quarta-feira, junho 26, 2019

A culpa é da imprensa - GUSTAVO NOGY

GAZETA DO POVO - PR - 26/06


Lula é eleito uma vez, duas vezes. Rifa a democracia, loteia o Congresso, vende o Brasil às empreiteiras. A culpa é dele? Não, é da imprensa. Que não denunciou. Que denunciou demais. Que ajudou o governo. Que atrapalhou o governo. O jornalista gringo noticia os hábitos etílicos do então presidente: fora com o jornalista, não com o presidente. Antes um presidente ébrio que um jornalista sóbrio. Em seguida, como um desastrado Geppetto, Lula dá vida a Dilma. Dilma é eleita, reeleita (ê Brasil) e termina o desastre começado pelo criador. A culpa é da imprensa. Aécio Neves perdeu? Perdeu por causa da imprensa. Lula livre, Lula preso? Tudo depende da imprensa, sensacionalista aqui, cúmplice ali.

Aliás, é da imprensa a responsabilidade pela ascensão dos militares, em 64, e também dela é a responsabilidade pela ascensão do comunismo. Na dúvida, na dor de cabeça, na dor de barriga, na dor de burrice, a culpa é da Globo. Ou da Folha. Ou da Veja. Ou, agora, da Gazeta do Povo, que contrata gentinha como eu para escrever e opinar.

O mundo gira, o Brasil gira em falso, Jair Bolsonaro é eleito. Tropeça nas próprias palavras, fala o que não pode, informa o que não sabe, ninguém logra acompanhar os rumos da prosa de seu governo e, por óbvio, elementar, meu caro Watson, a culpa só pode ser da imprensa. Que não entende nada ou quer entender mais do que deve. Ele antecipa demissões, suspende demissões, confirma demissões: culpa de vocês sabem quem.

Jean Wyllys, enquanto faz política online do exílio europeu, cheio daquela consciência moral que só ele acredita ter, acusa a jornalista Miriam Leitão de ser uma das responsáveis pela vitória do Bolsonaro. A culpa é dela, porque não criticou o bastante. Dela e de seus colegas. O eleitor que votou porque quis não teve nada com isso. Quem votou no próprio Jean Wyllys também não teve nada com isso. A culpa é da Globo. Do BBB.

Sérgio Moro, quando juiz, divulga áudios entre Dilma e Lula: a culpa é da imprensa, que gosta de espetáculo. Mais tarde, alguém divulgará animadas conversas entre juiz e promotor, e eles não gostam nadinha. A audiência pede o quê? Pede, manda, exige que deportemos o jornalista que fez isso, porque o erro é só de quem publicou a conversa, não de quem conversou.

E a reforma da Previdência, por que demora tanto para ser aprovada? Demora porque a imprensa atrapalha, ora essa, por que mais seria? A imprensa reverbera as colisões entre Executivo, Legislativo e Judiciário, dá atenção às vaidades de Bolsonaro, Alcolumbre e Maia, questiona a futurologia de Guedes, e isso não pode acontecer numa democracia. Numa democracia, senhoras e senhores, a inocência do povo tem de ser preservada como a pureza da virgem.

O jornalista de carreira, matusalém de redação, ganhando a vida desde que Johannes Gutenberg adaptou a prensa, quando quer criticar os desafetos ideológicos, contra ou a favor do governo, faz o quê? Acusa os desafetos de se submeter à mesma imprensa para a qual, na qual, sempre trabalhou. Ele é o superego num mundo de ids e de egos. Quando a chapa esquenta, fica branca.

Também o criador e propagador de fake news responsabiliza a imprensa pelas fake news criadas e propagadas por ele. A imprensa alternativa culpa a imprensa mainstream. O empresário com jeito de vilão do James Bond pede a demissão da jornalista. O leitor e eleitor pede a cabeça do colunista. O defensor do Lula e o defensor do Bolsonaro, o âncora demitido e o menino recém contratado – todos, todos sabem que o único, o maior, o verdadeiro problema do país é a imprensa. Vamos acabar com a imprensa antes que seja tarde, de uma vez por todas.

O resto?

Com o resto está tudo certo.

O desequilíbrio na balança da Justiça - ANTONIO CLÁUDIO MARIZ DE OLIVEIRA

O Estado de S.Paulo - 26/06

Quando o juiz é parcial, o processo se torna uma farsa montada para atender à exigência legal



A advocacia está passando por um período marcado pelo desrespeito à profissão, pelo não reconhecimento de sua imprescindibilidade e pela incompreensão do seu papel. Eu diria estar havendo uma preocupante crise de identidade da profissão em face da sociedade e das próprias instituições do Estado.

Os advogados estão sendo vistos, na área penal, como colaboradores do crime, quase cúmplices ou coautores. Quem assim pensa ignora, ou finge ignorar, que nós não defendemos o crime, mas, sim, somos porta-vozes dos direitos e das garantias constitucionais e legais dos acusados.

Zelamos pelo cumprimento dos princípios que, insertos na Constituição federal, emprestam legitimidade à atuação punitiva do Estado e impedem que este venha a cometer excessos que possam atingir a dignidade da pessoa levada a julgamento.

Esses direitos e garantias são por nós defendidos não só em nome dos acusados, mas, sim, de qualquer cidadão. Não se deve esquecer que o crime é um fenômeno social, razão pela qual ninguém em sã consciência poderá afirmar que jamais cometerá um delito ou se verá acusado injustamente de tê-lo praticado. Na verdade, a realidade do sistema penal está repleta de exemplos de inocentes que se sentam nos bancos dos réus. Ou, ainda, há uma infinidade dos que, embora culpados, se tornam alvo de acusações mais graves do que a sua efetiva responsabilidade.

Em quaisquer dessas situações, todos os cidadãos brasileiros – repita-se – poderão ser protagonistas da cena judiciária. Pois bem, nesta hora, precisarão ser defendidos e o serão por nós, advogados, os únicos habilitados a exercer a defesa técnica perante os tribunais. E saibam: sem defesa, não haverá possibilidade da propositura de ação penal nem da instauração válida do respectivo processo. E o advogado formulará a defesa com base nos fatos e no rol daqueles referidos princípios constitucionais, necessários para que seja realizada a justiça no caso concreto. Dentre esses princípios devem ser realçados o da ampla defesa, o do contraditório, o do devido processo legal, o da igualdade de tratamento entre as partes e o da imparcialidade dos juízes.

Saliente-se, ainda, que os advogados são imprescindíveis não só na esfera penal. Quaisquer conflitos de interesses na área cível, envolvendo direito de família, direito de propriedade, societário, tributário e todos os demais ramos do Direito, só podem ser resolvidos pelo Poder Judiciário, que, sendo inerte, é provocado pelo advogado que exerce a capacidade postulatória, com exclusividade, em nome de terceiro. Portanto, ele só é movimentado quando por nós acionado.

Pois bem, essas breves considerações foram feitas em face de recente revelação de manifestações de um juiz e de um procurador sobre suas atividades. O advogado, essencial a todo e qualquer processo, foi absolutamente esquecido, desprezado, como figura menor da relação processual. Até para simular alguma legitimidade, os diálogos ou mensagens poderiam ter mencionado a outra parte ou o seu advogado. Não, nenhuma consideração, nem para criar um simulacro de legalidade a uma chocante situação de ilegalidade.

Lamentavelmente, para alguns membros do Judiciário o advogado atrapalha. Estes juízes nos consideram desnecessários. Apenas nos toleram porque a Constituição exige a nossa presença para a administração da justiça.

No entanto a advocacia está, mesmo, em crise, conhecida e lamentável crise. Saberemos superá-la, como outras já foram superadas, segundo nos mostra a história da profissão. Mais grave, porém, é a crise de legitimidade que atinge o sistema judiciário e o próprio Estado Democrático de Direito, agora posta à luz do dia.

A revelação das mensagens trocadas entre um magistrado e um procurador federal mostra-nos que de uma só penada a Constituição federal foi rasgada e o sistema de proteção dos cidadãos investigados ou processados foi violentado.

Nós, advogados, e as centenas de homens e mulheres que se transformaram em acusados nos últimos anos já intuíamos e fortemente desconfiávamos de que se instalara na Justiça Penal brasileira uma relação promíscua entre alguns magistrados e alguns membros do Ministério Público. Promiscuidade no sentido da mistura, da confusão, da intromissão e da desordem. Infelizmente, passamos a conviver com autoridades que se arvoram em guardiães da sociedade e combatentes messiânicos do crime. Para desempenharem a sua missão, entendem que os fins justificam os meios e se afastam do ordenamento jurídico e da promessa inicial que fizeram de respeito à Constituição e às leis do País.

O exemplo recentemente vindo a público bem ilustra essa situação, que contém aberrante ilegalidade.

Antes de explicar o assombroso atentado às normas e aos princípios penais, presto um esclarecimento. A atividade jurisdicional é exercida por juiz, advogado e membro do Ministério Público. Constituem uma pirâmide, na qual o juiz ocupa o ápice e os outros personagens estão na sua base, rigorosamente no mesmo nível. O juiz deve manter equidistância das partes, bem como tratá-las de forma igualitária. Dessa forma estará mantendo o requisito essencial para o correto desempenho de suas funções: a sua imparcialidade.

Agora esclareço a anomalia acima referida. Quando as normas que regem o relacionamento dos componentes da pirâmide são quebradas, instalam-se a confusão, a intromissão indevida, a desordem, enfim, a promiscuidade que conspurca a imparcialidade do juiz.

Ao aconselhar, sugerir estratégias e medidas a serem adotadas, o magistrado demonstra tendência favorável a uma das partes. Dá sinais de já estar com a sua convicção formada. Em tal hipótese, as provas e os debates processuais serão inúteis. O processo se transforma numa farsa montada para atender às exigências legais, nada mais.

 Antônio Cláudio Mariz de Oliveira é advogado criminalista

Libra é ofensiva tecnológica contra banco - HELIO BELTRÃO

FOLHA DE SP - 26/06

Próxima geração possivelmente não terá contas em banco como hoje concebemos


Um consórcio sem fins lucrativos baseado na Suíça acaba de anunciar uma iniciativa revolucionária. Administrará a partir de 2020 a libra, a primeira moeda mundial desde o padrão-ouro do século 19.

O consórcio, em crescimento, é hoje formado por 28 empresas, tais como Facebook, Uber, Mercado Pago, Farfetch, eBay e Visa, entre outras, que possuem mais de 2,5 bilhões de usuários no mundo.

Uma transferência de dinheiro se tornará simples e imediata como o envio de uma foto por WhatsApp, inclusive para contraparte sem conta em banco. A libra servirá para compras do dia a dia, bem como para transferência instantânea a qualquer pessoa ou negócio, onde estiver. Sua lógica é a de um “token”, similar às pulseiras mágicas da Disney, nas quais se depositam dólares para gastos no parque.
Calibra, carteira virtual da Libra, criptomoeda do Facebook - Divulgação/Facebook

O dinheiro é o que o dinheiro compra. Por essa característica subjetiva, tem se tornado cada vez mais abstrato e virtual com os séculos. Evoluiu de moedas físicas de ouro e prata a papel-moeda lastreado em ouro a papel-moeda “fiat” (emitido pelo governo e sem lastro) a dígitos eletrônicos em um terminal de caixa eletrônico, TEDs e cartões de débito.

Desde os anos 1980, há mais dinheiro eletrônico no mundo do que papel-moeda. O dinheiro por WhatsApp é tão somente um passo adicional nesse lento e gradual aprofundamento da abstração monetária.

A libra é uma stablecoin, moeda digital lastreada em ativos de curto prazo emitidos por governos ou bancos de primeira linha, denominados em dólar, euros ou libras esterlinas. Funciona como um currency board, tal qual o de Hong Kong, e terá estabilidade compatível com as moedas mais fortes.

Ao contrário do que se diz, a libra não terá independência monetária, pois importará passivamente a política monetária dos países cujas moedas compõem seu lastro.

A libra é a primeira grave ofensiva tecnológica contra os bancos tradicionais e os cartões de crédito no Ocidente. Deverá provocar uma dramática redução dos custos de remessas internacionais, que perfazem mais de US$ 600 bilhões por ano, e será um competidor de custo quase zero das TEDs e das maquininhas de pontos de venda. Adicionalmente, viabilizará microtransações e ajudará a promover a inclusão financeira de mais de 1 bilhão de pessoas sem acesso a bancos.

Até agora, a China lidera em pagamentos eletrônicos na Ásia via WeChat e Alipay e está na batalha pelos desbancarizados em outros continentes. Amazon e Google não devem ficar de fora por muito tempo.

A despeito de o consórcio Libra garantir que haverá uma integração segura com o atual sistema bancário, transparência das transações e respeito às leis e às regras de combate a lavagem de dinheiro, reguladores e alarmistas têm se levantado em protestos, desinformação e até pedidos de suspensão dessa suposta ameaça à “soberania monetária”.

É surpreendente que haja tão pouca oposição ao exercício do monopólio estatal sobre nosso dinheiro, apesar dos abusos. A história milenar da moeda estatal é um relato deprimente sobre a diluição do metal, da inflação e do abuso da prerrogativa de gestor exclusivo, em benefício do governo e do banco central.

Sob o dúbio pretexto da imperiosa necessidade do monopólio, inovações importantes têm sido sistematicamente proibidas ou obstaculizadas.

O establishment financeiro-governamental buscará regular a libra por todos os lados. Mas é inevitável uma eventual disrupção dos bancos. A próxima geração possivelmente não terá contas em banco como hoje concebemos e quem sabe usará uma moeda voluntária, sem fronteiras e independente de governos.

Helio Beltrão
Engenheiro com especialização em finanças e MBA na universidade Columbia, é presidente do instituto Mises Brasil.

Dentro ou fora da curva? - ROBERTO DAMATTA

O Estado de S. Paulo/O GLOBO - 26/06


A hegemonia do trabalho escravo estigmatizou o trabalho como vocação, distinguindo-o do emprego



Entender o estrangeiro – o outro –, é tão difícil quanto compreender a si mesmo. Visto de fora para dentro o outro leva a preconceitos cruéis e a estereótipos enganosos. Já o autoexame conduz a racionalizações, polarizações e negações.

Por outro lado, não é fácil trazer à tona o que somos. Em geral, percebemos o que nos desagrada em nós mesmos como crise ou, como bem disse o ministro Luís Roberto Barroso, como “um ponto fora da curva”. Mas se hoje a corrupção devidamente criminalizada é um ponto fora da curva, o problema é como explicar sua dimensão “sistêmica”. Pois o sistemático denota como a “corrupção” sempre foi parte e parcela do nosso mandonismo.

No caso nacional, chama atenção como atribuímos um enorme protagonismo ao Estado e ingenuamente isentamos os costumes, como se a sociedade não fosse um ator tão ou mais importante que o Estado na dinâmica de qualquer sistema social – sobretudo quando o regime democrático tem como marca a aproximação de governo e estilo de vida.

É conveniente, pois, remarcar que o ponto fora da curva de hoje tem sido um ponto dentro da curva no passado.

De fato, os elos entre poder e riqueza sempre foram ambíguos num Brasil onde “o criar dificuldades (político-legais) para ganhar facilidades (financeiras)” é um mantra.

“Lavar dinheiro” é a mais perfeita metáfora para um sistema no qual se resiste à impessoalidade do mercado porque essa impessoalidade contraria um controle político hegemonicamente personalizado. O problema não é somente o de “abrir a economia”, mas de tornar a política mais impessoal; logo, menos sectária. Nela, os fins e os meios precisam de mais calibragem e honestidade.

Não é fácil ajustar o financeiro com o político num país onde o segundo sempre englobou o primeiro.

A obrigação de oferecer favores, facilitar transações, arrumar colocação para parentes e amigos era a rotina do sistema. Os hábitos sociais e as etiquetas do império não foram liquidados com uma república proclamada, mas até hoje resistente ao axioma da igualdade de todos perante a lei. A mesma coerção relacional (primeiro os nossos) promove a possibilidade de criar leis particulares (contra inimigos) ou até mesmo instituições para apadrinhados e partidários.

A pergunta clássica e esperada – “o que é que você quer?” – feita pelo ministro recém-empossado ao amigo do coração era absolutamente normal no Brasil. O uso do direito administrativo como um mecanismo para salvar membros de renda mediana do trabalho escravo, tornando-os amanuenses ou “empregados públicos” que usavam a mão e não o corpo para ganhar a vida foi norma no Brasil, conforme observou Thomas Ewbank na trilha de Benjamin Franklin.

O caso brasileiro é excepcional. A hegemonia do trabalho escravo estigmatizou o trabalho como vocação, distinguindo-o do emprego; ao mesmo tempo que, por meio do protagonismo dos relacionamentos pessoais vindos da “casa”, cujo modelo era (e ainda é) hierarquizado, moldou no universo legal um viés mais legalístico e formal do que racional-burocrático.

Não basta dizer que o Brasil é patrimonialista. É preciso indicar que o patrimonialismo brasileiro manteve a oposição entre a casa e a rua – jogamos o “sujo” de nossas casas na rua. Essa “rua” que é problema do governo! Ademais, os valores morais da casa (lealdade a mais absoluta ao “nosso sangue”; ou a confiança total somente nos pais) contrariam frontalmente o axioma da igualdade perante normas universais, berço das democracias.

O que remarquei no meu estudo do “Você sabe com quem está falando?” foi como no caso brasileiro a igualdade que governa o espaço público contraria as hierarquias da casa e na família.

O patrimonialismo maquiavélico autonomizava o Príncipe, o brasileiro o traz de volta ao conjunto das relações pessoais legitimadas por meio político-legal. Destruímos parcialmente a hegemonia dos laços de família e da casa, mas não tornamos hegemônicas as regras igualitárias do mundo público republicano. Temos, como afirmo no meu trabalho, duas éticas o que, em certos momentos, equivale a não ter nenhuma moralidade.

Não deve ser, pois, estranho que nossa vida social decorra em meio a conspirações e golpes que corroem e desonram a democracia.

PS: Se minha agenda estiver de pé, volto em agosto.

Facebook entra em águas perigosas - MARTIN WOLF

Valor Econômico - 26/06


Na semana passada o Banco da Inglaterra divulgou o resultado de uma avaliação independente do futuro do sistema financeiro, juntamente com sua reação a isso. Como se quisesse provar a importância dessas questões, o Facebook e 27 parceiras anunciaram um plano de lançar uma moeda digital mundial que se chamará Libra e um sistema de pagamentos associado a ela. Como se deveria estimar a relevância, o potencial e os riscos desses desdobramentos? Como os órgãos reguladores deveriam reagir? A resposta é: com cautela.

A revolução da informação, agora ampliada pela Inteligência Artificial (IA), certamente vai revolucionar o sistema financeiro. Oferece enormes vantagens potenciais, sob a forma de pagamentos mais rápidos e mais baratos, serviços financeiros de melhor qualidade e melhor gestão de risco. Já assistimos a uma queda acentuada no uso de dinheiro vivo e a um crescimento explosivo dos pagamentos digitais. Na China, a revolução da tecnologia de pagamentos, encabeçada pela Alipay (atualmente parte da Ant Financial), é extraordinária. O Facebook está tentando criar um concorrente. Note-se bem: nesse caso, os EUA estão seguindo o exemplo da China.

Mas o sistema financeiro também é uma infraestrutura decisiva. Um colapso do sistema financeiro tende a criar uma enorme crise econômica. A inovação mal compreendida revelou ser, muitas vezes, a parteira de calamidades como essas. É vital, portanto, garantir que as implicações de grandes inovações, como a Libra, sejam bem entendidas. Mark Carney, presidente do Banco da Inglaterra, argumentou na semana passada em seu discurso na Mansion House que o banco "se aproxima da Libra com a cabeça aberta, mas não com a porta aberta". A cabeça não pode se abrir totalmente, no entanto.

Uma primeira pergunta tem de ser se podemos confiar no patrocinador de uma inovação tão delicada. O Facebook foi repulsivamente irresponsável com relação a seu impacto sobre as nossas democracias. Não podemos, obviamente, lhe confiar os nossos sistemas de pagamento. O Facebook dispõe de uma resposta para isso: tem apenas um voto na Libra Association, que terá governança independente localizada em Genebra. A meta é ter 100 membros até o lançamento, em 2020. Mas o Facebook parece tendente a dominar o desenvolvimento técnico da Libra. Isso certamente lhe dará uma influência hegemônica.

Randal Quarles, presidente do Conselho de Estabilidade Financeira, tem razão ao dizer aos dirigentes dos países do G-20, reunidos no Japão, que "um uso mais amplo de novos tipos de criptoativos para fins de pagamento de varejo asseguraria um monitoramento estreito pelas autoridades a fim de garantir que eles cumpram altos padrões de regulamentação".

Portanto, independentemente das dúvidas com relação ao patrocinador, um novo sistema mundial de pagamentos tem de ser avaliado por sua estabilidade técnica, seu impacto sobre a estabilidade monetária e financeira (especialmente nos países em desenvolvimento) e sua vulnerabilidade aos fraudadores, criminosos e terroristas. Surgem também inquietantes interrogações sobre as concentrações de poder, no caso de a empreitada ter êxito.

A primeira pergunta é se podemos confiar no patrocinador de inovação tão delicada. O Facebook foi repulsivamente irresponsável com relação a seu impacto sobre as nossas democracias. Não podemos lhe confiar nossos sistemas de pagamento

O plano atual prevê apenas um sistema pagamento. A moeda em si, nas palavras do relatório técnico, deverá ser "integralmente lastreada por uma reserva de ativos reais. Uma cesta de depósitos bancários e de títulos governamentais de curto prazo será mantida na Reserva de Libras para cada Libra que for criada, consolidando confiança em seu valor intrínseco". Esse valor, no entanto, será vulnerável às flutuações cambiais e aos choques financeiros (entre os quais os controles cambiais). Suas oscilações em relação às moedas podem incomodar os usuários. Os órgãos reguladores terão de avaliar as instabilidades associadas a um sistema desse gênero.

Não posso julgar a estabilidade técnica do sistema pretendido. A afirmação de que ele se baseia em tecnologia de "blockchain" [uma espécie de livro contábil eletrônico que armazena o registro das operações em blocos digitais] parece bastante questionável. Mas apenas apoiadores fanáticos de sistemas "não autorizados" têm de se preocupar com isso. O mais importante é que o sistema seja robusto, resistente a violações e que proteja a privacidade pessoal, sendo, ao mesmo tempo, suficientemente transparente para reguladores, autoridades judiciais e outros agentes legitimamente interessados pelos que o usam.

Uma questão decisiva é como a Libra vai interagir com os bancos tradicionais. Poderá privá-los de uma grande parcela de seus clientes, do lado dos pagamentos. Em contraposição, o sistema da Libra poderá deter enormes depósitos nos bancos, equiparados, do outro lado de seu balanço, a carteiras de Libra mantidas pelos clientes.

De forma alternativa, como disse Carney: "Com o surgimento de novos fornecedores e sistemas de pagamento, o acesso à infraestrutura central [do Banco da Inglaterra] deverá mudar, e faz sentido considerar se eles também poderiam deter recursos por um só dia no balanço do banco". Dependendo do grau em que os bancos centrais criarem essas reservas (uma decisão que só cabe a eles), um sistema como o da Libra poderá contornar totalmente os sistemas tradicionais de pagamentos bancários. As vantagens históricas dos bancos como instituições de crédito especializadas poderão desaparecer.

Desponta uma possibilidade muito mais significativa: o sistema da Libra, com seu conhecimento dos clientes, se tornaria, ele mesmo, uma instituição de crédito, usurpando assim os balanços dos bancos tradicionais do lado dos ativos. Na pior das hipóteses, o mundo poderá ter um monobanco dominado pelo Facebook. Os riscos disso são enormes: instabilidade monetária e financeira, concentração de poder econômico e político, falta de privacidade e muitos outros problemas potenciais.

Uma moeda mundial, criada pela concessão de empréstimos de um banco mundial (uma vez que os bancos criam dinheiro como subproduto de seus empréstimos), em uma moeda (a Libra) não respaldada por qualquer banco central e desprovida de regulador dominante, parece criar um risco apavorante à estabilidade.

Existe, efetivamente, potencial para sistemas de pagamento grandemente aprimorados. Mas o surgimento de um sistema de pagamento em uma rede da escala do Facebook levantaria algumas interrogações gigantescas. No caso de a Libra se desenvolver, em última instância, num verdadeiro sistema bancário, com capacidade para criar sua própria moeda autorizada (artificial), as interrogações se tornarão ainda mais prementes. Mesmo se forem descartados os empréstimos por meio do sistema da Libra, os reguladores não deveriam permitir que esse plano avance sem entender, plenamente, as implicações. Isso seria verdadeiro mesmo se o principal patrocinador não fosse o Facebook. Mas é. Portanto, tenhamos cuidado.

Decidiu, cumpra-se! - LUIZ CARLOS AZEDO

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE - 26/06


O presidente Jair Bolsonaro foi eleito por um triângulo de demandas majoritárias da sociedade: ética, família e segurança. Essas são as palavras-chave sobre as quais assentou sua estratégia de campanha. O sucesso de seu governo, portanto, está pendurado nesses eixos. Ocorre que o governo precisa transpor uma linha que não estava no imaginário dos seus eleitores: a crise fiscal, cuja resolução depende da aprovação da reforma da Previdência. Por causa dela, Bolsonaro enfrenta dificuldades na economia e vê sua popularidade ser corroída.

Com inflação zero, crescimento zero e uma massa de 12 milhões de desempregados (ampliada com os precarizados e os que desistiram de trabalhar são 25 milhões de pessoas em grandes dificuldades), entretanto, Bolsonaro completa seis meses de um governo errático, que ainda não conseguiu organizar seu meio de campo. Atua como aquele artilheiro que pretende ganhar o jogo sozinho e desarruma todo esquema tático do time, com substituições frequentes e muita bola para os lados e para trás, sem falar nos passes errados.

As pesquisas de opinião mostram o crescimento contínuo da desaprovação do governo e a queda dos índices de aprovação, o que levou o presidente da República a reagir em três níveis: voltou a ter uma agenda de rua típica de campanha, agarrou com as duas mãos a bandeira da Lava-Jato e recrudesceu no tema da posse do porte de armas. Está dando certo: a aprovação voltou a subir. Mas a sociedade está mais polarizada entre os que aprovam e desaprovam o governo, o número dos que consideram o governo regular, diminui.

Ontem, por exemplo, Bolsonaro revogou dois decretos assinados em maio que facilitaram o porte de armas de fogo. No lugar, editou três novos decretos e enviou um projeto de lei ao Congresso Nacional sobre o mesmo tema. O Decreto nº 9.844 regulamenta a lei sobre a aquisição, o cadastro, o registro, o porte e a comercialização de armas de fogo e de munição, o Sistema Nacional de Armas e o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas; o nº 9.845, a aquisição, o cadastro, o registro e a posse de armas de fogo e de munição em geral; e o nº 9.846, o registro, o cadastro e a aquisição de armas e de munições por caçadores, colecionadores e atiradores.

Bolsonaro não quer dividir com o Congresso a agenda da segurança pública. Tem dificuldades de dividir qualquer agenda, exceto aquelas que possam ter ônus eleitorais. Por isso, não digeriu a derrubada do decreto da venda de armas pelo Senado e não quis sofrer nova derrota na Câmara. Muito menos aceita que o Congresso tenha a iniciativa de pôr outro decreto em seu lugar, mesmo por iniciativa da chamada “bancada da bala”. Essa uma espécie de reserva de mercado eleitoral que pretende monopolizar. Não é assim que as coisas funcionam numa democracia. Para ser o pai da criança, Bolsonaro precisa articular a sua própria maioria no Legislativo, o que não fez até agora, e aprovar seus projetos.

O caso da Previdência é emblemático. Nove entre 10 economistas dizem que, sem essa reforma, não há como resolver a crise fiscal. A retomada do crescimento, com geração de mais empregos, depende de esse nó ser desatado. Nunca houve um ambiente tão favorável para a aprovacão da reforma. Está tudo certo para que isso ocorra, de forma mitigada, sem mexer com aposentadorias rurais e Benefícios de Prestação Continuada para os trabalhadores de mais baixa renda. O plano de capitalização proposto pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, porém, não rolou. Nunca foi bem explicado para a sociedade, o que costuma ser um obstáculo a mais no Congresso. O fundamental — o aumento do tempo de contribuição e da idade mínima, além da redução de privilégios dos servidores públicos — será aprovado.

Julgamento

Toda vez que a Previdência avança na Câmara, porém, surge uma nova polêmica ou várias criadas por Bolsonaro que não têm nada a ver com esse assunto. Qualquer estrategista diria que está faltando foco ao governo. Será isso mesmo? O mais provável é que Bolsonaro não queira colar sua imagem à reforma: ele a defende nos pequenos círculos empresariais que frequenta; quando vai para a agitação na sua base eleitoral, que é muito corporativa, muda completamente de eixo. O caso agora da Lava-Jato, então, caiu do céu.

No mundo jurídico, a revelação das conversas do ministro da Justiça, Sérgio Moro, com os procuradores da Lava-Jato provocou uma estupefação. É tudo o que não se aprende nas faculdades de direito. Ocorre que a Lava-Jato virou uma força da natureza, com amplo apoio popular, transformou o ex-juiz de Curitiba num ícone da ética e da luta contra a corrupção. Bolsonaro montou nesse cavalo e se mantém firme na sela, porque é aí que pode melhorar um pouco mais seus índices de aprovação.

Entretanto, da mesma forma como tenta jogar a opinião pública contra o Congresso no caso do decreto das armas e, mais recentemente, das agências reguladoras, os partidários de Bolsonaro pressionam o Supremo Tribunal Federal (STF) no caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Qualquer que seja o desfecho do julgamento de Lula, a decisão do Supremo precisa ser respeitada por bolsonaristas e petistas. A Corte não pode decidir sob chantagem, com medo de um golpe de Estado provocado por uma decisão sobre um habeas corpus, não importa o réu. O nome já diz tudo: Supremo. Decidiu, cumpra-se. (Correio Braziliense – 26/06/2019)

Novo mercado de gás pode mexer com seu botijão e seu chuveiro quente - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 26/06

É boa ideia abrir mercado de gás, mas governo faz carnaval antes da hora


Depois de uma década de quase paralisia, o investimento na exploração de petróleo e gás pode ajudar o país a enfim crescer, além de aumentar a receita dos governos. Caso o pré-sal vingue, haverá muito gás para entrar pelos canos.

O gás natural é o combustível fóssil mais limpo. Ainda é um mercado ridiculamente pequeno no Brasil. Pode chegar pelos canos a fogões e chuveiros; alimentar veículos, termelétricas, indústrias. Com boas leis e sorte, pode ser energia barata e um grande negócio, sobre o que o governo tem feito um carnaval antecipado e exagerado.

O assunto está em discussão pelo menos desde 2009. Rolos: 1) Quem pode ser dono dos canos de gás; 2) O que e quanto pode se pedir para deixar passar o gás; 3) Se haverá dinheiro para novos canos necessários.

O governo quer abrir esse negócio, o que chama de “Novo Mercado de Gás”, e acaba de criar diretrizes para o setor. Não pode baixar decretos, não quer se enrolar com emenda constitucional a fim de mudar certas regras e não pode atropelar direitos da Petrobras. Quer incentivar mudanças.

A Petrobras era até faz pouco a dona das empresas dos grandes gasodutos. Vendeu boa parte delas, mas ainda tem direitos sobre o uso das grandes “rodovias” de gás, é sócia da maioria das distribuidoras estaduais (que têm as “estradas menores”, que chegam até o consumidor final) e fornece o combustível.

Para começar, o plano é que a petroleira abra a sua rodovia, de modo a dar a outros produtores a segurança de que vão ter como escoar seu produto a bom preço e como quiserem. O governo pressiona a Petrobras a vender o resto do que tem no transporte de gás e conta com o Cade para abrir esse mercado, na prática.

Outro problema, o governo quer acabar com o controle de empresas estaduais na distribuição. Estuda dar dinheiro do Fundo Social do Pré-Sal a estados que acabarem com o monopólio, mas não explicou bem o que quer dizer com isso.

Além do interesse dos estados, o caso é enrolado porque a criação de várias empresas de distribuição em tese não faz sentido econômico (tal como no caso de construir várias grandes rodovias para competir pelo pedágio de quem vai de São Paulo ao Rio). Só que não é bem assim.

Em Sergipe, a Celse, empresa privada, está acabando de construir uma enorme termelétrica a gás, projeto de R$ 6 bilhões. Vai fazer seu próprio gasoduto para levar o gás de uma espécie de navio-tanque para a sua usina. A Sergás, companhia estadual de gás, quer cobrar tarifa, porque é dona do pedaço. Deu rolo, disputa legal.

Mesmo governos liberais, como o gaúcho, querem manter o monopólio da administração dos canos em uma empresa distribuidora estadual (mas liberando o direito de passagem, comércio etc.). O Rio está acabando com seu monopólio; as distribuidoras dizem que isso vai acabar na Justiça, bidu.

Outro potencial problema: o gás precisa ser escoado das plataformas de exploração (no mar) e depois transportado pelos grandes gasodutos em terra. Fazer esses canos custa muito caro.

Vai haver interesse do capital privado de expandir os gasodutos? Pode ser que, no curto prazo, o investimento seja tão alto que não dê lucro. Mas, no longo prazo, o retorno para o país pode ser grande (caso em que governos acabam investindo ou subsidiando o investimento, por algum tempo). Há no Congresso projetos que destinam dinheiro do Fundo Social do Pré-Sal para subsidiar o Brasduto ou o Dutogás.

Vinicius Torres Freire
Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA)

O autódromo da decadência - ELIO GASPARI

FOLHA DE SP/O GLOBO - 26/06
Poucas questões refletem a decadência das administrações públicas nacionais como a crueldade embutida no projeto de construção de um autódromo no Rio de Janeiro. A ela associou-se o presidente JairBolsonaro. Ganha um fim de semana em Caracas quem for capaz de dizer que o Rio, falido, violento, com escolas e hospitais em pandarecos, precisa disso.

Criou-se até mesmo uma hipotética disputa com São Paulo, como se as corridas de automóveis tivessem grande utilidade. Começando pela história do autódromo de Interlagos, é bom lembrar que o nome da região foi associado a um ambicioso projeto imobiliário dos anos 20 do século passado. O empreendimento ruiu e a conta foi para a Viúva. O que deveria ser um bairro ajardinado virou um autódromo murado. Encravado numa região populosa, ele é um pouco menor que o aterro do Flamengo.

Enquanto o Rio deve a Carlos Lacerda e a Lota de Macedo Soares a transformação de pistas para automóveis numa joia da cidade, São Paulo ganhou uma cicatriz da privataria. A ideia de transformar Interlagos num parque renasce a cada dez anos, mas acaba travada pelos interesse sombrios que se movem em torno da corrida. Se o Grande Prêmio de Fórmula 1 for para o Rio, ou para Pyongyang, a cidade de São Paulo ganhará um jardim público facilmente financiável. São Paulo também não precisa da Fórmula 1. A Parada Gay, a Marcha para Jesus e a Virada Cultural atraem muito mais visitantes, com maior participação popular e valor cultural.

Fica então uma pergunta: o Rio precisa do autódromo? Se precisasse, não teriam demolido o que existiu até 2012. Argumentando-se que voltou a precisar para receber a corrida de automóveis, cria-se um caso clássico de rabo abanando o cachorro.

A cidade teve os jogos da Copa, com a roubalheira da reforma e privatização do Maracanã. Logo depois, veio a fantasia da Olimpíada. A vila dos atletas está encalhada. As arenas e o parque aquático têm menos visitantes e atividades que as ruínas romanas das Termas do imperador Caracala.

O Rio fez sua Olimpíada na Barra da Tijuca e para lá estendeu uma linha de metrô. Quatro anos antes, Londres fizera a sua. Exagerando, as grandes obras dos ingleses foram para as cercanias de um bairro parecido com as terras da Baixada Fluminense (sem tiros) e para lá levou-se o metrô. Criou-se uma nova região, bonita e vibrante. Seu shopping center tem mais movimento que qualquer similar do Rio ou de São Paulo. A Olimpíada de Londres legou progresso, a do Rio sacralizou o atraso. Não é à toa que dois governadores estão na cadeia, onde passou uns dias o presidente do comitê dos Jogos. Já o prefeito maravilha perdeu a eleição do ano passado. Foi derrotado pelo juiz Wilson Witzel (Harvard Fake '15). Afora sair por aí dizendo que quer matar gente, sua ideia mais pomposa veio a ser a da construção do autódromo. Evidentemente, o custo seria coberto pela iniciativa privada. Conta outra.

A ideia de dar pão e circo ao povo foi coisa dos imperadores romanos à época em que a cidade controlava o mundo. Roma teve césares doidos, mas nenhum deles acreditou nisso quando o tesouro não tinha como pagar suas contas.

Elio Gaspari
Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

Lobbies à solta - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 26/06

Reforma da Previdência é alvo de pleitos por quem busca regalias


Qual a sua Constituição favorita, leitor? Eu me divido entre a de 1891, a única verdadeiramente laica, e a de 1934. Meu flerte com a Carta varguista, confesso, não tem a mais nobre das motivações. É que ela trazia, entre os direitos e garantias individuais (art. 113), um dispositivo que concedia imunidade tributária para jornalistas.

Sim, é isso mesmo que você leu. O lobby dos jornalistas conseguiu inscrever na Constituição que representantes da classe não precisariam pagar impostos diretos. O mecanismo desaparece na Carta de 1937, mas volta na de 1946. A festa só acabou de verdade em 1964, quando o governo militar fez aprovar uma emenda constitucional que reintroduziu o IR para escribas.

Tudo isso foi para dizer que um bom lobby é essencial para quem pretende andar de carona (“free ride”) à custa da sociedade. Categorias poderosas, como os advogados, insuperáveis nessa matéria, conseguem meter na legislação dispositivos que obrigam o cidadão a utilizar seus serviços mesmo que não desejem. Quem acaba pagando o preço são os grupos mais pobres, menos organizados e que não conseguem inspirar compaixão pública.

Faço essas reflexões porque vivemos um momento em que os lobbies estão a toda, tentando cavar uma regaliazinha na reforma da Previdência, que entra em fase final na Câmara. Não digo que todos os pleitos são injustos. Muitos deles parecem razoáveis, se considerarmos as dificuldades enfrentadas por diversos segmentos sociais.

O problema é que não podemos raciocinar aqui pela lógica das partes. Precisamos pensar antes no todo. A reforma da Previdência extrai sua justificativa moral do fato de propor regras universais, que idealmente igualariam todos os cidadãos, do mais humilde celetista ao mais abonado servidor público. Cada diferenciação que os parlamentares introduzirem, mesmo que isoladamente justa, torna a reforma menos defensável.

Era uma vez um governo - ROSÂNGELA BITTAR

Valor Econômico - 26/06

Emendar uma campanha à outra, pode Arnaldo?

O presidente Jair Bolsonaro passou de uma campanha eleitoral, que foi teoricamente encerrada em novembro de 2018, a outra, que teoricamente deveria começar em 2022. É a campanha permanente, sem pontes ou escalas, sem uma paradinha para exercer o governo, por pequena que seja. Um matemático poderia dizer, depois de alguns cálculos, que houve, de interregno, dois meses, neste ano, nos quais Bolsonaro governou: nomeou ministros, tomou posse das gavetas e da caneta, encenou algumas reuniões ministeriais e ouviu preleções de Paulo Guedes, o ministro da Economia. Mas em seguida desfez muito do que havia supostamente feito, desnomeando ministros, assinando decretos espetaculares logo em seguida revogados por contrariarem a Constituição, deixando os conflitos e crises tomarem conta do seu espaço. Uma balbúrdia, desta vez autêntica e visível.

Bolsonaro, nesse período, entrou em conflito com os demais Poderes, desafiou-os, mas enfrentou também, por nada, gente do governo, o seu. Fez o que depois poderia desfazer. É recorde o que já trocou de primeiro e segundo escalão. Decretos e medidas provisórias de que teve que recuar, um bom número. O presidente, à moda Lula, recorre com frequência ao "não sabia", só que, no seu caso, o desconhecimento alegado é das leis, da Constituição e dos princípios que deveriam determinar seus atos como presidente.

Ele não parece ler o que sanciona ou veta. O Palácio trabalha com o fígado e o governo vai sendo tocado pela equipe econômica, cuja produção não se conhece pois só poderá ser revelada após a aprovação da reforma da Previdência. O setor da da infraestrutura também trabalha, mas os investidores não dão as caras. No mais é um blá-blá-blá ideológico sem fim de ministros, aliados, gurus, filhos e quem mais esteja na linha de frente da campanha eleitoral da reeleição.

Que ninguém pense que o eleitorado de Jair Bolsonaro está insatisfeito com sua performance. Ao contrário. Não foi escolhido por ser um expert em políticas públicas, ou na preservação das instituições democráticas.

Ele cultiva com maestria aquele segmento de eleitores que estiveram ao lado dele no primeiro turno, 34,4% do eleitorado brasileiro são seus seguidores do peito. Se perdeu um ou outro pelo caminho, deve ter ganhado outros. Na verdade, quando atua, o faz para cultivar esse grupo do primeiro turno.

O percentual de votação de primeiro turno (o segundo não vale nesta análise porque tem o voto dos sem opção) é uma montanha de votos. Ele cultiva isso de forma sistemática, incansável, ampla, mesmo que crie casos e entre em conflitos com todos. Suas questões são ideológicas. É sobre isso que sabe falar e o que agrada aos seus. Os eleitores se mantem fieis aos sentimentos que ele expressou a e continua a expressar agora, na campanha contínua.

Quando Bolsonaro faz algumas declarações esquisitas, não fica absolutamente diminuído perante seus eleitores. Ao contrário, reforça os laços, a identificação é automática.

"Ao contrário do que muitos têm comentado, a imagem do presidente está preservada ou até mais forte hoje do que estava no momento da sua eleição", assinala o cientista político e sociólogo Antonio Lavareda, um especialista em campanhas e análise de pesquisas, antecipadas ou não. Na última pesquisa XP/ Ipespe, diz Lavareda, presidente do Instituto, Bolsonaro tem 34% de Ótimo/Bom - mesmo percentual do eleitorado total que obteve no primeiro turno. E 46% têm a expectativa de que irá fazer um governo ótimo ou bom no restante do mandato. Mais que os 39,2% que votaram nele no segundo turno".

Para Lavareda, Bolsonaro não é produto do marketing ou uma equipe de propaganda, só. Esses ajudam, com sugestões, como Duda Mendonça e João Santana ajudaram Lula com dicas. Mas só a sua participação não seria suficiente se o candidato não fosse talhado para fazer o que tem feito Bolsonaro e o que fazia Lula. "É
assim mundo afora, em todos os lugares. Bill Clinton fazia ele próprio as perguntas a serem incluídas nas pesquisas, conduzindo sua campanha no detalhe".

O comentário do presidente sobre a Fórmula 1, está semana, foi a coisa mais emblemática disso. Falando sobre a transferência da Fórmula 1 para o Rio, alfinetou João Doria, dizendo que se for candidato a presidente não precisa se preocupar com a saída do circuito de São Paulo, mas se for candidato à reeleição sim. Nomeou seu adversário, um deles, e tentou criar-lhe algum constrangimento. A tamanha distância, ninguém, a não ser Bolsonaro, pode declarar-se candidato com retorno positivo.

"O que acho melhor de tudo isso, sinceramente, é que ele faz tudo com a maior clareza possível. Se há alguma coisa da qual não pode ser acusado, se isso for tomado como defeito, é de mineirice. Esse é o menos mineiro de nossos presidentes", afirma Lavareda.

Apesar do comentário sobre Doria, o PT e Lula continuam sendo o alvo preferencial da campanha ideológica de Bolsonaro. Já colocou também na roda de adversários Rodrigo Maia, presidente da Câmara. Enquanto não surgem novos atores o presidente ruma para outras regiões onde ainda não é rei, como o Nordeste, periferias de grandes cidades, pequenas cidades do interior.

Sua presença frequente em programas de TV de grande audiência nessas áreas é com este objetivo. A exibição em viagens internacionais vazias, a presença em estádios de futebol, as bravatas e a defesa insistente no porte de armas estão nesse arsenal de questões aleatórias, porém impregnadas de barulho eleitoral.

Bolsonaro está mobilizando em sua campanha séquitos de seguranças e infraestrutura da Presidência, como fez no rali do último fim de semana, mas quem se importa com legalidade a esta altura? Dizem que o presidente, paraquedista que é, vai até pular de paraquedas brevemente, sem reciclagem.

Há um mistério a impedir a completa transparência desse Bolsonaro munido da gana da reeleição. O que fará com Sergio Moro, o ministro da Justiça pop, à frente dele em pesquisas sobre intenção de voto. A história que ambos contam sobre nomeação para o Supremo Tribunal Federal é claramente diversionista.

O presidente e as agências - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 26/06

Jair Bolsonaro parece disposto a agir como o ex-presidente e hoje presidiário Lula da Silva, que tudo fez para minar a independência das agências reguladoras

O presidente Jair Bolsonaro vem reiteradas vezes criticando a parte do novo marco jurídico das agências reguladoras, recentemente aprovado pelo Congresso, que trata da indicação dos dirigentes daqueles órgãos. Em sua mais recente manifestação a respeito, Bolsonaro informou que vetará o trecho que estabelece que o nome do dirigente será escolhido a partir de uma lista tríplice, elaborada por uma comissão de seleção pública, que avaliará os candidatos. “A decisão até o momento para indicar o presidente das agências é minha. A partir desse projeto, (haverá) uma lista tríplice feita por eles (o Congresso). Então, essa parte será vetada”, explicou o presidente, revelando desconhecer o teor do que foi aprovado.

O projeto, chamado de Lei Geral das Agências Reguladoras, não tira do presidente da República, em nenhum momento, a prerrogativa de escolher os dirigentes desses órgãos. Apenas altera o modo como as indicações são feitas. Não serão mais aceitos candidatos que sejam políticos, parentes de políticos ou ligados de alguma forma a empresas do setor, e o texto exige comprovação de experiência para o exercício do cargo. Os candidatos serão então submetidos a uma comissão de seleção – cuja composição tem de ser avalizada pelo presidente da República. Em seguida, a comissão escolhe os nomes dos finalistas, na forma de lista tríplice, que igualmente é submetida ao presidente. O nome escolhido pelo presidente é submetido então ao Senado, que pode rejeitá-lo – nesse caso, o presidente pode indicar outro nome, “independentemente da formulação da lista tríplice”, conforme se lê no parágrafo 6.º do artigo 5.º da lei aprovada.

Ou seja, a palavra do presidente da República é decisiva em todas as etapas do processo de preenchimento de vagas de direção nas agências reguladoras. Não há nada parecido com usurpação de prerrogativas, como Bolsonaro dá a entender – o presidente chegou a dizer que o Congresso quer transformá-lo em uma “rainha da Inglaterra”, isto é, num chefe de Estado sem poder para governar. Mesmo depois de o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ter esclarecido que “o presidente não perde prerrogativa alguma” – algo que poderia ter sido verificado por meio de uma simples leitura do projeto aprovado –, o Palácio do Planalto manteve a interpretação de que o presidente Bolsonaro estava sendo preterido.

Mais grave do que isso, porém, é a visão que o presidente Bolsonaro tem das agências reguladoras. Esses órgãos, criados nos anos 90 para dar ao Estado capacidade regulatória para proteger o interesse público em meio às privatizações, devem ser autônomos, isto é, livres de qualquer influência política que possa distorcer sua função de promover a qualidade e a continuidade da prestação dos serviços públicos por empresas privadas. Bolsonaro, no entanto, acredita que deve ter influência nas agências. “As agências têm um poder muito grande e essa prerrogativa de o presidente (da República) indicar o presidente (da agência) é importante porque nós teremos algum poder de influência nessas agências”, declarou. O porta-voz da Presidência, Otávio Rêgo Barros, informou que, na opinião de Bolsonaro, o presidente deve “manter o poder discricionário” na escolha dos diretores das agências porque é necessário que esses órgãos tenham “um alinhamento com as propostas das políticas públicas do governo”.

Ora, a função das agências reguladoras, como órgãos de Estado, não é alinhar-se ao governo – o projeto aprovado prevê, justamente por isso, que os mandatos dos dirigentes não sejam coincidentes com o do presidente da República. Mas o atual presidente não concorda com isso. Nesse ponto, parece disposto a agir como o ex-presidente e hoje presidiário Lula da Silva, que, quando esteve no poder, tudo fez para minar a independência das agências reguladoras.

Durante a era lulopetista, as agências sofreram forte processo de desmoralização, exatamente sob o argumento, hoje usado por Bolsonaro, de que esses órgãos representavam uma usurpação de poderes do Executivo. Foi assim, sempre em nome do “interesse público” – expressão usada agora pelo porta-voz do presidente para justificar a atitude de Bolsonaro –, que algumas das agências deixaram de cumprir sua importante função, transformando-se em meros cabides de emprego.

N. da R. – Este editorial já estava na página quando foi anunciado o veto do presidente da República.