domingo, novembro 25, 2012

Itaparica outra vez na vanguarda - JOÃO UBALDO RIBEIRO

O GLOBO - 25/11

Os réus fizeram foi uma lambança só, tão incompetente que deu no que deu



Embora fique com vontade, não preciso relembrar aqui o papel marcante desempenhado por Itaparica, em toda a História do Brasil. Já falei sobre isso muitas vezes, mas a ingratidão de uns e outros volta e meia me faz querer repetir o extenso e glorioso inventário de nossa participação nos grandes eventos nacionais, desde a época da chegada de Cabral. Nem é preciso dizer que o julgamento do mensalão tem tido muita repercussão na cidade e concentrou as atenções no Bar de Espanha, só perdendo para o Vitória e o Bahia. Já se fazia tardar um breve relato dessa repercussão e, pedindo desculpas pela demora, me apresso a narrar o que me deram a conhecer.

Por uma questão de amizade e consideração, havia o consenso de não se tocar no assunto na presença de Zecamunista. Como se sabe, ele estava muito empolgado com seu Instituto de Corrupção Aplicada, destinado à formação de futurosos corruptos profissionais. Não apenas fez uma inesperada promessa a São Dimas, o padroeiro dos ladrões, como, no caso de absolvição dos réus, ofereceria 24 horas de pizzas de graça a quem aparecesse. Então, no momento em que seus sonhos aparentemente haviam caído por terra, não ficava bem mexer na ferida, é nessas horas que se conhecem os amigos.

Mas, como quase sempre acontece, o velho agitador surpreendeu a todos. Logo depois da afirmação do ministro da Justiça a respeito de sua preferência por morrer em lugar de entrar em cana no Brasil, ele entrou no bar muito sorridente, de boné novo, com foice e martelo de metal polido e o brasão de Stalingrado bordado na aba. Apertou a mão de cada um, dirigiu-se a Manolo e comunicou que pagaria uma ou duas rodadas de cerveja para os presentes.

— Se eu não fosse contra o ópio do povo — disse ele — afirmaria que se trata de um milagre. Atiramos no que vimos, matamos o que não vimos!

Ao contrário do que ele próprio tinha pensado, agora a necessidade de formação especializada para o corrupto estava mais evidente do que nunca. Como se viu, o que os réus fizeram foi uma lambança só, tão incompetente que deu no que deu. Eles ficam querendo botar a culpa nos outros, é natural, é muito chato ter de reconhecer que a culpa é da trapalhada que eles mesmos bolaram, armaram e executaram. Já conversara com uma socióloga amiga sua e encomendara um belo estudo de caso. Era uma moça moderna e, com perdão das senhoras presentes, o título será “Um estudo de caso: como assumiram o poder e aprontaram uma cagada federal”. Isso nunca aconteceria com um corrupto habilitado, mesmo que também fosse politicamente asnático. As condenações só vieram reforçar a necessidade da criação do Instituto, os pedidos de matrícula se multiplicaram, o futuro se afigurava melhor que nunca.

— Mas não é isso que eu chamo de milagre, meus caros senhores! — exclamou, pondo-se repentinamente de pé, a voz já fremindo, como em velhos comícios. — O que eu chamo de milagre é a oportunidade de ouro que se oferece, a chance histórica, mais uma vez, diante da Denodada Vila de Itaparica! Ninguém viu, ninguém percebeu, ninguém inferiu?

Não, não, ninguém vira nem percebera nada e alguns se acharam na contingência de confessar que não sabiam o que vinha a ser inferir. E não tinham ouvido o ministro dizer que preferia morrer a ir para a cadeia no Brasil? Tinham, tinham, mas isso não era novidade nenhuma. Tirante a cadeia do tempo do coronel Ubaldo, quando quase nunca tinha preso e, quando aparecia um, era uma festa, com o pessoal botando umas cadeiras no alpendre depois do almoço, para prosar, tomar fresca debaixo das mangueiras e se inteirar das novidades pelo preso, tirante esse tempo que não volta mais, cadeia é uma desgraça mesmo. Daí para inferir, contudo, a distância deve ser grande, porque ninguém estava inferindo nada.

Zeca sentou-se novamente e aos poucos conteve o arroubo. Claro, o ministro tinha razão, embora não houvesse deixado bem claro se tencionou recomendar pena de morte ou suicídio para os condenados. Como anfitrião, ficara envergonhado das acomodações disponíveis para os novos presos, é de fato um vexame e imaginem-se fotos deles na imprensa internacional, empilhados em alguma masmorra imunda, realmente seria muito ruim para a nossa imagem. Mas aí é que estava a grande sacada! Ele mesmo, Zecamunista, tivera o cuidado de visitar a cadeia de Itaparica. Não estava tão ruim, mas, mesmo que estivesse muito boa, o município precisava urgentemente investir numa cadeia nova. Alugar um belo casarão sombreado por árvores frondosas, botar umas grades artísticas, decorar com motivos do Recôncavo e aí — aí, meus amigos, oferecer a cadeia itaparicana para alojar os presos ilustres!

Sentiram? Sentiram o alcance? Ninguém ia poder reclamar das condições da cadeia e, ao mesmo tempo, ninguém ia poder dizer que não é cadeia. A ilha ia receber os presos de braços abertos e, principalmente, o grande movimento de visitantes, haja pousadas, restaurantes e lojas! Primeiro, os turistas turistas mesmo, até do estrangeiro. Segundo, a imprensa, os amigos dos presos, visitas íntimas, dia dos pais, dia das mães e por aí vai. E, terceiro, os correligionários! As caravanas solidárias, as manifestações de protesto em frente à cadeia! Itaparica no olho do mundo e faturando por todos os lados! Há que agir depressa, pois outras cidades podem roubar a ideia, todo mundo quer ter essa distinção, todo mundo vê o potencial mercadológico, qualquer cidade botaria faixas nas ruas para receber esse pessoal e dizer “a cadeia deles é aqui”.

— Mas a ilha não tem rival, nosso trunfo é esse, todo mundo que vem pra cá melhora — concluiu Zeca. — O objetivo da pena não é recuperar o meliante para o convívio social? Daqui eles vão sair regenerados.

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