Itália, mas favela “dificultando o processo” é coisa que nunca se ouviu.

Benchimol fala bem de si ensinando que “todo fundo do poço tem uma mola”. Descobriu, mas não entendeu, que no fundo do poço há também favelas.

Compadre Moro
No seu depoimento à Polícia Federal o doutor Sergio Moro voltou a tratar da ursada que fez com a deputada ultrabolsonarista Carla Zambelli.

No dia de sua demissão ele divulgou uma troca de mensagens com a senhora na qual ela escreveu: “Por favor, ministro aceite o (Alexandre) Ramagem e vá em setembro para o Supremo Tribunal. Eu me comprometo a ajudar a fazer Bolsonaro prometer”.

Moro respondeu: “Não estou à venda.”

Valentia de WhatsApp é coisa manjada. Zambelli nada fez de condenável. Pediu-lhe que aceitasse uma coisa que não queria fazer. E daí? Comprometeu-se a azeitar sua nomeação para o Supremo. Nada de anormal, sobretudo tratando-se de uma parlamentar, mas Zambelli era mais que isso.

Dois meses antes, Moro e sua mulher haviam sido seus padrinhos de casamento com o coronel da PM cearense Aginaldo de Oliveira, chamado por colegas de “Caveira”. Doutor Moro dançou “La Vie En Rose” com a comadre Zambelli e discursou, chamando-a de “guerreira”.

No depoimento à Polícia Federal, Sergio Moro disse que “lamenta muito ter repassado mensagens trocadas em privado, mas que não teria como aceitar as afirmações feitas pelo presidente”. Há uma certa sonsice nessa frase. Se não aceitava o que dizia Bolsonaro, esse era um problema dele com o capitão, a comadre não precisava ser envolvida.

Supremos eventos
Depois da passeata de Bolsonaro em direção ao Supremo Tribunal Federal e da realização de uma reunião nas dependências da Corte para discutir uma de suas decisões, o presidente Dias Toffoli pode revolucionar a história da Casa, alugando dependências do prédio para outros eventos.

O Salão Nobre, com sua salada de móveis, serviria para coquetéis. O Salão Branco serviria para velórios e o dos Bustos acomodaria festinhas de aniversários de crianças.

Curió, outro mito
Bolsonaro recebeu o “Major Curió” no Palácio do Planalto e, mais uma vez, aos 85 anos, Sebastião Rodrigues de Moura foi identificado como um dos principais militares envolvidos no combate à guerrilha do Araguaia. Essa qualificação é falsa.

Ele é apenas o mais exibido, com fortes momentos de mitomania.

Nos tempos estranhos de hoje, Curió pode ser lembrado pelo ângulo de seu mito e do abstruso envolvimento de militares na política.

Enquanto os outros oficiais que estiveram no Araguaia voltaram à caserna, ele manteve sua influência na região. Primeiro, distribuindo terras. Depois, enroscando-se no garimpo de Serra Pelada, a maior mina de ouro a céu aberto do mundo. Nessa condição, liderou os garimpeiros na maior revolta popular já ocorrida na Amazônia. Curió elegeu-se deputado federal e, pelo PMDB, tornou-se prefeito de uma cidade batizada de Curionópolis.

Em 1975, quando não havia mais guerrilha no Araguaia, foi preso no Sul do Pará um sujeito que não sabia dizer de onde vinha nem para onde ia. Curió interrogou-o, ele se confessou guerrilheiro e trouxe-o para o Rio de Janeiro.

O general Leônidas Pires Gonçalves, chefe do Estado Maior do I Exército, pediu que seu assistente fosse buscar o preso no Galeão. No caminho, o sujeito contou que a família o mandava para o Rio quando precisava de internação hospitalar. Ao chegar ao DOI, o oficial mandou fotografá-lo e determinou que fizesse uma checagem nos hospícios da cidade.

Horas depois, uma patrulha voltou:

— Positivo, capitão, ele é freguês do Pinel.

(O doido, guerrilheiro confesso, havia ficado seis semanas preso com direito a fuzilamento simulado.)

Luvas de pelica - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 10/05

Bolsonaro não realizou o churrasco devido à péssima repercussão do gesto de indiferença à morte


A decretação pelo Congresso e Supremo Tribunal Federal de luto oficial por três dias por termos atingido a fatídica marca de mais de 10 mil mortos devido à Covid-19 é o segundo tapa com luva de pelica que o presidente Bolsonaro recebe esta semana. Enquanto isso, ele andava de jet ski no Lago Paranoá.

O primeiro desferiu o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, que se portou com altivez diante da afronta que o presidente fez ao praticamente invadir a sede do STF para pressioná-lo pelo fim do isolamento, justamente no dia em que o país registrava mais de 700 mortes por dia e chegava ao número macabro de 10 mil mortos, indiferentes para o presidente.

Toffoli salientou o bem que o isolamento social tinha trazido ao país, reduzindo o número de mortes, e sugeriu com enorme presença de espírito que o governo coordenasse uma ação conjunta de diversos ministérios para traçar planos de combate à Covid-19 juntamente com Estados e Municípios que, pela Constituição, são os responsáveis pelas ações regionais.

Bolsonaro, como sempre, fez aquela exibição para tirar de seu colo os mortos que seu egocentrismo provocou. Os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e o do Senado, Davi Alcolumbre, fizeram o que os que dirigem o país sem olhar apenas seus umbigos devem fazer em momentos de comoção nacional.

Nada mais do que prestar solidariedade à família dos mortos, em vez de programar churrasco que, se realizado, seria mais afrontoso ainda por usar um imóvel do Estado brasileiro para uma confraternização aviltante.

O presidente acha que o povo que deveria presidir é composto de imbecis, pois desmente até mesmo o que os vídeos com suas falas atestam. Dizer que o churrasco era uma fake news de “jornalistas idiotas” é típico de uma pessoa com comportamento antissocial e amoral, incapaz de aprender com as próprias experiências.

Ele não realizou o churrasco porque foi obrigado a cancelá-lo devido à péssima repercussão de mais esse gesto amoral de indiferença diante da morte de brasileiros que, infelizmente e muito por causa dele, está longe do fim. Até mesmo porque o presidente da República se esmera em dar exemplos cotidianos que incentivam o não cumprimento das medidas de proteção recomendadas pelas autoridades médicas do Brasil e do mundo.

Com isso, dá margem a que aliados seus como o pastor Valdomiro Santiago, líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, venda por mil reais sementes de feijão supostamente milagrosos contra a Covid-19. Mais ou menos o que Bolsonaro fez irresponsavelmente durante semanas seguidas ao receitar a cloroquina como a solução para os pacientes da pandemia, que se demonstrou inócuo em testes científicos.

Não há um governante sério no mundo que assuma posição tão absurda quanto Bolsonaro. Iguala-se a ele o presidente da Bielorrússia, Alexander Lukashenko, que prescreve vodka e sauna para combater a Covid-19, enquanto exige que todos trabalhem normalmente.

Mas Lukashenko é um ditador há 26 anos à frente da presidência da Bielorrússia, e Bolsonaro é um aspirante a ditador num país em que as instituições democráticas vão resistindo às suas investidas cada vez mais frequentes.

A sorte dos democratas, que são a maioria da população, é que Bolsonaro e seus seguidores mais fanáticos cometem tantos erros que eles mesmos vão criando obstáculos em seu caminho insensato. Nossa situação é tão dramaticamente ridícula que vizinhos como o Paraguai, Uruguai e Argentina fecham-nos suas fronteiras para evitar o contágio.

No meio médico internacional já somos classificados como o país que mais fica a dever no combate à Covid-19, e estamos atingindo recordes trágicos de mortes, com uma previsão de superarmos até os Estados Unidos em número de mortos este ano.

Ao mesmo tempo em que nossa imagem como país vai ladeira abaixo, Bolsonaro volta-se para fazer acordos ilegítimos que tentam salvar seu pescoço. Os manifestantes, bizarros mas perigosos, que mais uma vez aviltaram o Congresso e o Supremo na Praça dos Três Poderes, e o notório Roberto Jefferson bancando o xerife com uma espingarda em punho, defendendo o fechamento do Supremo e o controle de empresas jornalísticas, é o fim que Bolsonaro merece. Sua tábua de salvação é o lumpesinato e o baixo clero do Congresso, onde ele e seus filhos sempre chafurdaram.

Talvez as luvas de pelica sejam insuficientes para contê-los.

A marcha da destruição - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 10/05

Bolsonaro pode agora acrescentar mais um aos seus adversários: a comunidade médica internacional


Há poucos dias o Imperial College de Londres divulgou um dos cálculos mais horripilantes sobre a marcha da destruição do vírus: entre 48 países, o Brasil tem a maior taxa de transmissão – 2,81 para cada infectado. A favorecer o inimigo, o País tem muitos agravantes, como falta de testes, má distribuição de UTIs por regiões e por classes, subnotificações, déficit de saneamento básico ou a densidade das favelas, às vezes com três ou mais pessoas de gerações diversas ocupando o mesmo cômodo. Ainda assim, “a maior ameaça à resposta do Brasil à covid-19 talvez seja o seu presidente, Jair Bolsonaro”. O alerta é tanto mais grave por ter sido lançado por alguém que não pode sequer remotamente endossar o figurino de “comunista” ou qualquer outro chavão conspiratório do presidente, mas pela revista científica de medicina e saúde pública possivelmente mais reputada do mundo, a Lancet, em editorial exclusivamente dedicado à marcha da destruição de Bolsonaro.

Na mesma semana em que o número de mortos no País dobrou (deixando-o abaixo apenas dos EUA em novas mortes), no mesmo dia em que Bolsonaro marchava sobre a Praça dos Três Poderes com um plantel de ministros e empresários para intimidar a Suprema Corte a relaxar o confinamento, a revista lembrou a turbulência intempestiva manufaturada pelo presidente com a demissão de dois ministros e as agressões à imprensa, governadores e instituições da República, frequentemente ante aglomerações inflamadas por ele. “Tamanha balbúrdia no coração da administração é uma distração mortal no meio de uma emergência de saúde pública e é também um sinal chocante de que o líder do Brasil perdeu sua bússola moral, se é que já teve uma.”

A revista não citou, mas poderia, se quisesse diagnosticar a fundo essa sociopatia, o fato de que a única campanha nacional que o governo promoveu foi não para conscientizar a população de cuidados elementares de higiene, mas, ao contrário, para incitá-la a ir às ruas contra as orientações do seu próprio Ministério da Saúde e dos governos regionais.

O delírio virulento de Bolsonaro é tal que, ao tentar justificar o seu emblemático “E daí?” – que, por sinal, serviu de título ao editorial –, ele, não contente em culpar as quarentenas estaduais pelos incontornáveis danos econômicos, chegou a culpá-las pelas próprias mortes: “Essa conta tem que ser perguntada (sic) para os governadores.”

Como que a corroborar essa posição, durante a Brazil Conference Harvard MIT – que conta com o apoio do Estado –, os governadores João Doria (PSDB-SP), Helder Barbalho (MDB-PA), Renato Casagrande (PSB-ES) e Flávio Dino (PCdoB-MA) acusaram o “vácuo de liderança” e a falta de “lealdade corporativa” por parte de Bolsonaro.

“O Brasil só deve ter um adversário, que é o novo coronavírus”, advertiu Barbalho. Mas, apesar da perene “opção pelo enfrentamento” de Bolsonaro (como disse Casagrande) acumular inumeráveis inimigos em sua lista negra imaginária (imprensa, OMS, Congresso, STF, até seu antigo partido, o PSL, ou ex-ministros como Sérgio Moro e Henrique Mandetta), ele não só é incapaz de enfrentar o único inimigo que importa, como o municia dia sim e outro também. Como disse Doria, ao desafio dos governadores de enfrentar as resistências da população ao isolamento social, o comportamento de Bolsonaro acrescenta um “segundo enfrentamento”. Em meio ao conflito de mensagens “eu fico imaginando”, disse Barbalho, “como o cidadão no interior do Estado se pergunta o que deve fazer”.

Agora, Bolsonaro pode acrescentar aos seus adversários mais um: a comunidade médica internacional. Dando voz a ela, para não dizer a todos os inimigos da morte, a Lancet concluiu: “O Brasil precisa se unir para dar uma clara resposta ao ‘E daí?’ de seu presidente. Ele precisa mudar drasticamente o seu curso ou deve ser o próximo a ir embora”. Cada vez que tergiversa nesta resposta, o País dá um passo para consolidar na comunidade global a percepção de que ele é um pária – um amigo doentio de um inimigo mortal, que precisa ser isolado.

Epidemia reforça necessidade de reforma do SUS - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 10/05

A saúde pública tem tido grande papel na crise, o que não significa que não deva ser aperfeiçoada


A epidemia que já deixa um rastro de mais de 10 mil mortos e 145 mil contaminados ainda avança para chegar ao ápice e constrói uma agenda para o depois da crise. Nela há menos questões novas do que temas e assuntos conhecidos, mas que são negligenciados por políticos, pelo poder público em geral e pela própria sociedade, que não pressiona governos nem escolhe representantes como deveria para resolver problemas básicos que se eternizam.

Há questões que ficam presas no emaranhado da burocracia estatal e na letargia dos poderes, algumas delas paralisadas pela ação de grupos de interesse. Um exemplo consensual é o precário saneamento básico, muito falado mas sem que haja ações com a força necessária para enfrentá-lo. Espera-se que depois da crise um novo marco regulatório para o setor seja aprovado no Congresso, para que empresas privadas possam ampliar sua participação na atividade.

No atendimento à população, ao lado do merecido reconhecimento do trabalho dos profissionais de saúde, destaca-se o Sistema Único de Saúde (SUS), instituído pela Constituição de 1988 com o meritório objetivo de o Estado conceder atendimento a todos, em qualquer ponto do país, gratuitamente. Dentro da visão do “Welfare State” da social-democracia europeia, em que pesados impostos sobre a renda financiam este e outros sistema públicos, como o de educação, garantindo às famílias serviços essenciais de boa qualidade, liberando uma razoável parcela de sua remuneração para o consumo ou a poupança.

Este objetivo não foi alcançado no Brasil, pelas dificuldades fiscais do Estado, e por isso o SUS precisa ser encarado como um projeto inacabado. Mesmo na Europa o custo deste “Estado de Bem-Estar” pressiona orçamentos de países.

Na crise, o SUS tem funcionado como uma trincheira valiosa de atendimento à população, com todas as conhecidas distorções. Mas para se enfrentar a questão de maneira séria e consequente será preciso descontaminar o tema de maniqueísmos como o da “medicina pública” versus “medicina privada”. A complementação entre as duas deve ser objetivo constante.

É crucial que o SUS, onde também há centros de excelência, melhore a qualidade do atendimento, e este é um objetivo a ser alcançado não apenas pelo fim do “subfinanciamento” do sistema.

O contribuinte precisa estar seguro de que o dinheiro do seu imposto será bem aplicado. O que só acontecerá quando houver uma gestão eficiente e não apenas no SUS, mas em toda a estrutura do Estado. O ideal é que a dedicação do profissional de saúde na epidemia, (no Brasil e no mundo), motivo de justas e emocionadas homenagens, tenha continuidade na melhoria das suas condições de trabalho e de toda a estrutura, para que também a população de renda mais baixa, dependente do SUS, tenha um atendimento digno.

Pode ser que faltem recursos, mas não há dúvida de que o SUS precisa de um choque administrativo, nos seus três segmentos, União, estados e municípios. É uma estrutura gigantesca, com dezenas de milhares de servidores, R$ 140 bilhões de orçamento este ano, e que em 2019 prestou 8 milhões de atendimentos. Há outros arranjos de governança no setor de saúde — fundações, organizações sociais — com bons resultados para os usuários, por utilizarem métodos gerenciais do setor privado, fugindo da cultura autárquica e das regras do estatuto do funcionalismo público, em que a falta da meritocracia esclerosa qualquer sistema.

Em uma organização dessa magnitude, o engessamento de regras fomenta ineficiências graves, difíceis de serem revertidas com o passar do tempo. O resultado é que a conta termina sendo paga pelos milhões que dependem do atendimento do SUS na forma de um serviço de baixa qualidade, o que não significa depreciar seus servidores, dignificados na epidemia. Manter esta situação é agir contra o povo.

O foco que a epidemia fecha sobre a saúde concede a oportunidade de uma rediscussão do SUS com menos ideologia e mais fundamentação. A dedicação dos profissionais que vem sendo demonstrada na crise precisa ter sequência em um amplo projeto de modernização da saúde pública, também em favor deles.

Pedágios do centrão - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 10/05

Bolsonaro pagará apoio com cargos, desgaste de imagem e risco de deslealdade


Não se sabe ainda o que revelarão as investigações acerca de atos de Jair Bolsonaro, seus filhos e aliados, mas o presidente decerto as teme. Sinal eloquente disso é a decisão temerária de entregar a sobrevivência de seu governo a parlamentares do chamado centrão.

Se o apoio desse grupo político fisiológico custa caro para qualquer governante, o preço se torna muito maior para Bolsonaro, que faz o movimento em meio a uma crise de governabilidade e é refém de seu discurso populista contra o que chama de “velha política”.

O primeiro e mais óbvio pedágio pela aliança será pago com cargos no Executivo que controlem verbas. Experientes, deputados e senadores que negociam votos no varejo legislativo não vendem fiado.

Com efeito, o centrão já recebeu do Palácio do Planalto um órgão pródigo em recursos e escândalos —o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), que conta com R$ 1 bilhão no Orçamento deste 2020 e foi apontado pelo Tribunal de Contas da União como uma das repartições federais mais suscetíveis a desmandos.

A tarifa do segundo pedágio deve se mostrar ainda mais inquietante para Bolsonaro e seus aliados. Está em jogo aqui a credibilidade do presidente perante sua base eleitoral mais fiel, seduzida por um discurso que associava barganhas partidárias e corrupção.

Trata-se de uma tese maniqueísta, com origens, diga-se, na Lava Jato —cujo maior expoente, o ex-juiz Sergio Moro, acaba de deixar o governo. Naturais em sistemas pluripartidários, coalizões são mais virtuosas quando fundadas em entendimento programático, em vez de na mera cooptação.

Bolsonaro envereda justamente pelo pior modelo ao fazer mesuras para figuras do centrão como os notórios Roberto Jefferson (PTB-RJ), Valdemar Costa Neto (PL-SP) e Arthur Lira (Progressistas-AL).

Pesquisas de opinião têm mostrado que o presidente perde sustentação entre os mais ricos e escolarizados. Ironicamente, esse desgaste pode ser compensado pelo apoio de trabalhadores de baixa renda que começam a receber o auxílio emergencial de R$ 600, uma iniciativa do Congresso Nacional.

A recente radicalização retórica de Bolsonaro, com ataques mais frequentes e descabelados ao Legislativo, ao Supremo Tribunal Federal e à imprensa, pode ser compreendida como tentativa de mobilizar o eleitor que já vê motivos para decepcionar-se com o “mito”.

Por fim, o terceiro pedágio a pagar é o risco de deslealdade. Se o centrão costuma ser um fornecedor confiável de votos em ocasiões definidas, não está em sua índole salvar um governo por compromisso político ou ideológico.

O mercado de votos pode ser volátil nas crises. Se o chefe de Estado perde sustentação nas ruas e crescem as perspectivas de recompensa com uma eventual mudança de governo, o fisiologismo muda rapidamente de lado. Assim se deu no impeachment de Dilma Rousseff (PT), apenas quatro anos atrás.