segunda-feira, agosto 29, 2016

Na ordem das razões, a vida tende à inércia do medo e da insegurança - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 29/08

Todos já ouvimos falar do princípio da inércia. Vamos entendê-lo aqui, primeiramente, como a tendência das coisas a continuarem como estão, contra outra tendência, que seria a de mudança. Mais abaixo, o veremos como um princípio negativo de ação que pode ser implodido por "paixões alegres" (parafraseando Espinosa, filósofo do século 17) como o amor e o encanto.

A primeira imagem que vem à cabeça pode ser aquela da política. Identificamos a atitude conservadora como sendo a inercial e a atitude progressista como sendo a de mudança. Em que pese a aparente semelhança, não acho que pensamento conservador em filosofia política seja idêntico a inércia, mas esse tema pouco me interessa hoje.

Como sempre, me atormenta mais a moral do que a política. E por moral aqui quero dizer hábitos, costumes, afetos, obsessões, "humores" que se manifestam e conduzem nossa vida, às vezes de forma demasiado microscópica e invisível para o espírito geométrico.

A invisibilidade desse tipo de força é mais visível ao espírito de finesse (ambos os "espíritos" referidos aqui são conceitos do filósofo francês Blaise Pascal, do século 17), dado a lidar com poucos elementos por vez, em oposição ao espírito geométrico, mais glutão, com desejos de compreender a totalidade do mundo por meio de uma fórmula matemática sintética.

Finesse é a marca dos espíritos oblíquos, delicados e imprecisos, mas nem por isso menos verdadeiros no que tange a realidade de cada dia, um poço de obliquidade, delicadeza e imprecisão. Tais qualidades me lembram a personagem Capitu do grande Machado de Assis. Sua infelicidade me marcou desde o dia em que a conheci, vista pelos olhos do medo, da insegurança e do ciúme, três irmãos gêmeos do seu marido Bentinho, o Dom Casmurro.

Num rasgo de audácia, diria que a inércia está para o medo, assim como o amor está para a coragem. E, com isso, não quero menosprezar o medo nem banalizar o amor. Estou convicto de que o medo é muito mais cotidiano do que o amor, que tende a desaparecer diante das exigências de uma vida sempre frágil, insegura e claudicante, como a humana.

Maquiavel, filósofo italiano (1469-1527), dizia que o ódio e o medo precisam ser menos alimentados do que o amor. Aqueles são mais perenes, e as pessoas são a eles mais fiéis. O amor, mais delicado e impreciso, às vezes erroneamente tomado como imaterial, precisa ser lembrado que existe a toda hora.

Como me chamou a atenção recentemente um brilhante aluno meu na PUC-SP, leio Capitu com a dor da inocente Desdêmona, personagem da peça "Otelo", de Shakespeare.

O sentimento que tomou conta de mim desde a primeira vez que li "Dom Casmurro" foi uma imensa tristeza de ver como Bentinho, o Dom Casmurro, destruiu Capitu por conta da inércia de seu sintoma: o medo e a insegurança.

Acho que é mais fácil ver na vida a geometria precisa das razões para termos medo e insegurança do que o risco da incerteza que a presença do amor abre em nossa alma. Os mesmos detalhes que levaram Bentinho a construir sua teoria de que Capitu o traiu com o corajoso Escobar me levaram a sentir piedade diante de tamanha violência contra ela.

Na ordem das razões, como se fala em filosofia, a vida tende à inércia do medo e da insegurança. Ambas são matematicamente demonstráveis em seus "argumentos". Ao servi-las, nos sentimos "em casa". Em nome de ambas, podemos viver cem anos. Mesmo que elas nos destruam, como no caso de Dom Casmurro.

O espírito de finesse é, antes de tudo, um atributo do amor por seu "objeto". Exige delicadeza e leveza no trato. Sobrevive em meio à incerteza e pede a presença de uma vontade capaz de correr riscos, às vezes mesmo risco de morte.

Vejo o amor como uma força sutil que combate a inércia da vida. Inércia essa que se acomoda bem à desconfiança, ao medo e as rotinas desses "afetos tristes". Vista por olhos mais doces para com seus olhos de ressaca e sua obliquidade, talvez vejamos uma Capitu encantada pelas coisas e pela vida. Qualidade quase sempre "insuportável" numa mulher para espíritos mais afeitos ao medo.


Comércio com a China deve ser revisto - PETER SCHECHTER

O Globo - 29/08

Ao negociar com chineses, países latino-americanos deverão agir multilateralmente. Negociações bilaterais dão a Pequim uma maior margem de manobra


Michel Temer deve visitar a China como presidente pela primeira vez em 4 de setembro para a Cúpula do G-20. E tudo indica que essa viagem ocorrerá em meio a cada vez mais sérias dúvidas sobre as práticas comerciais do gigante asiático e a iminente decisão da OMC sobre seu status de economia de mercado. Em nenhum lugar do mundo as implicações serão tão graves como no Brasil e na América Latina.

Está documentado o altíssimo grau de intervenção estatal na indústria chinesa. O protocolo de adesão do país à OMC prevê a aplicação de medidas corretivas, como direitos compensatórios e antidumping, para aliviar o impacto nocivo dos subsídios à exportação chinesa aos países importadores. Porém, em dezembro acabará o prazo de validade desta cláusula, e então caberá aos estados-membros da OMC decidirem se reconhecerão a China como economia de mercado. Tal reconhecimento implica desistir de direitos às medidas corretivas.

Como seus vizinhos latino-americanos, o Brasil depende em grande parte das exportações de commodities — e da demanda voraz da China pelas mesmas — como motor do seu crescimento econômico. Contudo, apesar de o comércio bilateral ter aumentado nas últimas décadas, a composição deste comércio —e a atividade econômica brasileira em geral — vem apresentando tendências preocupantes.

O Centro Adrienne Arsht para a América Latina do Atlantic Council — instituição de pensamento americana não partidária especializada em temas internacionais — publica esta semana um relatório analisando o papel da China no desenvolvimento industrial da região. O texto, alvo de debate público no Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), no Rio, amanhã, documenta a recente desindustrialização das economias latino-americanas e demonstra que a concorrência das exportações baratas chinesas tem contribuído para este fenômeno. Nossos dados indicam que o eventual reconhecimento da China como economia de mercado tem potencial para danificar ainda mais a base de fabricação e exacerbar a dependência excessiva da exportação de matérias-primas. Mas é possível evitar este cenário. Ao negociar com a China, os países latino americanos deverão atuar multilateralmente. As negociações bilaterais dão a Pequim uma maior margem de manobra e não têm rendido frutos. A Aliança do Pacífico e o Mercosul levaram adiante, no passado, suas próprias iniciativas econômicas com a China, mas, até hoje, não negociaram acordos comerciais como bloco.

Os governos devem considerar também acordos paralelos para garantir uma maior vigilância sobre as indústrias prejudicadas pela concorrência chinesa. Pequim deve comprovar que os preços no mercado interno correspondem aos preços em outros mercados. Os estados latino-americanos podem, então, reagir a quaisquer discrepâncias com a imposição de direitos antidumping. O Brasil e seus vizinhos poderiam ainda estudar outras ações corretivas sancionadas pela OMC, como direitos compensatórios e medidas de salvaguarda.

Os países da região se beneficiam das relações comerciais com a China, mas os termos destas relações têm lhes prejudicado. Dezembro e a decisão da OMC estão se aproximando, e a defesa contra as práticas comercias desfavoráveis já não estará garantida. Nossa avaliação sugere que a América Latina não reconheça o status de economia de mercado enquanto Pequim não demonstrar um compromisso de combater o excesso de capacidade e os subsídios à exportação.

A provável visita de Temer será uma oportunidade para abordar tais questões junto aos presidentes Mauricio Macri, da Argentina, e Enrique Peña Nieto, do México. A China é um parceiro comercial indispensável para a região. Mas, pela prosperidade econômica da América Latina, esta parceria precisará de novas regras.


Sonhos eleitorais - PAULO GUEDES

O Globo - 29/08

Sem a reversão das expectativas inflacionárias, a inflação e o desemprego em massa derrotarão o ‘establishment’ nas eleições de 2018


A semana deve registrar, após longa agonia, o impeachment da presidente afastada, inaugurando o governo do presidente interino. “No pós-impeachment, Temer será um presidente muito mais firme”, anuncia Moreira Franco, em entrevista ao GLOBO deste domingo. “Um de seus auxiliares mais próximos, secretário diz que ganho de autoridade contribuirá para aprovação de medidas do ajuste fiscal. Ele assegura que Temer não recuará da agenda econômica e admite que foi um erro apoiar reajuste do funcionalismo, porque a sociedade não gostou.”

O posicionamento de Temer ante as reformas será decisivo. De um lado, o PSDB tem se posicionado corretamente a favor da aprovação do teto de gastos e do ajuste da Previdência. O senador Aécio Neves tem evocado a diretriz “É proibido gastar”, de Tancredo Neves, cujo cumprimento teria evitado a tragédia histórica da malsucedida sequência de planos econômicos, que nos levaram à hiperinflação, à moratória externa, ao sequestro da poupança interna e à armadilha do baixo crescimento com inflação persistente, em que seguimos aprisionados. Mas, de outro lado, repetindo a hesitação do PT no apoio a Dilma, o PMDB tem flertado com o populismo, apoiando reajustes salariais do funcionalismo, quando milhões de brasileiros são lançados ao desemprego exatamente pelo descontrole sobre os gastos públicos.

O secretário Moreira Franco reconhece a importância da desindexação “a partir da consciência criada pela experiência traumática da hiperinflação. Mas, no setor público, os reajustes salariais continuam indexados. Isso é uma injustiça profunda com o cidadão e com a sociedade brasileira”. Reconhece também a propriedade de “uma legislação trabalhista que preserve o emprego, o negociado sobre o legislado”, bem como a necessidade de “aprovar um sistema previdenciário que seja viável”. A rigidez nas negociações salariais e os encargos excessivos estão na raiz do desemprego em massa. A maior ameaça ao bom desempenho de Temer na Presidência seria postergar as reformas em busca de popularidade, de olho na reeleição. A essência de uma estabilização rápida é a fulminante reversão das expectativas inflacionárias. Sem isso, persistem a inflação e o desemprego em massa, impossibilitando sonhos eleitorais do establishment para 2018.

Dilma, foi a economia que definiu seu destino, querida! - VALDO CRUZ

FOLHA DE SP - 29/08

No dia em que Dilma Rousseff estará no Senado fazendo sua defesa no julgamento do impeachment, lembro uma entrevista que fiz com a então ministra da Casa Civil. Era setembro de 2009.

Foi manchete da Folha. Já candidata de Lula para 2010, disse: "A tese do Estado mínimo faliu". Definiu o governo petista como nacionalista e estatizante. Só não gostou de ser chamada de intervencionista.

Um economista de ponta me ligou. "Você tirou da Dilma o que ela pensa de economia. Se for eleita, será muito ruim para o país." Relatei o receio a um amigo de Lula. "Não tem esse risco. Ele vai vigiar e controlar o governo dela".

Nos cinco primeiros meses do governo Dilma Rousseff, Antonio Palocci chefiou a Casa Civil como homem de Lula na equipe de sua sucessora. Até ali, a gestão da petista foi num rumo. Ajuste fiscal, aperto nos juros, privatizações.
Após sua queda, lembro-me de um assessor comentar comigo: "Agora, sim, começa o governo dela". No início, foi um sonho. Popularidade alta, faxina no ministério. Gastos acelerados, queda forçada dos juros. Só que deu tudo errado.

Para encobrir os erros, sua equipe pedalou como nunca para bancar a gastança. Surgiu a contabilidade criativa e irregularidades foram cometidas para esconder o descontrole dos gastos públicos.

Dilma foi reeleita, mas deu o argumento jurídico para que seus inimigos aprovassem seu afastamento, que tende a virar definitivo. Ela diz que é golpe. Tem lá suas razões.

Só que, queira ou não, cometeu irregularidades fiscais. Podem não ser graves, mas são crimes. Podem ser frágeis, mas foram usadas diante de sua incapacidade de consertar a economia, que afundou.

Numa situação de prosperidade do país, muita gente faria o que é sempre feito por aqui. Vista grossa e vida que segue. E Dilma ainda estaria no Palácio do Planalto. Enfim, foi a economia, querida.


Chega ao fim um ciclo perverso - AÉCIO NEVES

FOLHA DE SP - 29/08

Esta semana o Brasil se reencontra com seu destino.

Encerrada a votação do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, o país terá de enfrentar o duro percurso da reconstrução. Esta segunda (29) é dia de forte simbolismo, com a presidente afastada apresentando, no Senado, a sua defesa na acusação de crime de responsabilidade por violação de leis que regulam o uso do dinheiro público. Seria o momento – ainda que tardio – para a presidente dar as devidas explicações aos brasileiros.

Para isso, seria preciso que ela abrisse mão do estilo que adotou durante seu governo e que terminou por mantê-la entrincheirada em suas convicções, sem o amplo e necessário diálogo com a sociedade, cometendo uma série colossal de erros que acabaram por afundar o país em uma crise sem precedentes. O impeachment é o ato final de uma trajetória equivocada e danosa no capítulo da gestão pública. Felizmente, nossa democracia está madura o suficiente para superar esse episódio traumático.

Não cabe comemorar a interrupção do mandato presidencial. Mais importante é entender a gravidade das escolhas feitas pela presidente e por seu grupo político. As desonerações equivocadas, a expansão acelerada dos gastos públicos, a interferência política na gestão da Petrobras e a leniência com a inflação são exemplos de equívocos da política econômica. A presidente ignorou os alertas feitos por técnicos do governo, por parlamentares e economistas sobre os erros das medidas tomadas desde 2011.

Diante da erosão das contas públicas, o governo apelou às manobras fiscais com operações de crédito dos bancos públicos ao Tesouro, o que é proibido por lei, e a créditos suplementares sem a aprovação do Congresso, violando os princípios da lei orçamentária. O ataque frontal à Lei de Responsabilidade Fiscal é crime muito sério para ser ignorado. É essa a matéria que alimenta o processo de impeachment. O que se cobra é a responsabilidade da presidente frente a essas decisões.

O vale-tudo na economia e a miopia política levaram o Brasil às cordas: 12 milhões de trabalhadores estão desempregados e somos hoje o país que mais desemprega em todo mundo. Estados e municípios estão quebrados, cerca 300 comércios são fechados por dia, a indústria retrocedeu quase uma década, milhões de famílias retornam às classes D e E.

No país do marketing social, é bom lembrar que a renda média do trabalhador já caiu 5% no último ano; um em cada quatro trabalhadores ganha menos que um salário mínimo.

O destino do Brasil é crescer e abrigar os sonhos de seus cidadãos por um país mais justo com seus filhos. É nessa direção que precisamos seguir. Com clareza de propósitos e coragem para fazer o que precisa ser feito.

Faces perversas do autoritarismo no Brasil - MURILLO DE ARAGÃO

ESTADÃO - 29/08

Em educação cívica voltada para os direitos e deveres da cidadania ainda engatinhamos



Apesar dos mais de 30 anos de redemocratização, ainda vivemos sob o império do autoritarismo. O chocante é que muitos dos que o praticam não se consideram autoritários. Essa é uma questão complexa que envolve interpretação e comportamento, além das regras existentes. Envolve também a precária educação cívica dos brasileiros, que não têm ideia de seus direitos e deveres.

Nosso autoritarismo tem raízes profundas no Brasil colônia, onde o caráter subalterno de nossa gente era transversal às classes - desde a senzala, passando pela casa-grande, até os paços do reino. Cada um esmagando o menor com o abuso de poder e de autoridade.

Mesmo com as lutas, revoluções e reconstruções das instituições políticas visando ao estabelecimento de regime democrático concreto, o autoritarismo resiste em nossa sociedade de forma bastante pronunciada e se expressa de diversas formas e em vários lugares: no dia a dia das cidades; nas repartições públicas; nas escolas; nas redes sociais; nas relações de consumo; na Justiça e na política; no “neopeleguismo” dos sindicatos de trabalhadores e de patrões, dominados pelo clientelismo.

Nosso autoritarismo está expresso no ônibus que não para no ponto. Na recepção grosseira ao paciente humilde que chega ao hospital público. No comportamento do Estado, que manipula, empreende, financia, regula, coopta, suborna, faz vista grossa para o corporativismo e elege campeões que ganham medalhas no sistema financeiro estatal.

No campo da Justiça, o autoritarismo revela-se no ativismo judicial, que é ir além do que prega o mandamento constitucional, e se expressa, por exemplo, ao se desconsiderarem as novas determinações do Código de Processo Civil de estimular o entendimento entre as partes. A condução coercitiva independente de prévia intimação e mesmo negativa injustificada a comparecer para depor também o são. Para dizer o mínimo.

Existe ainda o ativismo burocrático, que cobra atitudes da cidadania a partir de interpretações largas e ilegais do que seriam as regras e se expressa por meio decisões sem o devido amparo legal. A mesma burocracia que é resistente aos programas de desburocratização e impõe uma cerca de proteção aos seus interesses, senta-se em cima das licenças ambientais por conta de seus interesses políticos ou ideológicos.

O corporativismo que submete o povo a greves intermináveis ou a operações tartaruga no serviço público, sem que haja uma intervenção decisiva da autoridade judicial, também se mostra egoísta e autoritário. A omissão da Justiça nesses casos é imperdoável. Também o é o paternalismo da legislação trabalhista, que impede acordos entre patrões e empregados e impõe uma tutela que nem sempre é adequada aos interesses de quem trabalha.

Mas o autoritarismo não reside apenas no sistema judiciário, um dos mais caros do mundo e um dos menos eficientes, e na burocracia, cuja produtividade é risível quando voltada para o cidadão e admirável quando dedicada à cobrança de tributos. O autoritarismo também propõe e incentiva o patrulhamento ideológico. Quem está fora da curva do pensamento politicamente correto pode ser trucidado.

O império do autoritarismo tem ainda sua face na superficialidade das análises e das opiniões. Não sabemos de nada e por isso sabemos de tudo. Muitos têm apenas palavras vazias para todas as opiniões, que devem ser dadas num mar de mediocridade. Achar que todo político é ladrão e que todas as opiniões que nos aborrecem são vendidas também é autoritário. Assim como parar em fila dupla e avançar o sinal de trânsito.

É autoritário concordar com a injustiça quando o réu nos desagrada. Da mesma forma, é autoritário condenar a justiça quando o réu nos é simpático. O autoritarismo está presente ainda nas interpretações de que tudo o que o Poder Executivo propõe deve ser aceito sem questionamento no Legislativo, como se o “hiperpresidencialismo” que nos escraviza devesse ser a regra. No mínimo, revelamos ignorância do papel dos Poderes da República e de suas autonomias.

Nosso autoritarismo está cristalizado na relação subalterna entre a sociedade e o Estado. Antes, essa relação decorria de um arranjo de oligarquias que controlavam o País. Mais recentemente, decorre do paternalismo de esquerda, que, ao tempo em que aparelha a máquina pública, trata a cidadania como dependente, e não como os devidos patrões da Nação.

Também é lamentável ver a burocracia, sob a complacência da Justiça, ganhar salários acima do teto constitucional, em prova cabal da omissão e do desrespeito aos interesses da cidadania. Assim como usar a corrupção para financiar partidos e campanhas ou usar as verbas do Fundo Partidário para pagar mordomias.

No sistema político, o sistema partidário caótico e sua absurda fragmentação não são uma expressão saudável da democracia. São um produto da submissão do debate de ideias e programas ao interesse rasteiro de muitos caciques e chefes políticos que fazem qualquer negócio pelo poder. Como disse o político britânico Benjamin Disraeli, “danem-se os princípios, o que interessa é o partido”. Prática de muitos que governaram o País nas últimas décadas.

Estamos em lenta evolução, mas ainda na infância da democracia. E engatinhando numa creche de baixíssima qualidade quando se trata de educação cívica voltada para os direitos e os deveres da cidadania. Ainda levará tempo para nos livrarmos desse carma. Em longo prazo, com melhor educação e o trabalho consciente de formadores de opinião talvez possamos vencer esta etapa da nossa construção social cidadã e democrática, derrotando o autoritarismo que nos contamina.

MURILLO DE ARAGÃO É MESTRE EM CIÊNCIA POLÍTICA, DOUTOR EM SOCIOLOGIA PELA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, ADVOGADO E CONSULTOR

A greve no setor público - EDITORIAL ESTADÃO

ESTADÃO - 29/08

O que estimula as centrais sindicais a patrocinar esse grevismo é a falta de uma lei que regulamente o exercício do direito de greve na administração pública, para evitar que sejam prejudicados os cidadãos que dependem de serviços públicos

Quanto mais o governo alega que não conseguirá ajustar as contas públicas e promover a retomada do crescimento sem as reformas trabalhista e previdenciária, mais as entidades sindicais do funcionalismo público prometem deflagrar greves por tempo indeterminado. Relegando suas divergências para segundo plano, os dirigentes das principais centrais sindicais decidiram adotar essa estratégia para acossar o Executivo e mostrar ao Legislativo as dificuldades que o aguardam na tramitação das eventuais propostas de reformas.

O que estimula as centrais sindicais a patrocinar esse grevismo é a falta de uma lei que regulamente o exercício do direito de greve na administração pública, para evitar que sejam prejudicados os cidadãos que dependem de serviços públicos, como os prestados por hospitais e agências que atendem diretamente a população. A greve dos peritos médicos que foi encerrada no começo do ano, por exemplo, deixou 1,3 milhão de trabalhadores aguardando a perícia do INSS e o recebimento de benefícios.

A Constituição de 1988 inovou ao conceder o direito de greve aos servidores públicos, mas condicionou seu exercício a uma lei complementar que, por omissão do Executivo e do Legislativo, jamais foi aprovada. Nesses 28 anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) pediu várias vezes ao Legislativo que aprovasse essa lei. Entre 1999 e 2015, foram apresentados 8 projetos no Senado e 15 na Câmara. Muitos permanecem engavetados nos escaninhos da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania de cada Casa legislativa, à espera de um relator. Os poucos que receberam parecer favorável tramitam lentamente nas demais comissões técnicas.

Em 1992, o Executivo tentou solucionar o problema por meio de uma gambiarra jurídica. Sob o pretexto de regulamentar o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que trata do direito de greve num de seus artigos, foi baixado um decreto que embutia a regulamentação da greve no setor público. Mas a iniciativa não teve efeito prático. Diante da escalada de greves irresponsáveis do funcionalismo, em 2007 o STF determinou que a lei de greve no setor privado (Lei n.º 7.783/89) deveria servir temporariamente para a Justiça do Trabalho como referência para o julgamento das paralisações no setor público. Essa lei estabelece limites para a suspensão do trabalho em setores estratégicos, mas o efeito da orientação do STF foi quase nulo.

Sem o risco de sofrer sanções, como corte de ponto e desconto dos dias não trabalhados, as categorias do funcionalismo acostumaram-se a fazer greves prolongadas, arrancando do Executivo generosos aumentos e multiplicando os benefícios pecuniários que o atual governo quer reduzir, para equilibrar suas contas. Em seu primeiro mandato, Dilma Rousseff deu sinais de que resistiria às reivindicações abusivas dos servidores, quando mandou o ministro da Justiça recorrer aos tribunais para coibir desmandos cometidos por várias categorias. Mas não foi além disso.

O projeto de regulamentação do direito de greve do funcionalismo que mais conseguiu avançar é de autoria do senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP). Ele prevê que os dias parados podem ser descontados e que, durante a greve, as unidades administrativas devem continuar prestando serviços com 30% dos funcionários. Aprovado em 2015 na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado, o projeto está na Comissão de Constituição e Justiça aguardando inclusão na pauta de votação.

As lideranças sindicais do funcionalismo jamais hesitaram em paralisar atividades essenciais e fazer da população refém de suas reivindicações porque confiam na impunidade decorrente da falta da lei complementar prevista pela Constituição para a greve no setor público. O abuso só cessará quando o governo se mobilizar para acelerar a tramitação desse projeto. Sem isso, terá dificuldades para resistir às pressões corporativistas que virão por ocasião das reformas previdenciária e trabalhista.

Réquiem para um sonho - RICARDO NOBLAT

O Globo - 29/08

“Somos o resultado de nossas escolhas e de nossas decisões” Aristóteles, filósofo grego


Candidatos do PT às eleições municipais de outubro descartaram o vermelho e diminuíram o tamanho da estrela do partido no seu material de propaganda, na tentativa de evitar uma sangria de votos. Haverá símbolo maior do fim de um sonho que pareceu tão generoso no seu início? Sem falar da impossibilidade de Lula circular livremente por aí. Em breve, talvez acabe impedido pela Justiça de circular.

DESTINO IGUAL

pode estar reservado para a presidente Dilma Rousseff. Enclausurada no Palácio da Alvorada há 111 dias, visitada durante esse período apenas por ex-auxiliares e poucos amigos, desprezada pelo PT, que foi obrigado a engoli-la, mas que afinal a regurgitou, ela irá, hoje, ao Senado para defender-se dos crimes que lhe imputam. As chances de sair dali absolvida são quase nulas.

“EU NÃO TENHO

de renunciar, não tenho de me suicidar, não tenho de fugir para o Uruguai”, bradou ela em seu último ato público na quarta-feira passada, em uma referência aos ex-presidentes Getulio Vargas, que se matou com um tiro no coração em 1954, e João Goulart, que dez anos depois se exilou para não ser preso. Com o que disse, Dilma prestou um tributo à democracia que vige no país.

ESSA, PORÉM,

não foi sua intenção. Contrariaria o discurso do golpe, sua última esperança de justificar o próprio fracasso. Ela quis foi reforçar a imagem de mulher disposta a enfrentar duros desafios desde que abandonou a vida de aluna de uma escola de classe média alta em Belo Horizonte no final dos anos 60, para se tornar uma guerrilheira na luta contra a ditadura militar.

SENTE-SE CREDORA

do país desde aquela época. É como se o Brasil lhe devesse os anos em que foi caçada pela polícia política, os anos em que permaneceu presa e as bárbaras torturas que sofreu. Foi quando descobriu a mentira como único meio de sobrevivência. E dele valeu-se, inclusive, para governar entre janeiro de 2011 e abril último. Uma decisão do Senado afastou-a do cargo.

PARA QUE

pudesse retomá-lo, Dilma precisaria convencer 28 dos 81 senadores de que não violou a Constituição ao gastar mais do que fora autorizada pelo Congresso. Mas como operar tal milagre? Em maio, somente 22 senadores votaram contra a admissibilidade do processo de impeachment. No último dia 10, somente 21 votaram contra o relatório que recomendou o julgamento de Dilma.

ELA ESTÁ

às vésperas de ter o mandato cassado e os direitos políticos suspensos por oito anos, menos porque cometeu um crime de responsabilidade previsto na Constituição, e mais porque carece de condições mínimas para governar. É um caso de falência da autoridade política. Não é matéria de lei, mas da vida real. Dilma perdeu o apoio das ruas, dos partidos e do Congresso. Ponto final.

POR SABER DISSO,

ela não desperdiçou os últimos 111 dias com a pretensão vã de reconquistar apoios. Antecipou a volta para Porto Alegre dos seus objetos pessoais e investiu na construção da narrativa que imagina legar à posteridade — a da primeira mulher presidente da República do Brasil deposta por um golpe de direita. Que diferença fará para Dilma uma mentira a mais ou a menos?

PARA O PT,

fará diferença, sim, ela sair de cena o mais rápido possível. As eleições estão à porta. A sombra de Dilma só faria mal ao partido. Basta a de Lula, indiciado por corrupção. Mas, dessa sombra, o PT não se livrará tão cedo. Tampouco nós.


Caminho certo - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 29/08

O Rio de Janeiro, o segundo estado mais desenvolvido da Federação, atende a sua população com uma rede de distribuição de água e captação (e tratamento) de esgoto em que demandas crônicas postergam — indefinidamente, a se manter o atual modelo de gestão, praticamente todo estatizado — as metas de universalizar tais serviços. Se no abastecimento de água tratada a situação parece mais confortável, ainda que não ideal, com 89,3% das residências cobertas, na questão relativa à coleta e tratamento final de dejetos o quadro é desolador. Mesmo à luz de projeções mais modestas, como o Pacto pelo Saneamento, lançado pelo governo fluminense em 2011, que previa tratar 80% do esgoto do estado até 2018, a universalização ainda soa como quimera. A dois anos do prazo, apenas 64,2% da população dispõem de serviços de coleta de esgoto; por sua vez, o benefício do tratamento dos dejetos só alcança a parcela de 34,6%.

Mais realisticamente, estima-se que zerar tais demandas exige investimentos de R$ 21 bilhões ao longo de trinta anos. São recursos com os quais a estatal Cedae, a principal e mais abrangente empresa de saneamento fluminense, não tem como arcar. Também o esforço (gerenciamento, técnica, operacionalidade e otimização de ações das atividades-fim) para alcançar a meta de tornar universais para a população esses serviços é incompatível com o pouco dinamismo de empresas públicas. A isso se juntam pressões corporativistas, contrárias à cobrança de metas e à meritocracia, de que estatais são alvo fácil.

O modelo de privatização de partes da Cedae recentemente apresentado pelo BNDES ao governo fluminense é o mais efetivo, por realista, caminho para o estado obter a almejada universalização. E em prazo mais curto. Pela proposta, a meta seria alcançada, na coleta e no tratamento de esgoto, em 15 anos; no abastecimento de água, cinco anos. Difícil, mas factível com o motor da iniciativa privada.

É isso que o BNDES, acertadamente, propõe — aproveitar o dinamismo e a força dos investimentos de empresas privadas, licitando-lhes áreas de municípios atendidos pela Cedae. A estatal preservaria seus setores estratégicos de produção, processamento e transporte da água até as adutoras.

As vantagens desse modelo são inequívocas. Primeiro, em si, pela maior disponibilidade de caixa da iniciativa privada, em contraste com o definhamento das finanças de um estado paralisado pela crise econômica. Também por exemplos positivos de privatização/concessão. Como Niterói, que passou a ter 100% da população coberta pelo abastecimento de água e demandas de saneamento bem encaminhadas. Resistências à proposta por parte dos servidores da Cedae são manifestações esperadas de categorias refratárias a modelos de gestão que lhes cobram metas e eficiência. Por sua vez, divergências quanto a adotá-la entre o governador em exercício, Francisco Dornelles, e o licenciado, Pezão, apenas refletem visões distintas sobre a questão. O irrecorrível é que o modelo de licitação é caminho incontornável para o estado aperfeiçoar a prestação de serviços nessa área.

COLUNA DE CLAUDIO HUMBERTO

EX-MINISTROS NÃO DEVEM COMPARECER AO SENADO

A presidente ré Dilma Rousseff não deve encontrar em seu julgamento, no plenário do Senado, nesta segunda-feira (29), os parlamentares que foram ministros do seu governo, tampouco deve se deparar com ex-aliados que apoiam o impeachment. Eles consideram não aparecer. Dos nove senadores ex-ministros de Dilma, apenas três desejam seu retorno ao Planalto: Armando Monteiro, Gleisi Hoffmann e Kátia Abreu.

PRÓ-IMPEACHMENT
Os ex-ministros Edison Lobão (PMDB-MA), Eduardo Braga (PMDB-AM) e Fernando Bezerra Coelho (PSB-PE) votarão contra Dilma.

CONTRA DILMA
Também querem o impeachment os ex-ministros Eduardo Lopes (PRB-RJ), Garibaldi Alves Filho (PMDB-RN) e Marta Suplicy (PMDB-SP).

PASSANDO NA CARA
Dilma se preparou para cobrar dos ex-ministros, na lata, fidelidade a ela. E lembrar supostas acusações contra eles que ela teria relevado.

PINTADA PARA GUERRA
A presidente ré também encomendou dossiês contra senadores pró-impeachment, e ex-aliados dos quais se considera credora de favores.

IMPEACHMENT PODE PRECIPITAR REFUNDAÇÃO DO PT
O PT vai retomar com força a proposta de sua refundação após o impeachment e as eleições de outubro. O partido discute a ideia de mudar de nome, que para muitos virou sinônimo de corrupção. A ideia de alterar a denominação do partido é do ex-governador gaúcho Tarso Genro, líder de uma das “seitas” que compõem o PT. Mas tudo vai depender do desempenho petista nas urnas, em outubro próximo.

BATEU O DESESPERO
O PT não deve eleger nem mesmo metade dos atuais 600 prefeitos. E só tem chances de vencer em uma capital: Rio Branco (AC).

SENSATEZ
O senador Humberto Costa (PE) também vê com simpatia a proposta de mudar o nome do seu partido, mas defende amplo debate.

ACABOU A FESTA
Correntes do PT defendem também que os atuais dirigentes, vistos como “coveiros do partido”, entreguem os cargos o quanto antes.

DUAS REVERSÕES
O presidente Michel Temer conta como certos os votos, pró-impeachment, de dois senadores até já consideraram apoiar Dilma Rousseff: Otto Alencar (PSD-BA) e Telmário Mota (PDT-RR).

PT NÃO É O LADO DELE
A troca de insultos e revelações vexatórias entre Renan Calheiros (PMDB-AL) e Gleisi Hoffmann (PT-PR) podem fazer o presidente do Senado mudar e votar favoravelmente ao impeachment de Dilma.

JÁ FOI TARDE
Aliviados com o afastamento de Dilma, funcionários do Planalto rasparam a letra “a” final das placas que identificam uma dezena de salas no 3º andar, onde se situa o agora “Gabinete d President”.

JUCÁ PODE VOLTAR
O presidente Michel Temer ainda não desistiu do senador Romero Jucá (PMDB-RR) em seu governo. Ele tem esperança de que Jucá vai se livrar das suspeitas que o fizeram deixar o cargo de ministro do Planejamento. E tão logo isso aconteça, voltará a ser ministro.

UM MOLEQUE
A expressão mais ouvida no Palácio do Planalto para se referir ao senador Lindbergh Farias (PT-RJ), desde o início do julgamento de Dilma Rousseff, é “moleque”.

CONGRESSO OBESO
O senador Antonio Reguffe (DF) defende a redução de parlamentares no Congresso. “Não existe estado democrático de direito sem legislativo, mas não precisa ser gordo e inchado como é hoje”.

DETECTORES DE DROGAS
Senadores querem levar a sério uma provocação de Ronaldo Caiado (DEM-GO) contra Lindbergh Farias (PT-RJ) propondo a instalação de equipamentos para detectar porte de drogas, no acesso ao Senado.

PANELAÇO DO FIM
Cresce em adesões nas redes sociais um “panelaço” marcado para esta segunda-feira (29) durante a fala da presidente-ré Dilma, no seu julgamento Senado. Está sendo chamado de “o panelaço do fim”.

PENSANDO BEM...
...enrolados na polícia e na Justiça, 70% dos senadores do PT parecem mais preocupados, agora, em salvar o próprio pescoço.