REVISTA ÉPOCA
A truculenta campanha da presidente Cristina Kirchner contra a imprensa independente pode acabar se voltando contra ela própria
Nem o grito nem o silêncio. Encastelada em sua Casa Rosada, a presidente da Argentina, Cristina Kirchner, parece incapaz de escutar cacerolazos ruidosos ou paralisações que esvaziam as ruas. O país ferve na panela da insatisfação, mas ela aguarda ansiosa a chegada do dia 7 de dezembro, apelidado 7D. Nesse dia, passará a vigorar uma lei talhada para intimidar e reduzir a influência de grupos de mídia que criticam o governo e denunciam suas irregularidades, conhecida como Lei de Meios. Acuada por protestos contra a escalada da inflação, dos impostos, da insegurança e da corrupção, Cristina endurece, em vez de ouvir o clamor popular. Ela está prestes a consolidar, pela legislação, o aparato de propaganda do Estado.
ÉPOCA teve acesso, em Buenos Aires, a um dossiê de mais de 150 páginas sobre a ofensiva oficial de Cristina contra os meios de comunicação independentes nos últimos quatro anos. É uma ofensiva mais sofisticada que a censura bruta imposta pelo presidente venezuelano, Hugo Chávez. Os ataques a jornalistas envolvem intimidações, abusos administrativos, falsas denúncias e uma campanha de desqualificação que se assemelha a uma guerra pessoal. O alvo principal é o grupo Clarín, dono do jornal independente de maior circulação do país e de presenças na TV, no rádio e na internet. “É muito grave”, diz Cláudio Paolillo, diretor da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP). “A intenção da Lei de Meios não é democratizar as comunicações, mas debilitar um grupo inimigo.”
Apelidada de Lei Clarín, a nova legislação não apenas reduz o tamanho dos grupos de mídia independentes. Ela reduz também o alcance geográfico dos sinais e da programação audiovisual. O canal 13 do Clarín passaria a ser visto apenas na capital e na Grande Buenos Aires, enquanto a rede estatal de TV continuaria alcançando todo o país. O governo deixou claro que “a adequação dos grupos será voluntária ou compulsória”. Tradução: se a empresa não abrir mão voluntariamente de seus bens, o Estado teria o poder de definir o que seria confiscado – licenças, câmeras, estúdios de rádio e TV ou outros bens. Depois, venderia o patrimônio para indenizar os ex-donos.A Lei de Meios, aprovada pelo Congresso em 2009, é alardeada pelo governo como uma legislação antimonopólio. Ela obriga cerca de 20 grupos de mídia a devolver um certo número de licenças de rádio e televisão. Só o Clarín perderia mais de 200 concessões de TV a cabo. Grupos como Uno, Prisa (donos do jornal espanhol El País) e Telefónica (dono do canal de TV Telefé) precisam, segundo o governo, apresentar planos “voluntários de adequação” ao “desinvestimento” exigido pela lei. O grupo Clarín afirma que resistirá, por considerá-la inconstitucional. O artigo 161 revoga licenças renovadas legalmente em 2005 por um prazo de dez anos – por isso, viola direitos adquiridos. Com base nessa argumentação, o Clarín obteve da Suprema Corte uma liminar, que expirará no dia 7 de dezembro. Depois dessa data, não se sabe o que a Justiça decidirá. “É cada vez mais fácil encontrar na Argentina um juiz venal, sensível aos interesses do governo”, disse a ÉPOCA Martín Etchevers, gerente de Comunicação Externa doClarín, na sede do jornal em Buenos Aires.
Mais de 500 intelectuais argentinos fizeram um abaixo-assinado em repúdio “às pressões do governo Kirchner sobre a Justiça local” para vencer a queda de braço com o Clarín. Em recente encontro em Cartagena, na Colômbia, o Foro Iberoamérica – grupo de jornalistas, intelectuais e empresários fundado em 1999 pelo escritor mexicano Carlos Fuentes (1928-2012) e hoje presidido pelo ex-presidente chileno Ricardo Lagos – condenou o “sistemático plano de perseguição” do governo argentino contra meios de comunicação e jornalistas independentes.O grupo Clarín espera que a Suprema Corte prorrogue a liminar ou que se inicie, no dia 7 de dezembro, o prazo de um ano para que ele se adapte à lei. Não há uma expectativa de que as licenças sejam cassadas por decreto no 7D. Mas Cristina já demonstrou ser imprevisível – com aliados e desafetos. Para garantir o poder em suas mãos, pressiona o Conselho de Magistratura e manobra para que casos polêmicos acabem sendo julgados por juízes simpáticos ao regime. Fez uma manobra para que o Congresso aprovasse uma lei exigindo que apenas a Suprema Corte pudesse tomar decisões sobre o caso e, no momento, pressiona para que ela declare constitucionais os artigos controversos na Lei de Meios e encerre, a favor do governo, a disputa com o Clarín.
“Espero o melhor dentro do pior”, disse Ricardo Roa, editor-chefe do Clarín, numa passagem na semana passada pelo Rio de Janeiro. “Que o dia 7 não se transforme em outra data de vergonha na Argentina.” Para Roa, os argentinos estão vivendo “o pior momento do jornalismo na democracia, o pior momento desde a ditadura”. O governo, diz ele, não gosta de transparência, não informa, persegue o jornalismo e vê os jornalistas como inimigos.
“Cristina adota uma atitude de negação a tudo o que hoje acontece na Argentina”, disse a ÉPOCA Hector d’Amico, secretário de redação do jornal La Nación, outro dos perseguidos pelo governo. “Quem a critica ou denuncia irregularidades é acusado de integrar uma rede de ‘malícia e mentira’. Cristina nunca recebeu a SIP nem dá entrevistas e abusa do recurso à cadeia nacional de televisão e rádio para caluniar e perseguir desafetos. A única verdade possível é a oficial. Por isso, inunda de publicidade a mídia amiga e tenta desqualificar a mídia independente, em qualquer oportunidade.”
Mesmo enfrentando uma crise econômica, Cristina deu neste ano – de acordo com cifras oficiais – cerca de 600 milhões de pesos, ou mais de R$ 300 milhões, a meios de comunicação que apoiam o governo. Além dos veículos subservientes, há toda a máquina de propaganda governamental. Ela inclui a agência estatal de notícias Télam, o canal estatal de TV e a Rádio Nacional. Para sustentar esse aparato, segundo uma estimativa do Clarín, só em 2012 a Casa Rosada deverá gastar quase US$ 2 bilhões, ou R$ 4 bilhões. Desde que o casal Kirchner assumiu o poder, em 2003, o valor destinado à publicidade oficial subiu 1.300%.
Em Buenos Aires, há 18 jornais. É impressionante como os portenhos leem visivelmente mais do que os brasileiros – no metrô, no ônibus, em casa e também nos cafés e bares, onde diários e revistas ficam à mostra, pendurados e disponíveis gratuitamente para os clientes. Muitos assinam mais de um jornal. Teoricamente, a variedade de jornais e linhas de pensamento fortalece a democracia argentina e deveria ser bem-vinda. Mas o tratamento do governo depende do que se publica. No fim, os que recebem o grosso da publicidade oficial são os que vendem menos exemplares – são praticamente sustentados por Cristina, com até 90% dos custos bancados pelo governo. Os jornais Clarín, La Nación e Perfilsão os mais lidos – e os que menos recebem recursos estatais.
O governo de Cristina administra uma rede imensa de meios públicos e aliados. Supervisiona, pelo Ministério de Desenvolvimento Social, tudo o que é publicado e dito sobre o Estado. O orçamento da Secretaria de Meios para 2012 foi de 1,2 bilhão de pesos (ou R$ 600 milhões), o dobro do Ministério do Turismo e cerca de 10% a mais que o Ministério da Indústria. As transmissões de jogos de futebol foram estatizadas há três anos. Com o monopólio estatal, as inserções de publicidade só admitem anúncios governamentais – nos últimos tempos, propaganda contra a imprensa independente. Para poder transmitir novelas e minisséries, os canais de TV devem ceder de forma gratuita 50% do espaço de publicidade em horário nobre ao governo. O governo financia a produção de minisséries com conteúdo militante para propagar a visão estatal, como a história do peronismo. “Vivemos um processo de colonização midiática, em que 80% dos meios audiovisuais dependem de Cristina”, diz Etchevers, do Clarín. “Trata-se da ‘Blogosfera K’, que inclui televisões, rádio, internet, sinais de cabo.”
A asfixia financeira de meios de comunicação críticos e independentes é um recurso conhecido de regimes autoritários contra a liberdade de expressão. Na Argentina, a obsessão de Cristina contra vozes dissonantes assume contornos que beiram o ridículo e rebaixam a liturgia do cargo de presidente. “Para o projeto hegemônico de Cristina, a mídia independente é uma pedra no sapato”, diz Etchevers. “Simplesmente porque cumprimos nosso papel: apontar o que está errado. Cristina tenta minar não só a credibilidade dos jornais, mas dos nossos profissionais. O governo distribuiu pelas ruas cartazes com fotos de jornalistas com o intuito de fomentar o ódio. Nas manifestações organizadas por kirchneristas, pessoas cuspiam nas fotos dos jornalistas. Jornalistas do Clarín, do La Nación e do Perfil chegaram a ser agredidos até com pedras.”
Em todos os produtos e plataformas possíveis, o governo usa os bordões “Clarín miente”, “Todo negativo” e “Todo negocio”, na tentativa de estimular o ódio da juventude kirchnerista a jornalistas independentes. “Clarín miente” estampa outdoors, faixas nos estádios de futebol, embalagens de alfajores, garrafas de água, helicópteros, gorros, bonés, ioiôs. “Clarín miente” decora até mesmo meias distribuídas por ministros argentinos a crianças descalças em viagens oficiais a Angola. Num evento público em janeiro passado, após uma cirurgia de tireoide, Cristina mostrou sua cicatriz e disse: “Se cubro com um curativo, amanhã o Clarín dirá que não me operei”. “Clarín miente” também está presente nos longos monólogos de Cristina em rede nacional. Seus discursos, recheados de gestos dramáticos, interrompem programas populares. Às vezes, ela exibe os jornais “inimigos” e escancara sua aversão a críticas, também do La Nación, do El Cronista e do Perfil. Sabe-se que Cristina gosta de ouvir a própria voz e se esmera em repetir, repetir, repetir, como se suas frases produzissem eco.
“O silêncio das ruas é a voz que o governo precisa escutar”, afirmou Hugo Moyano, o poderoso líder da Confederação Geral do Trabalho (CGT), na greve geral que paralisou, na terça-feira passada, Buenos Aires e várias cidades do interior. Estradas foram interrompidas, trens pararam, aeroportos cancelaram voos, bancos e lojas fecharam, hospitais funcionaram apenas em emergência. Moyano era aliado dos Kirchners. Hoje dissidente, tornou-se, para Cristina, “um inimigo do povo”.
No espaço de duas semanas, “la presidenta”, como Cristina faz questão de ser chamada, enfrentou com arrogância e ironia o maior protesto e a primeira greve geral da era kirchnerista. Quinhentos mil argentinos saíram às ruas espontaneamente contra seu governo, na noite de 8 de novembro, sem a convocação de partidos, carregando panelas e a bandeira nacional. No dia seguinte, Cristina declarou: “Ontem aconteceu algo muito importante, que aqui poucas pessoas comentaram, o Congresso do Partido Comunista Chinês”. A manifestação, a maior em nove anos, foi chamada por ela de “formidável aparato cultural para que os argentinos tenham uma ideia distorcida do país”.
Cristina consegue, com seu discurso autoritário, uma façanha: unir diversas categorias e classes sociais contra ela. Percebe-se hoje a rejeição a seu projeto, ainda inconfessado, de mudar a Constituição e tentar se reeleger a um terceiro mandato em 2015. Embora prometa “governar para todos”, seu slogan – “Vamos por todo” – sugere algo mais: a busca do poder absoluto. Nessa busca, vale tudo contra os “traidores” ou contra os “ricos” – registre-se que os Kirchners amealharam uma das maiores fortunas do país. No mundo rosado de Cristina, os manifestantes de classe média são “uma elite de direita que só se preocupa com Miami” e os sindicalistas não passam de “chantagistas”. A militância diz nas escolas que os adversários de Cristina não amam a pátria. Os verdadeiros argentinos seriam os kirchneristas, avessos aos “estrangeiros” e a favor de uma “sociedade igualitária”. O intelectual governista Ricardo Forster acusa os manifestantes de criar “um clima apocalíptico e de dissolução nacional”.
A propaganda começa, porém, a ser vencida pela realidade, por uma inflação equivalente ao triplo da oficial e pelo aumento do desemprego. Com popularidade por volta de 35% – queda acentuada para quem foi reeleita presidente com 54% dos votos no ano passado –, este não é o melhor momento político para Cristina atacar a imprensa independente e a liberdade de expressão. Ao desqualificar os protestos da classe média e dos sindicalistas, ao desprezar o descontentamento da sociedade civil, seu poder de fogo contra si mesma é mais destrutivo do que qualquer manchete ou reportagem crítica na imprensa ou na televisão. O populismo só funciona quando a economia cresce, como aconteceu nos primeiros cinco anos de governo, com índices médios de 5,5% ao ano. De agosto do ano passado a agosto de 2012, a economia empacou e cresceu apenas 1,4%. Hoje, os argentinos não choram por Cristina. Choram por si mesmos.