FOLHA DE SP - 28/12
Parque temático com veganos e antivacinas seria ilustrativo da nossa irracionalidade
Hoje, eu queria desejar um feliz Ano-Novo. Mas não para todo mundo. Apenas para algumas tribos delirantes: veganos, gente que acredita em teorias conspiratórias e seus primos irmãos, os antivacinas.
Um parque temático que incluísse essas atrações seria ilustrativo da nossa irracionalidade. Nunca subestime a estupidez humana, pois ela pode ser mortal.
Em breve, o mundo será vegano. Como consequência, podemos imaginar como será o mundo, já que veganos, em geral, são pessoas antissociais, autoritárias e incapazes de qualquer compromisso além do de amar as rúculas, as alfaces e as frutas que caem livremente das árvores.
Sei, conheço a taxonomia dessas obsessões alimentícias, o último exemplo é dos “frutarians”, gente que considera pessoas que tiram frutas das árvores, ou as cozinham, verdadeiros homicidas.
A comida virou um surto. Nunca confie em pessoas puras. A pureza é antissocial.
Mas lamento dizer que nada há de novo em obsessões alimentares. Aliás, elas sempre foram comuns entre fanáticos religiosos, como é aqui o caso. Um traço desse mundo deverá ser a incapacidade de assumir compromissos que durem mais tempo do que um Tik Tok. Longos discursos sobre a pureza da alimentação acompanhados de muita aplicação na Bolsa.
Veganos não são humanistas, logo não apreciam muito as pessoas. Se dependesse deles, ninguém mais teria filhos e animais não cruzariam (que horror é o sexo! Galos são tóxicos para com as galinhas!). Enfim, o mundo seria feito de comunidades assexuadas contemplando o vazio por falta de nutrientes.
Queria desejar um feliz Ano-Novo para os que creem em teorias conspiratórias, primos irmãos dos antivacinas.
Impressiona como pessoas sem qualquer conhecimento médico e científico falam desenvoltamente acerca de temas complexos como exames para testar Covid, medicamentos para Covid, grandes teorias que reúnem o governo chinês, as farmacêuticas e a intenção de criar um vírus para obrigar você a tomar vacinas. Isso quando não metem chips chineses no meio, que seriam injetados em uma vacina fingida.
Vale salientar que há médicos e gente com formação universitária em meio a essa tribo. Alguns chegam ao cúmulo de afirmar que algumas vacinas mudarão o nosso DNA para sempre.
A pergunta que não quer calar é: afinal de contas, para que isso tudo? Outra derivada dessa: essa gente não teve infância? Na infância tudo bem você acreditar em coisas absurdas, na idade adulta fazê-lo é signo de dano cognitivo e afetivo grave.
Esse tipo de gente me lembra aquele comentário do astronauta Buzz Aldrin, o segundo homem a pisar na Lua na Apolo 11, acerca dos que afirmam que o homem nunca foi à Lua.
Pessoas que, do pequeno apartamento de quarto e sala delas, mergulhadas em sua irrelevância, acham que são as únicas que sacaram tudo e que o resto da humanidade é que é idiota quando, na realidade, são elas as idiotas. Ele disse mais ou menos isso. Posso ter feito uso de certa liberdade poética.
O cerne da mente de quem crê em conspirações é criar um universo em que se é o gênio que sacou tudo. Trata-se de gente ressentida que se acha um Einstein não devidamente reconhecido. Cara que não come ninguém.
No caso específico da Covid, é gente que queria ser médica, mas nunca conseguiria entrar numa faculdade de medicina de respeito. Muito menos passar no exame de residência.
E os antivacinas? Ah, os antivacinas! Gente fofa em geral, que só quer o nosso bem. Quero desejar um feliz Ano-Novo com muito corona brincando nos parques, nas escolas e nos espaços em que eles circulam. Principalmente aqueles que são de classe média alta, acreditam nos astros e em arquétipos. Sairíamos bem mais rápido da pandemia se o mundo fosse todo deles, não?
É claro que as redes sociais alimentam esse tipo de mente. Tanto veganos quanto mentes que creem em conspirações intergalácticas e antivacinas têm nas redes sociais seu parquinho de diversões. Trocam mensagens “científicas” sobre descobertas que gente normal e comum nunca chegará a saber. Fico feliz em saber que eles velam por nossa sã ignorância.
Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.
segunda-feira, dezembro 28, 2020
quarta-feira, novembro 25, 2020
Um ministro sem rumo - EDITORIAL O ESTADÃO
ESTADÃO - 25/11
Paulo Guedes, da Economia, tem uma vaga ideia de onde está, ignora para onde vai e desconhece, portanto, como chegar lá.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem uma vaga ideia de onde está, ignora para onde vai e desconhece, portanto, como chegar lá. Na escuridão, será cobrado ao mesmo tempo para arrumar as contas públicas, ampliar o âmbito da recuperação econômica, aumentar os investimentos e, acima de tudo, cuidar da reeleição do presidente da República. Será complicado combinar os dois primeiros itens, mas pelo menos esse desafio fará sentido. A resposta será possível com um plano bem cuidado, crível e apresentado de forma competente ao mercado. Mas planejamento é algo estranho ao ministro e credibilidade é uma palavra muito longa para seu chefe. Atender a todas as cobranças será impossível. A mera tentativa será desastrosa, como tem sido até agora.
Nos próximos dois anos, prometeu o ministro, o governo vai jogar no ataque, depois de ter jogado na defesa na primeira metade do mandato. Haverá, segundo ele, reformas, privatizações, prosperidade e abertura comercial. As privatizações deveriam ter rendido R$ 1 trilhão em pouco tempo, segundo sua promessa anterior. Mas nada foi vendido, até agora, nem ele explicou por que a história será diferente a partir de agora, com o mesmo presidente e com tanta gente, no governo e em torno dele, interessada em usar as estatais para seus propósitos.
Sem surpresa, o ministro continua reciclando as promessas, jogando-as para a frente e nunca explicando como vai cumpri-las. Com a mesma firmeza, sempre sujeita a uma reconsideração, ele negou a manutenção do auxílio emergencial em 2021 – exceto se houver uma segunda onda de covid-19.
Mas a pandemia, segundo ele, está amainando no Brasil. Não há bom motivo, portanto, para preocupação diante das notícias de recrudescimento. “Parece que está havendo repiques. São ciclos, vamos observar. Fato é que a doença cedeu substancialmente. As pessoas saíram mais, se descuidaram um pouco. Mas tem características sazonais da doença, estamos entrando no verão, vamos observar um pouco.”
Ciclos, características sazonais, chegada do verão – tudo isso compõe um aranzel desconexo e distante dos fatos. A mudança da curva de contágio, o aumento de casos e a ocupação crescente de leitos de hospitais vêm sendo mostrados pelas estatísticas. A taxa de transmissão da covid passou de 1,10 em 16 de novembro para 1,30 no balanço divulgado na terça-feira passada.
Os números foram coletados e organizados pelo centro de controle de epidemias do Imperial College, de Londres. É a maior taxa desde a semana de 24 de maio, quando foi alcançado o nível de contaminação de 1,31. Nesse patamar, 100 pessoas passavam o vírus a 131. Pela última informação, o contágio é de 100 para 130. Não se pode, portanto, falar de epidemia controlada em nível nacional.
Com a fala sobre a pandemia e sobre a expectativa de atuação econômica, o ministro se mostrou, portanto, amplamente distante dos fatos, tanto quanto esteve, quase sempre, desde o ano passado. Em quase dois anos, só uma reforma, a da Previdência, foi aprovada, graças ao trabalho de parlamentares. Além disso, a discussão já havia avançado no governo do presidente Michel Temer.
Outros projetos importantes para a economia, como a chamada PEC Emergencial, continuam travados. Na mesma condição está a reforma administrativa, pouco mais ambiciosa que uma revisão de critérios do RH. Na área tributária o ministro, além de apresentar uma proposta modesta de fusão de duas contribuições, nada fez além de defender, até agora sem sucesso, a recriação da malfadada CPMF.
O ministro falou ainda sobre abertura comercial, mas sem explicar como se conseguirá, por exemplo, vencer a resistência, muito forte em alguns países da Europa, à confirmação do acordo entre União Europeia e Mercosul. Essa resistência tem sido alimentada pela política antiecológica do governo brasileiro, jamais criticada por Paulo Guedes.
Enfim, para jogar no ataque, o governo precisaria, em primeiro lugar, de um roteiro para 2021. Mas nem o Orçamento do próximo ano está definido. Ficará também para mais tarde, talvez para 2022?
Paulo Guedes, da Economia, tem uma vaga ideia de onde está, ignora para onde vai e desconhece, portanto, como chegar lá.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem uma vaga ideia de onde está, ignora para onde vai e desconhece, portanto, como chegar lá. Na escuridão, será cobrado ao mesmo tempo para arrumar as contas públicas, ampliar o âmbito da recuperação econômica, aumentar os investimentos e, acima de tudo, cuidar da reeleição do presidente da República. Será complicado combinar os dois primeiros itens, mas pelo menos esse desafio fará sentido. A resposta será possível com um plano bem cuidado, crível e apresentado de forma competente ao mercado. Mas planejamento é algo estranho ao ministro e credibilidade é uma palavra muito longa para seu chefe. Atender a todas as cobranças será impossível. A mera tentativa será desastrosa, como tem sido até agora.
Nos próximos dois anos, prometeu o ministro, o governo vai jogar no ataque, depois de ter jogado na defesa na primeira metade do mandato. Haverá, segundo ele, reformas, privatizações, prosperidade e abertura comercial. As privatizações deveriam ter rendido R$ 1 trilhão em pouco tempo, segundo sua promessa anterior. Mas nada foi vendido, até agora, nem ele explicou por que a história será diferente a partir de agora, com o mesmo presidente e com tanta gente, no governo e em torno dele, interessada em usar as estatais para seus propósitos.
Sem surpresa, o ministro continua reciclando as promessas, jogando-as para a frente e nunca explicando como vai cumpri-las. Com a mesma firmeza, sempre sujeita a uma reconsideração, ele negou a manutenção do auxílio emergencial em 2021 – exceto se houver uma segunda onda de covid-19.
Mas a pandemia, segundo ele, está amainando no Brasil. Não há bom motivo, portanto, para preocupação diante das notícias de recrudescimento. “Parece que está havendo repiques. São ciclos, vamos observar. Fato é que a doença cedeu substancialmente. As pessoas saíram mais, se descuidaram um pouco. Mas tem características sazonais da doença, estamos entrando no verão, vamos observar um pouco.”
Ciclos, características sazonais, chegada do verão – tudo isso compõe um aranzel desconexo e distante dos fatos. A mudança da curva de contágio, o aumento de casos e a ocupação crescente de leitos de hospitais vêm sendo mostrados pelas estatísticas. A taxa de transmissão da covid passou de 1,10 em 16 de novembro para 1,30 no balanço divulgado na terça-feira passada.
Os números foram coletados e organizados pelo centro de controle de epidemias do Imperial College, de Londres. É a maior taxa desde a semana de 24 de maio, quando foi alcançado o nível de contaminação de 1,31. Nesse patamar, 100 pessoas passavam o vírus a 131. Pela última informação, o contágio é de 100 para 130. Não se pode, portanto, falar de epidemia controlada em nível nacional.
Com a fala sobre a pandemia e sobre a expectativa de atuação econômica, o ministro se mostrou, portanto, amplamente distante dos fatos, tanto quanto esteve, quase sempre, desde o ano passado. Em quase dois anos, só uma reforma, a da Previdência, foi aprovada, graças ao trabalho de parlamentares. Além disso, a discussão já havia avançado no governo do presidente Michel Temer.
Outros projetos importantes para a economia, como a chamada PEC Emergencial, continuam travados. Na mesma condição está a reforma administrativa, pouco mais ambiciosa que uma revisão de critérios do RH. Na área tributária o ministro, além de apresentar uma proposta modesta de fusão de duas contribuições, nada fez além de defender, até agora sem sucesso, a recriação da malfadada CPMF.
O ministro falou ainda sobre abertura comercial, mas sem explicar como se conseguirá, por exemplo, vencer a resistência, muito forte em alguns países da Europa, à confirmação do acordo entre União Europeia e Mercosul. Essa resistência tem sido alimentada pela política antiecológica do governo brasileiro, jamais criticada por Paulo Guedes.
Enfim, para jogar no ataque, o governo precisaria, em primeiro lugar, de um roteiro para 2021. Mas nem o Orçamento do próximo ano está definido. Ficará também para mais tarde, talvez para 2022?
domingo, novembro 22, 2020
Toda centralização será castigada - EURÍPEDES ALCÂNTARA
O GLOBO - 22/11
No domingo passado, milhões de brasileiros foram dormir sem saber dos resultados finais
No instinto de manter e ampliar seus privilégios, as altas burocracias têm na centralização uma aliada. Quando a oportunidade de centralizar não se apresenta naturalmente, o poder federal dá um jeito de criá-la. Foi o que o Brasil descobriu no domingo passado, dia 15, quando os resultados das eleições municipais foram divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com horas de atraso, numa total surpresa para uma população orgulhosa de seu sistema de urnas 100% eletrônicas, aquele que “dá de 7 x 1” no calhambeque eleitoral dos Estados Unidos. No pleito municipal anterior, o de 2016, às 20h do dia da votação do primeiro turno, os resultados finais nas principais capitais do país já eram conhecidos, e às 22h todas as urnas já haviam sido apuradas, informou O GLOBO em sua cobertura on-line das eleições. No domingo passado, milhões de brasileiros foram dormir sem saber dos resultados finais.
A culpa foi da centralização. Na tentativa de consertar o que nos vem sendo vendido desde 1996 como um sistema perfeito e indevassável de votação, o TSE decidiu centralizar a totalização dos votos num único computador instalado na sua sede, em Brasília. O novo sistema, pomposa e erradamente descrito como um “supercomputador”, dotado de Inteligência Artificial e contratado sem licitação à empresa americana Oracle por R$ 26 milhões, simplesmente “bugou”.
A primeira questão que o episódio suscita é por que cargas d’água é preciso usar Inteligência Artificial para o trabalho de soma aritmética de votos? Inteligência Artificial tem aplicações miraculosas em tarefas complexas com milhares de variáveis, como manufatura de robôs, gestão proativa de saúde, mapeamento de doenças contagiosas, automatização de investimentos financeiros e em ferramentas de conversação em linguagem natural. Usar Inteligência Artificial na tarefa repetitiva e simples de contar votos tem cara de ser apenas mais uma jabuticaba.
A segunda questão é mais delicada. Ela se refere às “vulnerabilidades” apontadas pelo relatório de 2018 da Polícia Federal. Foram elas que levaram a ministra Rosa Weber, presidente do TSE naquele ano, a decidir pela necessidade de um serviço centralizado. Não alimento a menor suspeita sobre a integridade do sistema eleitoral brasileiro. Como jornalista, já recebi dezenas de “denúncias” de fraudes nas eleições. A apuração das mais consistentes nunca produziu uma migalha sequer de evidências de que o sistema tenha produzido resultados fraudados. Como enfatizou o ministro Luís Roberto Barroso, atual presidente do TSE, o fato básico, o voto, não se adultera no processo, e cópias impressas dos boletins de urna podem dirimir dúvidas posteriores.
Acredito que a ministra Rosa Weber, confrontada como relatório da Polícia Federal, tenha agido com a intenção de melhorar ainda mais o que já era bom. A história do matemático Abraham Wald (1902-1950) talvez tivesse a ajudado a decidir melhor. Durante a Segunda Guerra Mundial, os militares aliados encomendaram a Wald um estudo que permitisse proteger as seções dos bombardeiros mais vulneráveis à artilharia antiaérea do inimigo. A ideia era aumentar a segurança sem muito peso extra, blindando apenas os pontos cruciais. Wald recebeu estudos minuciosos dos aviões que voltaram para suas bases na Inglaterra depois de cumpridas suas missões sobre a Alemanha. As áreas mais atingidas foram a fuselagem e os sistemas de combustível. Os motores apresentavam o menor número de impactos.
Sua recomendação, surpreendente, foi: blindem os motores. Como assim, blindar as partes menos atingidas? Sim, explicou Wald, pois foram examinados apenas os aviões que, mesmo alvejados, conseguiram voar de volta para as bases. Estes, portanto, receberam impactos não fatais. Os aviões derrubados em ação não retornaram e não puderam ser periciados. Wald enxergou o óbvio que ninguém podia ver: os aviões abatidos receberam impactos fatais nos motores. Genial. Esse raciocínio aplicado às urnas eletrônicas pode levar à conclusão de que as potenciais falhas do sistema sejam mais de causa humana do que técnicas.
Enquanto isso, na Europa e nos países do Pacífico... - AFFONSO CELSO PASTORE
ESTADÃO - 22/11
Não demos nenhum passo para a resolução de nosso eterno problema fiscal
Cansado de me frustrar com a inação do governo no controle da pandemia, e com a sua recusa em propor e batalhar pela aprovação de reformas que são fundamentais para a retomada do crescimento e a melhoria na distribuição de rendas, resolvi olhar para o que outros países vêm fazendo a esse respeito. Na Europa, merece destaque o acordo liderado pela Alemanha e pela França para a criação de um fundo para financiar investimentos em infraestrutura nos países menos desenvolvidos da área do euro. Na área do Pacífico, foi assinado acordo envolvendo 15 países incluindo, entre outros, China, Japão, Coreia, Nova Zelândia e Austrália. Comparativamente aos países do Pacífico, cuja reação eficaz à pandemia impediu sua propagação, a Europa sofre uma segunda onda de contágio, correndo o risco de desaceleração ou de nova recessão. Porém, nenhum dos dois grupos abandonou a execução de projetos voltados ao aumento da produtividade e à aceleração do crescimento econômico, elevando o bem-estar de suas populações e reduzindo desigualdades entre os países.
No caso europeu, não há surpresa que a iniciativa tenha sido liderada por Alemanha e França, que foram os países responsáveis pela criação da união monetária. Desde o início era sabido que, para que uma união monetária tenha sucesso, são necessárias ou grande mobilidade de mão de obra entre países ou união fiscal. As barreiras culturais e de língua impedem que muitos trabalhadores de um país afetado por um choque que deprima sua economia migrem para outro que continue crescendo, mantendo o pleno emprego. Na ausência deste mecanismo, resta o recurso da união fiscal, através da qual recursos de impostos pagos pelos habitantes dos países que crescem são usados para financiar investimentos com altas taxas de retorno privado e social nos países deprimidos. Da mesma forma como a crise de 2008/09 tornou claro que a preservação da união monetária exigia a criação de uma união bancária, a crise da covid-19 revelou que era necessário que se desenvolvesse uma união fiscal. Ao reconhecer o problema e superar a oposição dos países “frugais” da área, Áustria, Dinamarca, Holanda e Suécia deram um passo importante para a consolidação da união monetária e para o crescimento sustentado da área do euro. Não menciono este problema para insinuar que o Brasil poderia pensar em alguma forma de união monetária, como uma moeda única para Brasil e Argentina, que não faz sentido nem para os alunos do primeiro ano de economia, mas para que nos miremos no exemplo de países que, diante do desafio da pandemia, inovaram e continuaram trabalhando para promover o crescimento.
No caso do acordo entre os países do Pacífico, a lição é dupla. Todos conseguiram por meio do isolamento social ou de rígido lockdown poupar vidas, aproximando-se mais rapidamente da normalidade. Porém, não interromperam o longo ciclo de negociações que os levou a assinarem o acordo pelo qual crescerá sua integração comercial, elevando a produtividade e o crescimento de todos. É uma iniciativa que vai na direção contrária à dos EUA que, pelo menos sob o jugo populista de Trump, caminhava na direção do protecionismo, influenciando Bolsonaro e reforçando o lobby de parte da nossa elite industrial que nunca conseguiu ver as vantagens que a abertura comercial tem para o País.
Ao fim do segundo ano de mandato do atual governo, qual é o balanço das realizações? Afora algumas reformas importantes, como a da Previdência e o marco do saneamento, não demos nenhum passo para a resolução de nosso eterno problema fiscal. Tão grave quanto é a desatenção com reformas que pudessem aumentar nossa produtividade. Um caso emblemático é o da reforma tributária, que poderia unificar os impostos sobre bens e serviços em um IVA cobrado no destino, removendo o incentivo para a guerra fiscal entre Estados e criando condição necessária para enfrentar o desafio de uma significativa abertura comercial. Interessado na manutenção da popularidade que favoreceria sua reeleição, Bolsonaro sequer cogita esta alternativa. Não há surpresas. Ele não está interessado no crescimento da produtividade e na melhoria da distribuição de rendas, mas apenas em obter do Centrão apoio que garanta sua sobrevivência no cargo até o fim de 2021, e sua reeleição em 2022.
EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS
Não demos nenhum passo para a resolução de nosso eterno problema fiscal
Cansado de me frustrar com a inação do governo no controle da pandemia, e com a sua recusa em propor e batalhar pela aprovação de reformas que são fundamentais para a retomada do crescimento e a melhoria na distribuição de rendas, resolvi olhar para o que outros países vêm fazendo a esse respeito. Na Europa, merece destaque o acordo liderado pela Alemanha e pela França para a criação de um fundo para financiar investimentos em infraestrutura nos países menos desenvolvidos da área do euro. Na área do Pacífico, foi assinado acordo envolvendo 15 países incluindo, entre outros, China, Japão, Coreia, Nova Zelândia e Austrália. Comparativamente aos países do Pacífico, cuja reação eficaz à pandemia impediu sua propagação, a Europa sofre uma segunda onda de contágio, correndo o risco de desaceleração ou de nova recessão. Porém, nenhum dos dois grupos abandonou a execução de projetos voltados ao aumento da produtividade e à aceleração do crescimento econômico, elevando o bem-estar de suas populações e reduzindo desigualdades entre os países.
No caso europeu, não há surpresa que a iniciativa tenha sido liderada por Alemanha e França, que foram os países responsáveis pela criação da união monetária. Desde o início era sabido que, para que uma união monetária tenha sucesso, são necessárias ou grande mobilidade de mão de obra entre países ou união fiscal. As barreiras culturais e de língua impedem que muitos trabalhadores de um país afetado por um choque que deprima sua economia migrem para outro que continue crescendo, mantendo o pleno emprego. Na ausência deste mecanismo, resta o recurso da união fiscal, através da qual recursos de impostos pagos pelos habitantes dos países que crescem são usados para financiar investimentos com altas taxas de retorno privado e social nos países deprimidos. Da mesma forma como a crise de 2008/09 tornou claro que a preservação da união monetária exigia a criação de uma união bancária, a crise da covid-19 revelou que era necessário que se desenvolvesse uma união fiscal. Ao reconhecer o problema e superar a oposição dos países “frugais” da área, Áustria, Dinamarca, Holanda e Suécia deram um passo importante para a consolidação da união monetária e para o crescimento sustentado da área do euro. Não menciono este problema para insinuar que o Brasil poderia pensar em alguma forma de união monetária, como uma moeda única para Brasil e Argentina, que não faz sentido nem para os alunos do primeiro ano de economia, mas para que nos miremos no exemplo de países que, diante do desafio da pandemia, inovaram e continuaram trabalhando para promover o crescimento.
No caso do acordo entre os países do Pacífico, a lição é dupla. Todos conseguiram por meio do isolamento social ou de rígido lockdown poupar vidas, aproximando-se mais rapidamente da normalidade. Porém, não interromperam o longo ciclo de negociações que os levou a assinarem o acordo pelo qual crescerá sua integração comercial, elevando a produtividade e o crescimento de todos. É uma iniciativa que vai na direção contrária à dos EUA que, pelo menos sob o jugo populista de Trump, caminhava na direção do protecionismo, influenciando Bolsonaro e reforçando o lobby de parte da nossa elite industrial que nunca conseguiu ver as vantagens que a abertura comercial tem para o País.
Ao fim do segundo ano de mandato do atual governo, qual é o balanço das realizações? Afora algumas reformas importantes, como a da Previdência e o marco do saneamento, não demos nenhum passo para a resolução de nosso eterno problema fiscal. Tão grave quanto é a desatenção com reformas que pudessem aumentar nossa produtividade. Um caso emblemático é o da reforma tributária, que poderia unificar os impostos sobre bens e serviços em um IVA cobrado no destino, removendo o incentivo para a guerra fiscal entre Estados e criando condição necessária para enfrentar o desafio de uma significativa abertura comercial. Interessado na manutenção da popularidade que favoreceria sua reeleição, Bolsonaro sequer cogita esta alternativa. Não há surpresas. Ele não está interessado no crescimento da produtividade e na melhoria da distribuição de rendas, mas apenas em obter do Centrão apoio que garanta sua sobrevivência no cargo até o fim de 2021, e sua reeleição em 2022.
EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS
WhatsApp, ferramenta do demônio - ANTONIO PRATA
FOLHA DE SP - 22/11
Se usássemos tambores ou sinais de fumaça, nos entenderíamos melhor
Neste ano, engolfado pelo conluio tenebroso entre confinamento e Bolsonaro, entrei em diversos grupos de zap cujo objetivo é defender e aprimorar a democracia. “Conversas progressistas”, “Esporte pela democracia”, “#estamosjuntos”, “Autores democratas”, “Escola antirracista”, “Corredores antifascistas” e por aí vai. Não houve um único grupo em que não chegássemos, em algum momento, numa batalha campal.
Engraçado (nem um pouco, na verdade) é a semelhança das brigas. Frases como “Gente, vamos respeitar a opinião alheia?”, “Discordar é uma coisa, debochar é outra!”, “Desculpa, não era esse o tom que eu quis dar”, “A gente já não tinha decidido isso, pessoal????!” e invariavelmente: “fulano saiu do grupo”, “sicrano saiu do grupo”, “beltrano saiu do grupo”.
Depois de participar da décima batalha virtual, comecei a desconfiar que o problema não era das pessoas, das causas, do desespero com o governo ou do estresse com a quarentena. A encrenca era a ferramenta. Quando penso, hoje, sobre criar um movimento coletivo via WhatsApp, a imagem que me vem à cabeça é a de servir um almoço, coletivamente, sobre uma esteira rolante.
Às 14:32:28 o Daniel põe um garfo. A Joana chega às 14:32:35 e põe a faca, o Valter, entrando às 14:32:43, reclama: “Gente, tá o garfo num lugar e a faca três metros depois, não seria mais interessante botarmos um do lado do outro?”. “Desculpa, querido, mas você chegou agora, eu e a Joana estamos aqui tentando botar a mesa, se você tivesse chegado antes, poderia ajudar mais em vez de criticar”. Aí vem alguém com a salada, outro estende a toalha por cima, a carne fica ao lado da sobremesa. Oito da noite, um desavisado entra no grupo e sugere, sem saber o que rolou ali o dia todo: “pessoal, e se puséssemos a mesa?”.
Não é a mente vazia a oficina do demônio, é o WhatsApp. Dentro dele a conversa não se concatena, os raciocínios não fecham, as decisões invariavelmente ficam no ar. É uma ferramenta perfeita pra disseminar o caos, no bom e no mau sentido. O bom sentido é a bagunça dos grupos de amigos. Ninguém ali está tentando construir nada, só quer se divertir postando memes, gifs, vídeos engraçados. Qualquer um pode entrar a qualquer hora e em qualquer ponto da conversa e simplesmente sorrir com o que passa na esteira.
Já no lado maléfico da balbúrdia está a disseminação de fake news. Justamente pelo fato de as conversas não terem começo, nem meio nem fim, tudo chega entreouvido. Frases soltas. Informações desconexas. O Trump querendo que parassem a contagem dos votos nos estados onde estava na frente e poderia perder, ao mesmo tempo em que exigia a continuação da contagem onde poderia ganhar é o tipo de loucura que só faz sentido neste mundo do WhatsApp.
O fato de estarmos vinte e quatro horas por dia com a cara no celular, discutindo em 176 grupos, simultaneamente, também não colabora muito na concentração. Incêndio no Pantanal, legalização do aborto, mamadeira de piroca, eleição na Índia, violência policial e figurinhas da Hebe fazendo coraçãozinho de mão se misturam, sem muita hierarquia e em alta velocidade. É na tela plana que germinam as Terras planas. Duvido que, se estivéssemos todos em torno de uma mesa, olhos nos olhos, as pessoas teriam coragem de dizer metade dos absurdos que enviam por WhatsApp.
Acho até que, se em vez de celulares usássemos tambores ou sinais de fumaça, nos entenderíamos melhor. Mesmo porque deve ser bem difícil comunicar, com toques de atabaque ou uma fogueira, conceitos tais como “mamadeira de piroca”.
Antonio Prata
Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”.
Se usássemos tambores ou sinais de fumaça, nos entenderíamos melhor
Neste ano, engolfado pelo conluio tenebroso entre confinamento e Bolsonaro, entrei em diversos grupos de zap cujo objetivo é defender e aprimorar a democracia. “Conversas progressistas”, “Esporte pela democracia”, “#estamosjuntos”, “Autores democratas”, “Escola antirracista”, “Corredores antifascistas” e por aí vai. Não houve um único grupo em que não chegássemos, em algum momento, numa batalha campal.
Engraçado (nem um pouco, na verdade) é a semelhança das brigas. Frases como “Gente, vamos respeitar a opinião alheia?”, “Discordar é uma coisa, debochar é outra!”, “Desculpa, não era esse o tom que eu quis dar”, “A gente já não tinha decidido isso, pessoal????!” e invariavelmente: “fulano saiu do grupo”, “sicrano saiu do grupo”, “beltrano saiu do grupo”.
Depois de participar da décima batalha virtual, comecei a desconfiar que o problema não era das pessoas, das causas, do desespero com o governo ou do estresse com a quarentena. A encrenca era a ferramenta. Quando penso, hoje, sobre criar um movimento coletivo via WhatsApp, a imagem que me vem à cabeça é a de servir um almoço, coletivamente, sobre uma esteira rolante.
Às 14:32:28 o Daniel põe um garfo. A Joana chega às 14:32:35 e põe a faca, o Valter, entrando às 14:32:43, reclama: “Gente, tá o garfo num lugar e a faca três metros depois, não seria mais interessante botarmos um do lado do outro?”. “Desculpa, querido, mas você chegou agora, eu e a Joana estamos aqui tentando botar a mesa, se você tivesse chegado antes, poderia ajudar mais em vez de criticar”. Aí vem alguém com a salada, outro estende a toalha por cima, a carne fica ao lado da sobremesa. Oito da noite, um desavisado entra no grupo e sugere, sem saber o que rolou ali o dia todo: “pessoal, e se puséssemos a mesa?”.
Não é a mente vazia a oficina do demônio, é o WhatsApp. Dentro dele a conversa não se concatena, os raciocínios não fecham, as decisões invariavelmente ficam no ar. É uma ferramenta perfeita pra disseminar o caos, no bom e no mau sentido. O bom sentido é a bagunça dos grupos de amigos. Ninguém ali está tentando construir nada, só quer se divertir postando memes, gifs, vídeos engraçados. Qualquer um pode entrar a qualquer hora e em qualquer ponto da conversa e simplesmente sorrir com o que passa na esteira.
Já no lado maléfico da balbúrdia está a disseminação de fake news. Justamente pelo fato de as conversas não terem começo, nem meio nem fim, tudo chega entreouvido. Frases soltas. Informações desconexas. O Trump querendo que parassem a contagem dos votos nos estados onde estava na frente e poderia perder, ao mesmo tempo em que exigia a continuação da contagem onde poderia ganhar é o tipo de loucura que só faz sentido neste mundo do WhatsApp.
O fato de estarmos vinte e quatro horas por dia com a cara no celular, discutindo em 176 grupos, simultaneamente, também não colabora muito na concentração. Incêndio no Pantanal, legalização do aborto, mamadeira de piroca, eleição na Índia, violência policial e figurinhas da Hebe fazendo coraçãozinho de mão se misturam, sem muita hierarquia e em alta velocidade. É na tela plana que germinam as Terras planas. Duvido que, se estivéssemos todos em torno de uma mesa, olhos nos olhos, as pessoas teriam coragem de dizer metade dos absurdos que enviam por WhatsApp.
Acho até que, se em vez de celulares usássemos tambores ou sinais de fumaça, nos entenderíamos melhor. Mesmo porque deve ser bem difícil comunicar, com toques de atabaque ou uma fogueira, conceitos tais como “mamadeira de piroca”.
Antonio Prata
Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”.
Irresponsabilidade em meio ao apagão - MARCOS LISBOA
FOLHA DE SP - 22/11
Crise no Amapá revela falhas em todos os Poderes
A decisão judicial de afastar por 30 dias a diretoria da agência responsável pela regulação do setor de energia, Aneel, e do órgão responsável pela operação do sistema, ONS, revela quanto estamos distantes da normalidade institucional e reféns do voluntarismo desinformado.
A razão alegada foi evitar que os gestores possam interferir na investigação das causas do apagão que atinge o Amapá há cerca de 20 dias. Na ânsia de achar culpados, a decisão pôs em risco o abastecimento de energia elétrica em todo o país.
O juiz concluiu, precipitadamente, que o apagão pode ter ocorrido por uma negligência óbvia e com a complacência da diretoria da Aneel e do ONS. A questão, porém, é bem maior
A liminar revelou desconhecimento sobre a teia de controles cruzados no setor, os problemas de coordenação nas diversas instâncias deliberativas e a possível longa sequência de eventos para a ocorrência desse apagão.
Pior ainda, ela deixou acéfalas as instituições responsáveis pela gestão nacional do fornecimento de energia. Felizmente, o TRF-1 suspendeu a liminar na sexta-feira (20).
A estrutura do setor elétrico é tecnicamente complexa. Administrar o sistema de geração, transmissão e distribuição requer modelos matemáticos sofisticados, além de projeções da oferta e demanda anos à frente em razão da longa maturação dos investimentos.
A estabilidade do sistema exige normas de segurança em razão de restrições técnicas e operacionais de difícil coordenação. Falhas, porém, podem ocorrer mesmo com todos os cuidados, como mostra o apagão na Califórnia em agosto deste ano.
O sistema elétrico brasileiro tem problemas no desenho das relações comerciais e de operação entre seus agentes. Temos também frágeis critérios de qualificação técnica para os participantes no setor.
Muitos fatores contribuíram ao longo de anos para o desastre ocorrido no Amapá. Edvaldo Santana, no Valor Econômico de 19/11/2020, sistematiza a extensão dos desafios na regulação do setor elétrico.
Falhas graves no sistema elétrico podem ser previsíveis, mas ainda assim inevitáveis no curto prazo. Isso decorre do longo período necessário para corrigir a infraestrutura. O governo Temer elaborou uma proposta de reforma da regulação do setor elétrico, PLS 232/2016, que anda lentamente no Senado, presidido por um senador do Amapá.
Em vez de enfrentar as fragilidades do desenho regulatório, com frequência optamos por ampliar a intervenção atabalhoada do setor público, como ocorreu na gestão Dilma.
O ativismo desinformado contribui para ampliar a insegurança no país, desestimular investimentos em infraestrutura e dificultar o enfrentamento os problemas.
Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.
Crise no Amapá revela falhas em todos os Poderes
A decisão judicial de afastar por 30 dias a diretoria da agência responsável pela regulação do setor de energia, Aneel, e do órgão responsável pela operação do sistema, ONS, revela quanto estamos distantes da normalidade institucional e reféns do voluntarismo desinformado.
A razão alegada foi evitar que os gestores possam interferir na investigação das causas do apagão que atinge o Amapá há cerca de 20 dias. Na ânsia de achar culpados, a decisão pôs em risco o abastecimento de energia elétrica em todo o país.
O juiz concluiu, precipitadamente, que o apagão pode ter ocorrido por uma negligência óbvia e com a complacência da diretoria da Aneel e do ONS. A questão, porém, é bem maior
A liminar revelou desconhecimento sobre a teia de controles cruzados no setor, os problemas de coordenação nas diversas instâncias deliberativas e a possível longa sequência de eventos para a ocorrência desse apagão.
Pior ainda, ela deixou acéfalas as instituições responsáveis pela gestão nacional do fornecimento de energia. Felizmente, o TRF-1 suspendeu a liminar na sexta-feira (20).
A estrutura do setor elétrico é tecnicamente complexa. Administrar o sistema de geração, transmissão e distribuição requer modelos matemáticos sofisticados, além de projeções da oferta e demanda anos à frente em razão da longa maturação dos investimentos.
A estabilidade do sistema exige normas de segurança em razão de restrições técnicas e operacionais de difícil coordenação. Falhas, porém, podem ocorrer mesmo com todos os cuidados, como mostra o apagão na Califórnia em agosto deste ano.
O sistema elétrico brasileiro tem problemas no desenho das relações comerciais e de operação entre seus agentes. Temos também frágeis critérios de qualificação técnica para os participantes no setor.
Muitos fatores contribuíram ao longo de anos para o desastre ocorrido no Amapá. Edvaldo Santana, no Valor Econômico de 19/11/2020, sistematiza a extensão dos desafios na regulação do setor elétrico.
Falhas graves no sistema elétrico podem ser previsíveis, mas ainda assim inevitáveis no curto prazo. Isso decorre do longo período necessário para corrigir a infraestrutura. O governo Temer elaborou uma proposta de reforma da regulação do setor elétrico, PLS 232/2016, que anda lentamente no Senado, presidido por um senador do Amapá.
Em vez de enfrentar as fragilidades do desenho regulatório, com frequência optamos por ampliar a intervenção atabalhoada do setor público, como ocorreu na gestão Dilma.
O ativismo desinformado contribui para ampliar a insegurança no país, desestimular investimentos em infraestrutura e dificultar o enfrentamento os problemas.
Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.
quinta-feira, novembro 19, 2020
China X EUA: Saiba o que há por trás da guerra do 5G com a Huawei - LUIZ FELIPE SIMÕES
ESTADÃO - 19/11
China X EUA: Saiba o que há por trás da guerra do 5G com a Huawei
Governo dos EUA afirma que a empresa chinesa pode estar espionando seus usuários
“A República Popular da China (RPC) está explorando cada vez mais o capital dos Estados Unidos para obter recursos e permitir o desenvolvimento e a modernização de seus aparatos militares, de inteligência e outros de segurança”. São essas as palavras que o presidente norte americano Donald Trump utilizou para justificar uma ordem executiva que proíbe americanos de investirem em 31 empresas chinesas. Dentre elas, Huawei, China Telecom e Hikvision.
A decisão, que entrará em vigor em janeiro, acirra ainda mais a guerra que começou entre as duas maiores potências do mundo desde que a tecnologia do5G foi anunciada. A batalha travada entre China e Estados Unidos teve início primeiro com as redes e depois se estendeu para os aparelhos da Huawei. Hoje em dia, os smartphones da fabricante chinesa estão impedidos de utilizar o sistema operacional Android e, agora possuem o seu próprio, chamado HarmonyOS.
A companhia chinesa Huawei, fundada em 1987, opera redes em 170 países e emprega mais de 194 mil pessoas. Recentemente, ultrapassou a Samsung como a maior vendedora de smartphones do mundo. Grande parte do sucesso da gigante asiática se deve pelo seu compromisso com a inovação, pois a empresa investe cerca de 10% do seu lucro anual em pesquisa e desenvolvimento.
A fabricante chinesa vem desenvolvendo a tecnologia do 5G desde 2009, tanto internamente como também por meio entidades de padronização. Para os consumidores comuns, a quinta geração da internet móvel permitirá velocidades de download mais rápidas, o desenvolvimento da internet das coisas e também de veículos autônomos.
Do lado econômico, o potencial de geração de riqueza com o 5G é imenso e gira na faixa dos trilhões de dólares. A tecnologia será fundamental para o desenvolvimento das economias nas próximas décadas.
Além dos fatores econômicos, há também os fatores geopolíticos. Informações encontradas nos documentos da NSA (Agência Nacional de Segurança) dos EUA vazados Edward Snowden em 2013 oferecem algumas pistas sobre isso.
Soberania Informacional
Em 2010 a NSA invadiu os servidores da Huawei durante uma operação. A premissa era encontrar traços que pudessem ligar a companhia chinesa ao Exército de Libertação Popular, além de identificar quaisquer vulnerabilidades nos aparelhos, a fim de permitir que a inteligência dos EUA monitorasse os clientes da Huawei inseridos no governo Chinês, como a agência já faz em países como Irã e Paquistão.
De acordo com os documentos vazados por Snowden, a intenção da NSA era clara. “Muitos de nossos alvos comunicam-se por meio de produtos produzidos pela Huawei. Queremos ter certeza de que sabemos como explorar esses produtos e também queremos garantir que manteremos o acesso a essas linhas de comunicação”, explicou o documento.
A dominância da Huawei na tecnologia do 5G poderia vir a ser uma barreira para a supremacia dos EUA na área de inteligência. Isso porque a empresa chinesa não seria tão receptiva sobre pedidos das agências de inteligência dos EUA, como são os seus concorrentes europeus.
Com isso, os EUA passaram a acusar a Huawei de construir caminhos alternativos que permitiriam o regime chinês de espionar os aparelhos. Na última investida do governo americano, o secretário de estado Mike Pompeo ameaçou parar de compartilhar informações com qualquer membro que utilizasse a infraestrutura 5G da Huawei. “Se um país adotar e colocar em alguns de seus sistemas críticos de informação, não vamos poder compartilhar informações com eles”, contou.
Mercado de patentes
Outro ponto importante, mas que pouco se fala a respeito, é em relação às patentes que envolvem a quinta geração da internet móvel. O 5G nada mais é do que um padrão, ou seja, todas as redes e dispositivos que dependem dele deverão estar de acordo com suas especificações, e isso envolve tecnologias patenteadas. Segundo o Le Monde Diplomatique, um celular com wi-fi e tela TouchScreen pode ter mais de 250 mil patentes dentro.
O problema das patentes é que elas acarretam em despesas com licenciamento. A Qualcomm, que venceu a corrida do 2G, tem mais de dois terços das suas receitas vindas da China, e a maior parte dela vem da Huawei. Desde 2001, a Huawei gastou mais de US$ 6 bilhões em royalties, cerca de 80% para empresas americanas.
Hoje em dia as coisas são diferentes, pois a Huawei tem o maior portfólio de patentes relacionadas ao 5G, o que segundo o Le Monde vai de encontro com a distribuição geográfica das patentes, com os EUA e a Europa Ocidental, perdendo terreno para os países asiáticos.
Empresas como a Apple e o Google também são acusadas de espionarem seus usuários. Legisladores dos EUA convocaram representantes das empresas a prestarem esclarecimentos ao comitê de energia e comércio sobre como e quais informações os dispositivos coletam.
China X EUA: Saiba o que há por trás da guerra do 5G com a Huawei
Governo dos EUA afirma que a empresa chinesa pode estar espionando seus usuários
“A República Popular da China (RPC) está explorando cada vez mais o capital dos Estados Unidos para obter recursos e permitir o desenvolvimento e a modernização de seus aparatos militares, de inteligência e outros de segurança”. São essas as palavras que o presidente norte americano Donald Trump utilizou para justificar uma ordem executiva que proíbe americanos de investirem em 31 empresas chinesas. Dentre elas, Huawei, China Telecom e Hikvision.
A decisão, que entrará em vigor em janeiro, acirra ainda mais a guerra que começou entre as duas maiores potências do mundo desde que a tecnologia do5G foi anunciada. A batalha travada entre China e Estados Unidos teve início primeiro com as redes e depois se estendeu para os aparelhos da Huawei. Hoje em dia, os smartphones da fabricante chinesa estão impedidos de utilizar o sistema operacional Android e, agora possuem o seu próprio, chamado HarmonyOS.
A companhia chinesa Huawei, fundada em 1987, opera redes em 170 países e emprega mais de 194 mil pessoas. Recentemente, ultrapassou a Samsung como a maior vendedora de smartphones do mundo. Grande parte do sucesso da gigante asiática se deve pelo seu compromisso com a inovação, pois a empresa investe cerca de 10% do seu lucro anual em pesquisa e desenvolvimento.
A fabricante chinesa vem desenvolvendo a tecnologia do 5G desde 2009, tanto internamente como também por meio entidades de padronização. Para os consumidores comuns, a quinta geração da internet móvel permitirá velocidades de download mais rápidas, o desenvolvimento da internet das coisas e também de veículos autônomos.
Do lado econômico, o potencial de geração de riqueza com o 5G é imenso e gira na faixa dos trilhões de dólares. A tecnologia será fundamental para o desenvolvimento das economias nas próximas décadas.
Além dos fatores econômicos, há também os fatores geopolíticos. Informações encontradas nos documentos da NSA (Agência Nacional de Segurança) dos EUA vazados Edward Snowden em 2013 oferecem algumas pistas sobre isso.
Soberania Informacional
Em 2010 a NSA invadiu os servidores da Huawei durante uma operação. A premissa era encontrar traços que pudessem ligar a companhia chinesa ao Exército de Libertação Popular, além de identificar quaisquer vulnerabilidades nos aparelhos, a fim de permitir que a inteligência dos EUA monitorasse os clientes da Huawei inseridos no governo Chinês, como a agência já faz em países como Irã e Paquistão.
De acordo com os documentos vazados por Snowden, a intenção da NSA era clara. “Muitos de nossos alvos comunicam-se por meio de produtos produzidos pela Huawei. Queremos ter certeza de que sabemos como explorar esses produtos e também queremos garantir que manteremos o acesso a essas linhas de comunicação”, explicou o documento.
A dominância da Huawei na tecnologia do 5G poderia vir a ser uma barreira para a supremacia dos EUA na área de inteligência. Isso porque a empresa chinesa não seria tão receptiva sobre pedidos das agências de inteligência dos EUA, como são os seus concorrentes europeus.
Com isso, os EUA passaram a acusar a Huawei de construir caminhos alternativos que permitiriam o regime chinês de espionar os aparelhos. Na última investida do governo americano, o secretário de estado Mike Pompeo ameaçou parar de compartilhar informações com qualquer membro que utilizasse a infraestrutura 5G da Huawei. “Se um país adotar e colocar em alguns de seus sistemas críticos de informação, não vamos poder compartilhar informações com eles”, contou.
Mercado de patentes
Outro ponto importante, mas que pouco se fala a respeito, é em relação às patentes que envolvem a quinta geração da internet móvel. O 5G nada mais é do que um padrão, ou seja, todas as redes e dispositivos que dependem dele deverão estar de acordo com suas especificações, e isso envolve tecnologias patenteadas. Segundo o Le Monde Diplomatique, um celular com wi-fi e tela TouchScreen pode ter mais de 250 mil patentes dentro.
O problema das patentes é que elas acarretam em despesas com licenciamento. A Qualcomm, que venceu a corrida do 2G, tem mais de dois terços das suas receitas vindas da China, e a maior parte dela vem da Huawei. Desde 2001, a Huawei gastou mais de US$ 6 bilhões em royalties, cerca de 80% para empresas americanas.
Hoje em dia as coisas são diferentes, pois a Huawei tem o maior portfólio de patentes relacionadas ao 5G, o que segundo o Le Monde vai de encontro com a distribuição geográfica das patentes, com os EUA e a Europa Ocidental, perdendo terreno para os países asiáticos.
Empresas como a Apple e o Google também são acusadas de espionarem seus usuários. Legisladores dos EUA convocaram representantes das empresas a prestarem esclarecimentos ao comitê de energia e comércio sobre como e quais informações os dispositivos coletam.
Responsabilidade nas promessas - ZEINA LATIF
ESTADÃO - 19/11
Embora com tom mais moderado, Guilherme Boulos repete o nefasto e equivocado discurso populista
Os debates eleitorais têm muito a melhorar. Candidatos da oposição muitas vezes constroem a imagem de que é fácil resolver os problemas e que, se nada foi feito antes, foi por descaso ou desonestidade. A simplificação excessiva, como na campanha de Bolsonaro em 2018, atrapalha a decisão consciente e o amadurecimento do eleitor.
O discurso fácil e eloquente dá voto, pois segmentos da sociedade continuam em busca de “salvadores da pátria”. Porém, cedo ou tarde, chega a fatura, como na decepção de eleitores com o presidente.
É necessário ir além da superficialidade e afastar promessas descabidas, pois enfrentar os desafios do desenvolvimento requer maturidade política.
Os candidatos à reeleição, por sua vez, falham ao não explicitar problemas e diagnósticos, talvez por temerem críticas. Ao final, há uma cumplicidade perversa entre contendores no debate eleitoral, ao evitarem temas polêmicos.
A campanha para a eleição da Prefeitura de São Paulo não foge à regra.
Mal se discute, por exemplo, o grave desequilíbrio da previdência municipal. Em 2019, o rombo foi de R$5,4 bilhões, o que equivaleu a 16% da arrecadação tributária. O déficit atuarial estava em quase R$163 bilhões.
Depois da desistência de Fernando Haddad e o insucesso de João Doria, a reforma da Previdência foi aprovada no fim de 2018. A pressão do funcionalismo foi enorme e houve greve no início de 2019, data escolhida a dedo para coincidir com o calendário escolar, segundo os próprios sindicalistas.
A reforma, porém, foi tímida, prevendo praticamente apenas o aumento da alíquota de contribuição dos servidores de 11% para 14% e a previdência complementar para entrantes com benefício acima do teto do INSS.
Não foi alterada a idade mínima de aposentadoria, diferentemente da reforma federal, que, diga-se de passagem, foi atacada por Guilherme Boulos, candidato do PSOL à Prefeitura de São Paulo. Agora, ele defende mais contratações para aumentar a arrecadação previdenciária do município. Argumento incompreensível.
O jovem político reproduz o discurso da velha esquerda que não acredita em restrição orçamentária e acha que tudo se resolve com mais recursos. Nada se ouve sobre melhorar a gestão nas diversas áreas. A lista de promessas de campanha é inexequível, pela falta de recursos e por contemplar medidas tecnicamente equivocadas.
Para cobrar a dívida ativa, em boa medida irrecuperável neste País de crises frequentes, Boulos promete contratar mais procuradores. Para reduzir a população de rua, propõe usar a rede hoteleira e contratar mais agentes. Para a saúde, mais médicos. E por aí vai.
Promete uma “renda cidadã” paulistana, uma política onerosa e mais adequada para a União, e defende o que chama de economia solidária – por exemplo, a compra de alimentos de pequenos produtores no cinturão verde, fora de São Paulo, para prover escolas. No entanto, em uma grande metrópole, ganhos de escala são necessários para garantir a efetividade das políticas públicas e, ao mesmo tempo, evitar despesas em demasia.
Para financiar seus programas, o candidato diz contar com a recuperação da dívida ativa e com a suposta sobra de caixa – um recurso já comprometido e exigência da Lei de Responsabilidade Fiscal. Ele confunde fluxo com estoque (fluxo de despesa permanente pago com estoque finito de recursos), erro básico, que, de quebra, fere a LRF.
Faltam bons diagnósticos sobre os problemas da cidade, as prioridades e a realidade fiscal.
O próximo prefeito terá muitas outras missões, como povoar e adensar os bairros centrais com infraestrutura urbana, o que reduziria tempo no transporte, pressionaria menos o preço da terra – tema caro ao Boulos – e ajudaria a preservar o meio ambiente, em meio ao aumento de loteamentos ilegais.
Oxigenar o debate público, como fazem alguns candidatos “nanicos”, é saudável. O crescimento de Boulos exige, porém, maior responsabilidade nas propostas. Embora com tom mais moderado, ele repete o nefasto e equivocado discurso populista.
CONSULTORA E DOUTORA EM ECONOMIA PELA USP
Embora com tom mais moderado, Guilherme Boulos repete o nefasto e equivocado discurso populista
Os debates eleitorais têm muito a melhorar. Candidatos da oposição muitas vezes constroem a imagem de que é fácil resolver os problemas e que, se nada foi feito antes, foi por descaso ou desonestidade. A simplificação excessiva, como na campanha de Bolsonaro em 2018, atrapalha a decisão consciente e o amadurecimento do eleitor.
O discurso fácil e eloquente dá voto, pois segmentos da sociedade continuam em busca de “salvadores da pátria”. Porém, cedo ou tarde, chega a fatura, como na decepção de eleitores com o presidente.
É necessário ir além da superficialidade e afastar promessas descabidas, pois enfrentar os desafios do desenvolvimento requer maturidade política.
Os candidatos à reeleição, por sua vez, falham ao não explicitar problemas e diagnósticos, talvez por temerem críticas. Ao final, há uma cumplicidade perversa entre contendores no debate eleitoral, ao evitarem temas polêmicos.
A campanha para a eleição da Prefeitura de São Paulo não foge à regra.
Mal se discute, por exemplo, o grave desequilíbrio da previdência municipal. Em 2019, o rombo foi de R$5,4 bilhões, o que equivaleu a 16% da arrecadação tributária. O déficit atuarial estava em quase R$163 bilhões.
Depois da desistência de Fernando Haddad e o insucesso de João Doria, a reforma da Previdência foi aprovada no fim de 2018. A pressão do funcionalismo foi enorme e houve greve no início de 2019, data escolhida a dedo para coincidir com o calendário escolar, segundo os próprios sindicalistas.
A reforma, porém, foi tímida, prevendo praticamente apenas o aumento da alíquota de contribuição dos servidores de 11% para 14% e a previdência complementar para entrantes com benefício acima do teto do INSS.
Não foi alterada a idade mínima de aposentadoria, diferentemente da reforma federal, que, diga-se de passagem, foi atacada por Guilherme Boulos, candidato do PSOL à Prefeitura de São Paulo. Agora, ele defende mais contratações para aumentar a arrecadação previdenciária do município. Argumento incompreensível.
O jovem político reproduz o discurso da velha esquerda que não acredita em restrição orçamentária e acha que tudo se resolve com mais recursos. Nada se ouve sobre melhorar a gestão nas diversas áreas. A lista de promessas de campanha é inexequível, pela falta de recursos e por contemplar medidas tecnicamente equivocadas.
Para cobrar a dívida ativa, em boa medida irrecuperável neste País de crises frequentes, Boulos promete contratar mais procuradores. Para reduzir a população de rua, propõe usar a rede hoteleira e contratar mais agentes. Para a saúde, mais médicos. E por aí vai.
Promete uma “renda cidadã” paulistana, uma política onerosa e mais adequada para a União, e defende o que chama de economia solidária – por exemplo, a compra de alimentos de pequenos produtores no cinturão verde, fora de São Paulo, para prover escolas. No entanto, em uma grande metrópole, ganhos de escala são necessários para garantir a efetividade das políticas públicas e, ao mesmo tempo, evitar despesas em demasia.
Para financiar seus programas, o candidato diz contar com a recuperação da dívida ativa e com a suposta sobra de caixa – um recurso já comprometido e exigência da Lei de Responsabilidade Fiscal. Ele confunde fluxo com estoque (fluxo de despesa permanente pago com estoque finito de recursos), erro básico, que, de quebra, fere a LRF.
Faltam bons diagnósticos sobre os problemas da cidade, as prioridades e a realidade fiscal.
O próximo prefeito terá muitas outras missões, como povoar e adensar os bairros centrais com infraestrutura urbana, o que reduziria tempo no transporte, pressionaria menos o preço da terra – tema caro ao Boulos – e ajudaria a preservar o meio ambiente, em meio ao aumento de loteamentos ilegais.
Oxigenar o debate público, como fazem alguns candidatos “nanicos”, é saudável. O crescimento de Boulos exige, porém, maior responsabilidade nas propostas. Embora com tom mais moderado, ele repete o nefasto e equivocado discurso populista.
CONSULTORA E DOUTORA EM ECONOMIA PELA USP
sábado, novembro 14, 2020
Rotos e esfarrapados - BOLÍVAR LAMOUNIER
ESTADÃO - 14/11
A disputa eleitoral deste ano nos Estados Unidos escancarou para todo o mundo a facilidade com que um país se pode deixar arrastar para a radicalização e, com ela, para o retrocesso.
Em 1967, Anthony Downs, um dos mais celebrados cientistas políticos americanos, elaborou um requintado argumento a fim de demonstrar que os Estados Unidos dificilmente cairiam em tal armadilha. Numa sociedade próspera, com apenas dois grandes partidos, sem tradições ideológicas comparáveis às da Europa, um candidato teria de pender para o centro, sob pena de se isolar e perder de lavada. A virtude estaria sempre no centro. Tal argumento podia ser lido como um retrato fiel do que acontecera três anos antes, quando o destempero radical do sulista Barry Goldwater empurrou o Partido Republicano para um abismo. Aquele pleito e a teoria de Downs casavam-se perfeitamente. Nada que ver, é claro, com a eleição de 2020. Ainda próspero, mas economicamente muito mais vulnerável, sem ideologias do tipo europeu, mas com algo muito pior, um racismo desabrido e crescente, a polarização se impôs no país desde a eleição de 2016.
Donald Trump não sucumbiu como Barry Goldwater. Ao contrário, mostrou-se altamente competitivo. Transformou a grossura verbal em potente arma política, a ponto de se apresentar como vítima de fraude nas urnas. Chega mesmo a declarar que não passará o cargo a Joe Biden no dia 20 de janeiro, como prescreve a lei. Quem diria, o modelo mundial de democracia subitamente transformado em ícone de república bananeira.
Claro, nós, brasileiros, rirmos do grande irmão do norte é como o roto rir do esfarrapado. Primeiro, porque não somos uma sociedade próspera: somos bem o contrário disso. Segundo, porque não temos dois partidos centenários, teoricamente capazes de moderar os enfrentamentos políticos. Temos 26 siglas representadas na Câmara dos Deputados, nenhum deles detendo sequer 20% das cadeiras, sendo, por conseguinte, muito mais parte do problema que da solução. No nível de Trump, ou aspirando a tal, temos no Planalto o sr. Jair Bolsonaro, que não transformou a pandemia num desastre muito maior porque não foi capaz, e porque o Brasil, nesse aspecto, tem pelo menos uma defesa de que os Estados Unidos carecem: um sistema público de saúde.
Eis a diferença fundamental: não tivemos uma polarização entre dois partidos políticos com identidades bem delineadas, mas entre duas maçarocas desorientadas, cujo único objetivo era se destruírem uma à outra. Clara ilustração disso é a facilidade com que Jair Bolsonaro recorreu ao clássico estelionato eleitoral, trocando a “nova política” que prometera instaurar, pelo “Centrão”, lídimo representante do fardo arcaico que insiste em se perenizar. Noves fora, não estamos na iminência de um retrocesso: estamos bem no meio dele, com remotas chances de ajustar as contas públicas nos próximos cinco anos, na obrigação de destinar outra grande soma ao auxílio emergencial, caso o coronavírus retorne numa onda ainda pior, e, para chover um pouco no molhado, incapazes de superar nosso obsceno quadro de desigualdades sociais e educacionais e nossos problemas de saneamento e segurança.
Não se requer nenhuma lupa para perceber que as entranhas do Estado brasileiro estão tomadas por uma chusma de grupos de interesse (as chamadas corporações), altruístas como piranhas que se agitam num rio à espera de vacas que se aproximam. Alguém sabe como moderar o apetite de piranhas? No plano político, teoricamente existem dois mecanismos: de um lado, os três Poderes (Legislativo, Judiciário e Executivo) e, em particular, os partidos políticos; de outro, elites dignas do nome, ou seja, grupos dotados de recursos (econômicos, educacionais, etc.) e imbuídos de um grau razoável de dedicação ao bem comum. No Brasil, infelizmente, as instituições que corporificam os três Poderes e os partidos têm funcionado mais como correias de transmissão do que como mecanismos de balizamento e contenção dos grupos de interesse.
Restaria falar sobre as elites, questão mais complexa, sobre a qual o espaço disponível apenas me permite uma breve delineação. Desde o advento do petismo temos ouvido que elites conspiratórias são a causa última dos nossos males. Observo, todavia, que essa imagem nada tem que ver com o conceito de elite que sugeri no parágrafo anterior. Tampouco emprego o termo elite para designar as cúpulas das organizações corporativas criadas naquele longínquo tempo da ditadura varguista: federações e confederações da indústria, do comércio, da agricultura, etc., bem como as entidades sindicais que fazem o contraponto do lado trabalhista. Admito que indivíduos dotados de algum sentimento verdadeiramente “elitista” possam existir em tais organizações, mas como tais, elas não preenchem suficientemente os requisitos que tenho em mente. Um estudo mais extenso dessa questão deveria começar admitindo que um dos grandes problemas brasileiros possa ser a carência, e não a abundância de verdadeiras elites.
SÓCIO-DIRETOR DA CONSULTORIA AUGURIUM, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS
domingo, novembro 01, 2020
Uma dívida fora dos padrões - EDITORIAL O ESTADÃO
ESTADÃO - 01/11
Dívida crescente e com prazo minguante é o novo normal das esburacadas finanças federais. O governo central enfrentará o vencimento de R$ 2,66 trilhões nos 12 meses a partir de 30 de setembro. Isso corresponde a 43,4% do total devido naquela data. No fim de 2019 os vencimentos previstos para este ano eram cerca de 30% do total. Depois vieram a pandemia e centenas de bilhões de gastos extraordinários. Para evitar juros maiores, o Tesouro Nacional vem aceitando redução de prazos para renegociar os títulos. Os R$ 6,13 trilhões de papéis federais em poder do mercado são 93,9% da dívida bruta do governo geral, formado pelos três níveis da administração mais o INSS. Esse valor global equivalia em setembro a 90,6% do Produto Interno Bruto (PIB).
Comparações internacionais são feitas normalmente com a dívida bruta do governo geral. No Brasil, essa dívida estará muito próxima de 100% do PIB no fim de 2020. Nos anos seguintes ficará pouco acima disso, devendo atingir 104,2% em 2024, pelas projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI).
O Brasil está amplamente fora dos padrões, como estava nos anos anteriores. Também segundo o FMI, a dívida pública dos países emergentes e de renda média deve atingir 62,2% do PIB em 2020 e subir até 70,4% nos quatro anos seguintes. Na América Latina a média deve manter-se próxima de 80% nesse período, mas o número seria bem menor sem o peso do Brasil.
Antes da pandemia a equipe econômica havia planejado manter abaixo de 80% a relação dívida/PIB. Com a crise, a economia encolheu, a arrecadação diminuiu e os gastos cresceram de forma explosiva. Dívida bem maior seria um dos efeitos inevitáveis. Isso também ocorreu em outros países, de todos os níveis de desenvolvimento. Em dezenas de países de todos os continentes, o aumento de gastos só foi possível com a ajuda do FMI.
Em todo o mundo as despesas cresceram, assim como as dívidas, e o caso brasileiro só é excepcional por outros fatores. Em primeiro lugar, a relação dívida/PIB já era maior no Brasil que nos outros emergentes. Em segundo, as condições fiscais no País já eram muito precárias. Em terceiro, a economia brasileira estava emperrada antes da pandemia. Em quarto, o poder central, depois de ações positivas na pior fase da crise, parou de funcionar, enrolado em brigas e com o presidente concentrado em objetivos pessoais.
Diante da confusão em Brasília, as incertezas cresceram nos mercados. A confiança minguou, a instabilidade cambial aumentou e disparou a insegurança em relação à política fiscal e ao futuro da dívida. Nada mais natural que a dificuldade para renegociar os papéis do Tesouro.
Enquanto ministros e políticos trocam desaforos, as contas mostram os efeitos fiscais da pandemia e das ações emergenciais. Em setembro, o governo central teve déficit primário de R$ 76,2 bilhões, pelos cálculos do Tesouro, e de R$ 75,1 bilhões, pelo critério do Banco Central – BC (baseado na necessidade de financiamento). No ano, o Tesouro registrou saldo primário negativo de R$ 677,4 bilhões. Um ano antes o buraco havia sido de R$ 72,5 bilhões. O mesmo cenário indica um déficit de R$ 871 bilhões em 2020, cerca de 12,1% do PIB. Não se incluem juros nessas contas.
Um cenário mais amplo das finanças públicas aparece no relatório do BC. Somando-se os dados de todos os níveis de governo e das estatais (sem Petrobrás e Eletrobrás), chega-se ao total do setor público: déficit primário de R$ 635,9 bilhões no ano. Acrescentando-se os juros, obtém-se o resultado nominal, um déficit de R$ 888,5 bilhões em nove meses, valor correspondente a 16,7% do PIB. Um ano antes a proporção havia sido de 7,1%, já muito alta pelos padrões internacionais. Em 12 meses, o resultado nominal, um rombo de R$ 991 bilhões, bateu em 13,7% do PIB.
Qualquer governo com essas contas deveria cuidar muito seriamente de sua imagem perante o mercado. Um dia antes de sair o relatório do BC, ministros brigaram em Brasília, enquanto o presidente, no Maranhão, fazia piada homofóbica sobre um refrigerante local.
Tempestade e bonança - FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
ESTADÃO/O GLOBO - 01/11
A crer no que se sente e se lê nos jornais, pouco a pouco a situação econômica do País está piorando. Será? Não tenho certeza, mas assim parece. Os sinais pipocam de todos os lados. Quase no final da semana passada os índices da bolsa, para usar o jargão, “desabaram” e o dólar foi a quase R$ 6.
No geral os críticos se queixam da morosidade das reformas no Congresso – a administrativa e, principalmente, a tributária – e da falta de compromissos do governo com a lei do teto de gastos. Faltaria um claro compromisso com a austeridade.
De tanto baterem na mesma tecla, os críticos que assim procedem, em geral jornalistas, empresários ou os que os seguem, parecem ser pessimistas. Mas é certo: sem compromissos claros do Executivo com o frear dos gastos e sem ação congressual mirando o futuro, a marcha da economia desanda. E isso parece estar acontecendo: a queda do valor do real e dos índices das bolsas são indícios de que algo vai mal no reino da Dinamarca...
Além do mais, o Banco Central mantém os juros baixos. A taxa Selic foi definida pelo Copom em 2% para o ano, enquanto as próprias previsões “do mercado” para a inflação (que nem sempre acerta...) já passam de 3%.
É certo que em parte é graças aos juros baixos que muita gente se dispõe a comprar casas e apartamentos ou a fazer reformas. Assim, o mercado imobiliário e o de materiais de construção se mantêm ativos. E este não é o único setor que prospera: basta olhar as exportações para ver que os produtores agrícolas vão bem, obrigado.
Mas, cuidado: tal bonança provém, sobretudo, do mercado chinês, que compra sem parar nossos produtos do campo. E ainda assim há quem tema ver a pandemia nos levar a tratativas para importar e usar vacinas chinesas... Tomara que os chineses (e não só eles) continuem consumindo nossos produtos e que produzam boas matérias-primas para as nossas vacinas.
Não escrevo isso para diminuir as preocupações com os sinais negativos que a economia apresenta, mas para, ao matizá-los com perspectivas menos sombrias, tentar entender o que acontece.
Cabe repetir que estamos vivendo um mau momento: além dos sinais não alvissareiros emitidos por alguns setores da economia, existe um clima de pessimismo que deriva de preocupações com a saúde das pessoas. Desde a epidemia da “gripe espanhola”, que assustou a geração de meus pais logo depois da 1.ª Grande Guerra, não se via uma crise sanitária de proporções tão amplas como a criada pela periculosidade do coronavírus: ele parece ser mais contagioso do que letal. Mesmo assim, barbas de molho: principalmente, mas sem exclusividade, os velhos (como eu) que se cuidem. As moléstias de que algumas pessoas são portadoras se agravam com o coronavírus e podem levá-las à morte. Além do mais, parece que o vírus pode deixar sequelas em quem sobrevive.
As notícias que nos chegam da Europa e dos Estados Unidos sobre o crescimento da doença são alarmantes. Os próximos meses se afiguram sombrios. Quanto mais inerte o governo, mais necessária é a responsabilidade de cada um pelos gestos que nos protegem e protegem os outros. Ninguém pode fazer isso em nosso lugar. Seguir a orientação dos médicos, conversar com as pessoas em quem confiamos, manter a distância, usar as máscaras, lavar as mãos estão a alcance de todos. Não menos imperativo será assegurar o acesso de toda a população a vacinas seguras e eficientes, sem politizações mesquinhas. Se Trump perder a eleição, como apontam as pesquisas, o fator determinante terá sido sua gestão desastrosa da pandemia.
Também do ponto de vista da economia, o que mais me preocupa é a relativa omissão do governo. Juros muito baixos e descontrole fiscal podem levar rapidamente à inflação. Só quem cuidou dela no passado sabe o quanto tal “vírus” é danoso: arrasa tudo e liquida em pouco tempo o salário dos pobres, mais do que a capacidade ou o “apetite” para investir dos mais afortunados.
E é isso que mais me preocupa. De intriga em intriga, o governo parece ser displicente diante de sinais que não deixam dormir os mais obcecados. Os responsáveis no governo pela economia não entendem o Congresso. Este funciona no ritmo das eleições que se aproximam. E governar implica apontar caminhos, os quais muitos se obstinam em não aceitar.
É difícil conciliar popularidade com sucesso econômico, a conciliação dos dois fatores nem sempre está nas mãos de quem governa. Mas a História cobrará dos governos o fato de haverem sido cúmplices se houver desvios de rumo. É por isso que governar não é fácil e depende tanto da sorte quanto da competência.
No fundo vivemos, e pior, mansamente, o início de uma crise política. Com o que se preocupa quem tem nas mãos as rédeas do poder? Ao parecer, mais com o que lhe toca diretamente, como a reeleição, ou com os familiares, do que com os sinais de alarme que já estão soando fortes...
Deus queira que as minhas sejam preocupações vãs.
SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA
sexta-feira, outubro 30, 2020
‘Memento mori’, Guedes! Chamem Dedé - REINALDO AZEVEDO
FOLHA DE SP - 30/10
Decreto que punha UBSs no programa de privatizações parece ter sido redigido por Didi Mocó
Oba! Paulo Guedes viveu nesta quinta-feira (29) mais um “patético momento”, com o perdão de Cecília Meireles, em audiência pública no Congresso. Falou a verdade ou só promoveu guerrilha interna ao afirmar que o governo abriga um ministro financiado pela Febraban, a federação de bancos? É claro que se referia a Rogério Marinho.
Sendo verdade, é grave, e o lobista tem de ser demitido. Sendo mentira, demita-se o acusador. O chilique é apanágio de incompetentes. Temos um governo de destrambelhados. A desorientação da gestão de Jair Bolsonaro deixou o terreno do debate administrativo e virou pastelão.
O decreto que punha as Unidades Básicas de Saúde no escopo do programa de concessões e privatizações parece ter sido redigido por Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgino Mufumbo, em parceria com o Mussum de porre. Esqueceram de chamar Dedé e Zacarias. Teriam alguma reserva de bom senso: “Melhor não!”.
O texto era assinado por Bolsonaro e pelo próprio Guedes. O chefe não tem noção do que fala e faz. A única coisa que lhe interessa é a rinha política. Para tanto, é preciso manter a adesão de duas frentes: nas redes, a da súcia de sempre; no Congresso, a dos clientes de Luiz Eduardo Ramos, pagador de emendas.
Vai dar errado, antevê o general Rêgo Barros, ex-porta-voz, que adverte Bolsonaro: “Memento mori”. A tradução que circula por aí não é boa: “Lembre-se de que é mortal”, o que seria um convite à humildade. “Memento” é um imperativo no tempo futuro, que não sobreviveu nas línguas neolatinas. “Mori” é verbo no infinitivo.
Deve ser traduzido como predição e vaticínio: “Hás de te lembrar de que vais morrer”. Ou seja: o castigo virá para aquele que se deixa adular por “comentários babosos dos que o cercam ou pelas demonstrações alucinadas de seguidores de ocasião”.
Nesse ambiente nascem decretos que ninguém lê. Nem Guedes conhecia direito a estrovenga. A audiência deixou claro: a sugestão partiu da área de PPI (Programa de Parcerias de Investimento), dirigida pela secretária Martha Seillier, “uma pessoa competente, séria, trabalhadora”, segundo o ministro.
Foi enfático sobre Martha: “Não é uma das pessoas que eu trouxe de fora para privatizar o sistema, para atacar o sistema de saúde brasileiro. Zero”. Entendido. Privatizar bens públicos, segundo o ministro, corresponde a... atacá-los. Nem o PCO seria tão sucinto.
Nesta quinta, apanhou a Febraban. Caso discorde dele, será a Febraqueba (Federação Brasileira dos Querubins Barrocos) na quinta que vem.
Notem: essa conversa sobre as UBSs brotou do nada. O resto do governo foi pego de surpresa. É evidente que os valentes tentam se livrar de parte da carga da Saúde —e aí está o problema de fundo. Mas é preciso fazê-lo com método.
Foi tal o barulho que o texto teve de ser revogado. Ao se justificar, escreveu Bolsonaro nas redes: “Temos atualmente mais de 4.000 Unidades Básicas de Saúde (UBS) e 168 Unidades de Pronto Atendimento (UPA) inacabadas. Faltam recursos financeiros para conclusão das obras, aquisição de equipamentos e contratação de pessoal. O espírito do decreto 10.530, já revogado, visava o término dessas obras, bem como permitir aos usuários buscar a rede privada com despesas pagas pela União”.
É mesmo? Se é assim, revogou por quê? Então mantenha o texto e compre a luta política, ora bolas! Acontece que, para tanto, é preciso que exista um diagnóstico de governo, o que, por sua vez, supõe a existência de um... governo.
Guedes aproveitou ainda a audiência pública para atacar o Governo de São Paulo, que já teria recebido muito dinheiro. Também deixou claro que não se fala sobre novo imposto. Não em período eleitoral ao menos. E se disse contrário à vacinação obrigatória: “Eu sou um liberal, acredito que a vacina é uma decisão voluntária de cada um. Se o sujeito preferir ficar trancado em casa seis anos, não ter contato com ninguém e não tomar a vacina, o problema é dele”.
Opa! Ninguém até agora havia pensado na possibilidade de confinar os recalcitrantes. Ainda bem que existe o ministro para iluminar o debate.
Dedé para a Economia. ”Memento mori”, Guedes!
Reinaldo Azevedo
Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.
terça-feira, outubro 27, 2020
Não é o arroz, presidente - EDITORIAL O ESTADÃO
ESTADÃO - 27/10
Com a grosseria habitual, o presidente Jair Bolsonaro mandou um cidadão incomodado com a alta de preços comprar arroz na Venezuela. Também de forma habitual, a reação tosca serviu para afastar um assunto desagradável e complicado. Não serviu, no entanto, para atenuar o desajuste dos preços nem para afastar uma das principais ameaças à continuação da retomada econômica. A inflação diminui o poder de compra das famílias, já afetado pela redução do auxílio emergencial e pelo desemprego recorde. O custo do arroz, tema do incidente na Feira Permanente do Cruzeiro, no Distrito Federal, é apenas um detalhe bem visível do problema diante do Executivo. Será o presidente capaz de perceber o desafio real?
Bem comportados até há pouco tempo, os preços no varejo voltaram a assombrar as famílias. A prévia da inflação, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo 15 (IPCA-15), bateu em 0,94%, a maior variação para um mês de outubro desde 1995. A alta acumulada no ano foi de 2,31%. Em 12 meses o IPCA-15 subiu 3,52%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Sem correção da renda familiar, preços mais altos acabam resultando em menor poder de consumo.
A maior pressão, como no mês anterior, veio de alimentos e bebidas. Esse componente ficou 2,24% mais caro e, por seu peso no orçamento familiar, contribuiu com 0,45 ponto para o aumento geral de 0,94%. Carnes, óleo de soja, arroz, tomate e leite longa vida foram os produtos com maiores altas de preços, na parte alimentar.
Famílias de baixa renda são as mais prejudicadas pelo encarecimento da comida e de outros itens essenciais, como o gás de cozinha. Em setembro, houve aceleração da alta de preços para famílias de todas as faixas de renda e as mais pobres foram as mais afetadas.
A inflação por faixa de renda mensal é acompanhada regularmente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). As famílias são agrupadas em seis faixas. Em setembro, as taxas de inflação dos diferentes estratos variaram amplamente, desde 0,29% para a faixa de renda muito alta até 0,98% para a de renda muito baixa.
Cerca de três quartos da inflação dos muito pobres, em setembro, são explicáveis pela alta de preços da comida. Para as famílias de renda média, a alimentação mais cara produziu 0,39 ponto porcentual da inflação de 0,56%. Para os consumidores do extremo superior o item alimentação contribuiu com 0,20 ponto do total de 0,29%. A diferença, quando se observa o período de um ano, é muito grande. Nos 12 meses até setembro de 2020 a inflação da classe de renda muito baixa atingiu 4,3%, enquanto a das pessoas de renda muito alta ficou em 1,8%.
As famílias pobres foram, proporcionalmente, as mais beneficiadas pelo auxílio emergencial, diminuído a partir de setembro e com extinção prevista para o fim de ano. Essas famílias também estão, normalmente, entre as mais afetadas pelas más condições do mercado de trabalho.
No fim de setembro estavam desocupados 14 milhões de trabalhadores, 14,4% da força de trabalho, mas o número de pessoas em condições precárias (desempregadas, desalentadas e outras) passava de 30 milhões.
Empregos devem surgir neste fim de ano, mas a melhora é sazonal. Não se sabe se as contratações igualarão as de 2019 nem se a mão de obra retida pelas empresas na virada do ano, quando a maior parte é dispensada, será maior ou menor que a de períodos anteriores.
Como nem o Orçamento está definido, é difícil qualquer previsão para 2021. Além disso, o Executivo nem sequer esboçou uma estratégia para sustentação da retomada. Em setembro, o Índice de Confiança do Comércio, medido pela Fundação Getúlio Vargas, diminuiu de 99,6 para 95,8 pontos, depois de cinco altas consecutivas. O Executivo precisa informar com urgência – e de forma crível – como pretende manter a recuperação e arrumar suas contas a partir de janeiro. Sem um mínimo de segurança, será difícil planejar os negócios, o dólar continuará alto e a inflação seguirá pressionada. O problema é bem mais grave que o preço atual do arroz.
segunda-feira, outubro 26, 2020
Revolução Russa é mais bem compreendida numa chave trágica - LUIZ FELIPE PONDÉ
FOLHA DE SP - 26/10
A liberdade é um recurso bruto: o conflito de valores e atitudes é seu destino
Nos Estados Unidos, a esquerda se chama liberal, com razão. A esquerda que sobrou é filha do liberalismo de John Locke (século 17) a John Stuart Mill (século 19). Um pressuposto básico do pensamento liberal desde Locke é a exclusão da violência como instrumento político legítimo.
A deslegitimação da violência como instrumento político é um fator essencial. Assim como a legitimidade da guerra como continuação natural da política por outros meios, como afirmou Carl von Clausewitz (1780-1831) no seu clássico "Sobre a Guerra", caiu em desgraça, a violência revolucionária teve o mesmo fim.
Restou à política os espaços institucionais e o mercado, que também têm se transformado em poder representativo da República, ainda que indireto, como a mídia o é há muito tempo. Daí o vínculo entre lugar de fala, marketing e cotas.
Mas talvez não tenha sido apenas a política como violência que fosse a justificativa para que os russos realizassem a revolução bolchevista.
A hipótese de Orlando Figes sobre a Revolução Russa em seu "A Tragédia de um Povo: A Revolução Russa (1891 - 1924)" (ed. Dom Quixote) —autor conhecido entre nós pelas suas obras "Uma História Cultural da Rússia" e "Sussurros" (sobre o stalinismo)— é mais bem compreendida numa chave trágica. O que isso quer dizer?
Isso quer dizer que a revolução aconteceu por inúmeras razões que escapam ao controle humano quando vistas numa longa duração entre 1825 e 1924. Como se o descontrole de um número gigantesco de variáveis desenhasse a própria noção de destino trágico traçado por forças que nos escapam do ponto de vista da razão.
A revolução começou em fevereiro de 1917, quando começa a queda do regime czarista, com protestos contra a falta de pão, massacres de gente aleatória, motins no Exército, casais transando nas ruas e sem nenhuma liderança objetiva única. Nem os bolcheviques acreditavam na revolução naquele momento.
Isso não quer dizer que, olhando pontualmente certos momentos na cadeia infinita de fatos, não percebamos a incompetência do Estado czarista no seu vai e vem diante da modernização europeia e a resistência a ela por parte de alguns setores da inteligência russa.
A vastidão infinita da Rússia e seus Estados satélites, a Primeira Guerra Mundial, a precariedade técnica e burocrática, a ignorância e a miséria profundas e a inapetência do "governo provisional" pré-bolchevique são causas identificáveis, mas incontroláveis quando postas lado a lado.
A interpretação forte dessa hipótese nos leva à suposição de que uma revolução dessa magnitude só acontece como tragédia.
Ninguém —nem mesmo Kerenski, Lênin, Trótski ou Stálin, seus protagonistas conhecidos— foi, de fato, senhor do processo. A contingência foi a senhora da história. E quando a contingência é a senhora da casa, estamos na casa da tragédia.
A Revolução Russa, cozida profundamente sob o impacto do racionalismo hegeliano, acabou por se provar anti-hegeliana e antimarxista: não há agente histórico racional capaz de conduzir nenhum processo histórico dessa magnitude.
O liberalismo como tradição exclui qualquer opção violenta e pretende conter toda ação política e social dentro de uma racionalidade institucional. Entretanto, como bem viu Isaiah Berlin (século 20), muito influenciado pela inteligência russa do 19, a liberdade é um recurso bruto: o conflito de valores e atitudes é seu destino. Daí ser ele denominado por John Gray, já no século 21, como o liberal trágico por excelência.
A liberdade como dado bruto representa a cegueira final dos processos históricos. Isso não implica recusa da liberdade, mas sim percepção de que ela, assim como sua mais nova ferramenta, as redes sociais, é da ordem da fissura do átomo e da energia nuclear.
Tolstói, no epílogo da segunda parte do seu "Guerra e Paz", desenhou a melhor teoria da história para esse quadro: a história é cega e resultado de infinitas ações que escapam ao nosso controle cognitivo e a nossa vontade.
Nunca sabemos para onde vamos. Somos agentes da contingência, e não de um processo histórico racional.
Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.
A liberdade é um recurso bruto: o conflito de valores e atitudes é seu destino
Nos Estados Unidos, a esquerda se chama liberal, com razão. A esquerda que sobrou é filha do liberalismo de John Locke (século 17) a John Stuart Mill (século 19). Um pressuposto básico do pensamento liberal desde Locke é a exclusão da violência como instrumento político legítimo.
A deslegitimação da violência como instrumento político é um fator essencial. Assim como a legitimidade da guerra como continuação natural da política por outros meios, como afirmou Carl von Clausewitz (1780-1831) no seu clássico "Sobre a Guerra", caiu em desgraça, a violência revolucionária teve o mesmo fim.
Restou à política os espaços institucionais e o mercado, que também têm se transformado em poder representativo da República, ainda que indireto, como a mídia o é há muito tempo. Daí o vínculo entre lugar de fala, marketing e cotas.
Mas talvez não tenha sido apenas a política como violência que fosse a justificativa para que os russos realizassem a revolução bolchevista.
A hipótese de Orlando Figes sobre a Revolução Russa em seu "A Tragédia de um Povo: A Revolução Russa (1891 - 1924)" (ed. Dom Quixote) —autor conhecido entre nós pelas suas obras "Uma História Cultural da Rússia" e "Sussurros" (sobre o stalinismo)— é mais bem compreendida numa chave trágica. O que isso quer dizer?
Isso quer dizer que a revolução aconteceu por inúmeras razões que escapam ao controle humano quando vistas numa longa duração entre 1825 e 1924. Como se o descontrole de um número gigantesco de variáveis desenhasse a própria noção de destino trágico traçado por forças que nos escapam do ponto de vista da razão.
A revolução começou em fevereiro de 1917, quando começa a queda do regime czarista, com protestos contra a falta de pão, massacres de gente aleatória, motins no Exército, casais transando nas ruas e sem nenhuma liderança objetiva única. Nem os bolcheviques acreditavam na revolução naquele momento.
Isso não quer dizer que, olhando pontualmente certos momentos na cadeia infinita de fatos, não percebamos a incompetência do Estado czarista no seu vai e vem diante da modernização europeia e a resistência a ela por parte de alguns setores da inteligência russa.
A vastidão infinita da Rússia e seus Estados satélites, a Primeira Guerra Mundial, a precariedade técnica e burocrática, a ignorância e a miséria profundas e a inapetência do "governo provisional" pré-bolchevique são causas identificáveis, mas incontroláveis quando postas lado a lado.
A interpretação forte dessa hipótese nos leva à suposição de que uma revolução dessa magnitude só acontece como tragédia.
Ninguém —nem mesmo Kerenski, Lênin, Trótski ou Stálin, seus protagonistas conhecidos— foi, de fato, senhor do processo. A contingência foi a senhora da história. E quando a contingência é a senhora da casa, estamos na casa da tragédia.
A Revolução Russa, cozida profundamente sob o impacto do racionalismo hegeliano, acabou por se provar anti-hegeliana e antimarxista: não há agente histórico racional capaz de conduzir nenhum processo histórico dessa magnitude.
O liberalismo como tradição exclui qualquer opção violenta e pretende conter toda ação política e social dentro de uma racionalidade institucional. Entretanto, como bem viu Isaiah Berlin (século 20), muito influenciado pela inteligência russa do 19, a liberdade é um recurso bruto: o conflito de valores e atitudes é seu destino. Daí ser ele denominado por John Gray, já no século 21, como o liberal trágico por excelência.
A liberdade como dado bruto representa a cegueira final dos processos históricos. Isso não implica recusa da liberdade, mas sim percepção de que ela, assim como sua mais nova ferramenta, as redes sociais, é da ordem da fissura do átomo e da energia nuclear.
Tolstói, no epílogo da segunda parte do seu "Guerra e Paz", desenhou a melhor teoria da história para esse quadro: a história é cega e resultado de infinitas ações que escapam ao nosso controle cognitivo e a nossa vontade.
Nunca sabemos para onde vamos. Somos agentes da contingência, e não de um processo histórico racional.
Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.
domingo, outubro 25, 2020
Captura - MARCOS LISBOA
FOLHA DE SP - 25/10
O catálogo de benefícios tributários parece interminável. Recentemente, um deputado federal propôs isentar de IPI os carros comprados por corretores de imóveis. Não deveria surpreender. Táxis não pagam IPI. Caminhões também não.
O programa Repetro permite ao setor de petróleo importar máquinas sem pagar tributos federais. O Recine estabelece que sejam desonerados equipamentos para salas de cinema.
A legislação prevê uma alíquota menor para as incorporadoras do Minha Casa, Minha Vida. A indústria na Zona Franca de Manaus se beneficia da redução de IPI, além de outros privilégios tributários.
As empresas podem deduzir do Imposto de Renda seu investimento em certas atividades. O Rota 2030 concede benefício semelhante para a indústria automotiva. Muitos bens não pagam IPI, como caixa registradora eletrônica.
Doações para a produção cultural (Lei Rouanet), atividades cinematográficas (Lei do Audiovisual) e programas esportivos (Lei de Incentivo ao Esporte) são deduzíveis do Imposto de Renda.
Livros não pagam tributos. O mesmo ocorre com o papel utilizado para a impressão de jornais. Discute-se prorrogar a desoneração da folha de pagamentos, que beneficia 17 setores.
Lideranças do agronegócio defendem que o imposto sobre valor adicionado não seja cobrado do produtor rural estabelecido como pessoa física (modelo adotado até por grandes fazendeiros para pagar menos tributos). Pedem, porém, que os compradores dos seus produtos possam se beneficiar de crédito tributário. Demandam, ainda, que os insumos utilizados pelo setor tenham alíquota zero.
As instituições filantrópicas são isentas da contribuição da folha de pagamentos, que financia a Previdência. Seus trabalhadores, no entanto, têm direito à aposentadoria, em grande medida paga com os tributos arrecadados dos demais.
O estado de São Paulo reduz o ICMS para muitos bens e serviços. O anexo I do RICMS sistematiza as isenções em 173 artigos (um deles trata do bulbo de cebola e outro, de preservativos). O anexo II sumariza os itens com redução da base de cálculo do imposto em 76 artigos. Vale ler esses anexos inacreditáveis, cujos links estão nesta coluna.
O estado também permite deduzir do imposto a pagar doações ao Programa de Ação Cultural e a atividades esportivas. A prefeitura paulistana possui leis semelhantes.
Essa é apenas uma amostra das distorções atuais, resultado de um Estado capturado por pequenos interesses. A conta dos gastos públicos, porém, acaba sendo paga por todos, ainda que de forma dissimulada e disfuncional. Nosso subdesenvolvimento parece obra de meticuloso desvario.
Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.
Riscos da inflação e de repressão financeira - AFFONSO CELSO PASTORE
O Estado de S.Paulo - 25/10
Ainda que em manifestações públicas empresários e economistas expressem confiança no cumprimento do teto de gastos, não é isso que indicam o comportamento do câmbio e da curva de juros, cuja inclinação positiva continua aumentando. Não precisam manifestar sua crítica. O mercado fala por eles.
Para evitar que o risco de insolvência cresça devido ao aumento do custo da dívida, o Tesouro optou por financiar o déficit primário deste ano com títulos de prazos curtos, que têm prêmios de risco mais baixos. Na rolagem da dívida que vence, resgata os títulos de prazos longos com recursos da venda de títulos mais curtos.
Com isso o prazo médio da dívida pública já caiu para 35 meses, e deverá cair ainda mais em 2021, quando ocorrem resgates superiores a R$ 300 bilhões por trimestre. Nesta velocidade, o prazo médio de vencimento da dívida rapidamente cairá abaixo de 30 meses.
A dificuldade na administração da dívida é uma primeira manifestação da dominância fiscal, que leva à inflação e à repressão financeira (a obrigatoriedade imposta aos intermediários financeiros de comprarem títulos com vencimentos mais longos), que já existiu nos anos 70 e 80, quando muitos dos que atuam no mercado financeiro não haviam nascido e desconhecem a magnitude das distorções que provoca.
Os prêmios de risco se manifestam também na taxa cambial, que desde o início do ano já se depreciou perto de 40%. Se o Banco Central atuasse sobre a curva de juros reduzindo sua inclinação positiva, pressionaria ainda mais o câmbio, e se tentasse conter a depreciação cambial com intervenções mais ativas no mercado de câmbio elevaria a inclinação positiva da curva de juros, encurtando ainda mais o prazo médio da dívida.
Estes são exemplos de ações que apenas escondem a manifestação do risco em um dos dois mercados, e como o verdadeiro risco é fiscal, e não desaparece com mágicas, o prêmio apenas migraria de um mercado para o outro.
Nesta situação, o risco de inflação é maior do que se supõe. Há muito aprendemos que o repasse cambial para os preços dos bens tradables não é afetado pelo hiato do PIB. Diante de uma depreciação cambial, os produtores de soja, carne, milho, arroz, açúcar, entre muitos outros, elevam os seus preços no mercado interno e se não conseguirem vender o que produziram exportam todo o excedente àquele preço.
Por isso, a depreciação cambial eleva fortemente os preços pagos aos produtores de produtos agrícolas, que são repassados aos preços nos supermercados e nas feiras livres, elevando o item “alimentação no domicílio” dentro do IPCA, que nos últimos 12 meses já cresceu 15%.
Para os 66 milhões de brasileiros que por quatro meses se beneficiaram de uma ajuda emergencial de R$ 600 ao mês, há enorme diferença. Como a demanda de alimentos tem uma elasticidade-preço muito baixa, e eles têm de se restringir ao seu orçamento, que encolheu com o fim do auxílio emergencial, terão de cortar outros gastos para continuar comendo.
Isto significa que o peso da alimentação no domicílio na sua cesta de consumo será maior do que o usado pelo IBGE no cômputo do IPCA. Sua “inflação percebida” será maior do que a inflação medida por todos os possíveis núcleos computados pelos economistas. Não adianta tentar convencê-los de que houve apenas uma mudança de preços relativos porque as expectativas ainda estão ancoradas às metas.
O Banco Central sabe que a desancoragem ocorrerá, e os indivíduos sabem que sofreram uma dupla perda: da renda nominal, devido ao fim do auxílio emergencial, e da renda real, devido ao aumento da inflação percebida.
Nestas circunstâncias, a reação de um governo populista é transferir mais renda à população, aumentando o desequilíbrio fiscal e piorando o risco de inflação e da repressão financeira.
Se o País não reafirmar com ações concretas, e não com palavras, a sua determinação de atender ao teto de gastos, não há como impedir uma curva de juros mais inclinada e um câmbio mais depreciado.
O Banco Central seria colocado na incômoda posição de ter de elevar a taxa de juros quando a economia ainda se encontra fortemente deprimida, e para fugir desta armadilha pode ser forçado pelo governo a taxar as saídas de capitais ou mesmo impedi-las para evitar uma sangria nas reservas.
Todas estas formas de repressão financeira são extremamente prejudiciais à economia, e a única forma de evitá-las é o retorno rápido e sem subterfúgios à austeridade fiscal.
EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS.
Ainda que em manifestações públicas empresários e economistas expressem confiança no cumprimento do teto de gastos, não é isso que indicam o comportamento do câmbio e da curva de juros, cuja inclinação positiva continua aumentando. Não precisam manifestar sua crítica. O mercado fala por eles.
Para evitar que o risco de insolvência cresça devido ao aumento do custo da dívida, o Tesouro optou por financiar o déficit primário deste ano com títulos de prazos curtos, que têm prêmios de risco mais baixos. Na rolagem da dívida que vence, resgata os títulos de prazos longos com recursos da venda de títulos mais curtos.
Com isso o prazo médio da dívida pública já caiu para 35 meses, e deverá cair ainda mais em 2021, quando ocorrem resgates superiores a R$ 300 bilhões por trimestre. Nesta velocidade, o prazo médio de vencimento da dívida rapidamente cairá abaixo de 30 meses.
A dificuldade na administração da dívida é uma primeira manifestação da dominância fiscal, que leva à inflação e à repressão financeira (a obrigatoriedade imposta aos intermediários financeiros de comprarem títulos com vencimentos mais longos), que já existiu nos anos 70 e 80, quando muitos dos que atuam no mercado financeiro não haviam nascido e desconhecem a magnitude das distorções que provoca.
Os prêmios de risco se manifestam também na taxa cambial, que desde o início do ano já se depreciou perto de 40%. Se o Banco Central atuasse sobre a curva de juros reduzindo sua inclinação positiva, pressionaria ainda mais o câmbio, e se tentasse conter a depreciação cambial com intervenções mais ativas no mercado de câmbio elevaria a inclinação positiva da curva de juros, encurtando ainda mais o prazo médio da dívida.
Estes são exemplos de ações que apenas escondem a manifestação do risco em um dos dois mercados, e como o verdadeiro risco é fiscal, e não desaparece com mágicas, o prêmio apenas migraria de um mercado para o outro.
Nesta situação, o risco de inflação é maior do que se supõe. Há muito aprendemos que o repasse cambial para os preços dos bens tradables não é afetado pelo hiato do PIB. Diante de uma depreciação cambial, os produtores de soja, carne, milho, arroz, açúcar, entre muitos outros, elevam os seus preços no mercado interno e se não conseguirem vender o que produziram exportam todo o excedente àquele preço.
Por isso, a depreciação cambial eleva fortemente os preços pagos aos produtores de produtos agrícolas, que são repassados aos preços nos supermercados e nas feiras livres, elevando o item “alimentação no domicílio” dentro do IPCA, que nos últimos 12 meses já cresceu 15%.
Para os 66 milhões de brasileiros que por quatro meses se beneficiaram de uma ajuda emergencial de R$ 600 ao mês, há enorme diferença. Como a demanda de alimentos tem uma elasticidade-preço muito baixa, e eles têm de se restringir ao seu orçamento, que encolheu com o fim do auxílio emergencial, terão de cortar outros gastos para continuar comendo.
Isto significa que o peso da alimentação no domicílio na sua cesta de consumo será maior do que o usado pelo IBGE no cômputo do IPCA. Sua “inflação percebida” será maior do que a inflação medida por todos os possíveis núcleos computados pelos economistas. Não adianta tentar convencê-los de que houve apenas uma mudança de preços relativos porque as expectativas ainda estão ancoradas às metas.
O Banco Central sabe que a desancoragem ocorrerá, e os indivíduos sabem que sofreram uma dupla perda: da renda nominal, devido ao fim do auxílio emergencial, e da renda real, devido ao aumento da inflação percebida.
Nestas circunstâncias, a reação de um governo populista é transferir mais renda à população, aumentando o desequilíbrio fiscal e piorando o risco de inflação e da repressão financeira.
Se o País não reafirmar com ações concretas, e não com palavras, a sua determinação de atender ao teto de gastos, não há como impedir uma curva de juros mais inclinada e um câmbio mais depreciado.
O Banco Central seria colocado na incômoda posição de ter de elevar a taxa de juros quando a economia ainda se encontra fortemente deprimida, e para fugir desta armadilha pode ser forçado pelo governo a taxar as saídas de capitais ou mesmo impedi-las para evitar uma sangria nas reservas.
Todas estas formas de repressão financeira são extremamente prejudiciais à economia, e a única forma de evitá-las é o retorno rápido e sem subterfúgios à austeridade fiscal.
EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS.
A Âncora e a Corda: algumas propostas possíveis - ARMÍNIO FRAGA
FOLHA DE SP - 25/10
Governo precisa sinalizar como vai parar de tomar mais empréstimos para pagar juros
Há um ano e meio escrevo esta coluna procurando variar, mas com frequência voltando a um tema: como viabilizar investimentos vultosos em áreas de alto retorno social, como saúde, educação, assistência social, para colocar o Brasil em um caminho de crescimento inclusivo, acelerado e sustentável e, ao mesmo tempo, e de forma complementar, como sanear as finanças públicas do país, fonte de incertezas paralisantes e de crises recorrentes.
Hoje, os dois objetivos estão ameaçados. O que fazer?
Sim, algumas reformas importantes foram feitas a partir de 2017. O quadro fiscal melhorou com a introdução do teto de gastos e com a aprovação da reforma da Previdência. No entanto, a despeito desses esforços, as fragilidades fiscais seguem nos assombrando, ameaçando a sustentação do teto, a única âncora fiscal que nos resta. Ademais, o clima geral de negócios piorou em face de sinalizações preocupantes do atual governo (que, por razões de espaço, não poderei detalhar aqui). Como se não bastasse, com a pandemia a situação social e fiscal se deteriorou ainda mais.
Após sete anos de déficits fiscais (primários) e mais de 10% de queda acumulada do PIB, a dívida pública se aproxima dos 100% do PIB. Mesmo respeitado o teto, o déficit primário só seria eliminado em cinco anos, o que não seria suficiente. A rolagem da dívida vem ficando cada vez mais difícil e o Tesouro está sendo obrigado a encurtar os prazos da dívida. As taxas juros de prazo mais longo exibem um elevado prêmio de risco. O dólar a R$ 5,60 grita o mesmo recado. Não se iludam com a bolsa. Estamos mal.
Claramente falta uma âncora fiscal mais robusta. Em bom português: o governo precisa sinalizar como vai parar de tomar mais empréstimos para pagar juros, pois essa bola de neve é insustentável. Chegou a hora de definir metas plurianuais para o saldo primário, que em quatro anos precisa passar de um déficit de 3% do PIB em 2019 para um superávit de pelo menos 3%, de forma a promover uma gradual queda da dívida pública. Essa segunda âncora fiscal nos serviu bem por 15 anos a partir de 1999 e precisa ser relançada.
Como chegar lá? Em vários círculos, inclusive no governo, prevalece a posição de que a tributação não pode aumentar. Penso diferente. Eliminar uma série de subsídios injustificáveis e reduzir a regressividade da tributação nos permitiria obter um espaço fiscal de pelo menos dois pontos do PIB. Segundo dados do Monitor Fiscal do FMI recém-publicado, uma recuperação modesta da economia brasileira ao longo de quatro anos melhoraria o saldo primário em cerca de dois pontos percentuais do PIB. Os dois pontos restantes, teriam que vir do lado dos gastos, com a ajuda de medidas como a PEC da flexibilização.
Muitos acreditam que essas medidas seriam recessivas. Ignoram o fator confiança. Ignoram que na raiz da profunda recessão que começou em 2014 estava um colapso fiscal de cerca de seis pontos percentuais do PIB. Relevam também 1999, quando ocorreu o inverso: fez-se um ajuste de quatro pontos e evitou-se um colapso da economia (à época a projeção de consenso no início do ano era de queda de 4% no PIB; acabou ligeiramente positivo).
Vejo tensões em torno da manutenção do teto no curto e no longo prazos. No curto prazo, há legítimas pressões para a prorrogação por mais algum tempo de gastos com assistência social. O teto é uma âncora. Embora boa em tese, como toda âncora, depende da resistência da corda, que no caso corre o sério risco de não aguentar a tensão.
Não recomendo a volta ao orçamento pré-Covid em apenas um ano. A economia vem se recuperando, mas segue fraca. Melhor seria deixar um pouco do ajuste para 2022, sem, no entanto, abandonar a meta de superávit primário de 3% do PIB para 2024.
Não ignoro que 2022 seja um ano eleitoral, o que tornaria pouco crível a promessa de qualquer aperto adicional naquele ano. Mas nas circunstâncias atuais é o caminho que nos resta, pois há sinais de que importantes reformas estruturais não parecem politicamente viáveis no curto prazo. E nem estamos falando dos estados, a maioria em crise, em alguns casos grave.
Num prazo mais longo, a aderência ao teto levaria ao final de seus sete anos a uma queda de cerca de três pontos percentuais do PIB no gasto federal (em função do gasto crescer menos que o PIB).
Quedas semelhantes terão que ocorrer também nos estados, onde gastos com folha de pagamentos e Previdência são insustentáveis.
Sem completar a reforma da Previdência e fazer uma reforma do RH do Estado que tenha impacto de curto prazo (inclusive sobre a qualidade dos serviços públicos), será impossível fazer o ajuste fiscal necessário e ,ao mesmo tempo, gerar recursos adicionais em maior escala para investir nas áreas sociais.
Mesmo sem as grandes reformas, seria possível com os ajustes propostos acima criar algum espaço para investimento, fazendo o teto crescer 1% ao ano acima da inflação. Dessa forma, ao final dos sete anos, o ajuste fiscal do governo como um todo ocorreria dividido em partes mais ou menos iguais entre cortes de gastos, aumentos de tributação e ganhos de receita com a recuperação. Pela ótica do gasto haveria uma redução do tamanho do Estado. Pela ótica da arrecadação haveria um aumento, voltando aos níveis de 2011.
Fazer as reformas para reforçar o SUS e a rede de assistência social seria a melhor opção. Não sendo possível, recomendo a opção acima.
Embora não recomendáveis, outras opções seriam possíveis. Apresento aqui os casos extremos: por um lado, com as reformas, usar as economias para reduzir a carga tributária; por outro, sem as reformas, seguir aumentando a carga para gastar mais ou para preservar privilégios. Essa última opção tem prevalecido há décadas no Brasil, com resultados modestos, a meu ver, bem modestos.
No âmbito da assistência social, seria sensato prorrogar modesta e temporariamente o auxílio emergencial, enquanto se aprofunda a discussão sobre o formato e a viabilidade de propostas mais permanentes. Importante notar que tanto a esquerda quanto o governo se recusam a considerar ajustes internos à rede de assistência, uma curiosa convergência. Fica claro aqui que a eliminação dos aspectos regressivos da tributação nos daria autoridade moral para uma discussão desarmada do
desenho da assistência social.
Claramente estamos diante de um caso extremo de cobertor curto. Não é possível ao mesmo tempo manter o teto atual, gastar mais com assistência social e SUS e não elevar a carga tributária. Não é possível esperar tanto tempo pelo ajuste fiscal. Se as reformas estruturais avançassem, a margem de manobra fiscal aumentaria. Idem com a eleição em 2022 de uma alternativa de centro.
Arminio Fraga
Sócio da Gávea Investimentos, é presidente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).
Governo precisa sinalizar como vai parar de tomar mais empréstimos para pagar juros
Há um ano e meio escrevo esta coluna procurando variar, mas com frequência voltando a um tema: como viabilizar investimentos vultosos em áreas de alto retorno social, como saúde, educação, assistência social, para colocar o Brasil em um caminho de crescimento inclusivo, acelerado e sustentável e, ao mesmo tempo, e de forma complementar, como sanear as finanças públicas do país, fonte de incertezas paralisantes e de crises recorrentes.
Hoje, os dois objetivos estão ameaçados. O que fazer?
Sim, algumas reformas importantes foram feitas a partir de 2017. O quadro fiscal melhorou com a introdução do teto de gastos e com a aprovação da reforma da Previdência. No entanto, a despeito desses esforços, as fragilidades fiscais seguem nos assombrando, ameaçando a sustentação do teto, a única âncora fiscal que nos resta. Ademais, o clima geral de negócios piorou em face de sinalizações preocupantes do atual governo (que, por razões de espaço, não poderei detalhar aqui). Como se não bastasse, com a pandemia a situação social e fiscal se deteriorou ainda mais.
Após sete anos de déficits fiscais (primários) e mais de 10% de queda acumulada do PIB, a dívida pública se aproxima dos 100% do PIB. Mesmo respeitado o teto, o déficit primário só seria eliminado em cinco anos, o que não seria suficiente. A rolagem da dívida vem ficando cada vez mais difícil e o Tesouro está sendo obrigado a encurtar os prazos da dívida. As taxas juros de prazo mais longo exibem um elevado prêmio de risco. O dólar a R$ 5,60 grita o mesmo recado. Não se iludam com a bolsa. Estamos mal.
Claramente falta uma âncora fiscal mais robusta. Em bom português: o governo precisa sinalizar como vai parar de tomar mais empréstimos para pagar juros, pois essa bola de neve é insustentável. Chegou a hora de definir metas plurianuais para o saldo primário, que em quatro anos precisa passar de um déficit de 3% do PIB em 2019 para um superávit de pelo menos 3%, de forma a promover uma gradual queda da dívida pública. Essa segunda âncora fiscal nos serviu bem por 15 anos a partir de 1999 e precisa ser relançada.
Como chegar lá? Em vários círculos, inclusive no governo, prevalece a posição de que a tributação não pode aumentar. Penso diferente. Eliminar uma série de subsídios injustificáveis e reduzir a regressividade da tributação nos permitiria obter um espaço fiscal de pelo menos dois pontos do PIB. Segundo dados do Monitor Fiscal do FMI recém-publicado, uma recuperação modesta da economia brasileira ao longo de quatro anos melhoraria o saldo primário em cerca de dois pontos percentuais do PIB. Os dois pontos restantes, teriam que vir do lado dos gastos, com a ajuda de medidas como a PEC da flexibilização.
Muitos acreditam que essas medidas seriam recessivas. Ignoram o fator confiança. Ignoram que na raiz da profunda recessão que começou em 2014 estava um colapso fiscal de cerca de seis pontos percentuais do PIB. Relevam também 1999, quando ocorreu o inverso: fez-se um ajuste de quatro pontos e evitou-se um colapso da economia (à época a projeção de consenso no início do ano era de queda de 4% no PIB; acabou ligeiramente positivo).
Vejo tensões em torno da manutenção do teto no curto e no longo prazos. No curto prazo, há legítimas pressões para a prorrogação por mais algum tempo de gastos com assistência social. O teto é uma âncora. Embora boa em tese, como toda âncora, depende da resistência da corda, que no caso corre o sério risco de não aguentar a tensão.
Não recomendo a volta ao orçamento pré-Covid em apenas um ano. A economia vem se recuperando, mas segue fraca. Melhor seria deixar um pouco do ajuste para 2022, sem, no entanto, abandonar a meta de superávit primário de 3% do PIB para 2024.
Não ignoro que 2022 seja um ano eleitoral, o que tornaria pouco crível a promessa de qualquer aperto adicional naquele ano. Mas nas circunstâncias atuais é o caminho que nos resta, pois há sinais de que importantes reformas estruturais não parecem politicamente viáveis no curto prazo. E nem estamos falando dos estados, a maioria em crise, em alguns casos grave.
Num prazo mais longo, a aderência ao teto levaria ao final de seus sete anos a uma queda de cerca de três pontos percentuais do PIB no gasto federal (em função do gasto crescer menos que o PIB).
Quedas semelhantes terão que ocorrer também nos estados, onde gastos com folha de pagamentos e Previdência são insustentáveis.
Sem completar a reforma da Previdência e fazer uma reforma do RH do Estado que tenha impacto de curto prazo (inclusive sobre a qualidade dos serviços públicos), será impossível fazer o ajuste fiscal necessário e ,ao mesmo tempo, gerar recursos adicionais em maior escala para investir nas áreas sociais.
Mesmo sem as grandes reformas, seria possível com os ajustes propostos acima criar algum espaço para investimento, fazendo o teto crescer 1% ao ano acima da inflação. Dessa forma, ao final dos sete anos, o ajuste fiscal do governo como um todo ocorreria dividido em partes mais ou menos iguais entre cortes de gastos, aumentos de tributação e ganhos de receita com a recuperação. Pela ótica do gasto haveria uma redução do tamanho do Estado. Pela ótica da arrecadação haveria um aumento, voltando aos níveis de 2011.
Fazer as reformas para reforçar o SUS e a rede de assistência social seria a melhor opção. Não sendo possível, recomendo a opção acima.
Embora não recomendáveis, outras opções seriam possíveis. Apresento aqui os casos extremos: por um lado, com as reformas, usar as economias para reduzir a carga tributária; por outro, sem as reformas, seguir aumentando a carga para gastar mais ou para preservar privilégios. Essa última opção tem prevalecido há décadas no Brasil, com resultados modestos, a meu ver, bem modestos.
No âmbito da assistência social, seria sensato prorrogar modesta e temporariamente o auxílio emergencial, enquanto se aprofunda a discussão sobre o formato e a viabilidade de propostas mais permanentes. Importante notar que tanto a esquerda quanto o governo se recusam a considerar ajustes internos à rede de assistência, uma curiosa convergência. Fica claro aqui que a eliminação dos aspectos regressivos da tributação nos daria autoridade moral para uma discussão desarmada do
desenho da assistência social.
Claramente estamos diante de um caso extremo de cobertor curto. Não é possível ao mesmo tempo manter o teto atual, gastar mais com assistência social e SUS e não elevar a carga tributária. Não é possível esperar tanto tempo pelo ajuste fiscal. Se as reformas estruturais avançassem, a margem de manobra fiscal aumentaria. Idem com a eleição em 2022 de uma alternativa de centro.
Arminio Fraga
Sócio da Gávea Investimentos, é presidente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).
Na guerra da vacina e do general Maria Fofoca, bomba econômica está armada - VINICIUS TORRES FREIRE
FOLHA DE SP - 25/10
O custo da comida ainda não incomoda porque ainda se pagam auxílios, mas se a carestia continuar e o povo perder esse dinheirinho, haverá problemas
A diversão está garantida nessas próximas semanas em que o pavio da bomba econômica continuará queimando, sem que o país em geral se importe muito. A diversão maior, no sentido de desvio de atenção, virá da guerra da vacina que ainda nem existe, das decisões que o Supremo deve tomar sobre a obrigação de tomá-la e da aprovação da "vacina chinesa paulista" pela Anvisa e pelo governo.
Enquanto isso, o centrão e alas do governo se ocupam de disputar cadeiras ministeriais. Jair Bolsonaro trata de sua preocupação maior, livrar filhos da cadeia. Parlamentares articulam a eleição dos novos comandos do Congresso.
Até fins de novembro, as eleições nos EUA e nas cidades brasileiras vão dizer qual o valor de mercado eleitoral de extremistas e lunáticos em geral.
Eventual derrota de Donald Trump e de candidatos bolsonaristas nas cidades maiores pode aumentar o passivo político de Bolsonaro, embora esse débito talvez não seja cobrado tão cedo.
O risco maior para o presidente é a política econômica, ora em estado de animação suspensa.
Parte do centrão e gente do governo disputam a cadeira do general Luiz Ramos, ministro da Secretaria de Governo. Com o general Braga Netto, ministro da Casa Civil, Ramos levou Bolsonaro a criar uma coalizão bastante pelo menos para evitar um impeachment.
Foi chamado na sexta-feira de Maria Fofoca pelo ministro do Mau Ambiente, Ricardo Salles, desafeto dos militares.
Não importa muito a rixa que detonou o mexerico vulgaríssimo, portanto condizente com este governo. Interessa que isso explicitou movimentos para decapitar Ramos. Outra disputa de boquinha-mor é a do Ministério do Desenvolvimento, que Bolsonaro estuda recriar. Enquanto o país morre, queima e se endivida, é disso que tratam no Planalto.
A revista Época revelou que Bolsonaro recorre à Polícia Federal, a seus espiões e a outros recursos do governo para cuidar de rolo de filho. É disso, talvez um crime de responsabilidade, que trata o presidente.
Não se liga muito para os sinais de infecção na economia. Desde fins de agosto, as taxas de juros subiram degraus e lá no alto ficaram. O dólar não baixa da casa perigosa dos R$ 5,60, dado o rebu incompetente de um governo endividado.
A combinação de desvalorização da moeda e de auxílio emergencial levou os preços dos alimentos às maiores altas em mais de década (como em 2008, 2013 e 2016).
O custo da comida ainda não incomoda de modo generalizado, como de costume, porque ainda se pagam auxílios. Se a carestia continuar e o povo perder esse dinheirinho, haverá problemas.
Juros de longo prazo e dólar foram às alturas em grande parte porque o país não tem Orçamento para 2021, porque pode ser que tenha até dois (um outro "emergencial") e porque os donos do dinheiro temem furos no teto de gastos. Bolsonaro e a elite política empurraram a discussão dessa crise para depois de novembro.
As soluções para o impasse orçamentário não são politicamente boas. Bolsonaro pode decidir estourar o orçamento, o que vai dar em besteira feia. Pode ignorar o auxílio aos pobres, o que vai dar em fome feia. Pode arrochar outrem a fim de financiar alguma renda básica. Terá de enfrentar reformas, como a politicamente divisiva mudança tributária, sem o que o país vai ficar mais encalacrado (não se trata de dizer que vai ficar melhor ou pior para esta ou aquela gente, mas ficará encalacrado).
Mesmo que não se tomem as piores decisões, a retomada da economia ainda será incerta. Mas a gente se diverte com outros horrores.
Vinicius Torres Freire
Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).
domingo, outubro 04, 2020
Dias sombrios - FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
ESTADÃO - 03/10
É melhor que chova logo, antes que as trovoadas se tornem tempestades
Os dias andam sombrios. A pandemia tolda o horizonte e os corações. Cansa ficar em casa, isso para quem tem casa e pode trabalhar nela. Imagine-se para os mais desafortunados: é fácil dizer “fiquem em casa”, impossível é ficar nela quando não se a tem ou quando as pessoas vivem amontoadas, crianças, velhos e adultos, todos juntos. Pior, muitos de nós nos desacostumamos de “ver” as diferenças e as tomamos como naturais. Não são.
Eu moro num bairro de classe média alta, Higienópolis. Não preciso andar muito para ver quem não tem casa: numa escadaria que liga minha rua a outra, há uma pessoa que a habita. Sei até como se chama. Sei não porque eu tenha ido falar com ela, mas porque minha mulher se comove e de vez em quando leva algo para que coma. Assim, ilusoriamente, tenho a impressão de “solidariedade cumprida”, não por mim, mas por ela, que atua...
Mesmo quando vou trabalhar, na Rua Formosa esquina com o Vale do Anhangabaú, é fácil ver quanta gente “perambula” e à noite dorme na rua. Agora, com as obras de renovação, fazem-se chafarizes, que serão coloridos. Pergunto: será que os moradores de rua vão se banhar nas águas azuladas das fontes luminosas?
Não há que desesperar, contudo. Conheci Nova York e mesmo São Francisco em épocas passadas, quando as ruas também eram habitadas por pessoas “sem teto”. Elas não aparecem mais onde antes estavam e eram vistas. Terão melhorado de vida ou foram “enxotadas” para mais longe? Também em Paris havia os clochards. Que destino tiveram: o crescimento da economia absorveu-os ou simplesmente foram “deslocados”, pelo menos da vista dos mais bem situados? Crueldade, mas corriqueira.
É certo que o vírus da covid parece começar a ser vencido no Brasil, como os jornais disseram ainda na semana passada. Mas continuamos numa zona de risco. A incerteza perdura. Comportamentos responsáveis salvam vidas. Os países europeus que tinham controlado uma primeira onde se veem às voltas com novo surto de contaminações e hospitais no ponto de saturação. Qual de nós não perdeu uma pessoa querida? Essa dor não se esquece nem se apaga.
Mas, e depois? O desemprego não desaparece de repente. Para que a situação melhore não basta haver investimentos, é preciso melhorar as escolas, a formação das pessoas. Sem falar na saúde. E os governos precisarão ser mais ativos, olhando para as necessidades dos que mais requerem apoio.
É por isso que, mesmo teimando em ser otimista, vejo o horizonte carregado. Para retomar o crescimento, criar empregos (sem falar da distribuição de rendas) e manter a estabilidade política necessária para os investidores confiarem na economia é preciso algum descortino. Os que nos lideram foram eleitos, têm legitimidade, mas nem por isso têm sempre a lucidez necessária.
Não desejo nem posso precipitar o andamento do processo político. É melhor esperar que se escoe o tempo de duração constitucional dos mandatos e, principalmente, que apareçam “bons candidatos”. Para tal não é suficiente ser “bom de voto” e de palavras. Precisamos de líderes que entendam melhor o que acontece na produção e no mercado de trabalho, daqui e do mundo. Mais ainda que sejam capazes de falar à população, passar confiança e esperança em dias melhores. Voz e mensagem movem montanhas. Mobilizam energias e vontades.
Enquanto isso... Sei que não há fórmulas mágicas e acho necessário dar meios de vida aos que precisam. Sei que foi o Congresso, mais do que o Executivo, quem cuidou de dá-los. O presidente atual vai trombetear que fez o que os parlamentares fizeram; não importa, está feito e teria de o ser. Não tenhamos dúvidas, contudo: o nível do endividamento público, que já é elevado, vai piorar.
Compreendo as aflições do governo: quer logo um plano para aliviar o sofrimento popular e não quer cortar gastos. É difícil mesmo.
Mas assim não dá: ou bem se ajusta o orçamento aos tempos bicudos que vivemos ou, pior, voltarão a inflação e o endividamento, e, quem sabe, as taxas de juros de longo prazo continuarão a subir... Melhor nem falar.
Que teremos nuvens carregadas pela frente, isso parece certo. Mas é melhor que chova logo, antes que as trovoadas se transformem em tempestades.
O presidente parece querer, ao mesmo tempo, coisas que não são compatíveis. A única saída razoável para esse dilema é apostar numa reforma administrativa que valha para os atuais servidores, acompanhada de algumas medidas de desindexação de despesas. Juntamente com a reforma, o governo poderia mexer na regra do teto, para, ao mesmo tempo, abrir espaço orçamentário para o gasto e não provocar uma reação muito negativa do mercado.
Governar é escolher. O problema é que o presidente não quer arcar com o custo das escolhas possíveis. Melhor seria arcar com a perda de popularidade no momento, desde que mais adiante se veja o céu menos carregado. Para isso é preciso ser líder, de corpo e alma. Não basta pensar que se é “mito”.
SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA
É melhor que chova logo, antes que as trovoadas se tornem tempestades
Os dias andam sombrios. A pandemia tolda o horizonte e os corações. Cansa ficar em casa, isso para quem tem casa e pode trabalhar nela. Imagine-se para os mais desafortunados: é fácil dizer “fiquem em casa”, impossível é ficar nela quando não se a tem ou quando as pessoas vivem amontoadas, crianças, velhos e adultos, todos juntos. Pior, muitos de nós nos desacostumamos de “ver” as diferenças e as tomamos como naturais. Não são.
Eu moro num bairro de classe média alta, Higienópolis. Não preciso andar muito para ver quem não tem casa: numa escadaria que liga minha rua a outra, há uma pessoa que a habita. Sei até como se chama. Sei não porque eu tenha ido falar com ela, mas porque minha mulher se comove e de vez em quando leva algo para que coma. Assim, ilusoriamente, tenho a impressão de “solidariedade cumprida”, não por mim, mas por ela, que atua...
Mesmo quando vou trabalhar, na Rua Formosa esquina com o Vale do Anhangabaú, é fácil ver quanta gente “perambula” e à noite dorme na rua. Agora, com as obras de renovação, fazem-se chafarizes, que serão coloridos. Pergunto: será que os moradores de rua vão se banhar nas águas azuladas das fontes luminosas?
Não há que desesperar, contudo. Conheci Nova York e mesmo São Francisco em épocas passadas, quando as ruas também eram habitadas por pessoas “sem teto”. Elas não aparecem mais onde antes estavam e eram vistas. Terão melhorado de vida ou foram “enxotadas” para mais longe? Também em Paris havia os clochards. Que destino tiveram: o crescimento da economia absorveu-os ou simplesmente foram “deslocados”, pelo menos da vista dos mais bem situados? Crueldade, mas corriqueira.
É certo que o vírus da covid parece começar a ser vencido no Brasil, como os jornais disseram ainda na semana passada. Mas continuamos numa zona de risco. A incerteza perdura. Comportamentos responsáveis salvam vidas. Os países europeus que tinham controlado uma primeira onde se veem às voltas com novo surto de contaminações e hospitais no ponto de saturação. Qual de nós não perdeu uma pessoa querida? Essa dor não se esquece nem se apaga.
Mas, e depois? O desemprego não desaparece de repente. Para que a situação melhore não basta haver investimentos, é preciso melhorar as escolas, a formação das pessoas. Sem falar na saúde. E os governos precisarão ser mais ativos, olhando para as necessidades dos que mais requerem apoio.
É por isso que, mesmo teimando em ser otimista, vejo o horizonte carregado. Para retomar o crescimento, criar empregos (sem falar da distribuição de rendas) e manter a estabilidade política necessária para os investidores confiarem na economia é preciso algum descortino. Os que nos lideram foram eleitos, têm legitimidade, mas nem por isso têm sempre a lucidez necessária.
Não desejo nem posso precipitar o andamento do processo político. É melhor esperar que se escoe o tempo de duração constitucional dos mandatos e, principalmente, que apareçam “bons candidatos”. Para tal não é suficiente ser “bom de voto” e de palavras. Precisamos de líderes que entendam melhor o que acontece na produção e no mercado de trabalho, daqui e do mundo. Mais ainda que sejam capazes de falar à população, passar confiança e esperança em dias melhores. Voz e mensagem movem montanhas. Mobilizam energias e vontades.
Enquanto isso... Sei que não há fórmulas mágicas e acho necessário dar meios de vida aos que precisam. Sei que foi o Congresso, mais do que o Executivo, quem cuidou de dá-los. O presidente atual vai trombetear que fez o que os parlamentares fizeram; não importa, está feito e teria de o ser. Não tenhamos dúvidas, contudo: o nível do endividamento público, que já é elevado, vai piorar.
Compreendo as aflições do governo: quer logo um plano para aliviar o sofrimento popular e não quer cortar gastos. É difícil mesmo.
Mas assim não dá: ou bem se ajusta o orçamento aos tempos bicudos que vivemos ou, pior, voltarão a inflação e o endividamento, e, quem sabe, as taxas de juros de longo prazo continuarão a subir... Melhor nem falar.
Que teremos nuvens carregadas pela frente, isso parece certo. Mas é melhor que chova logo, antes que as trovoadas se transformem em tempestades.
O presidente parece querer, ao mesmo tempo, coisas que não são compatíveis. A única saída razoável para esse dilema é apostar numa reforma administrativa que valha para os atuais servidores, acompanhada de algumas medidas de desindexação de despesas. Juntamente com a reforma, o governo poderia mexer na regra do teto, para, ao mesmo tempo, abrir espaço orçamentário para o gasto e não provocar uma reação muito negativa do mercado.
Governar é escolher. O problema é que o presidente não quer arcar com o custo das escolhas possíveis. Melhor seria arcar com a perda de popularidade no momento, desde que mais adiante se veja o céu menos carregado. Para isso é preciso ser líder, de corpo e alma. Não basta pensar que se é “mito”.
SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA
sábado, setembro 26, 2020
A inflação do espaguete à carbonara - MARCOS NOGUEIRA
FOLHA DE SP - 26/09
Um montão se falou sobre os preços do arroz e do óleo de soja, mas… e a inflação da carbonara?
O espaguete à carbonara, na última década, se tornou um clichê da classe média gourmetizada brasileira. Todo playboy que vê “MasterChef” comprava uma faca da grife, uma coifa top para o fogão e se metia a preparar a tal da carbonara.
Ela nasceu como comida de pobre, na Itália: leva macarrão, ovos, uma quantidade miserável de carne de porco e queijo ralado. Como é um inferno acertar a textura dos ovos –ora eles passam do ponto, ora ficam crus–, a receita se tornou um desafio para os cozinheiros de fim de semana.
Vejamos quanto saía a lista de compras, ontem (25), para uma carbonara autêntica.
A melhor massa seca italiana é a de Gragnano, perto de Nápoles. Dentre os produtores locais, a marca Afeltra tem reputação especialmente positiva. Na importadora Ravin, um pacote de 500 gramas de espaguete Afeltra saía por R$ 32.
Ovos são baratos, né? Melhor comprar orgânicos, pois o minimalismo da carbonara exige ingredientes de qualidade. Na Casa Santa Luzia, supermercado favorito dos foodies, meia dúzia de ovos caipiras orgânicos da marca Label Rouge custava, ontem, R$ 12,70.
Para fazer como os romanos, a carbonara deve levar guanciale (papada suína curada com sal e especiarias) e pecorino romano (queijo duro de leite de ovelha).
A Del Veneto, charcutaria de São José dos Campos, vendia a peça de 600 gramas de guanciale a R$ 64,90. No Carrefour, supermercado mais mainstream do mundo, o preço de uma fatia de 150 gramas do pecorino Pinna, importado da Itália, era R$ 45,49.
Na ponta do lápis: uma macarronada de R$ 155,09.
Ain, mas e aqueles que só comem farinha? E os pobres que nem sabem o que é Itália?
Calma, tigrada! Daqui a pouco eu volto a vestir a capa de cruzado da justiça social. Hoje vou escrever sobre gastronomia, assunto fútil por natureza –mas foi para isso que o jornal me contratou.
A inflação dos alimentos empurra a classe média de volta para os anos 1980, quando apenas os ricos desfrutavam de queijos e vinhos importados, entre outros acepipes.
A explosão da cotação do dólar foi finalmente repassada por inteiro na gôndola do mercado. Artigos compráveis no ano passado viraram sonho de consumo. Para arrematar a lambança, os importados puxaram para cima o preço dos similares nacionais.
Um montão se falou sobre os preços do arroz e do óleo de soja, mas… e a inflação da carbonara?
O espaguete à carbonara, na última década, se tornou um clichê da classe média gourmetizada brasileira. Todo playboy que vê “MasterChef” comprava uma faca da grife, uma coifa top para o fogão e se metia a preparar a tal da carbonara.
Ela nasceu como comida de pobre, na Itália: leva macarrão, ovos, uma quantidade miserável de carne de porco e queijo ralado. Como é um inferno acertar a textura dos ovos –ora eles passam do ponto, ora ficam crus–, a receita se tornou um desafio para os cozinheiros de fim de semana.
Vejamos quanto saía a lista de compras, ontem (25), para uma carbonara autêntica.
A melhor massa seca italiana é a de Gragnano, perto de Nápoles. Dentre os produtores locais, a marca Afeltra tem reputação especialmente positiva. Na importadora Ravin, um pacote de 500 gramas de espaguete Afeltra saía por R$ 32.
Ovos são baratos, né? Melhor comprar orgânicos, pois o minimalismo da carbonara exige ingredientes de qualidade. Na Casa Santa Luzia, supermercado favorito dos foodies, meia dúzia de ovos caipiras orgânicos da marca Label Rouge custava, ontem, R$ 12,70.
Para fazer como os romanos, a carbonara deve levar guanciale (papada suína curada com sal e especiarias) e pecorino romano (queijo duro de leite de ovelha).
A Del Veneto, charcutaria de São José dos Campos, vendia a peça de 600 gramas de guanciale a R$ 64,90. No Carrefour, supermercado mais mainstream do mundo, o preço de uma fatia de 150 gramas do pecorino Pinna, importado da Itália, era R$ 45,49.
Na ponta do lápis: uma macarronada de R$ 155,09.
Ain, mas e aqueles que só comem farinha? E os pobres que nem sabem o que é Itália?
Calma, tigrada! Daqui a pouco eu volto a vestir a capa de cruzado da justiça social. Hoje vou escrever sobre gastronomia, assunto fútil por natureza –mas foi para isso que o jornal me contratou.
A inflação dos alimentos empurra a classe média de volta para os anos 1980, quando apenas os ricos desfrutavam de queijos e vinhos importados, entre outros acepipes.
A explosão da cotação do dólar foi finalmente repassada por inteiro na gôndola do mercado. Artigos compráveis no ano passado viraram sonho de consumo. Para arrematar a lambança, os importados puxaram para cima o preço dos similares nacionais.
Bacon vendido a R$ 106 o quilo no site do Pão de Açúcar
Digamos que a gente dê um downgrade naquela carbonara: o quilo do bacon Sadia, no Pão de Açúcar, custava ontem R$ 106. Qualquer parmesão ordinário está saindo por 80 contos o quilo.
Os restaurantes, sufocados pela pandemia, ainda entubam o repasse para não perder o que sobrou da clientela. A mídia especializada em gastronomia –não a chamemos de jornalismo– ignora o monstro, pois subsiste de cortesias das fontes.
Só que a conta não fecha, e a bolha fatalmente vai estourar.
Do jeito que a coisa vai, a classe média terá que almoçar e jantar arroz puro… não, espera!
Digamos que a gente dê um downgrade naquela carbonara: o quilo do bacon Sadia, no Pão de Açúcar, custava ontem R$ 106. Qualquer parmesão ordinário está saindo por 80 contos o quilo.
Os restaurantes, sufocados pela pandemia, ainda entubam o repasse para não perder o que sobrou da clientela. A mídia especializada em gastronomia –não a chamemos de jornalismo– ignora o monstro, pois subsiste de cortesias das fontes.
Só que a conta não fecha, e a bolha fatalmente vai estourar.
Do jeito que a coisa vai, a classe média terá que almoçar e jantar arroz puro… não, espera!
quinta-feira, setembro 24, 2020
AGU virou uma tribo 92% composta de caciques - JOSIAS DE SOUZA
UOL -24/09
A Advocacia-Geral da União pulverizou o artigo da Lei Complementar 173 que congelava os salários do funcionalismo até o final de 2021. Fez isso ao conceder promoções em massa aos advogados do seu quadro. Por antiguidade ou merecimento, foram guindados ao topo da carreira 606 advogados.
Com esse mimo coletivo, a corporação tornou-se uma tribo sui generis, 92% feita de caciques. Dos 3.738 advogados dos quadros da AGU, 3.489 atingiram o ápice da carreira, com contracheque mensal de R$ 27,3 mil.
Alega-se que está tudo dentro da lei. Subverte-se até o brocardo latino. Nada de dura lex, sed lex (a lei é dura, mas é a lei). Vigora o dura lex, sed látex (a lei é dura, mas estica). A AGU abriu uma porteira por onde passarão boiadas.
Em termos estritamente fiscais, o bonde da alegria da AGU é um despautério. Do ponto de vista administrativo, o excesso de pajés é um convite à acomodação. Sob a ótica dos brasileiros que pagam a conta é um tapa na cara.
A Advocacia-Geral da União pulverizou o artigo da Lei Complementar 173 que congelava os salários do funcionalismo até o final de 2021. Fez isso ao conceder promoções em massa aos advogados do seu quadro. Por antiguidade ou merecimento, foram guindados ao topo da carreira 606 advogados.
Com esse mimo coletivo, a corporação tornou-se uma tribo sui generis, 92% feita de caciques. Dos 3.738 advogados dos quadros da AGU, 3.489 atingiram o ápice da carreira, com contracheque mensal de R$ 27,3 mil.
Alega-se que está tudo dentro da lei. Subverte-se até o brocardo latino. Nada de dura lex, sed lex (a lei é dura, mas é a lei). Vigora o dura lex, sed látex (a lei é dura, mas estica). A AGU abriu uma porteira por onde passarão boiadas.
Em termos estritamente fiscais, o bonde da alegria da AGU é um despautério. Do ponto de vista administrativo, o excesso de pajés é um convite à acomodação. Sob a ótica dos brasileiros que pagam a conta é um tapa na cara.
De quem é a culpa - WILLIAM WAACK
ESTADÃO - 24/09
A situação internacional que o Brasil enfrenta em relação às políticas ambientais de Jair Bolsonaro é séria e perigosa. Vamos olhar o que acontece do ponto de vista da comunicação, deixando para especialistas dos vários outros setores o mérito de questões específicas.
Existe desinformação no que se diz e se publica sobre o que acontece na Amazônia e no Pantanal? Sim. Existem interesses de competidores comerciais incomodados com a capacidade brasileira de produzir grãos e proteínas? Sim. Existem organizações (partidos, ONGs, instituições religiosas) com agenda político-ideológica atacando um governo (o brasileiro) por considerá-lo seu adversário? Sim.
Nada disso é novidade nem começou com Bolsonaro. Mas o governo está sabendo enfrentar essa batalha da comunicação? Não. Faltam aos que tomam esse tipo de decisões em Brasília dois elementos fundamentais que ajudam a entender a natureza deste que é um dos maiores desastres de comunicação em escala internacional.
O primeiro elemento é a falta de compreensão do fenômeno lá fora, mas não só. Por incrível que pareça, o governo brasileiro não entendeu a abrangência, a profundidade e o peso da questão climática e ambiental na sua escala planetária. Se isto era, nos idos da Rio 92 (quando o Brasil se preparou muito bem para o que viria), uma agenda de instituições multilaterais e de governos, empurrados em parte por ONGs, hoje a questão ambiental molda nosso “Zeitgeist”, o espírito de uma época, e condiciona a percepção da realidade de gerações inteiras de atores políticos, instituições, governos, consumidores, empresários, grandes corporações no mundo inteiro.
Há um notável apego de ocupantes de gabinetes no Planalto, especialmente generais estrelados, em enxergar no tsunami negativo lá fora em relação ao Brasil articulações contra a nossa soberania em geral e nosso governo em particular – um esquema mental diretamente transferido dos anos setenta para uma realidade muito mais complexa do que conspirações geopolíticas para negar ao Brasil seu direito manifesto de ser uma grande potência. Em outras palavras, embarcaram na guerra de ontem.
O segundo elemento que ajuda a entender o desastre de comunicação é o apego a táticas político-eleitorais – como a negação de fatos, o “deixa que eu chuto”, o xingamento do adversário, a efervescência nas redes sociais – que funcionam no ambiente polarizado de eleições. Mas que tem se mostrado inócuas em escala internacional. O “enfrentamento” duro do adversário, real ou percebido, até aqui não avançou os interesses do Brasil.
Ao contrário, se há algo que o “altivo” discurso de Bolsonaro evidencia quanto à “estratégia” de lidar com a crise internacional de imagem brasileira é a de que ele não tem nenhuma – além de satisfazer seus seguidores domésticos. E não estamos falando de danos subjetivos ou de “percepções” deste ou daquele dirigente ou personagem do debate ambiente versus economia (totalmente superado até na China): estamos falando de danos concretos à capacidade do Brasil de competir nos mercados que interessam.
O extraordinário de tudo isso é que o Brasil tem, de fato, lições a dar em matéria de meio ambiente e de como aumentar a produção de grãos e proteínas de forma sustentável e socialmente responsável. Tem lições a dar em matéria de matrizes energéticas. Dispõe de sólida tradição diplomática (hoje abandonada) na busca de decisões por consenso e cooperação multilaterais. E uma imagem (ainda que cada vez mais distante da realidade social) de um país aberto, simpático, tolerante e bonito.
São ativos desprezados na batalha da comunicação. Enfrentar o que estamos enfrentando lá fora em termos de imagem não é culpa dos outros, dos insidiosos adversários. É nossa, mesmo.
*JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN
quinta-feira, agosto 13, 2020
Bolsonaro é o Brasil de sempre - WILLIAM WAACK
O Estado de S.Paulo - 13/08
A debandada da equipe econômica sinaliza a perda de ênfase em reformas
A derrota do projeto eleitoral de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes para a economia brasileira é um fato que se pode aplaudir ou lamentar, mas é incontestável. Definido em linhas gerais como uma ampla e profunda transformação do Estado brasileiro, e a consequente “libertação” da economia para gerar aumento de produtividade e crescimento, era um conjunto de intenções aplaudidas por boa parte da sociedade, antes de ser um plano.
Ficou até aqui muito aquém do pretendido (de novo, pode-se saudar ou lamentar essa constatação) e agora não há mais condições políticas, tempo e, ao que parece, intenção de realizá-lo. Grosso modo, a derrota deve ser atribuída a dois grandes fatores. O primeiro é o fato de que não havia uma estratégia, entendida como adequação dos meios (sobretudo políticos) aos fins (reforma do Estado) dentro de um período de tempo. Perdeu-se tempo precioso elaborando o que seria “nova” política, além da dedicação de Bolsonaro ao que se chama na linguagem militar de “teatros secundários”.
Como consequência, para o “projeto” acabou sendo ainda mais violenta a devastação trazida pelo segundo grande fator: o imponderável da pandemia da covid-19, que destruiu qualquer outro cálculo que não fosse o da sobrevivência política. A brutal crise de saúde pública agravou os males que já existiam: escancarou a incompetência do governo central, aprofundou a miséria, a crise fiscal e abalou uma economia que ensaiava uma recuperação apenas tímida, presa aos limites estruturais de sempre.
Para todos os efeitos o presidente é hoje um personagem político diminuído em seus poderes e com escassa capacidade de liderança, obcecado com a situação pessoal, gradativamente abandonado pelas elites econômicas que apostaram nele e agora fascinado pelas recompensas político-eleitoreiras trazidas pelo assistencialismo emergencial. Como se antecipava, a economia definiria os rumos de Bolsonaro, que agora precisa gastar o que não tem.
Surge com razoável nitidez o caminho após a derrota do “projeto”, e é bem a cara do Brasil “velho” (aquele que nunca deixou de ser). A premente ampla reforma tributária esbarra na incapacidade política de se proceder à eliminação de distorções tais como renúncias fiscais que atendem a vários interesses setoriais antagônicos, além da dificuldade política de coordenar os vários entes da Federação. O Brasilzão de sempre, esse que continua aí, indica que o caminho do menor esforço político nos levará a mais e não menos impostos.
A pretendida reforma do Estado dependia de uma reforma administrativa que atacasse gastos públicos – aumentá-los muito além da capacidade de financiá-los foi um claro consenso da nossa sociedade, como assinalou o ex-secretário do Tesouro Mansueto Almeida. Reforma que sumiu no horizonte. Há um compromisso verbal com a manutenção da âncora fiscal além do período de emergência, mas as nuvens da política sugerem que esse período será estendido para o ano que vem.
Furar o teto de gastos é uma contingência política criada no plano imediato pela convergência entre os “desenvolvimentistas” no Planalto, entre eles os saudosistas do período militar (que convenientemente se esquecem de como aquilo acabou), e a massa do Centrão que enxerga uma oportunidade nos cofres públicos sem fundos. Juros baixos e inflação bem comportada permitirão que essa “estratégia” se mantenha por um tempo razoável, que é o tempo para se programar para uma reeleição. As ambiciosas privatizações e a propalada diminuição do Estado ficam para depois.
Bolsonaro deve ser ajudado por um conjunto de concessões e obras de infraestrutura que movimentarão setores como construção e atrairão investidores, ainda que preocupados com a eterna insegurança jurídica que paira como sempre sobre os negócios. Vai ser indiretamente ajudado também pelos setores modernos do agro negócio que desprezam como o governo fala sobre questões ambientais, mas acham que bem ou mal sobreviverão às pressões internacionais, e seguirão crescendo.
Com a perspectiva real de vacinas que ajudem a controlar o vírus, a tragédia dos milhares e milhares de mortos vagarosamente se acomoda na psicologia coletiva. No jeitão do Brasil de sempre, aquele que Bolsonaro prometeu mudar, sonhando com o que poderia vir a ser, sem conseguir deixar de ser o que é.
A debandada da equipe econômica sinaliza a perda de ênfase em reformas
A derrota do projeto eleitoral de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes para a economia brasileira é um fato que se pode aplaudir ou lamentar, mas é incontestável. Definido em linhas gerais como uma ampla e profunda transformação do Estado brasileiro, e a consequente “libertação” da economia para gerar aumento de produtividade e crescimento, era um conjunto de intenções aplaudidas por boa parte da sociedade, antes de ser um plano.
Ficou até aqui muito aquém do pretendido (de novo, pode-se saudar ou lamentar essa constatação) e agora não há mais condições políticas, tempo e, ao que parece, intenção de realizá-lo. Grosso modo, a derrota deve ser atribuída a dois grandes fatores. O primeiro é o fato de que não havia uma estratégia, entendida como adequação dos meios (sobretudo políticos) aos fins (reforma do Estado) dentro de um período de tempo. Perdeu-se tempo precioso elaborando o que seria “nova” política, além da dedicação de Bolsonaro ao que se chama na linguagem militar de “teatros secundários”.
Como consequência, para o “projeto” acabou sendo ainda mais violenta a devastação trazida pelo segundo grande fator: o imponderável da pandemia da covid-19, que destruiu qualquer outro cálculo que não fosse o da sobrevivência política. A brutal crise de saúde pública agravou os males que já existiam: escancarou a incompetência do governo central, aprofundou a miséria, a crise fiscal e abalou uma economia que ensaiava uma recuperação apenas tímida, presa aos limites estruturais de sempre.
Para todos os efeitos o presidente é hoje um personagem político diminuído em seus poderes e com escassa capacidade de liderança, obcecado com a situação pessoal, gradativamente abandonado pelas elites econômicas que apostaram nele e agora fascinado pelas recompensas político-eleitoreiras trazidas pelo assistencialismo emergencial. Como se antecipava, a economia definiria os rumos de Bolsonaro, que agora precisa gastar o que não tem.
Surge com razoável nitidez o caminho após a derrota do “projeto”, e é bem a cara do Brasil “velho” (aquele que nunca deixou de ser). A premente ampla reforma tributária esbarra na incapacidade política de se proceder à eliminação de distorções tais como renúncias fiscais que atendem a vários interesses setoriais antagônicos, além da dificuldade política de coordenar os vários entes da Federação. O Brasilzão de sempre, esse que continua aí, indica que o caminho do menor esforço político nos levará a mais e não menos impostos.
A pretendida reforma do Estado dependia de uma reforma administrativa que atacasse gastos públicos – aumentá-los muito além da capacidade de financiá-los foi um claro consenso da nossa sociedade, como assinalou o ex-secretário do Tesouro Mansueto Almeida. Reforma que sumiu no horizonte. Há um compromisso verbal com a manutenção da âncora fiscal além do período de emergência, mas as nuvens da política sugerem que esse período será estendido para o ano que vem.
Furar o teto de gastos é uma contingência política criada no plano imediato pela convergência entre os “desenvolvimentistas” no Planalto, entre eles os saudosistas do período militar (que convenientemente se esquecem de como aquilo acabou), e a massa do Centrão que enxerga uma oportunidade nos cofres públicos sem fundos. Juros baixos e inflação bem comportada permitirão que essa “estratégia” se mantenha por um tempo razoável, que é o tempo para se programar para uma reeleição. As ambiciosas privatizações e a propalada diminuição do Estado ficam para depois.
Bolsonaro deve ser ajudado por um conjunto de concessões e obras de infraestrutura que movimentarão setores como construção e atrairão investidores, ainda que preocupados com a eterna insegurança jurídica que paira como sempre sobre os negócios. Vai ser indiretamente ajudado também pelos setores modernos do agro negócio que desprezam como o governo fala sobre questões ambientais, mas acham que bem ou mal sobreviverão às pressões internacionais, e seguirão crescendo.
Com a perspectiva real de vacinas que ajudem a controlar o vírus, a tragédia dos milhares e milhares de mortos vagarosamente se acomoda na psicologia coletiva. No jeitão do Brasil de sempre, aquele que Bolsonaro prometeu mudar, sonhando com o que poderia vir a ser, sem conseguir deixar de ser o que é.