domingo, outubro 09, 2011

JOÃO UBALDO RIBEIRO - Vida volátil

Vida volátil
JOÃO UBALDO RIBEIRO
O ESTADÃO - 09/10/11

Fico escrevendo aqui umas coisas meio paranoicas sobre a evolução tecnológica e aí concluo que me explico mal, porque tem gente que pensa que sou um tecnófobo reacionário, que gostaria de escrever com pena de ganso. Grave injustiça. Fui dos primeiros escritores brasileiros a usar computador para escrever, tripulando um clone nacional (e ordinário) de um Apple II, sem disco rígido e com 148 KB de memória, dos quais o editor de texto comia 120. Com sua tremenda impressora matricial, fazia sucesso e eu recebia visitas turísticas a meu escritório. Sempre gostei de novidades tecnológicas e claro que não sou, nem adianta ser, contra essas novidades.

Meu problema não é com tecnologia, é com certos usos que podem fazer dela. Considerando a geral natureza do ser humano, que, agora mesmo, está se matando ferozmente em várias partes do mundo, esses usos, como alguns que já mencionei aqui, às vezes me metem medo. E, se a tecnologia nos beneficia de incontáveis formas, não devemos esquecer como ela é também usada para o mal e para objetivos odiosos e como pode afetar nossa vida para pior, em termos humanos e sociais.

Além disso, nesta longa estrada cibernética que percorri e continuo a percorrer, tenho tido de me adaptar a mudanças cada vez mais rápidas, que cansam até mesmo alguns viciados em comprar todas as versões do iPad. Nos Estados Unidos, quando computador aqui ainda se chamava 'cérebro eletrônico', cheguei a estudar a linguagem Fortran e trabalhar com um computador que, num ambiente refrigeradíssimo, ocupava todo um andar de um prédio da universidade e era infinitamente menos poderoso que meu notebook de um quilo e pouco.

De lá pra cá, até dá para começar a enumerar as novidades que foram aparecendo, mas hoje ninguém mais pode fazer isso sem recorrer ao Google. A mudança é o tempo todo. E está certo que tudo neste mundo é passageiro, inclusive ele próprio, mas acho que o homem gosta de ter algum senso de permanência, de duração. Antigamente era possível reservar tempo para nos acostumarmos às mudanças, mas hoje esse tempo não existe mais e já é piada conhecida dizer-se que o tempo que economizamos com os novos gadgets é necessário para que possamos aprender a usar os novíssimos.

Lembro-me de um velho porta-retratos na casa de meus pais, com uma foto em preto e branco de meu avô paterno, que ficou lá por mais de cinquenta anos. Havia algo de permanência naquela antiga moldura de madeira e no sorriso do velho, havia um certo sossego, coisas que duravam e eram guardadas 'para sempre'. No futuro, acho que não se conhecerá mais essa sensação. Os porta-retratos agora são eletrônicos e programáveis para fazer exibição de slides, mudar a foto periodicamente, tocar música e mais outras coisas. As fotos, que hoje se produzem com uma abundância inadministrável, também não são mais para ficar, nada mais é para ficar.

A maior parte das novidades dura apenas dias e ninguém se lembra delas depois. Aliás, ninguém se lembra de mais nada e a fama às vezes já nem alcança os 15 minutos de Andy Warhol, vai embora literalmente em menos tempo, como acontece com muita gente enfocada em reportagens de televisão. Nossa efemeridade, sempre um pouquinho desagradável de lembrar, não tem mais sua sensação aliviada de quando em vez, ela agora se mostra em toda parte e todo o tempo, nada dura nada e os registros são voláteis. Toda a civilização digitalizada é volátil - e, aliás, governos como o americano conservam seus dados preciosos em papel, método de armazenamento mais confiável que circuitos integrados ou memórias eletrônicas de qualquer natureza.

Todo mundo saberá ler e escrever, num mundo de mensagens instantâneas? Talvez não. Não me refiro a escrever à mão, com lápis ou caneta. Hoje já tem quem escreva uma página digitando com os polegares e não rabisque três linhas com uma caneta. Mas estou pensando em leitura e escrita sem o uso do alfabeto. De vez em quando, sou tentado a crer que as futuras mensagens instantâneas, torpedos e similares, serão grafados mais ou menos com ideogramas simples - imagens como aquelas carinhas Smiley que aparecem em milhares de aplicativos, acrescidas talvez de uma ou outra palavra abreviada em letras. De escrever e ler usando alfabeto e sintaxe, como hoje ainda fazemos, não haverá necessidade para grande parte dos usuários de aplicativos de mensagens. Passaremos mais ou menos para hieróglifos simples, que deverão ser perfeitamente adequados ao vocabulário e ao universo de interesses desses usuários. E talvez os que saibam ler e escrever usando o alfabeto venham a constituir uma categoria especial na sociedade, como eram os escribas da Antiguidade.

Fazer conta, então, nem pensar. Não acredito que na escola ainda se aprenda a tirar raiz cúbica na munheca, como no meu tempo (eu nunca aprendi). Aliás, não acredito na sobrevivência da tabuada - e não me refiro àquelas tipo 7 vezes 8, de que a gente não lembrava na época e até hoje não lembra. Quem, num futuro não muito distante, responder quantas são 6 vezes 9 sem consultar a calculadora será levado para estudos num instituto de neurologia e proporão que se conserve seu cérebro depois da morte. É nesse tipo de coisa que penso, quando falo em tecnologia, não é contra a tecnologia. Será bom para nós não sabermos mais escrever nem fazer contas e deixar fantásticas aptidões naturais, como a memória, irem se perdendo por falta de uso e exercício? Será realmente bom que tudo seja descartável e não dure mais que poucas semanas, nesta vida cada vez mais volátil?

GUSTAVO IOSCHPE - O rombo da educação é o cabide de empregos de 46 bilhões de reais

O rombo da educação é o cabide de empregos de 46 bilhões de reais
GUSTAVO IOSCHPE
REVISTA VEJA


Há uns dois meses, quis descobrir o total de funcionários do setor da educação no Brasil. O número de professores é bem conhecido dos pesquisadores. pois está na casa dos 2 milhões há alguns anos, mas não sabia quantos seriam os funcionários do setor que não suo docemos.

Tenho um verdadeiro arsenal de dados estatísticos sobre a educação brasileira e internacional. Procurei em todos, inclusive em algumas sinopses estatísticas da educação básica, que são arquivos com mais de 200 planilhas, que informam até quantas turmas do ensino fundamental com menos de 4 horas/aula por dia há no Acre. Mas o número de funcionários não aparece em nem um único documento. Não está disponível para consulta em lugar algum. Fiz então uma consulta direta ao Inep. órgão do MEC responsável por avaliações e estatísticas. A resposta solícita veio no mesmo dia: incluindo professores, são mais de 5 milhões de funcionários na área da educação no Brasil, pouco mais de 4 milhões deles na rede pública.

Fiquei embasbacado com esse dado. Não apenas pelo gigantismo do número total - seus 5 milhões de membros fazem com que essa seja a quarta maior categoria profissional do Brasil, atrás apenas dos agricultores, vendedores e domésticas -, mas especialmente pelo fato de termos 3 milhões de funcionários longe da sala de aula, um número 50% maior do que o de professores.

Imaginei que essa relação entre funcionários e professores seria menor em países com sistemas de educação mais eficientes. Dito e feito. até em um nível maior do que eu imaginara.

Segundo os dados mais recentes do Education at a glande. levantamento feito pela OCDE (disponível em twitter.com/ gioschpe), a relação entre funcionários e professores em seus países-membros é de 0.43.

No Brasil, falando apenas do setor público, essa relação é de 1.48. Ou seja, enquanto lá há um funcionário para cada dois professores, aqui a relação é quase três vezes e meia maior. Isso significa que. se o Brasil tivesse a mesma relação professor/funcionário dos países desenvolvidos, haveria 706000 funcionários públicos no setor, em vez dos 2,4 milhões que temos. Como é difícil imaginar que precisemos de mais funcionários que as bem sucedidas escolas dos países desenvolvidos, isso faz com que tenhamos 1.7 milhão de pessoas excedentes no sistema educacional, recebendo todo mês salários que vêm do nosso bolso. Se presumirmos que os funcionários recebem o mesmo salário médio que os professores

(infelizmente não há dados oficiais a respeito do país todo, mas a conversa com alguns secretários da Educação me sugere que essa é uma hipótese válida), isso significa um desperdício de inacreditáveis 46 bilhões de reais, ou 1.3% do PIB, todo ano, o que certamente é mais do que todos os escândalos de corrupção da última década somados. E simples chegar a esse número: basta saber quanto o Brasil investe em educação por ano e que porcentagem disso é investida em folha salarial. Ambos os dados estão disponíveis no Education at a glande, e o cálculo completo está disponível no meu Twitter.

A importância desse dado, porém, vai muito além da simples montanha de recursos que são desperdiçados. Ele ajuda a explicar algo ainda mais importante para o futuro do Brasil: a razão pela qual nossa educação vai tão mal.

O primeiro fator impactado por essa gastança é o salário do professor. Esse dado explica como o Brasil pode, ao mesmo tempo, investir tanto em educação e ter professores tão insatisfeitos com o seu rendimento. (A propósito, cruzando os dados da OCDE com o PIB brasileiro, o salário médio mensal do professor na rede pública é de 2262 reais. Cuidado com os discursos do pessoal que fala do "salário de fome".) Se se demitissem os funcionários excedentes e o salário deles fosse transferido aos professores, a remuneração destes aumentaria 73%, para 3906 reais mensais.

O segundo impacto 6 o poder político desse grupo. Se já seria difícil a algum político ir contra a vontade dos 2 milhões de professores, o que dizer então de um grupo que, na verdade, tem 5 milhões de membros, a grande maioria sindicalizada e politizada? Não é de espantar que os políticos dispostos a encarar a briga com a categoria tenham sido invariavelmente derrotados. Não é de espantar, também, que a categoria consiga fazer greves tão volumosas e barulhentas.

A terceira realidade claramente descortinada por esses dados 6 a utilização política do setor de educação. Não é possível chegar a esse nível sem que haja um esforço deliberado de contratações desnecessárias. Contratações que só ocorrem porque os profissionais da educação são frequentemente utilizados como instrumemo político de seus padrinhos. Muitos viram simples massa de manobra e fonte de votos, outros - especialmente nos cargos de direção e supervisão regional -- acabam se tornando verdadeiros cabos eleitorais de lideranças regionais.

A quarta conclusão 6 ainda mais séria. Ela diz respeito à relação em gastos com educação e a qualidade do ensino ministrado. A maioria dos estudos sobre o tema demonstra não haver relação significativa entre o volume de recursos gastos em educação e a qualidade do ensino.


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Se o Brasil tivesse a mesma relação professor/funcionário dos países desenvolvidos, haveria 706000 funcionários públicos na educação - e não os 2,4 milhões que efetivamente temos, um óbvio excedente no sistema
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No Brasil, onde a maior parte do gasto é canalizada para aumentar o número de profissionais na rede e dar melhor remuneração àqueles que já estão nela, não 6 de surpreender que o constante aumento de gastos no setor nos últimos dez anos tenha sido acompanhado de estagnação. Os resultados do Sistema de

Avaliação da Educação Básica (Saeb) foram piores em 2007, último ano disponível, do que em 1997. Se já é difícil promover melhorias nos países em que o recurso é bem aplicado. imagine no Brasil, onde o dinheiro financia um gigantesco cabide de empregos. O mais desalentador é que, em meio a tão contundentes evidencias de que o aumento dos investimentos não tem trazido resultados na melhoria do aprendizado dos alunos, testemunhamos a todo momento a paidtica pregação para aumentar o valor investido em educação dos atuais 5% do PIB para 7% (o que já seria um fenomenal aumento de 40%. ou 73 bilhões de reais por ano, em valores de 2010). Não ocorre a ninguém que custa pouco o que realmente melhora o ensino: reformular os cursos universitários de formação de professores, profissionalizar a gestão das escolas, adotar um currículo nacional, permitir a criação de novas modalidades no ensino médio, melhorar o material didático e cobrar a utilização de práticas de sala de aula comprovadamente eficazes. É preciso disposição para encarar as tarefas que exigem trabalho e coragem para enfrentar as resistências corporativas. Mas sobre isso os bravos gastadores de plantão não querem nem ouvir falar. Não dá voto. Não sei exatamente como se sentiram os passageiros do Titanic que ouviam a orquestra a tocar enquanto o navio fazia água, mas suspeito que a minha estupefação e desalento sejam parecidos com o sentimento deles. Com a agravante de que, cada vez que compro algo ou pago impostos, estou financiando o iceberg.

A pedagogia do Garfield - REVISTA VEJA


A pedagogia do Garfield 
REVISTA VEJA

A literatura está virtualmente ausente do Enem. Para os técnicos do MEC, o gato dos quadrinhos é mais revelante culturalmente do que Graciliano Ramos ou Castro Alves

Jerônino Teixeira

Desde a sua primeira edição em 1998, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). prova que avalia a qualidade das escolas secundárias e hoje substitui o vestibular em muitas universidades, reconheceu apenas duas vezes a existência de um romancista brasileiro do século XIX chamado José de Alencar.

Na edição de 2009, o nome do escritor constou em uma das alternativas erradas para uma pergunta sobre regionalismo. Ames disso, em 2004, o autor de O Guarani foi lembrado em uma questão de biologia - sobre tuberculose, doença que causou sua morte. em 1877. O Enem nunca fez uma pergunta específica sobre a vida ou a obra do maior prosador do romantismo brasileiro. Jamais pediu aos alunos que interpretassem um texto seu. Outros nomes de primeira linha das letras em língua portuguesa fazem companhia a José de Alencar no clube dos esquecidos. Para ficar em poucos exemplos. temos o pregador jesuíta Antônio Vieira, o poe nem precisa ler o jovem que se submete ao Enem não precisa se preocupar com os livros. Um levantamento das questões de literatura de todas as provas do Enem, desde a primeira, em 1998, revela que o importante, mesmo, é saber interpretar uma historia em quadrinhos tão inconfidente Tomás Antonio Gonzaga e Euclides da Cunha, autor do monumental Os Serrdes.

Os avaliados pelo Enem, em compensação, com frequência são chamados a interpretar as histórias em quadrinhos de Jim Davis, criador do gato Garfield, ou de Dik Browne, pai do viking Hagar. Um grupo de pesquisadores do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) fez um levantamento extensivo de todas as provas,

desde o primeiro Enem - incluindo a prova que vazou e teve de ser invalidada, em 2009 -, para avaliar o peso que a literatura tem no exame. As conclusões são desalentadoras.

A começar pela valorização desmesurada das histórias em quadrinhos o segundo gênero mais cobrado na prova, atrás apenas de poesia (veja o quadro abaixo) -, o exame mostra desproporções e equívocos de toda ordem.

Os escritores anteriores ao modernismo são negligenciados: apenas cerca de 17% das questões versam sobre a literatura que precede a década de 20. Períodos inteiros foram apagados da história da literatura na versão do Enem: o barroco e o século XVII. por exemplo, não existem. Talvez ainda mais grave. não se exige nenhuma leitura prévia dos alunos, quando no antigo vestibular das melhores universidades havia uma lista de livros obrigatórios. Aparentemente, os iluminados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) - órgão do Ministério da

Educação responsável pela elaboração da prova - consideram que um estudante pode entrar na universidade sem jamais ter lido Dom Casmurro, de Machado de Assis, ou Vidas Secas. de Graciliano Ramos.

Ao contrário do que vigorava nos vestibulares tradicionais das melhores universidades brasileiras, não há, no Enem, uma seção específica de literatura. A rigor, tampouco existe língua portuguesa: as duas disciplinas estão diluídas, com língua estrangeira e expressão corporal (sim. isso mesmo: expressão corporal), em um módulo chamado "Linguagens, códigos e suas tecnologias". Os catorze exames aplicados até hoje - a edição deste ano será realizada nos dias 22 e 23sempre incluindo o fiasco da prova invalidada de 2009. somam 1 233 questões objetivas, das quais 164, nas contas dos pesquisadores da UFRGS. versam sobre literatura. Não seria mau que, em uma prova destinada a avaliar todos os conteúdos do ensino médio, cerca de 13% das questões fossem dedicadas à cultura literária.

Mas esse número inclui modalidades como histórias em quadrinhos e letras de canções populares. respectivamente segundo e sexto lugares entre os gêneros mais exigidos no Enem. Além disso, na maior parte dessas questões, os textos literários (ou os quadrinhos) figuram apenas como ilustração para problemas de outras disciplinas. Uma tirinha da Mafalda ou um texto de Machado de Assis podem ser usados para avaliações de gramática (se é que a palavra ainda faz sentido no meio das tais linguagens. códigos e tecnologias) ou para levar o aluno a exercitar a mais básica interpretação de texto. Textos literários tamb6m são utilizados para aferir conhecimentos de ciência, geografia ou história. Um poema de Carlos Drummond de Andrade (o autor mais citado no exame) já foi usado para perguntar sobre problemas ambientais causados pela mineração. Em um dos casos mais pitorescos, um trecho do conto O Jardim dos Caminhos que Se Bifïarcam, do argentino Jorge Luis Borges (um dos apenas cinco autores de língua estrangeira já citados na prova), serviu de pretexto para uma questão sobre pontos cardeais.

No computo do estudo da UFRGS, apenas metade das questões que versam sobre textos literários é, de fato, sobre literatura. E apenas 20% exigem o conhecimento mais especializado que só uma aula de literatura poderia dar - por exemplo, noções de forma e estilo ou de relação entre a obra e seu contexto histórico (tópico que, no entanto, consta nas declarações de intenção do Inep). "As questões sobre literatura são superficiais e ató anódinas.

Desprezam o conteúdo cultural, que deveria ser o cerne de uma prova sobre literatura", diz Luís Augusto Fischer, professor do Instituto de Letras da UFRGS e coordenador da pesquisa.

Sob a falta de critério dos avaliadores do Inep, há uma difusa e demagógica pedagogia do vale-tudo. O pressuposto teórico é a valorização das variantes populares da fala e a desvalorização da norma culta, por seu suposto caráter elitista e preconceituoso. "Essa abordagem joga por terra a ideia de que há autores em cuja obra a língua se realizou de forma superior ou duradoura", diz Fischer. Ou seja, a noção de que um autor possa ser tomado como um clássico é tida como conservadora.

No igualitarismo ignorante que se instaura a partir daí, não há mais nenhuma distinção de qualidade ou relevância, e o gato Garfield vale mais do que a poesia de João Cabral de Melo Neto.

Tradicionalmente, o antigo vestibular tendia a enfatizar períodos e escolas literárias. às vezes em detrimento da leitura. Era mais importante saber que Lima Barreto era "pré-modernista" (classificação genérica e duvidosa) do que ler Triste Fim de Policarpo Quaresma. O Enem tinha a intenção de corrigir essa distorção. De fato, perguntas sobre períodos literários estão quase ausentes. O problema é que não se está perguntando nada no lugar. "A impressão que tenho é que são amadores elaborando uma prova demasiado importante para o Brasil inteiro", diz Marcelo Frizon, um dos pesquisadores do estudo da UFRGS e professor de literatura em duas escolas de ensino médio em Porto Alegre. O mais preocupante 6 que o Enem tem o potencial de difundir o obscurantismo. Como vem substituindo o vestibular como porta de em rada para a universidade, a prova tende não apenas a avaliar, mas também a pautar o conteúdo dado nas escolas de ensino médio. "Esses exames costumam normatizar o que é ensinado em sala de aula. Para ser um pouco radical, se a coisa continuar assim, o ensino de literatura tende a desaparecer", diz a professora Gabriela Luft, outra colaboradora da pesquisa. O Enem contribui para construir um pais ainda mais iletrado.

DESPREZO PELO PASSADO

O Enem põe em peso desproporcional sobre a literatura produzida a partir do modernismo, desvalorizando a história e a tradição. Das questões a respeito de literatura no exame, apenas 17% versam sobre obras anteriores a 1920. Autores fundamentais para a história e para o desenvolvimento da língua portuguesa, como o padre Antônie Vieira, José de Nencar e Euclides da Cunha (abaixo), não reviveram nenhum texto citado na prova desde o seu início, em 1998

ARTUR XEXÉO - Queijo de leite cru só da França. De Minas, não



Queijo de leite cru só da França. De Minas, não
ARTUR XEXÉO
O GLOBO - 09/10/11

Documentário em cartaz no Rio mostra como lei impede que versão artesanal do produto seja vendida fora de Minas

Para manter uma tradição de quase 300 anos, cerca de 30 mil famílias mineiras vivem de uma atividade ilegal: a produção e a comercialização de queijo de Minas artesanal. Foi o que descobriu o cineasta (também mineiro) Helvécio Ratton quando resolveu fazer um documentário sobre quem são as pessoas que fabricam um produto que já ganhou a chancela de patrimônio cultural do país. Ao conhecer os problemas dos pequenos produtores rurais mineiros, acabou realizando um filme sobre uma atividade ameaçada de extinção. Ratton não acredita que o filme, que estreou na semana passada em sete cidades do país, mude essa situação. Mas acha que pode provocar uma discussão atrasada em quase 60 anos.

- Filmes não mudam nada. Mas podem estimular as pessoas a tomarem uma atitude. A Assembleia Legislativa de Minas Gerais marcou uma audiência pública e discutirá o assunto na terça-feira. E já está se armando uma sessão na Câmara em Brasília - admite o cineasta.

A produção do queijo artesanal foi proibida pelo decreto 30.691, assinado por Getúlio Vargas em 1952, e ainda está em vigor. De acordo com ele, "para entrar no mercado, os produtos de leite e derivados devem passar por um processo de pasteurização e receber o carimbo do Serviço de Inspeção Federal". O que diferencia o queijo artesanal é o fato de ele ser feito do leite cru, não pasteurizado. A lei não pegou. Tanto que, no Mercado Central de Belo Horizonte, são comercializadas 180 toneladas por mês de queijos artesanais. Algumas leis mineiras e portarias do Ministério da Agricultuta legitimaram a feitura do queijo a partir do leite cru. Nem por isso a produção artesanal está salva.

MONICA BAUMGARTEM DE BOLLE - Câmbio, commodities e inflação


Câmbio, commodities e inflação
MONICA BAUMGARTEM DE BOLLE 
O ESTADÃO - 09/10/11

As centrífugas são aparelhos cujo propósito é separar substâncias com densidades diferentes. Se a inflação brasileira fosse hoje colocada dentro de uma centrífuga, será que constataríamos que o câmbio e os preços das commodities, dois de seus componentes, têm densidades diferentes?

Há quem acredite que a trajetória dos preços das commodities é vaporosa, sucumbindo aos sustos que a economia mundial tem causado desde a crise de 2008. Essas mesmas pessoas são da opinião de que o câmbio é "denso", isto é, está sujeito à volatilidade que acompanha os fortes movimentos de reprecificação de risco, mas é capaz de retornar a um nível que não prejudique os preços. Por essa visão, a piora dos cenários prospectivos para a economia global, sobretudo para os países maduros, é um bom agouro.

Mas é também possível cogitar a situação inversa. Sustentadas pelo crescimento das economias emergentes, cujo PIB é intensivo em matérias- primas, e pela perspectiva de que os países avançados voltem a inundar o mundo de liquidez, a trajetória dos preços das commodities é "densa". As ações que o BCE terá de tomar para sustentar os bancos, o reinício do afrouxamento quantitativo pelo Banco da Inglaterra e as sinalizações de Ben Bernanke de que está pronto para agir agressivamente indicam uma postura que pode beneficiar as cotações das matérias-primas no médio prazo. Embora a atividade nas economias emergentes esteja arrefecendo, poucos se arriscam a prever uma queda substancial.

Para compensar os efeitos inflacionários, o câmbio não pode ser "denso". Ou melhor, tem de ter uma densidade assimétrica. Precisa ser resistente aos movimentos que induziriam uma desvalorização, porém maleável quando as circunstâncias exigirem uma valorização para abortar os efeitos nefastos sobre a inflação de uma alta das commodities.

A política cambial brasileira hoje produz uma trajetória para a cotação do real que não é nem uma coisa, nem outra. Com as incertezas regulatórias introduzidas nos mercados de derivativos, penalizando aqueles que "apostam" no fortalecimento do real, impede-se o movimento benéfico para a inflação. Ao mesmo tempo, a falta de liquidez produz surtos de volatilidade que podem ser prejudiciais para os objetivos de médio prazo do Banco Central.

Infelizmente, não dispomos de um aparelho para medir as densidades relativas dos preços das commodities e do câmbio. Na dúvida, e diante de uma inflação que já alcança 7,3% em doze meses, seria melhor errar pelo excesso de cautela. O custo de fazer o contrário é acabar solidificando uma trajetória para os preços no Brasil que será bastante difícil de reverter.

 Análise: Monica Baumgarten de Bolle

É ECONOMISTA, PROFESSORA DA PUC-RJ E DIRETORA DO IEPE/CASA DAS GRAÇAS

AMIR KHAIR - O engodo da Selic

O engodo da Selic
AMIR KHAIR
O ESTADÃO - 09/10/11

Enquanto os Estados Unidos e a Europa se debatem para tentar escapar da estagnação, aqui a discussão ganhou força após o Banco Central (BC) cometer a "heresia" de reduzir meio pontinho na Selic. Foi um Deus nos acuda! O debate ganhou novas cores pondo de um lado os guardiões da inflação e de outro os desenvolvimentistas.

Ambos pecam, pois atribuem à Selic o poder mágico de controlar a inflação. Será que controla? Não creio, mas vamos avaliar à frente.

1. Posições - Os guardiões da inflação, liderados pelo mercado financeiro, veem inflação crescente devido ao que consideram excesso da demanda em relação à oferta interna.

Para combater a inflação advogam a redução da demanda via elevação da Selic. Se o BC não mantiver a taxa básica de juros em nível elevado, perde a credibilidade e não ancora as expectativas dos formadores de preços.

Para essa corrente o País não pode crescermaisde3,5%, pois fatalmente seria rompido o teto da meta de inflação de 6,5%.

Os guardiões da inflação fazem uma verdadeira chantagem inflacionária para pressionar o BC a manter a Selic elevada. São espertos, pois apresentam argumentos de ameaça inflacionária e em seguida a solução milagrosa da Selic, remédio falso por ser a maior taxa básica de juros do mundo.

Isso é Kafkiano! A outra posição, agora defendida pelo governo, é de que a inflação vai depender dos preços internacionais, que estão em queda devido à crise, e a economia está patinando, o que reduz o potencial de demanda. Nessa situação, a Selic pode cair para um nível inferior ao atual, sem maiores problemas para a inflação.

Essa corrente defende que é possível manter a inflação dentro do limite da meta, com um crescimento de 5% e defende estímulos à economia.

A falha dessa posição é que a Selic só pode cair se a inflação externa o permitir.

O governo só foi acordar recentemente para reduzir a Selic quando viu que a economia estava indo para baixo sendo afetada pela crise em expansão.

Poderia ter ativado os investimentos das empresas não elevando a Selic cinco vezes neste ano passando-a de 10,75% para 12,50%. Errou, pois também atribuiu à Selic o poder de controle da inflação.

2. Perspectivas da inflação - Prever a inflação está sujeito a erro crescente quanto maior o período considerado.O mercado financeiro e o BC preveem inflação acima da meta de 4,5% neste e no próximo ano. É puro chute, mas é usado nas análises em debate.

Essas previsões falham mesmo para um mês à frente, como ocorreu de junho a agosto de 2010, quando o mercado financeiro previu inflação de 0,4% em cada mês e ela foi zero.

A inflação vai depender, em boa medida, do resultado entre a queda dos preços em dólares das commodities e o câmbio que depende da insegurança gerada pela crise. Por enquanto o efeito câmbio está superando a queda de preços das commodities em dólar, mas as previsões apontam para estabilizar ao redor de R$1,70 a R$1,75, o que permitiria redução nos preços das commodities em reais.

Em setembro o índice CRB, que mede os preços das commodities, caiu 10,7%, o maior tombo desde outubro de 2008, ápice da crise financeira com a quebra do Lehman Brothers. A recessão na Europa e EUA pode pôr fim a um ciclo exuberante de demanda aquecida e preços estratosféricos. Tudo dependerá em grande parte da China e uma ampla pesquisa feita pela Bloomberg apontou que a economia chinesa vai desacelerar nos próximos anos para o ritmo de 5%.

Caso a inflação média mensal de outubro a dezembro fique em 0,49%, não será rompido o teto da meta de 6,5%.

Existe essa possibilidade.

Embora o IPCA de setembro tenha sido de 0,53%, o IPC Fipe registrou inflação de 0,25% e a cesta básica ficou mais barata.

Outro fato é que a inflação traz consigo o mais poderoso antídoto para a redução do consumo, pois atua diariamente corroendo o poder aquisitivo, que só poderá se recuperar parcialmente mais à frente.

3. Engodo da Selic - Nessa discussão o que chama a atenção é que os dois lados usam a Selic para defender sua posição e ela não tem nada a ver com o problema, pois não altera o preço dos alimentos, transportes, habitação, preços internacionais, serviços, oferta de crédito e valor das prestações, que explicam a evolução do IPCA. Serve, no entanto, para desestimular os investimentos das empresas, reduzindo a oferta futura, o que a distancia da procura. Assim, em vez de atenuar a inflação a Selic a agrava.

É interessante notar mais um engodo usado para a Selic. Os guardiões da inflação procuram espertamente confundir a Selic com a taxa de juros da economia.

A distância entre elas é significativa. A taxa de juros à pessoa física estava em 46,2% em agosto e a Selic em 12,5%, ou seja, 33,7 pontos acima. No caso do cheque especial, muito usado para ampliar o consumo, estava em 188% ou 15 (!) vezes a Selic.

Outro engodo está no uso do conceito ultrapassado de taxa de juros neutra (?) como sendo a mínima necessária para conter a inflação.

Esse conceito é usado como sendo a Selic a taxa de juros da economia e o Brasil como sendo uma economia fechada, sem sofrer a influência dos preços internacionais. Sem comentários! É interessante observar que dada a distância entre a Selic e a taxa de juros do mercado, cada uma segue o seu curso, podendo caminhar em sentidos opostos, como ocorreu em 2010. Enquanto a Selic subiu dois pontos passando de 8,75% para 10,75%, a taxa de juros da pessoa física caiu 2,4 pontos passando de 43,0% para 40,6%.

O que ocorre internacionalmente é a prática de taxas de juros básicas reais (excluída a inflação) negativas de 0,5% e 1,0%, respectivamente para o grupo dos países emergentes e países desenvolvidos. E a taxa de juros da economia é da ordem de 3% acima da básica. Assim, quando a taxa básica é alterada há o reflexo na taxa de juros da economia. Na China, por exemplo, a taxa básica é de 3% e a taxa de juros da economia de 6%, a mesma da inflação.

4. Mudança - Parece que o governo felizmente acordou para o fato que a inflação não depende da Selic. Embora não diga para não assustar mais ainda o atônito e frustrado mercado financeiro, percebeu o engodo da Selic.

Provavelmente irá voltara usar as medidas macroprudenciais - abandonadas neste ano em prol da Selic - para regular o consumo ao nível da expansão da massa salarial. Assim pode pilotar com eficácia uma das pernas importantes do consumo, que é o crédito, agindo sobre a inflação e o crescimento econômico.

A Selic poderá iniciar uma gradual redução até chegar ao nível dos emergentes.

Com isso reduz a especulação externa sobre o real, não distorce o câmbio, a conta de juros cai pela metade com economia de R$ 120 bilhões (!) ou 3% do PIB. Melhora os fundamentos fiscais rumo ao equilíbrio e torna possível a redução acelerada da relação dívida/PIB, passando a brotar recursos para atender o déficit social e de infraestrutura. O País engoliu esse engodo por mais de 20 anos! Bem vinda a mudança.

YOANI SÁNCHEZ - Educados e doutrinados


Educados e doutrinados
YOANI SÁNCHEZ
O ESTADÃO - 09/10/11

Há dois anos está vazia, não mais se ouve o tinir das bandejas metálicas ou a algazarra dos alunos no restaurante, nos corredores, nas salas de aula. Durante décadas, foi uma escola no campo, um desses cursos pré-universitários instalados pelo governo cubano nas zonas rurais que pretendia vincular o estudo ao trabalho e onde os adolescentes moravam em regime de internato. Mas, desde o ano letivo de 2009-2010, a maioria das instituições educacionais fechou as portas diante da evidência do fracasso pedagógico e produtivo.

Em lugar de se formarem na prática do trabalho agrícola, os bolsistas treinavam hábeis artimanhas para fingir que trabalhavam, enquanto, nos albergues, prosperavam a promiscuidade e a prepotência. Felizmente, a experiência terminou, não sem antes deixar uma mistura de lembranças meio doces, meio amargas nos que a viveram na pele.

O presidente Raúl Castro anunciou o seu fechamento no âmbito de um processo de redução de custos e para fazer com que o pragmatismo se impusesse onde antes predominava o desvario. Os blocos de concreto erguidos no meio do nada, que abrigavam os jovens, agora são utilizados como habitação, por instituições de outro gênero ou simplesmente abandonados.

Ruínas novas, arquitetura já obsoleta pertencente a uma época recente que acaba de se encerrar. Embora essa "ideia do comandante" de promover os cursos pré-universitários no campo tenha chegado ao fim, ainda resta muito a fazer para tirar do atoleiro a educação pública em Cuba.

Em todo o território nacional, as instalações escolares são muito numerosas e cada criança ou jovem tem acesso gratuito a elas. Entretanto, o baixo nível dos professores, a deterioração material da infraestrutura docente e o excessivo componente ideológico conspiram consideravelmente contra sua qualidade.

Os anos dourados do ensino na ilha, aparentemente, ficaram para trás, extraviaram-se com a perda do subsídio soviético e com o desmembramento do Conselho de Ajuda Mútua Econômica. O que confirma que as alardeadas conquistas no campo da educação não eram, na realidade, respaldadas pelo desenvolvimento econômico do país, mas dependiam diretamente do apadrinhamento que vinha do Kremlin.

Êxodo. Com a crise dos anos 90, um dos primeiros sinais da deterioração foi o êxodo maciço de professores para setores mais bem remunerados. Na recepção de um hotel, na direção de um táxi ou como contadores de alguma empresa de capital misto, trabalham pessoas que antes ensinavam matemática, física ou espanhol em uma sala de aula.

Procurou-se reduzir o déficit de educadores, mas, segundo afirmam os mais antigos, a tentativa só contribuiu para piorar a situação. Formados para essa carreira, os novos professores assumiram as cadeiras e afundaram ainda mais a outrora "joia da coroa" do socialismo cubano.

Não só mostravam um preparo insuficiente como vinham munidos de uma ferramenta que provocou a queda livre dos valores e da interação com os estudantes: as chamadas "teleaulas".

Durante mais de cinco anos, no ensino médio, as horas letivas ministradas pelo televisor chegaram a ocupar até 60% da totalidade do programa. Saber manejar um controle à distância, para desligar ou ligar o aparelho, era mais importante do que saber geografia ou gramática.

E então, começamos a colher os frutos da improvisação. O baixo nível das pessoas que chegam ao ensino superior, a ausência de uma formação ética entre os mais jovens e a perda quase total do reconhecimento social que antigamente cercava a figura do mestre.

Depois de tentar inovar de todas as maneiras possíveis com a alquimia do ensino, agora o Ministério da Educação procura reparar o dano. Por exemplo, aumentou o período de formação dos que têm a responsabilidade de instruir nas escolas primárias e secundárias. A desativação de muitas escolas de regime de internato também foi uma medida recebida com alívio pelos pais.

No entanto, nos murais de cada sala de aula, nos livros de história e até nas leituras de alfabetização, continua presente um componente que resiste a ceder espaço: a ideologia. Nem as palavras de ordem, nem os lemas, a adoração aos líderes, nem o estudo do marxismo-leninismo serão eliminados com as novas mudanças na área da educação.

O atual ministro da Educação Superior, Miguel Díaz Canel, ratificou também a premissa de que "a universidade é para os revolucionários", o que promove antes a simulação do que a fidelidade política.

Além disso, a educação pública continua sendo vista como uma dádiva, um presente, e não como um direito que cada cidadão poderia exigir e reivindicar. À menor crítica feita ao governo, a primeira resposta é que devemos nos lembrar de que não pagamos um centavo sequer para sentar numa sala de aula, desconhecendo assim que a verba destinada a esse setor provém dos cofres do governo e, portanto, sai dos nossos bolsos ou de recursos nacionais que nos pertencem.

Tampouco nos é permitido protestar na rua para que nossos filhos tenham uma instrução de melhor qualidade e sem a influência direta das premissas de um partido. Mas conseguimos alguma coisa. Nossa pequena vitória tem como troféu um enorme albergue de concreto abandonado no meio do nada, uma experiência educativa que ficou para trás. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

PEDRO MALAN - Encruzilhadas, nossas e de outros



Encruzilhadas, nossas e de outros
PEDRO MALAN
O Estado de S.Paulo - 09/10/11

"Em economia, as coisas demoram mais tempo para acontecer do que você pensa (que demorariam) e, então, elas acontecem mais rápido do que você pensava que elas poderiam acontecer." A frase de Dornbusch foi relembrada em artigo recente de Larry Summers sobre a crise europeia. De fato, em mercados financeiros, as percepções quanto a risco e solvência de países, empresas e, principalmente, bancos podem ser tão importantes quanto as realidades de suas respectivas situações.

Se um país, por exemplo, está ou não insolvente, depende não apenas do nível e da estrutura de suas dívidas, de avaliações sobre sua capacidade de honrá-las, como também das suas políticas domésticas e de percepções sobre o contexto político mais amplo, nacional, regional e global, em que estão inseridos o país em questão e os bancos que o financiam.

Exatas duas semanas atrás participei de um painel de debates, em Washington, acerca de reestruturações de dívidas públicas, tema que me é caro há 20 anos. O interesse e a preocupação da audiência eram com a situação europeia em geral e, em particular, com a Grécia de hoje. Coube-me falar sobre se as reestruturações do início dos anos 1990 teriam, ou não, alguma relevância para o atual contexto greco-europeu.

Ocupei meu tempo com três questões:

Primeiro, por que foram necessários sete anos (de 1982 a 1989) para que os governos dos países desenvolvidos chegassem ao anúncio do Plano Brady?

Segundo, por que o plano foi bem-sucedido?

Terceiro, haveria algo no espírito e na visão de médio e longo prazos que levou ao conceito do plano que pudesse ser útil para entender o sério problema de dívida soberana e resolução de problemas de balanços de bancos na Europa de hoje?

Por que longos sete anos de acrimoniosos debates e extraordinário custo econômico e social para muitos países endividados? Primeiro, porque esses países sofreram três grandes golpes praticamente simultâneos no início dos anos 1980: os efeitos da dramática elevação das taxas de juros norte-americanas, decidida pelo Federal Reserve (Fed) sob Paul Volcker, os efeitos do segundo choque do petróleo e os da grave recessão sincronizada nos países ricos em 82. Segundo, porque crises dessa magnitude demandam algum tempo para que, por meio do debate, de novos e melhores dados, de novas e melhores interpretações, do reconhecimento de que fatos não deixam de existir porque são negados, se explorem mais a fundo as convergências possíveis.

Mas em boa parte também porque grandes bancos de países desenvolvidos simplesmente não estavam preparados para reconhecer, nos seus balanços, deságios expressivos dos valores de seus empréstimos a países endividados, dadas as implicações para seu capital. Ao longo de sete anos os reguladores e supervisores bancários tiveram de mostrar flexibilidade e monitorar de perto as provisões e reservas dos grandes bancos. O Plano Brady, anunciado em março de 1989, representou o reconhecimento oficial, afinal, de que um dólar no balanço dos bancos não valia exatamente cem centavos, que as obrigações de vários países endividados não poderiam ser honrados nas bases originalmente contratadas e que havia uma solução, via substituição negociada da dívida antiga - reduzida - por novos instrumentos da dívida.

Por que o Plano foi bem-sucedido? Por três razões, a meu ver: primeiro, porque não era uma camisa de força geral nem para devedores nem para credores, mas reconhecia, na partida, que cada caso era um caso e que as negociações seriam complexas porque envolveriam redução ou do estoque da dívida ou de seu serviço: segundo, porque os credores privados sabiam do apoio de governos dos países desenvolvidos às renegociações e que os EUA, pelo menos, estavam dispostos, sob certas condições, a fazer emissões especiais de títulos de 30 anos para garantir o pagamento do principal ao fim do período; terceiro, porque os credores perceberam logo que não teriam a escolha de ficar de fora da negociação e de seu resultado se ao final este lhes parecesse inadequado. Que o plano foi bem-sucedido pode ser visto pelo fato de que cerca de 18 países, 11 na América Latina, cada qual à sua maneira, reestruturaram suas dívidas externas.

Sobre a terceira questão - se haveria algo útil da experiência passada para a Europa -, só posso dizer que havia, sim, no processo que levou ao Plano Brady, uma visão de que os principais fatores de risco para um país estão ligados a dificuldades de lideranças políticas, tanto de devedores quanto de credores, em reconhecer realidades fiscais de curto, de médio e de longo prazos - aí envolvidas necessidades fiscais de eventuais resoluções de crises bancárias. Nessas áreas, não faz muito sentido pretender dar lições a outros sobre como melhor proceder. É melhor dar o exemplo. Ou, pelo menos, reconhecer coisas positivas nos outros.

Em discurso de dez dias atrás, o presidente do Fed, Ben Bernanke, mencionou o que os EUA poderiam aprender com bem-sucedidos países emergentes em termos de crescimento de longo prazo. E vale ler a lista de Bernanke pensando no Brasil: "... a importância de políticas fiscais disciplinadas, os benefícios da abertura comercial, a necessidade de encorajar a formação privada de capital enquanto se realizam necessários investimentos públicos, o foco no retorno do investimento em educação e na promoção do avanço tecnológico e a importância de um contexto regulatório que encoraja o empreendedorismo".

Deixo ao leitor avaliar se estamos em condições de dar lições a outros países, mais ricos em todas essas áreas. E se talvez não fosse melhor que estivéssemos muito mais voltados para nossas próprias encruzilhadas, que não são as mesmas com que se defrontam os países ricos. Mas não menos importantes por causa disso. Muito pelo contrário.

JOÃO AUGUSTO DE CASTRO NEVES - O que o Brasil tem a dizer?



O que o Brasil tem a dizer?
 JOÃO AUGUSTO DE CASTRO NEVES
O GLOBO - 09/10/11

Em 2001, um banco de investimentos cunhou a expressão Brics, situando o Brasil num agrupamento promissor de economias emergentes. Em 2006, a Bolívia nacionalizou ativos de uma empresa estatal brasileira naquele país, acontecimento que inaugurou uma onda de novas reivindicações de países vizinhos perante o Brasil. Ano passado, a tentativa do Brasil de intermediar, juntamente com a Turquia, as negociações nucleares entre as grandes potências e o Irã foi prontamente rechaçada pelas grandes potências.
O que esses fatos têm em comum? Primeiramente, são reflexos de algumas transformações mais profundas na inserção internacional do Brasil. A combinação de estabilidade macroeconômica com crescimento permitiu avanços e garantiu também um ambiente propício à consolidação de políticas sociais. O resultado desse processo foi além da emergência de uma nova classe média e do surgimento de multinacionais brasileiras, as chamadas campeãs nacionais. No front externo, essas mudanças geraram entusiasmo e confiança nos governantes nacionais e alargaram os horizontes de atuação do Brasil.
Mas um aspecto menos comentado daqueles acontecimentos merece atenção. Positivos ou negativos, todos foram recebidos com certa surpresa pelo Brasil, inclusive nos círculos governamentais. Não raro, as reações variaram da euforia, como se o mundo finalmente tivesse acordado para a grandeza do Brasil, à perplexidade, como se qualquer ato contrário aos interesses do país fosse resultado de má vontade ou incompreensão.
Para um país que ambiciona, há décadas, posições mais elevadas na hierarquia de poder global, essas reações extremadas impressionam. E o fato de elas acompanharem até mesmo algumas transformações mais graduais porém mais evidentes na agenda externa, como a elevação da China a principal parceiro econômico do Brasil, não só impressiona, mas assusta. Desnecessário afirmar que a crescente atitude anti-China nos meios políticos e produtivos é tão contraproducente e ideológica quanto o excesso de otimismo do governo do PT com a suposta "parceria estratégica".
O bom desempenho econômico e social do Brasil dos últimos anos inspira, com razão, questionamentos internos sobre a sua sustentabilidade. A ascensão internacional do país, de certa forma um subproduto desse desempenho, por sua vez, demanda um debate igualmente importante sobre os efeitos e as possibilidades dessa nova situação. Afinal, a ascensão do Brasil não ocorre no vácuo. Intencionalmente ou não, ela reverbera na região e alcança temas globais, como o comércio e as finanças, o meio ambiente, os direitos humanos e a proliferação nuclear.
A nova visibilidade internacional do Brasil, portanto, não deve ser encarada como a conclusão de um processo bem-sucedido de modernização. Essa nova condição de potência emergente - ou já emergida -, na verdade, deve ser entendida como o início de uma nova fase nas relações internacionais do Brasil. Uma fase que, além de oportunidades, traz mais riscos e novas responsabilidades, não havendo espaço para surpresas, indefinições e improviso.
Diante dessa realidade, é fundamental o cultivo de uma cultura de planejamento estratégico entre governo e sociedade civil. Isto é, coordenar esforços para desenvolver a capacidade de olhar para a frente e além do nevoeiro do curto prazo e do dia a dia, a fim de que se possa enxergar tendências duradouras e desenhar estratégias para lidar com elas. Afinal, uma retórica diplomática ambiciosa, por si só, não prepara as lideranças do país para lidar com a realização de alguns objetivos que pareciam distantes.
País que sempre clamou por mais voz nos assuntos internacionais, o Brasil tem de evitar o risco de, quando começar a ser ouvido, não saber bem ao certo o que tem a dizer.
JOÃO AUGUSTO DE CASTRO NEVES é cientista político.

GOSTOSA


MARCELO GLEISER - Celebrando a energia escura


Celebrando a energia escura
MARCELO GLEISER 
FOLHA DE SP - 09/10/11

Astrônomos vencedores do Prêmio Nobel em Física nos fazem repensar a relação espaço, tempo e matéria

A energia escura está aqui para ficar. Essa semana foi anunciado o Prêmio Nobel em Física. Venceram três astrônomos que em 1998 descobriram algo surpreendente o Universo não só está em expansão, mas essa expansão é acelerada.
Conforme comentou outro vencedor do Nobel, Frank Wilczek: "esse é o maior mistério da física básica atual". E é mesmo. Quando a descoberta foi anunciada, pouca gente achou que estava correta. Mas, passados 13 anos, os efeitos da expansão acelerada foram comprovados por métodos diferentes.
Quando físicos afirmam que o Universo está em expansão, é comum imaginar que houve uma espécie de explosão, como a de uma bomba, que lança seus detritos em todas as direções. Se fosse assim, o Universo teria um ponto central, de onde tudo surgiu. E a verdade é que nenhum ponto no espaço é mais especial do que outro.
Para visualizar a expansão cósmica, convém imaginar uma tira de borracha em duas dimensões, como um quadrado. Imagine, também, que as galáxias são moedas grudadas à tira.
Conforme a tira cresce nas suas duas direções, as moedas afastam-se umas das outras. Um observador numa moeda vê as outras se afastando dele. Portanto, a expansão do Universo é uma expansão da geometria do espaço: as distâncias entre dois pontos crescem. Esse efeito só é observável a distâncias de milhões de anos-luz.
Para determinar que as galáxias estão se afastando umas das outras, astrônomos precisam medir sua distância e velocidade.
Para a distância, utilizam fontes de luz padrão. Por exemplo, usando lanternas idênticas, e sabendo que a intensidade da luz cai com o quadrado da distância, é possível, num descampado à noite, medir a distância das lanternas até um certo ponto a partir da intensidade da luz que chega a este ponto.
O feito dos três astrônomos foi ter achado uma fonte padrão tão poderosa que sua luz pode ser detectada a bilhões de anos-luz de distância. São as chamadas explosões de supernova do tipo Ia, que ocorrem quando uma estrela suga a matéria da sua vizinha até não poder suportar mais seu próprio peso.
As velocidades são determinadas usando o efeito Doppler, que nos é familiar ao ouvirmos uma ambulância. A distorção do som ocorre devido ao alongamento (quando ela se afasta) ou encolhimento (quando se aproxima) das ondas de som.
O mesmo ocorre com a luz. As galáxias que se afastam têm sua luz deslocada para maiores comprimentos de onda, em direção ao vermelho. Daí o nome "desvio para o vermelho das galáxias", a prova de que o Universo está em expansão.
Os astrônomos mostraram que a partir de 5 bilhões de anos atrás, o cosmo começou a expandir mais rapidamente, como se um tipo novo de matéria (ou energia) dominasse seu crescimento. Essa fonte de energia foi chamada de "energia escura". Não sabemos qual a sua natureza. Talvez esteja relacionada a minúsculas flutuações de energia ou a uma nova força da natureza ligada a um campo desconhecido. Ou, talvez, mostre a necessidade de se modificar a teoria da relatividade geral, de Albert Einstein.
Qualquer que seja a resposta, é certo que nos forçará a repensar a relação espaço, tempo e matéria.

MERVAL PEREIRA - Plebiscito e representação


Plebiscito e representação
MERVAL PEREIRA 
O GLOBO - 09/10/11

Ao apoiar a proposta de se fazer um plebiscito para saber qual é a reforma política que o eleitor brasileiro deseja, se é que ele quer alguma mudança, o presidente em exercício Michel Temer justificou a medida como uma maneira de superar a incapacidade do Congresso de chegar a um consenso sobre o tema.

É uma maneira diferente de encarar a mesma proposta, que havia sido feita logo no início dos debates sobre a reforma política pelo deputado federal do Rio Miro Teixeira (PDT), mas como maneira de evidenciar que a proposta de lista fechada defendida pelo PT não teria o apoio do eleitor, que perderia o direito de escolher diretamente o seu candidato, ficando nas mãos das direções partidárias que escolheriam a ordem da tal lista fechada de candidatos.

São duas visões do mesmo problema, mas que colocam em questionamento a democracia representativa. Na tentativa de superar as deficiências do modelo de representação em vigor, a utilização de instrumentos de consultas populares, como os plebiscitos, une esquerda e direita pelo mundo, uns se inspirando na experiência de Chávez na Venezuela, outros no modelo dos Estados Unidos.

Na Suíça, desde 1849, já foram realizados centenas de referendos e plebiscitos nacionais, diversos outros nos 26 cantões e muito mais nas cerca de três mil comunas do país.

Nos Estados Unidos, os referendos e plebiscitos são apenas locais, nos estados e municípios, tratando desde despesas ou impostos até pena de morte ou casamento entre homossexuais.

Quanto maior o país, menor a possibilidade de haver plebiscitos ou referendos nacionais. Geralmente os temas são locais.

Depois de mais uma rodada de negociações que não chegaram a lugar nenhum, fica evidenciado que o Congresso brasileiro não tem unidade suficiente para aprovar uma reforma política, e o deputado Miro Teixeira duvida mesmo que ela seja necessária.

Por isso, acha que uma consulta popular poderia indicar que a maioria da população não deseja mudar o sistema eleitoral, ou pelo menos rejeita qualquer solução que retire do eleitor o direito de escolher diretamente seu representante.

Há mesmo quem considere que o ideal seria manter o mesmo sistema sem fazer grandes alterações, para que o eleitor se acostume com as regras e o mecanismo de nosso sistema eleitoral.

Pessoalmente, acho que duas medidas poderiam ser tomadas imediatamente para dar mais consistência a nosso sistema político-eleitoral: o fim das coligações proporcionais e a introdução da cláusula de desempenho para os partidos políticos.

Essas cláusulas foram aprovadas em 1995 para entrarem em vigor dez anos depois, a fim de que os partidos políticos se preparassem para suas consequências.

Pela legislação aprovada, somente os partidos que tivessem 5% dos votos nacionais, sendo que 3% em pelo menos nove estados, teriam representação no Congresso.

Os demais funcionariam normalmente, mas fora do Parlamento, sem direito a fundo partidário, horário político gratuito de rádio e televisão e outras regalias.

O Supremo Tribunal Federal (STF) declarou sua inconstitucionalidade em decisão unânime, sob a alegação de que apenas uma emenda constitucional poderia impor tais regras, e não uma lei ordinária.

Hoje existem formalmente 29 partidos políticos no Brasil, com a criação recente do PSD de Gilberto Kassab - que será a terceira maior bancada na Câmara dos Deputados em Brasília, superando o PSDB - e o Partido da Pátria Livre, do antigo MR-8.

Desses, nada menos que 23 partidos têm representação no Congresso, sendo que vários com apenas um deputado federal, e essa é sem dúvida uma das razões para a falta de consenso, pois há muitos interesses diversos em jogo.

Mas, voltando ao plebiscito sobre a reforma política, sua adoção seria a aceitação de que a democracia representativa tal como conhecemos fracassou. Num primeiro momento, em comentário na CBN, vi a proposta como uma solução para a reforma política, mas ela de fato coloca em risco a representatividade do Congresso.

Não é o caso de agora, mas a tese de que a democracia representativa já não é suficiente para refletir os verdadeiros anseios populares está por trás do uso da "democracia participativa" ou "direta", que atrai muitos setores da esquerda latino-americana.

O uso da Constituinte para alterar o balanço de poderes nos governos regionais, como vem acontecendo na Venezuela, no Equador, na Bolívia, é outro empecilho para uma proposta de se realizar a reforma política com a eleição de um colegiado especial que teria a tarefa exclusiva de tratar do assunto, por tempo determinado.

Fora o fato de que a convocação de uma Constituinte só se justifica historicamente quando há uma ruptura institucional, a possibilidade de que seus poderes sejam ampliados em meio à tarefa original para aprovar medidas que possam colocar em risco a democracia é um perigo que desestimula seus eventuais defensores.

É claro que democracia não depende apenas do voto direto, também não das consultas populares, mas da criação de um ambiente onde os direitos individuais estejam protegidos e acima da vontade do poderoso da ocasião, seja o guarda da esquina ou o presidente da República.

A transformação de diversas representações da "sociedade civil" em instâncias decisórias para políticas do governo, nos "conselhos de estado" que muitos gostariam de implantar, faria com que apenas os setores mais mobilizados da sociedade surgissem como grandes protagonistas das decisões, que acabariam refletindo o pensamento da parte mais politicamente ativa da sociedade, interesses fragmentados que ganhariam uma dimensão majoritária que não têm na realidade.

Também as chamadas "consultas diretas", como referendos e plebiscitos, correm o risco de ter resultados distorcidos, refletindo mais a influência de lobbies e grupos bem financiados do que realmente a vontade majoritária da população.

GAUDÊNCIO TORQUATO - O espírito do nosso tempo


O espírito do nosso tempo
 GAUDÊNCIO TORQUATO
O ESTADÃO - 09/10/11

Que significado se pode extrair da constatação de que a família e os partidos políticos habitam as duas extremidades do território da confiança social? A resposta é exatamente o que a pergunta denota: o núcleo familiar (com 90 pontos) é a instituição que mais merece respeito da sociedade, enquanto os atores políticos (com apenas 28) são os mais desacreditados, conclusão que ganha peso com o apêndice de que o Congresso Nacional está em penúltimo lugar (um pouco acima dos partidos) no ranking da confiança nacional.
Essa radiografia, tirada pelo Ibope Inteligência de um conjunto de 18 organizações e 4 grupos sociais, deixa o universo político-partidário no fundo do buraco. Para piorar, anote-se o detalhe: o índice de confiança apurado na pesquisa refere-se às pessoas jurídicas, e não à pessoa física dos representantes. Ou seja, uma crise de confiança corrói a imagem das instituições brasileiras. O retrato fica mais borrado ao se verificar que, além de partidos e Congresso, outras esferas, como os governos federal e municipais, e até o Poder Judiciário, vêm registrando acentuada queda em sua pontuação. É inescapável a conclusão de que a comunidade nacional atinge, na atual quadra, a maior distância que já manteve da esfera política. Pior é saber que essa mancha não entra na lupa dos membros das instituições avaliadas.
O que aciona o sistema cognitivo das pessoas para aumentar ou diminuir sua confiança nas instituições? Simples: o que elas veem, ouvem e sentem. Donde se deduz que sua percepção sobre a classe política e os abrigos que a envolvem é a pior possível. Vale lembrar que os níveis de compreensão obedecem a um continuum na escala social, abrigando desde a exacerbação de conjuntos médios e superiores da pirâmide ao estado impermeável da base, mais propensa a reclamar de serviços públicos fundamentais. Exemplo é o sistema público de saúde, que teve a maior queda no ranking da confiança. Inegável, porém, é que as instâncias políticas - em todos os níveis e territórios - pouco têm contribuído para motivar a sociedade. Eleições, de dois em dois anos, são fenômenos previsíveis e com perda gradativa de impacto. Os índices de renovação no Congresso até são expressivos (cerca de 50%), o que não redunda em mudança nos padrões políticos, eis que a radiografia continua a acusar as velhas mazelas: cooptação eleitoral nos moldes antigos, partidos pasteurizados, remota chance de o representante ter projetos aprovados nas Casas congressuais, presidencialismo imperial levando de reboque o Legislativo, trocas no balcão de interesses, manutenção do status quo no plano da reforma política.
O pano de fundo é tétrico. A via política tem sido pavimentada por baterias de escândalos, alguns de alto teor explosivo - mensalão, flagrantes de pacotes de dinheiro entregues a políticos e, ultimamente (caso que agita a Assembleia de São Paulo), denúncias de "venda de emendas parlamentares" -, tudo isso sob os holofotes da mídia e com repiques que acabam se infiltrando nos espaços do centro e das margens sociais. Ao fim dos bombardeios, nuvens cinzentas baixam sobre o edifício da política, sujando a imagem de seus habitantes. O efeito se faz sentir na desafeição pela política tradicional. E na substituição por outra modelagem que contempla novos circuitos de representação (associações, movimentos) e fontes diferentes de mobilização (categorias profissionais nas ruas, caravanas nos corredores congressuais), na esteira do que se chama democracia supletiva. Questões abrangentes dão vez a ações pontuais em defesa de algumas comunidades.
A micropolítica, da ação localizada e imediata, passa a ser a munição dos grupos de pressão. E assim a instituição política vai descendo degraus na escada da confiança social, enquanto outras entidades ascendem a posições mais elevadas. Não por acaso, os bombeiros, as igrejas e as Forças Armadas lideram o ranking da confiança social. A primeira constrói uma imagem de instituição atrelada ao dever de proteger a sociedade e debelar tragédias cotidianas; por falta de perfis admiráveis, os bombeiros entram na escala heroica. As Forças Armadas, em tempos de harmonia social, exprimem o ideário da autoridade e da hierarquia, valores que ganham proeminência no meio dos sinais de desordem e improvisação que permeiam a vida social e política. Já as igrejas encarnam a fé, arregimentando em seus templos multidões que descreem dos poderes terrenos e das vãs promessas da política. Desse novo diagrama institucional emerge uma nova arquitetura, com destaque para a multiplicação de novos polos de poder e força.
A leitura final mostra que a confiança é um produto em queda no balcão dos valores nacionais. Ao lado do painel construído pelo Ibope, há outro, desenhado pela Fundação Getúlio Vargas, que também aponta para queda na confiança de empresários e consumidores, afetados pela deterioração do cenário internacional e seus reflexos na economia. O refluxo se dá ultimamente nos Índices de Confiança do Consumidor (o menor índice desde março do ano passado), da Indústria (o menor desde agosto de 2009) e de Serviços (o menor desde janeiro). Apesar de tratarem de objetos diferentes, pois a cena institucional incorpora elementos diferentes dos fatores que influem nos mercados de produção e consumo, os índices de confiança em queda apontam para um ambiente circundado por devastação, desolação e medo. A falta de oxigênio nos pulmões políticos reduz as chances de aparecerem perfis capazes de reanimar as veias sociais. A política é uma seara seca. A precariedade de serviços públicos essenciais, por sua vez, multiplica feridas, abrindo fossos nas margens. E quando poderosas nações do planeta não conseguem apagar as fogueiras que devastam suas economias, o sopro do pânico adentra todos os espaços.
É o espírito do nosso tempo.

Entrevista - Aécio Neves - 'Eu estarei pronto, seja Lula ou Dilma', diz Aécio sobre 2014


 'Eu estarei pronto, seja Lula ou Dilma', diz Aécio sobre 2014
Entrevista 
Aécio Neves
O ESTADÃO - 09/10/11


Senador tucano diz que debate sobre candidaturas no PSDB deve ficar para "o amanhecer de 2013", mas se apresenta disposto a enfrentar qualquer nome do PT
Christiane Samarco - O Estado de S. Paulo
Entrevista - Aécio Neves
BRASÍLIA - Diante da pressão de companheiros de PSDB para que assuma logo sua pré-candidatura a presidente em 2014, o senador Aécio Neves (MG) não deixa dúvidas. "Se esta for a vontade do partido, eu estarei pronto para disputar com qualquer candidato do campo do PT, seja Lula ou Dilma. Serão eleições com perfis diferentes e eu não temo nenhuma das duas", disse o ex-governador ao Estado.
Mas Aécio pondera que o debate das candidaturas deve ficar para "o amanhecer de 2013", pois "uma decisão correta no momento errado é uma decisão errada". Ele diz que a opção José Serra "terá de ser avaliada por seu capital eleitoral e experiência política" e cita também os governadores Geraldo Alckmin (SP), Marconi Perillo (GO) e Beto Richa (PR) como presidenciáveis. Nesse quadro, defende eleições prévias para a escolha dos candidatos tucanos a partir da eleição de 2012.
O que se vê hoje no cenário nacional, projetando 2014, são duas candidaturas presidenciais no campo do governo: Lula ou Dilma Rousseff. Como a oposição não se colocou, as pressões já começaram. Os 41 deputados tucanos que se reuniram com o sr. há dez dias, para pressioná-lo a assumir uma pré-candidatura, têm razão de estar ansiosos?
Conter essa ansiedade é uma das questões às quais tenho me dedicado. Mas acho muito bom que o PSDB tenha outros nomes, que serão discutidos na hora certa. José Serra é um nome que o partido terá de avaliar, por seu capital eleitoral e pela experiência política que tem. O governador Geraldo Alckmin (SP) é um nome sempre lembrado, como também são os governadores Marconi Perillo (GO) e Beto Richa (PR). É muito bom que o partido tenha quadros que possam despontar amanhã como candidatos.
E qual é o seu projeto para 2014?O que eu disse aos companheiros do PSDB é que estarei à disposição do partido para cumprir meu papel, seja como candidato ou apoiador de um candidato que eventualmente tenha melhores condições de disputa do que eu.
O sr. tem disposição para disputar a eleição presidencial com Dilma ou Lula?Se essa for a vontade do partido, estarei pronto para disputar com qualquer candidato do campo do PT, seja Lula ou Dilma. Eu disse com muita clareza aos deputados que não temos de nos preocupar se é Lula ou se é Dilma. Com cada um será um tipo de campanha.
Contra Lula seria uma campanha mais fácil, ou mais difícil?Acho, sinceramente, que é muito difícil alguém na Presidência, com a possibilidade da reeleição, deixar de disputar. Mas, se a disputa for com o ex-presidente Lula, acho que as diferenças ficarão ainda mais claras. Será a disputa da gestão pública eficiente contra o aparelhamento da máquina pública; a disputa da política externa pragmática em favor do Brasil versus a política atrasada em favor dos amigos. Será o futuro versus o passado. Mas deixo que o PT escolha seu candidato, da mesma forma como o PSDB escolherá o seu no momento certo, e não necessariamente serei eu.
O sr. está dizendo que contra Lula pode ser até mais fácil?Nenhuma eleição será fácil, mas, seja quem for o candidato, entraremos na disputa de forma extremamente competitiva. Serão eleições com perfis diferentes. Não temo nenhuma das duas.
Em 2010, tucanos de São Paulo e dos demais Estados se confrontaram na escolha do candidato a presidente, mas agora o PSDB paulista está dividido. Isso facilita a busca por um nome de consenso em 2014?Não vejo dessa forma. Acho que o PSDB amadureceu o suficiente para ver que, ou vamos todos unidos de verdade, ou não teremos êxito. E o PSDB tem figuras extremamente relevantes nesse processo. O governador Alckmin é uma liderança nacional com condições até de ser o candidato com êxito. O senador Aloysio Nunes é um dos mais qualificados quadros do Congresso e será um instrumento importante na construção da unidade do partido, seja em torno de quem for, e incluo aí o companheiro José Serra. O presidente FHC terá sempre um papel de orientador maior.
O sr. tem disposição para disputar eleições prévias no PSDB?Eu estimulo as prévias. Essa proposta foi sugestão minha lá atrás, e defendo que elas ocorram no maior número possível de lugares onde houver mais de um candidato, já nas eleições municipais. Acho a prévia um instrumento de mobilização e de comprometimento do partido em torno de um projeto.
As candidaturas presidenciais do PSDB foram basicamente sustentadas pelo DEM e pelo PPS. O esvaziamento do DEM pelo PSD sugere um novo quadro de alianças já para 2012?O DEM perdeu espaço, realmente, mas nós do PSDB somos alternativa ao País não pelo número de cadeiras que temos, mas pelo que representamos, e por nossa capacidade de pensar, ousar e despertar confiança em parcelas importantes da sociedade. Defendo, para 2012, o que eu já defendia em 2006 e 2010, que é nós termos um leque cada vez mais amplo de alianças. E não o fiz apenas retoricamente. Exercitei isso na prática, pois em Minas nossa aliança é extremamente ampla, com partidos hoje da base do governo federal, como o PSB, o PDT, o PP.
Que papel terá o PSD nesse novo quadro? Ele está na mira do PSDB?O PSD nasce a partir de uma liderança - o prefeito Gilberto Kassab (SP), que teve muita proximidade com o governador José Serra. Essa relação sempre existirá. O PSD apresentou-se como uma oportunidade de uma janela política para lideranças que estavam em dificuldades nos seus partidos e vejo que muitos dos novos integrantes da legenda têm relação conosco em nossas bases. Não tenho avaliação clara sobre qual será o papel do PSD, mas vejo com muita naturalidade que alguns setores do PSD tenham mais afinidade conosco do que com o PT.
Qual o quadro de alianças que o senhor vislumbra para 2014?Teremos um quadro de alianças muito diferente do atual. O PSDB tem dois anos para se viabilizar como partido que tem a ousadia e a generosidade de ampliar suas alianças e apresentar ao País uma proposta que vá além do projeto de poder. Que seja um projeto de transformação.
É este o desafio do PSDB agora?Na prática, estamos procurando refundar o PSDB em seu discurso. Temos de voltar a ser, aos olhos da sociedade brasileira, o interlocutor confiável que tem espírito público. As pesquisas mostram com muita clareza que a população confia nos líderes do PSDB e respeita nossas administrações estaduais mais do que outras. Temos de mostrar que somos capazes de projetar para o futuro um País mais eficiente, mais desenvolvido, com pessoas mais qualificadas por uma educação de qualidade. O PSDB tem de se apresentar como partido que tem a nova agenda para o Brasil.
Que agenda é essa?O projeto original que trouxe o Brasil até aqui é do PSDB, mas o que está em execução agora é um software pirata. Nos temos de trabalhar muito para recolocar o original no lugar, porque o modelo que está aí se exauriu. Não apresenta nada e nada fala à saúde pública de qualidade. Na gestão FHC, fizemos a universalização do acesso à educação. Que qualificação essa educação teve de lá para cá? Absolutamente nenhuma. Do ponto de vista da gestão, não há novidades além da ampliação absurda de cargos públicos, com quase 40 ministérios funcionando sem nenhuma eficiência.
Já há parcerias PSDB-PSB em quatro Estados: SP, MG, PR e PB. Isso é meio caminho andado para uma aliança nacional em 2014, ou ainda falta pavimentar esse caminho?Não seria correto dizer que faremos uma aliança amanhã com o PSB, que hoje participa da base do PT e tem cargos no governo. Vamos esperar que as coisas aconteçam com naturalidade. Temos é de construir nosso discurso para agregar as forças que com ele se sintam à vontade. Esse é nosso papel. O tempo dirá que forças estarão a nosso lado. Só não acho fácil que, pela heterogeneidade do pensamento das forças políticas que convivem hoje sob o guarda-chuva do governo, elas cheguem todas unidas até o final.
Belo Horizonte vai apoiar a reeleição do prefeito Márcio Lacerda?Eu deleguei essa questão para que a direção estadual do partido a conduzisse lá. A candidatura própria não está descartada, mas há uma conversa avançada no sentido da continuação da nossa participação no governo correto de Márcio Lacerda. Um governo que lançamos lá atrás com muita desconfiança, mas que faz uma gestão muito bem avaliada. Acho até que há uma afinidade muito maior de Lacerda conosco, na forma de governar e no que ele pensa, do que com o PT.
Pesquisa interna mostra que o PSDB perdeu suas principais bandeiras para o PT. Dos medicamentos genéricos à Lei de Responsabilidade Fiscal, projetos do partido são mais creditados a Lula do que a FHC. Tem como recuperar essas bandeiras?Minha avaliação não é nada pessimista em relação ao PSDB e ao nosso futuro. Mesmo depois de três derrotas nas disputas presidenciais, a pesquisa nos coloca de forma muito clara como a principal alternativa ao modelo que está aí e que a meu ver chegará exaurido ao fim de 12 anos de poder. Se traz o alerta de que nosso principal erro foi negar o legado de Fernando Henrique, ela também aponta os erros cometidos no período pós-FHC. Pela primeira vez uma pesquisa mostra que a corrupção, o aparelhamento da máquina e a ineficiência da administração pública são questões que colaram de forma clara no PT. Temos nossos problemas, mas aqueles contra os quais disputaremos têm os deles, e são graves.
E como o PSDB vai tomar posse do legado que relegou?Um partido não cria raízes na sociedade sem bandeiras e sem agenda. A pesquisa mostra que 70% da população tem a percepção de que o Brasil começou a melhorar a partir do governo FHC e do Plano Real, e vem melhorando sucessivamente. Vamos enfatizar muito isso nas nossas próximas ações, falando do legado do PSDB e do nosso futuro. Somos o único partido com condições de se apresentar com uma nova agenda para o Brasil, até porque a agenda em execução hoje pelo PT é a que propusemos lá atrás, no governo FHC. É a estabilidade econômica, a política macroeconômica de metas de inflação, câmbio flutuante, superávit primário, modernização da economia com as privatizações e o Proer, que deu estabilidade ao sistema financeiro brasileiro. O PT não apresentou uma agenda nova.
Mas o fato é que a presidente Dilma está com a popularidade em alta nas Regiões Sul e Sudeste, onde o PSDB sempre teve mais apoio popular.É absolutamente natural que ela tenha uma boa avaliação neste momento, até porque existe uma comparação com o presidente Lula e algumas diferenças de personalidade e de comportamento. Nossa disputa lá adiante não vai se dar entre o céu e o inferno, entre os que acertam tudo e os que erram tudo. Vamos discutir modelos. Eu não tenho a dificuldade permanente que o PT tem de reconhecer méritos nos adversários. Lula teve acertos. O principal deles foi a manutenção da política macroeconômica, e o adensamento dos programas sociais foi seu o segundo maior acerto. Mas teve grandes equívocos.
No balanço geral, o governo Lula foi o mais popular desde a redemocratização.O presidente Lula passou oito anos surfando nas medidas que foram implementadas por FHC - a estabilidade é a principal delas. Pôs um tucano no Banco Central e ficou negando tudo, como se não houvesse um Brasil antes dele. Isso é um erro e até uma certa falta de generosidade com o País.
Olhando para trás, quais foram os grandes equívocos do governo Lula?O aparelhamento da máquina pública como jamais se viu antes neste país foi o mais grave deles, porque abriu o caminho para a corrupção generalizada dentro do governo. E quem diz isso não sou eu. É a presidente Dilma, no momento em que demite da forma que fez figuras notórias próximas ao governo anterior. E a outra grande lacuna que o governo passado deixou foi, em um ambiente de prosperidade econômica, altíssima popularidade pessoal do presidente e ampla base no Congresso, Lula não ter encaminhado nenhuma das reformas estruturantes que poderiam estar permitindo, aí sim, que o Brasil tivesse muito mais protegido contra eventuais crises.
Que avaliação o senhor faz hoje do governo Dilma?É um equívoco falar em governo Dilma, porque esta administração está no nono ano. Não dá para ela se apropriar dos êxitos e se eximir dos equívocos do antecessor. Em termos de gestão pública, esses nove anos de PT foram um atraso. Nós andamos para trás. Diferentemente do que ocorre em vários Estados, o governo federal não estabeleceu um mecanismo de metas ou de avaliação que avançasse no sentido de uma gestão pública de maior qualidade. E, infelizmente, a presidente caminha na mesma direção que caminhou o governo Lula. Não há por parte do governo nenhuma articulação nem demonstração de vontade política de enfrentar contenciosos.
O senhor acha que ela perdeu o timing de fazer reformas?O presidente Lula teve um momento extremamente favorável para encaminhar reformas no campo tributário, previdenciário e do próprio Estado brasileiro, contando com o apoio da oposição - e eu me incluo nesse apoio, mas optou por não enfrentar. Eu aprendi que as grandes reformas se fazem no início do governo, quando se tem capital político, se tem uma autoridade ainda sem qualquer desgaste para poder impor de alguma forma essas reformas àqueles que lhe apoiam.
Mas ela está fortalecida por essa imagem de quem fez a faxina contra a corrupção.O PT abriu mão de ter um projeto de País para se satisfazer com um projeto de poder. Algumas figuras do PT, a quem respeito, concordarão comigo. Vai chegar ao fim desses 12 anos de poder e vamos fazer um grande benefício ao PT, levando-o novamente à oposição, para que possa resgatar sua origem e valores que perdeu ao longo de sua trajetória. O PT foi um partido muito importante para o Brasil, que representava a classe trabalhadora, mas ao longo do exercício do poder se perdeu e se tornou igual e, em alguns aspectos, pior que os outros. Nosso esforço é para que o PT possa reciclar-se na oposição.
O sr. falou em fazer um favor ao PT, recolocando-o na oposição, mas correligionários seus dizem que é sua atuação, no campo da oposição, que está um pouco apagada no Senado.Política é a arte de administrar o tempo. Cada um tem sua forma de agir e sua personalidade. Vamos aguardar se o tempo mostra se estou equivocado, ou não. Nosso grande esforço agora, ao qual tenho me dedicado além das questões legislativas, é no campo partidário, ajudando o presidente Sérgio Guerra na reorganização estrutural do partido. Um partido que tem um projeto nacional como o PSDB não pode deixar de ter representação nacional em sete Estados (AM, RO, DF, MT, RN, PI, SE) como ocorre hoje. Então, estamos reciclando o partido nesses Estados e abrindo para alianças, inclusive visando ao futuro.

DANUZA LEÃO - Só no dicionário



Só no dicionário
 DANUZA LEÃO 
FOLHA DE SP - 09/10/11

Tem sentido, hoje, dizer de alguém que tem excelente caráter? Que é sincera? Que nela dá para confiar?

Quais as qualidades mais valorizadas nos dias de hoje?

Bem, como tudo mudou, vou falar de algumas, as que dão mais ibope, e não pela ordem.

É preciso ser ligado, antenado e sobretudo bem informado; é aquele que presta atenção a tudo, a quem nada escapa.

Com esses predicados, é possível abrir as portas para uma carreira brilhante e um futuro promissor, e se tiver também alguma inteligência, o sucesso é garantido. Afinal, é por meio das boas informações que são feitos os grandes negócios e as tramas políticas acontecem.

Mas é preciso também ser esperto para usar essas informações na hora certa, com a pessoa certa.

Esperteza, essa sim, uma enorme qualidade. Quem tiver esse dom pode se tornar milionário e poderoso, o objetivo supremo de toda a humanidade -de quase toda, digamos.

Cultura já esteve mais em alta, mas tem sua vez em algumas rodas, e conhecer profundamente um assunto -mesmo só um- costuma deixar as pessoas de queixo caído.

Mas não se esqueça: seja ele qual for, vá fundo e mostre-se um expert. Que seja algo de original: a civilização egípcia, por exemplo. Como poucas pessoas viram uma múmia de perto, esse é um belíssimo tema para ser jogado num jantar de seis pessoas -elas vão babar de admiração, e você vai brilhar sozinho.

Os mistérios do fundo do mar e a vida sexual dos cangurus também podem agradar, mas fuja da astrologia e da psicanálise, que já deram tudo o que tinham para dar. Astronomia, quem sabe? Vinhos, melhor beber do que falar deles, e de viagens, nem pensar.

Outra qualidade muito valorizada é a dos que leem os jornais -bem. Todos os do Rio e de São Paulo, claro, e talvez de mais uns quatro Estados. Mas tem que ser falado a sério, para poderem dizer, como quem não quer nada, que concordam -ou discordam, isso não tem a menor importância- com a divisão dos royalties do pré-sal.

Saber esgrimar com as palavras também faz grande sucesso, mas é perigoso: sempre pode haver alguém mais talentoso e ferrar você de vez.

Mas quando quiser falar mal de alguém, seja irônico -é mais cruel, não compromete, não dá processo- e nunca diga nada que possa ser repetido: fale bem, mas usando tons de voz e sorrisinhos que vão arrasar, de vez, aqueles de quem você não gosta.

Mas um dia você se lembra de que há muito, muito tempo, existiam qualidades bem diferentes dessas, e que hoje não fazem o menor sucesso. Tem sentido, hoje em dia, dizer de uma pessoa que ela tem um excelente caráter? Que é sincera? Que nela você pode confiar? Se você gosta de verdade dela, é melhor ficar calado, pois pega até mal dizer essas coisas de um amigo.

E existem ainda outras de que não se ouve falar há tanto tempo, mas tanto, que já virou até coisa de época. Passa pela cabeça dizer que uma pessoa é sensível, terna, delicada, bem educada, que tem um grande coração? Pega até mal; e passa pela sua cabeça que uma pessoa é bondosa?

Procure lembrar há quantos anos você não ouve falar de um gesto de bondade, não recebe um olhar de bondade, não ouve nem pronuncia a palavra bondade -se é que isso ainda existe.

Se não souber do que se trata, procure no dicionário, e talvez encontre; talvez.

CARLOS HEITOR CONY - O partido que falta


O partido que falta
 CARLOS HEITOR CONY 
FOLHA DE SP - 09/10/11

RIO DE JANEIRO - Fiquei sabendo pelos jornais que o Brasil terá mais um partido político: o PPL (Partido Pátria Livre). Somando-se aos já existentes, serão 29 segmentos políticos da sociedade que terão programas para melhorar as coisas e causas nacionais, embora eu não compreenda, por exemplo, que existam 29 maneiras de ser contra ou a favor do aborto, do casamento gay e dos royalties do pré-sal que ainda está no fundo do mar.

Evidente que os 29 partidos poderão fazer coligações em torno de ideias comuns, mas, na realidade, as coligações nada têm de ideológicas e sim de eleitorais, de acordo com cada Estado ou município.

Fala-se em reforma política há bastante tempo. No fundo, o que a classe profissional dedicada ao setor pretende é uma arrumação partidária, aumentando o número de vagas nos Legislativos e de possibilidades na hora das nomeações para os diversos cargos públicos de primeiro e segundo escalão.

Para efeito prático, desde os tempos do Império, a divisão política ficava no conservadorismo e no liberalismo. Em outros países continua esta divisão básica e suficiente. Nos tempos da ditadura, os militares criaram dois partidos e, pensando bem, houve até algumas surpresas, com a vitória da oposição (MDB) em diversas regiões eleitorais.

Agora uma constatação: se, nos tempos de chumbo, em vez de dois partidos tivéssemos 29, certamente ainda estaríamos mergulhados na ditadura. O lugar-comum garante que é bom dividir para reinar.

Como não sou filiado nem admirador de nenhum dos 28 partidos existentes, não sinto o menor entusiasmo pelo 29º que está sendo criado, gostaria que a reforma política criasse mais um, o 30º, o partido do eu-sozinho, do qual eu seria fundador, presidente e beneficiário. Apoiaria as grandes causas nacionais, sobretudo as minhas.