quarta-feira, maio 01, 2019

Devagar e então de repente - ALEXANDRE SCHWARTSMAN

BLOG MÃO VISÍVEL - 01/05


Samuel Pessôa, para variar, escreveu uma bela coluna no domingo. Parte do pressuposto, para lá de razoável, que o atual governo, apesar do evidente corpo mole do presidente, conseguirá aprovar alguma reforma da previdência, porém bastante desidratada e mais tarde do que se espera.

Conclui que, a despeito disto, não haverá ruptura, e nos oferece quatro razões para tanto: reservas internacionais elevadas (que evitam uma crise de balanço de pagamentos); o teto de gastos públicos; algum efeito da reforma “desidratada”; e, por fim, a inflação baixa, que permite manter o juro também baixo, reduzindo o custo da dívida. Assim, as principais consequências da falta de apetite pelas reformas seriam crescimento lento e, em algum momento, uma transição para algo semelhante à Argentina hoje, com inflação alta complementando a expansão medíocre.

Minha análise tem muito em comum com a do Samuel, mas confesso que, ao ler a coluna, me vieram à mente dois relatos, em alguma medida aparentados.

Ernest Hemingway, em “O sol também se levanta”, conta de um empresário que explica como faliu: “Two ways. Gradually; then suddenly” (de duas formas: devagar e então de repente, em tradução livre).

Já o grande economista Rudi Dornbusch, em frase memorável, afirmou (também em tradução livre): “em economia as coisas demoram mais para ocorrer do que você pensa e então acontecem muito mais rápido do que você imagina”. A verdade é que nossa capacidade como economistas de prever eventos descontínuos não é grande coisa, mas vou me arriscar aqui.

Quem teve a chance de analisar a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), enviada há pouco ao Congresso Nacional, deve ter notado algumas coisas interessantes. Em primeiro lugar, quase uma curiosidade: embora durante a campanha Paulo Guedes tivesse prometido zerar o déficit primário, a LDO prevê déficits recorrentes de 2019 a 2022. Neste aspecto, pelo menos, o ministro parece ter calçado as sandálias da humildade e se dobrado à necessidade de fazer um pouco de conta, atitude positiva, ainda que tardia.

É bem verdade que a trajetória de déficits é declinante no período, caindo a 0,3% do PIB no último ano, consequência da premissa de obediência ao teto de gastos, que força o conjunto da despesa federal a se reduzir relativamente ao PIB, enquanto receitas se mantém aproximadamente constantes.

Por outro lado, quando examinamos as principais contas de dispêndio público projetadas na LDO é impossível deixar de notar que sua trajetória cadente só se materializaria sob a suposição de contração extraordinária do gasto discricionário, que viria de 1,7% do PIB em 2018 (11% da despesa) para 0,8% do PIB (6% da despesa) em 2022, uma vez que benefícios previdenciários seguiriam crescendo.

Posto de outra forma, a ser respeitado o teto de gastos, na ausência de reforma, a contração necessária da despesa discricionária levaria à paralisação da máquina federal em 2021, ou (mais provavelmente) em 2022, uma vez que requereria um corte em termos reais pouco superior a 40% em quatro anos.

Se, porém, a reforma for plenamente aprovada, seria possível limitar o corte do gasto discricionário a algo como R$ 14 bilhões até 2022 (contra R$ 64 bilhões no cenário sem reforma), o que, com um pouco de sorte, manteria o governo federal operante. Vale dizer, caso a reforma seja muito desidratada haverá um encontro sério com a realidade das contas públicas num horizonte de 3 a 5 anos.

Em tal circunstância duas coisas me parecem prováveis. Em primeiro lugar, o abandono do teto de gastos, que se tornaria insustentável sem uma reforma parruda da previdência. Todavia, como isto significaria também a impossibilidade de estabilização da dívida como proporção do PIB, também o BC teria que deixar de pautar sua política de juros pela inflação, calibrando a Selic para estancar o endividamento.

Neste caso o BC perderia a capacidade de controlar a inflação, devagar e, então, de repente. Se vale o dito de Dornbusch, quando isto ocorrer, provavelmente mais tarde do que prevejo, será muito pior do que imagino.

Alexandre Schwartsman é economista, ex-Diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central do Brasil

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