sábado, março 24, 2018

Errando para pior - J.R. GUZZO

REVISTA VEJA

A verdade é que o atual regime brasileiro não consegue dar ao cidadão nem sequer o direito à própria vida — um mínimo dos mínimos, em qualquer país do mundo




O povo aprende mesmo? - Congresso Nacional: quase metade dos parlamentares tem algum tipo de problema com a Justiça (Pedro França/Agência Senado)

O Brasil de hoje não é uma democracia; provavelmente nunca foi. É verdade que nos últimos trinta anos a “sociedade brasileira”, essa espécie de espírito santo que ninguém entende direito o que é, mas parece a responsável por tudo o que acontece no país, tem brincado de imitar Estados Unidos, Europa e outros cantos virtuosos do mundo. A tentativa é copiar os sistemas de governo que existem ali — nos quais as decisões públicas estão sujeitas à igualdade entre os cidadãos, às suas liberdades e à aplicação da mesma lei para todos. Os “brasileiros responsáveis”, assim, fingem que existem aqui “instituições” — uma Constituição com 250 artigos, três poderes separados e independentes uns dos outros, “Corte Suprema”, direitos civis, “agências reguladoras”, Ministério Público e as demais peças do cenário que compõe uma democracia. Mas no presente momento nem a imitação temos mais — pelo jeito, os que mandam no Brasil desistiram de continuar com o seu teatro e agora não existe nem a democracia de verdade, que nunca tivemos, nem a democracia falsificada que diziam existir.

Como pode haver democracia num país em que onze indivíduos que jamais receberam um único voto governam 200 milhões de pessoas? Os ministros do Supremo Tribunal Federal, entre outras manifestações de onipotência, deram a si próprios o poder de estabelecer que um cidadão, por ser do seu agrado político, tem direitos maiores e diferentes que os demais. Fica pior quando se considera que sete desses onze foram nomeados, pelo resto da vida, por uma presidente da República deposta por 70% dos votos do Congresso Nacional e por um presidente hoje condenado a mais de doze anos de cadeia. Mais: seus nomes foram aprovados pelo Senado Federal do Brasil, uma das mais notórias tocas de ladrões existentes no planeta. Querem piorar ainda um outro tanto? Pois não: o próximo presidente do STF será um ministro que foi reprovado duas vezes seguidas no concurso público para juiz de direito. Quando teve de prestar uma prova destinada a medir seus conhecimentos de direito, o homem foi considerado incapaz de assinar uma sentença de despejo; daqui a mais um tempo vai presidir o mais alto tribunal de Justiça do Brasil. Outro ministro não vê problema nenhum em julgar causas patrocinadas por um escritório de advocacia no qual trabalha a própria mulher. Todos, de uma forma ou de outra, ignoram o que está escrito na Constituição; as leis que valem, para eles, são as leis que acham corretas. Democracia?

Democracia certamente não é. A população não percebe isso direito — e a maioria, provavelmente, não ligaria muita coisa se percebesse. Vale o que parece, e não o que é — o que importa é a “percepção”, como se diz. Como escreveu Dostoievski, a melhor maneira de evitar que um presidiário fuja da prisão é convencê-lo de que ele não está preso. No Brasil as pessoas estão mais ou menos convencidas de que existe uma situação democrática por aqui; há muitos defeitos de funcionamento, claro, mas temos um sistema judiciário em funcionamento, o Congresso está aberto e há eleições a cada dois anos, a próxima delas daqui a sete meses. Os analistas políticos garantem que o regime democrático brasileiro “está amadurecendo”. Quanto mais eleições, melhor, porque é votando que “o povo aprende”. A solução para as deformações da democracia é “mais democracia”. O eleitorado “sempre acerta”. E por aí segue essa conversa, com explicação em cima de explicação, bobagem em cima de bobagem, enquanto a vida real vai ficando cada vez pior.

Não ocorre a ninguém, entre os mestres, comunicadores e influencers que nos ensinam diariamente o que devemos pensar sobre os fatos políticos, que um fruto que está amadurecendo há trinta anos não pode resultar em nada que preste. Como poderia, depois de tanto tempo? A cada eleição, ao contrário da lenda, os eleitos ficam piores. Esse Congresso que está aí, no qual quase metade dos deputados e senadores tem algum tipo de problema com a Justiça, é o resultado das últimas eleições nacionais. De onde saiu a ideia de que as coisas vão melhorando à medida que as eleições se sucedem? Do Poder Executivo, então, é melhor não falar nada. Da última vez que o povo soberano foi votar, em 2014, elegeu ninguém menos que Dilma Rousseff e Michel Temer, de uma vez só, para a Presidência da República. Está na cara, para quem não quer complicar as coisas, que o “povo” não aprendeu nada dos anos 80 para cá. Está na cara que o povo, ao contrário da fantasia intelectual, não apenas erra na hora de escolher; erra cada vez para pior.

Para ficar em apenas um caso de depravação política epidêmica, tipo dengue ou zika, é só olhar durante um minuto quem a população do Rio de Janeiro, em eleições livres e populares, escolheu para governar seu estado e sua cidade nos últimos trinta anos. Eis a lista: Leonel Brizola, Anthony Garotinho, a mulher de Anthony Garotinho, Benedita da Silva, Sérgio Cabral (possivelmente o maior ladrão da história da humanidade), Eduardo Paes e, não contente com tudo isso, um indivíduo que se faz chamar de “Pezão”. Assim mesmo: “Pezão”, sem nome nem sobrenome, como jogador de futebol do Olaria de tempos passados. Que território do planeta conseguiria sobreviver à passagem de um bando desses pelo governo e pela tesouraria pública? É óbvio que tais opções, repetidas ao longo de trinta anos, têm consequências práticas. O Rio de Janeiro de hoje, com sua tragédia permanente, é o resultado direto de uma democracia que faliu de ponta a ponta. Em vez de garantir direitos, liberdades e ordem, gera apenas governos criminosos e destruidores — acabou, enfim, na entrega da segunda maior cidade do Brasil a assassinos, assaltantes e traficantes de droga. São eles que mandam na população. A lei brasileira não vale no Rio.

Não pode existir democracia sem a expectativa, por parte das pessoas, de que a lei vai ser aplicada — pois só assim seus direitos poderão ser exercidos. Como falar de democracia num país com mais de 60 000 homicídios por ano, dos quais menos de 5% são investigados e punidos? Mais de 60 000 assassinatos num ano são uma agressão tão clara à democracia quanto um desfile de tanques de guerra para tomar o palácio do governo; aqui são considerados um “problema social” pelos democratas-­progressistas. (A solução sugerida pela oposição, e levada a sério por gente de grande intelecto, é acabar com a PM; acham que sem polícia o crime vai diminuir.) A verdade é que o atual regime brasileiro não consegue dar ao cidadão nem sequer o direito à própria vida — um mínimo dos mínimos, em qualquer país do mundo. Não se asseguram os direitos de propriedade, de ir e vir, de integridade física. Não se assegura coisa nenhuma — só a punição para quem o Estado acha que está lhe devendo 1 centavo de imposto, ou deixando de cumprir algum item nos milhões de leis que uma burocracia tirânica e irresponsável multiplica como ratazanas. “Constituição Cidadã”? Só a ideia já é uma piada.

Não dá para falar em democracia no Brasil, além do mais, quando se verifica que tantas das nossas leis mais importantes e sagradas se destinam a estabelecer diferenças entre os cidadãos. Ou seja: os que mandam no país passam a vida criando leis, regras e mandamentos que anulam cada vez mais o princípio universal de que “todos são iguais perante a lei”. Aqui não: todos são oficialmente desiguais. Isso é resultado da prática de criar “direitos” para todos que nunca foram para todos — ao contrário, são para poucos e não são direitos, e sim privilégios. Essa trapaça vem desde a Constituinte, e nunca mais parou. Aprovam-se como “direitos populares” vantagens abertamente dirigidas a grupos organizados, que têm proteção política e podem pressionar o Congresso. Depois, quando fica evidente que esses benefícios precisam ser revistos para não arruinar o bolso da população em geral, que tem de pagar em impostos cada centavo da conta, cai o mundo: “Estão querendo tirar os direitos do povo”. Que “povo”? Povo coisa nenhuma. É justamente o contrário. O brasileiro comum se aposenta com cerca de 1 200 reais por mês, em média, não importando qual tenha sido o seu último salário. O funcionário público, por lei, se aposenta com o salário integral; hoje, na média, o valor está em 7 500 mensais. Os peixes graúdos levam de 50 000 mensais para cima. São cidadãos desiguais e com direitos diferentes.

É uma perfeita palhaçada, também, falar em igualdade quando existem no Brasil aberrações como o “foro privilegiado” ou a “imunidade parlamentar”. Os “constitucionalistas” falam em independência de poderes, garantias para a liberdade política, segurança para a democracia etc. Não é nada disso. É pura safadeza enfiada na Constituição por escroques, de caso pensado, para proteger a si próprios do Código Penal. Essa mentira não protege só os políticos. Estende-se também a juízes, procuradores e ministros dos tribunais de Justiça: ao contrário de todos os demais brasileiros, eles podem cometer crimes de qualquer tipo, da corrupção ao homicídio, sem ser julgados perante a lei. O pior que pode lhes acontecer é serem aposentados — com salário integral. Naturalmente, todos dizem que não é bem assim, pois teoricamente, pelo que está escrito, eles têm de prestar contas dos seus atos; alguns, inclusive, estão sujeitos a impeachment, imaginem só. O que dá para dizer a respeito é que teoricamente o homem também pode ir à Lua. Só que não vai.

Não existe democracia quando os governos são escolhidos por um eleitorado que tem um dos piores níveis de educação do mundo — em grande parte é um povo incapaz de entender direito o que lê, as operações simples da matemática, ou as noções básicas do mundo em que vive. O que pode sair de bom disso aí? O cidadão precisa passar num exame para guiar uma motocicleta ou trabalhar num caixa de supermercado. Para tirar o título de eleitor, com o qual elege o presidente da República, não precisa de nada. Pode, aliás, ser analfabeto. Eis aí o Brasil como ele é. Em vez de garantirem as reais liberdades políticas do brasileiro fazendo com que ele aprenda a ler, escrever e contar, nossos criadores de direitos resolvem a diferença entre instruídos e ignorantes dando o voto ao analfabeto. Mais: tornam o voto obrigatório e garantem, assim, que no dia da eleição compareçam todos os habitantes dos seus currais, cujos votos compram com a doação de dentaduras e com anúncios de felicidade instantânea na televisão — pagos, por sinal, com o seu dinheiro.

Não existe nenhuma democracia no mundo que seja assim.

Vem aí uma revolução no crédito - MAÍLSON DA NÓBREGA

REVISTA VEJA - 22/03

O panorama do crédito no Brasil está mudando para melhor, por força de inflação e Selic mais baixas, da TLP, do mercado de capitais e das fintecs


A redução da taxa Selic para 6,5%, ontem decidida pelo Banco Central, e uma provável nova queda para 6,25%, são sintomas de um conjunto de elementos que prenunciam uma auspiciosa e forte ampliação do crédito na economia brasileira nos próximos anos.

Por trás da decisão está um comportamento muito melhor do que se esperava para a taxa de inflação. Tudo indica que o IPCA vai terminar o ano em 3,7%, bem abaixo da meta para a inflação, de 4,5% este ano. O BC tem grande parte do crédito por essa realidade, mas há um fator novo: a quebra da espinha dorsal da inflação de serviços, que pode chegar a pouco mais de 3% no fim do ano (era mais de 8% em 2015).

Os melhores resultados da inflação de serviços decorrem, entre outros fatores, dos primeiros efeitos da reforma trabalhista. De fato, 25% desse componente derivam do fator trabalho, do qual 70% se originam dos salários dos empregados domésticos. Com a reforma, aumentos de salários têm arrefecido. A inflação no Brasil caminha, pois, para o nível estável de 4% ou menos, prevalecente na maioria dos países emergentes.

Um terceiro fator começa também a operar. Trata-se da TLP, taxa de longo prazo, que vem substituindo a TJLP utilizada nas operações do BNDES. A TLP eliminará o subsídio implícito nos empréstimos do banco. Assim, a Selic influenciará parcelas crescentes do crédito da economia, o que aumenta a potência da política monetária. Dito de outra forma, será cada vez menor a Selic necessária para o BC cumprir a meta para a inflação.

Ingressamos, pois, em ambiente de Selic permanentemente baixa. A taxa de juros real, isto é, descontada a inflação, deve cair para menos de 3% ao ano. Isso aumentará a atratividade dos títulos que as empresas privadas emitem para financiar seus investimentos e o capital de giro. Esses papéis competirão com os títulos públicos nas carteiras dos fundos de pensão, fundos de investimento e das seguradoras.

Desse modo, o mercado de capitais, na parcela relativa a títulos de renda fixa emitidos por empresas, terá participação crescente na oferta de crédito no Brasil. Como demonstração dessa grande novidade, empresas privadas têm buscado recursos no mercado de capitais para resgatar empréstimos no BNDES, que ficaram mais caros. Não se tem notícia disso nos quase 70 anos desse banco.

Ao mesmo tempo, a revolução digital tem aumentado o uso dos smartphones para depósitos, investimentos e empréstimos nas instituições financeiras. As fintecs – empresas que adotam a tecnologia digital para incursionar no campo até aqui exclusivo dos bancos – emergem como fonte expressiva de crédito a pessoas físicas e jurídicas.

Nos próximos anos, o panorama do crédito tende a experimentar uma grande mudança, para o bem da economia e do Brasil. Esse processo depende, para sua continuidade, da eleição de um candidato comprometido com o processo de reformas. Se isso acontecer, a revolução se consolidará.


Liberdade e verdade - MURILLO DE ARAGÃO

REVISTA ISTO É

Lembrando Churchill, no mundo de hoje existem mentiras demais e, o pior de tudo, é que boa parte delas é verdadeira em suas intenções de causar desinformação

Em um País de claro viés autoritário, a inter-relação entre a verdade e a liberdade é crítica para a democracia. Lamentavelmente, o autoritarismo prevalece em todos os setores ideológicos do País, abrangendo desde os oligarcas aos pseudo-revolucionários incluindo as esquerdas raivosas e elegantes. Tudo justificado pelos interesses que os orientam.
Assim, em nome de posturas “do bem”, “politicamente corretas” ou adequadas aos interesses econômicos, políticos e partidários, podemos embargar debates e impor preconceitos. Os fins justificam os meios. A novidade está no fato de as redes sociais imprimirem um ritmo acelerado às notícias que circulam e influenciam o ambiente.

Hoje, distorcer os fatos e propagar fake news e fake interpretations faz parte do jogo do nosso tempo e verdades e mentiras passaram a ser injetadas na veia do grande público em doses gigantescas.

Lembrando Churchill, no mundo de hoje existem mentiras demais e, o pior de tudo, é que boa parte delas é verdadeira em suas intenções de causar desinformação. As mentiras sinceras estão em falta.

Já o autoritarismo tupiniquim não é novidade e suas vertentes remontam ao passado colonial, ao movimento tenentista e à influência marxista sobre a imprensa e a academia, entre outras que nos deixaram marcas profundas.

Em um ambiente autoritário, a liberdade é tolhida e, com isso, a busca pela verdade fica prejudicada. Não há monopólio de mídia. Mas temos uma espécie de monopólio das interpretações e quem não estiver seguindo a cartilha não terá seus argumentos acolhidos.

Cria-se uma situação em que se ouve o que se pode dizer e não o que deve ser dito. Ou de que se dizer aquilo que não o corre o risco de contrariar o senso comum.

Com sabedoria, o papa João XXIII pregou que “a paz entre os povos exige a verdade como fundamento, a justiça como norma, o amor como motor, a liberdade como clima”. Faltou apenas mencionar a tolerância como atitude.

Pois bem, a ciência e a reflexão demandam liberdade para prosperar e a tolerância para refletir sobre o novo. Não parece ser o que buscamos para viver em paz, tal a violenta intensidade do fluxo de informações tanto na imprensa quanto nas redes sociais que buscam sufocar a reflexão.

Nesse ambiente, não há liberdade, em seu sentido amplo, para o exercício da busca da verdade.

Da prisão após decisão de segundo grau - LUIZA NAGIB ELUF

ESTADÃO - 24/03

O impasse não se pode arrastar, do Supremo se espera a decretação do fim da era da incerteza

A polêmica criada no Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito da prisão ou não de réus condenados em segundo grau merece a reflexão de todos. Não apenas dos acusados, que estão com a espada sobre a cabeça; não apenas dos juízes, que estão com a caneta nas mãos; não apenas dos jornalistas que opinam sobre tudo e sobre todos; e não apenas dos advogados que militam incessantemente em todos os lados dessa polêmica. Trata-se de uma discussão de caráter geral, que vai muito além de mera interpretação de normas jurídicas, mas de relativizar o princípio consolidado nas democracias da presunção de inocência.

É hora de nossas instituições organizarem as ideias para dar um rumo ao Brasil, que já há muito tempo se tornou terra em transe. Qualquer que seja a definição do Supremo, que tanto se aguarda, ela tem de ser séria, bem sopesada e, acima de tudo, justa.

Nesse momento, pouco deve importar o fato de Lula poder ou não ser preso, pois é completamente desaconselhável decidir casuisticamente, ou seja, consagrar uma norma geral para atender a um caso concreto específico. Prender o ex-presidente para dar o bom exemplo ou para satisfazer a ânsia punitiva de muitos, ou deixá-lo em liberdade para aguardar o trânsito em julgado dos processos contra si instaurados, conforme determinam o Código de Processo Penal e a Constituição federal, essa é uma questão que está posta, mas não é a única que importa. É grande a quantidade de pessoas na mesma situação, espalhadas pelo País.

Diante da revolta social causada por numerosas denúncias de malversação do dinheiro público, a população vem gritando por justiça, com contundentes apelos à punição severa dos culpados. É nesse momento que o habeas corpus se faz necessário, pois ele não absolve ninguém, apenas evita a punição antes da certeza cabal da culpabilidade.

O princípio da presunção de inocência vigora no Direito pátrio desde a instauração da democracia e foi consagrado explicitamente na Constituição federal de 1988, em seu artigo 5.°, inciso LVII, que diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Maior clareza que a desse texto não existe. Trata-se de uma determinação e de uma garantia. Ou obedecemos a essa regra fundamental ou perdemos os limites democráticos e instauramos uma Justiça despótica.

Aury Lopes Júnior argumenta que “a presunção de inocência impõe um verdadeiro dever de tratamento (na medida em que exige que o réu seja abordado como inocente), que atua em duas dimensões: interna ao processo e exterior a ele. Na dimensão interna, esse dever é imposto ao juiz, que deve ater-se às provas trazidas pela acusação, à qual incumbe comprovar a culpabilidade do réu (que, lembremos, tem presunção de inocência). Na dimensão externa do processo, a presunção de inocência exige uma proteção com relação à publicidade e à prévia estigmatização do acusado. Assim, os limites democráticos impõem adoção de medidas contrárias à abusiva exploração de um fato criminoso nos meios de comunicação, protegendo-se, também, o próprio processo judicial da especulação que possa ferir a garantia constitucional da presunção de inocência.

Por sua vez, o Código de Processo Penal, seguindo os ditames da Lei Maior, determina em seu artigo 283 que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado, ou no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.

Está evidente a cautela de nossa legislação com relação às prisões. A controvérsia que se instalou após a decisão do Supremo Tribunal Federal, tomada em 2016 por estreita maioria, que autorizou o encarceramento após decisão condenatória proferida em segundo grau, sem necessidade de trânsito em julgado, apenas demonstra que a medida do Pretório Excelso confrontou uma garantia de há muito consagrada, de forma a provocar instabilidade social e jurídica, além de grande inconformismo. Desde o momento da nova concepção adotada, a discussão não mais cessou. E, agora, vê-se a instabilidade crescer dentro do próprio STF, que já esbarra em controvérsias insuperáveis internamente.

É possível deduzir que, com essa guinada surpreendente de permitir a prisão antes do trânsito em julgado da decisão condenatória, a Suprema Corte buscou superar deficiências estruturais do Poder Judiciário, especialmente em relação à morosidade na prestação da justiça, jogando o ônus da sua própria ineficiência nas costas da sociedade, ao restringir direitos fundamentais. Trocando em miúdos, as dificuldades encontradas para fazer girar a máquina das decisões em tempo razoável desembocaram nas restrições às garantias individuais consagradas. Assim, difícil decidir sobre o que é, de fato, pior, mas ouso dizer que em termos de cerceamento da liberdade de ir e vir toda cautela é pouca.

A Constituição do Brasil, a nossa progressista Carta Magna de 1988, aquela escrita com o sangue derramado dos presos do regime militar, teve como escopo limitar os poderes do Estado, garantindo a plena cidadania a todos, sem exceção, e instaurando a democracia. Essa mesma Constituição, que alguns abominam e outros idolatram, embora possa ter alguns defeitos, ainda está em vigor. E é clara sobre o momento de se proceder à execução da pena privativa de liberdade imposta ao réu processado: após o trânsito em julgado da sentença condenatória. Cabendo ao Supremo as decisões sobre todo e qualquer assunto de natureza constitucional, compete a ele manifestar-se sobre a polêmica que se instalou.

A presidente Cármen Lúcia está sendo cautelosa e ponderada, o que é positivo, mas o impasse não se pode arrastar por muito tempo. É do STF que se espera seja decretado o fim da era da incerteza.

* LUIZA NAGIB ELUF É ADVOGADA CRIMINALISTA, TEM SETE LIVROS PUBLICADOS, DENTRE OS QUAIS ‘A PAIXÃO NO BANCO DOS RÉUS’

O sonho distante do liberalismo social na terra do jeitinho brasileiro - GUSTAVO REICHENBACH

GAZETA DO POVO - PR - 24/03

Os noruegueses foram eleitos o povo mais honesto do planeta; o brasileiro é o povo do jeitinho, famoso por querer levar vantagem em tudo

Os socialistas bradam insistentemente que os países escandinavos são onde o socialismo deu certo, com meritocracia equilibrada e tudo funcionando corretamente, quando na verdade isso é uma vitória capitalista, devido à altíssima liberdade econômica.

Os mesmos socialistas bradam que o governo cubano é o modelo correto pra atingir a perfeição escandinava, e querem trazer esse modelo ao Brasil. Se o sucesso governamental aconteceu lá com o povo escandinavo, pode se repetir aqui no Brasil, segundo eles. Claro que falar é fácil, e o irônico é que a liberdade econômica em Cuba é baixíssima.

Essa é uma análise bastante simplória e equivocada, pois há diferença enormes entre a situação do Brasil e o povo escandinavo, principalmente em termos de liberdade econômica e de cultura entre o brasileiro médio e o escandinavo em geral.

Os noruegueses foram eleitos o povo mais honesto do planeta, a ponto de haver estabelecimentos comerciais sem funcionários: o cliente pega o que quer e paga, sem ninguém pra conferir se ele realmente pagou. O brasileiro é o povo do jeitinho, famoso por querer levar vantagem em tudo, doa a quem doer.

A redução do Estado nesse momento é emergencial. É preciso conter o enorme desperdício de dinheiro público em todas as áreas


Os suíços são altamente politizados, cultos e participativos na política: um simples abaixo-assinado vira lei rapidamente. O brasileiro tem orgulho em dizer que detesta política, diz que nada nunca vai mudar e vota por obrigação.

Os políticos suecos moram em apartamentos minúsculos e andam de bicicleta. No Brasil, os políticos ganham supersalários, estão todos entre o 1% da população mais rica, governam pra si, trocam favores e comumente tomam decisões contrárias à vontade da maioria da população.

Assim sendo, eu respondo aos socialistas que creem no absurdo de que o socialismo trará ao Brasil o Estado de bem-estar social dos países escandinavos que isso não ocorrerá por dois grandes motivos.

O primeiro é que a ideologia política é totalmente distinta. O socialismo não preza a liberdade econômica, sendo algo geralmente negligenciado, ocasionando economias deficientes. As obras sociais que os socialistas tanto querem também precisam de dinheiro.

O segundo motivo é o próprio povo, seja o povo ignorante ou nossos péssimos políticos. Há pouquíssimas pessoas capacitadas pra oferecer serviços públicos eficientes com o que o Estado consegue pagar, e nossa educação pública é péssima.

A redução do Estado nesse momento é emergencial. É preciso conter o enorme desperdício de dinheiro público em todas as áreas; que esse dinheiro fique com o cidadão e este busque serviços privados para sua família. O cidadão atualmente paga dobrado ou até triplicado por serviços públicos ineficientes, isso é insustentável.

Enquanto o brasileiro não se capacitar e entender a importância de participar ativamente da política, o Brasil será eternamente o país do futuro que nunca chega e sempre terá espaço para demagogia política com o já clássico estelionato eleitoral populista.

Interessante observar que há ideologias que começam a se confundir, como a social-democracia e o liberalismo social. Se ambos são considerados ideologias de centro no espectro político, qual a diferença entre elas? A social-democracia é um sistema que tende ao socialismo, busca o aumento gradual do poder do Estado, enquanto o liberalismo social visa uma economia próspera e tende a dar liberdades ao cidadão sempre que possível, sem negligenciar os menos favorecidos através de muitas obras sociais. É muito fácil confundir essas ideologias, pois os discursos políticos podem ser idênticos ao eleitor.

Se considerarmos que o centro da política brasileira se divide entre extrema-esquerda e esquerda moderada, fica evidente o desequilíbrio político. Nossa política precisa ser corrigida e oscilar entre o verdadeiro centro político, o que nunca vai acontecer se o cidadão não assumir seu papel nessa situação.


Gustavo Reichenbach, formado em Processamento de Dados e Hotelaria, é investidor autônomo da construção civil.

O privilégio continua - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR

GAZETA DO POVO - PR - 24/03

Luiz Fux tira da pauta do Supremo ação sobre auxílio-moradia para que haja “conciliação” entre associações de magistrados e a AGU

O salvo-conduto para Lula tirado da cartola pelos ministros do Supremo Tribunal Federal na quinta-feira, dia 22, não foi a única vergonha pela qual a corte passou nos últimos dias, constrangendo um país inteiro. Sim, também houve o bate-boca entre Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso no dia 21, mas passou quase despercebido um ato que, assim como a decisão envolvendo o ex-presidente Lula, certamente frustra os brasileiros cansados de uma nação movida a privilégios.

Antes de ser o dia em que o habeas corpus de Lula deveria ser julgado pelo pleno do STF, o dia 22 estava na agenda nacional por outro motivo: era a data para a qual que a presidente da corte, ministra Cármen Lúcia, tinha finalmente marcado o julgamento do auxílio-moradia pago hoje de forma indiscriminada a todos os juízes do país, com valor fixo, independentemente do fato de terem residência própria no local onde trabalham. Quando colocou o tema na pauta, a presidente do Supremo despertou a fúria de associações de magistrados, que fizeram protestos e até uma greve de um dia para deixar claro que estavam dispostos a brigar para manter esse privilégio inconstitucional e imoral.

Para as associações da magistratura, a decisão de Fux foi um ótimo negócio


A ação sobre o auxílio-moradia havia passado anos na gaveta do relator Luiz Fux. Em 2014, ele concedeu a liminar que estabeleceu a farra na concessão do benefício, e demorou longos três anos para liberar o caso para análise do pleno. Mas, no dia 21, Fux mandou retirar o tema de pauta. A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), uma das entidades empenhadas na manutenção do auxílio-moradia nos moldes atuais, pediu ao ministro que o tema fosse analisado não pelo STF, mas pela Câmara de Conciliação de Arbitragem da Administração Federal, ligada à Advocacia-Geral da União. Consultada a respeito, a advogada-geral Grace Mendonça deu resposta positiva, e com isso Fux determinou que o caso saísse da pauta do Supremo.

Para as associações da magistratura, foi um ótimo negócio, pois era praticamente certo que a maioria dos ministros do STF derrubaria o pagamento. Com a AGU, os juízes esperam chegar a um entendimento mais camarada. E, enquanto a conversa seguir – e não se sabe nem mesmo quando as negociações vão começar –, todos continuarão recebendo religiosamente seus quase R$ 4,4 mil todo mês, custando ao contribuinte brasileiro R$ 135,6 milhões mensais, segundo estudo feito pela Consultoria Legislativa do Senado.

Das associações da magistratura já sabemos o que esperar. Da AGU espera-se que defenda com afinco o uso racional do dinheiro dos impostos do cidadão brasileiro, pois estará amparada pela própria Constituição Federal. Um auxílio-moradia que consista no ressarcimento, mediante apresentação de comprovante, de despesas com hospedagem ou aluguel daqueles juízes transferidos para locais distantes daquele onde residem respeitaria o caráter indenizatório do benefício, e seria uma solução compatível com o texto constitucional e a moralidade; se a AGU concordar com algo mais que isso – ou, pior ainda, com a manutenção do formato atual do auxílio –, estará chancelando um verdadeiro privilégio.


Gilmar X Barroso: sim, o confronto existe. É o choque entre um liberal e um vermelho vestido de verde-amarelo por oportunismo - REINALDO AZEVEDO


REDE TV/UOL

A extrema-direita e xucra e a esquerda xexelenta se igualam em muitos aspectos. Além de origens que se cruzam em passado nem tão distante, há em comum o apreço pela ignorância, a estupidez militante, o ódio ao pensamento complexo, o desespero ao perceber que a realidade abriga mais variáveis do que sua estreiteza ideológica é capaz de compreender e de abrigar — daí a opção preferencial pela truculência verbal.

Não deixa de ser curioso que um ultra-esquerdista em alguns costumes e valores, como Roberto Barroso, tenha se convertido, nas redes sociais, em herói da… direita. E um ministro de corte liberal, como Gilmar Mendes — basta analisar seus votos (ainda voltarei ao tema) — esteja sendo tratado como vilão.

A conclusão é inescapável. Barroso é o herói dos idiotas que mal sabem o que dizem, o que querem e o que pensam. Transformaram o ódio a Lula — não raro, carregado de preconceito de origem e de classe — em categoria de pensamento. Bem, e não é.

Pensamento de verdade, este sim, é saber explicar, com critérios de economia e política, por que o PT representou um mal para o país. Nem por isso, sob o pretexto de afastá-lo, devemos violar a Constituição.

Barroso, que chegou ao Supremo nas asas da má-consciência petista, hoje se apresenta como o algoz de Lula porque isso é útil à atual fase de sua carreira. Se o PT ainda estivesse no poder, não duvidem, ele seria um dos artífices do projeto fascistoide do partido, como foi o porta-voz da reforma política que a legenda queria fazer e que simplesmente aniquilaria adversários se levada adiante e se desse certo.

Barroso não mudou. Continua o mesmo destruidor de instituições que chegou ao Supremo, pelas mãos sujas de sangue do terrorista Cesare Battisti.

Ainda voltarei ao tema.