domingo, fevereiro 11, 2018

Hiperregulamentados - ADRIANO GIANTURCO

GAZETA DO POVO - PR - 11/02

O ato de regulamentar é essencialmente sem custos para o regulador e só gera custos para os empreendedores e os consumidores


O fenômeno do nosso tempo não é o aumento dos impostos, mas o da regulamentação. A carga tributaria tem um limite natural (veja a Curva de Laffer), mas a regulação é potencialmente infinita. A regulamentação estatal está aumentando no mundo inteiro, mas por aqui talvez estejam exagerando.

Cada dia é uma nova, até mais de uma por dia! Eis algumas das mais recentes: obrigatoriedade de manutenção periódica do ar-condicionado (os técnicos da área agradecem); regulamentação do esporte eletrônico (imagine que lindo um sindicato de gamers!); multas para pedintes nas ruas; subsídios a food trucks que vendem comida local; obrigatoriedade de colocar rádio nos celulares (lobismo de quem?); criação de um novo tipo de carteira para carros automáticos; proibição de uso de celular em local de trabalho; proibição de cobrança para orçamentos (não existe orçamento grátis); proibição de desconto para mulheres em boates e bares; uma lei que define se a espuma da cerveja é cerveja ou não; uma lei que dificulta a compra e o uso de fogos de artifício, e outra que quer proibi-los para não incomodar os cachorros (se o incômodo fosse para crianças, velhos e doentes ninguém ligava); proibição de porte de armas brancas; faróis do carro ligados até de dia (ninguém diga que é para arrecadar, é claro que é para a sua segurança); proibir às empresas telefônicas a limitação de dados na internet fixa (para que ter livre concorrência quando se pode ter um oligopólio hiperregulamentado?); regulamentação da profissão do administrador; proibição da cobrança mínima em bares (como assim, não posso sentar na sua mesa sem consumir nada?); reservar uma vaga para jovens nos ônibus; e, claro, a “segunda sem carne” – tudo isso só em dezembro!

É assim que se perde a liberdade, com uma regulamentação por dia


Ampliando um pouco o horizonte temporal, vale lembrar de palitos, canudos e guardanapos no plástico; antibióticos com prescrição medica; curativos só no hospital; proibição de primeiro socorro por telefone dos planos de saúde; proibição de venda de álcool liquido puro; regulamentação da profissão de fotografo, designer, DJ, músico, esteticista etc.; extintor no carro (salvo depois para retirar a regulação); personal trainer na academia; instrutor de ginástica nas praças; proibição de sal na mesa etc.

A variedade das propostas, do rádio no celular ao esporte eletrônico, da segunda sem carne aos guardanapos no plástico, mostra que o Estado não é um “ator único racional”, mas a “estrutura através da qual todo mundo quer viver à custa de todo mundo”. Nunca um agente único poderia pensar todas estas coisas! Estas demandas vêm do lobismo de minorias organizadas diretamente interessadas.

Todas as áreas mais importantes são regulamentadas. Saúde e finanças são as mais regulamentadas no mundo inteiro (mitos à parte); a regulamentação ambiental é a que mais está aumentando; no urbanismo a mentalidade de que tem de regulamentar tudo é tão enraizada que quase nem se debate. A sua profissão é regulamentada. A sua comida, a sua roupa, seu carro, todas as atividades de lazer também, para nem falar da escola de seus filhos. E, agora, até o que você pode dizer.

Mas há também o fenômeno da microrregulamentação (rótulos de comida, palitos no plástico, sal na mesa, faróis ligados etc.) geralmente acompanhada por alguma justificativa de higiene, de saúde publica, de irracionalidade dos consumidores.

Algumas regulamentações são menos danosas pois não são aprovadas. O jurista McChesney mostra que o objetivo é extorquir dinheiro do regulado a fim de retirar a proposta (menos pior). Talvez seja o caso de Uber e da profissão dos fotógrafos.

Em geral, a regulamentação aumenta por três motivos: o ato de regulamentar é essencialmente sem custos para o regulador e só gera custos para os empreendedores e os consumidores; cada associação de categoria, vendo uma regulação aprovada em outro setor, quer aprovar uma também no próprio setor para encarecer o processo produtivo e, assim, jogar fora do mercado os concorrentes, é o “efeito emulação”; e, por fim, população acaba aceitando.

A retórica ajuda, claro. Esconder os interesses reais atrás do bem comum compensa. Vivemos em um país onde não é clara a diferença entre “irregular” e “não regulamentado”, ou entre “regulamentação estatal” e “regulamentação de mercado”. Afinal, se o Estado não regulamentasse, não teria regulação nenhuma, não é mesmo? A regulamentação estatal é feita para o bem comum, não é? E as consequências são só positivas, certo? A tão amada fiscalização não gera oportunidade de corrupção, certo? Quem paga o custo, afinal, não é o consumidor, não é?

E é assim que se perde a liberdade, com uma regulamentação por dia. Não resta que esperar para ver o que vão nos regulamentar amanhã.


Adriano Gianturco é professor de Ciência Política do IBMEC-MG.

As lições que vêm do Leste - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR

GAZETA DO POVO - PR - 11/02

Como três ex-repúblicas soviéticas, em menos de 30 anos, superaram a herança autoritária para se tornarem algumas das economias mais livres do mundo?

Dos muitos dados presentes no Índice de Liberdade Econômica da Heritage Foundation, divulgado no Brasil pela Gazeta do Povo em parceria com o Instituto Monte Castelo, algumas comparações entre países são de impressionar e mostram como o Brasil tem perdido oportunidades seguidas de tomar medidas que promovam o desenvolvimento. Como explicar, por exemplo, que todos os países da antiga Cortina de Ferro, incluindo as ex-repúblicas soviéticas (à exceção do Turcomenistão, 169.º lugar na lista), estejam à frente do Brasil, o 153.º no ranking? Mais ainda: como três nações – Estônia, Geórgia e Lituânia – passaram, em menos de 30 anos, de uma herança de autoritarismo estatista para figurar entre os 20 países mais livres economicamente do globo, à frente de Alemanha, Coreia do Sul, Japão e outras potências?

Em 1995, quando o Índice de Liberdade Econômica foi criado, a Estônia já era considerada uma economia “moderadamente livre”, mas Geórgia e Lituânia figuravam entre as economias “reprimidas” em 1996, quando o índice passou a compilar os dados desses países. O grande salto da Geórgia ocorreu no meio da década passada, especialmente em três dos itens medidos pelo índice: liberdade de investimento, liberdade comercial e liberdade de trabalho (quesito no qual o país chegou à pontuação máxima em 2008). Enquanto isso, o Brasil permanece empacado no lodaçal da obsessão por regulamentações. Não há categoria que não peça uma lei afirmando quem pode exercer quais profissões, de preferência exigindo diplomas ou certificados que recebem mais valor que os talentos individuais. E parlamentares ávidos por prestígio (e votos) junto a essas categorias são rápidos em encampar tais demandas, criando mais e mais reservas de mercado, asfixiando a liberdade daqueles que têm plena capacidade de exercer uma profissão, mas se veem impedidos de fazê-lo porque não cumpriram esta ou aquela exigência totalmente desproporcional.

Enquanto outros países privilegiam a liberdade profissional, o Brasil permanece empacado no lodaçal da obsessão por regulamentações


Os pontos fortes de Estônia (que ocupa o 7.º lugar no ranking da Heritage Foundation) e Lituânia (19.º) incluem a saúde fiscal, com notas 99,8 e 96,7 respectivamente. O quesito só passou a ser avaliado a partir da edição de 2017, impedindo uma comparação histórica, mas basta-nos ver como o Brasil figura na outra ponta da lista, com nota 7,7, para compreender o tamanho de nosso problema. Ainda que os dias das “pedaladas” e da “contabilidade criativa” tenham ficado para trás, a matemática continua a não ser o forte da classe política e do sindicalismo, dada a quantidade dos que ainda hoje negam o déficit da Previdência, a ponto de consagrar essa tese em relatórios de CPIs. O país gera déficits primários bilionários ano após ano e a dívida pública segue em trajetória de alta constante, podendo ultrapassar os 100% do PIB em poucos anos (sim, outros países desenvolvidos devem porcentagens bem maiores de seu PIB, mas o fazem a juros baixíssimos e com alta capacidade de rolagem, o que não é exatamente o caso brasileiro). Fruto, mais uma vez, da irresponsabilidade e do paternalismo que marcam a relação entre eleitores e eleitos no Brasil, já que responsabilidade fiscal também não é assunto que cative o eleitorado, acostumado que ficou ao Estado provedor de tudo.

Entre as reformas relevantes introduzidas nos últimos anos por essas três ex-repúblicas soviéticas, a Heritage Foundation destaca a emissão, na Estônia, de vistos de “e-residência” que facilitam a vida de estrangeiros que desejam abrir um negócio no país; e a reforma trabalhista feita pela Lituânia em 2017 para desengessar os contratos de trabalho – pelo menos neste aspecto, se a Justiça do Trabalho não atrapalhar, o Brasil terá algo para mostrar na próxima edição do ranking, cujos dados ainda não contemplavam a aprovação e entrada em vigor da reforma trabalhista brasileira. Em comum, esses três países também exibem forte abertura ao comércio exterior, com baixíssimos impostos de importação.

O salto desses três países mostra que é possível ao Brasil seguir a mesma trilha e deixar de ser uma economia “majoritariamente não livre”. Mas, para gerar um clima de mentalidade econômica, como afirmamos dias atrás, o país precisa de uma mudança radical de mentalidade: deixar para trás a obsessão por regulações e regras que asfixiam o empreendedor que gera renda e emprego; abandonar de vez o “capitalismo de compadres” que privilegia “amigos do rei” e distorce a concorrência; compreender que o motor da economia é a iniciativa privada, e não um Estado superpoderoso e provedor; acreditar mais nas pessoas e menos em carimbos e diplomas. Missão que deve ser compartilhada entre governantes e governados.


Caos organizado - TOSTÃO

FOLHA DE SP - 11/02

Como atletas não param de correr, equipes têm vários sistemas táticos nos jogos


Existem jogadores confusos, que tomam, quase sempre, decisões erradas, mas que, de vez em quando, fazem lances belíssimos. São muito bons somente nos melhores momentos da TV. São mais elogiados do que merecem. Outros, ao contrário, são lúcidos, erram pouco, executam bem o que foi planejado, mas, raramente, fazem algo diferente. São ruins nos melhores momentos e bons para os treinadores. Deveriam ser mais reconhecidos. Há ainda os pouquíssimos que tomam as decisões certas e que têm muitos momentos espetaculares e decisivos. São os craques.

Tempos atrás, apenas os times pequenos e inferiores recuavam, para marcar com oito a nove jogadores mais próximos à área e tentar o contra-ataque. Uma das mudanças no futebol mundial foi que mesmo as grandes equipes passaram a fazer o mesmo. Alternam essa marcação com a mais adiantada, por pressão, com o domínio da bola e do jogo. São times ofensivos e defensivos. Propõem o jogo e são reativos, expressões da moda. Isso não ocorre de supetão ou por desespero, quando a equipe está vencendo ou perdendo. É treinado, feito de rotina.

O Barcelona, que fascinou o mundo com um jogo ofensivo, uma marcação mais à frente e sempre com muitos jogadores no campo adversário, aderiu à estratégia atual da maioria dos grandes times. Em vez de um trio no meio-campo, joga com dois volantes e um meia de cada lado. Os laterais ficaram mais protegidos. O time sofre menos gols e tem sido extremamente eficiente, sobretudo porque tem Suárez e Messi.

O Manchester City é a única equipe do mundo que joga, com sucesso, sempre com a defesa adiantada e com a bola no campo adversário. Mas tenho dúvidas se funcionará bem contra os melhores atacantes e times, como Barcelona, Real Madrid, PSG e Bayern. Quando Guardiola dirigia o Bayern, o time foi eliminado duas vezes pelo Real Madrid e outra pelo Barcelona na Liga dos Campeões. Messi, Neymar e Cristiano Ronaldo aproveitaram os muitos espaços na defesa e deram show.

O mundo e o futebol estão sempre em transformação. O que vemos hoje são pequenos detalhes de mudanças que ocorrem há muito tempo. Assim como no envelhecimento, não percebemos a evolução e, de repente, levamos um susto.

Na Copa, o Brasil vai encarar defesas organizadas, com oito ou nove jogadores recuados e perto da área. Além do talento dos meias e atacantes e das infiltrações de Paulinho, o time pode precisar também, em alguns momentos, do avanço do volante, Casemiro ou Fernandinho, como em seus clubes.

Não há mais razão de analisar os sistemas táticos das equipes pelos números e pelo desenho na prancheta. Falam sempre que o Brasil joga no 4-1-4-1, os números da moda. Até pouco tempo atrás, era o 4-2-3-1. Se alguém falar que o Brasil atua no antigo 4-3-3, também estará certo, pois são quatro defensores, três no meio e três na frente.

Como os jogadores não param de correr e têm mais de uma função, cada equipe tem vários sistemas táticos em uma partida. É o caos organizado. O sistema tático serve apenas de referência para técnicos professores darem palestras acadêmicas, para comentaristas mostrarem que estão atualizados e para as TVs exibirem o desenho tático antes dos jogos, embora, com frequência, o sistema tático seja bem diferente do que foi programado pelos técnicos.

Cinema, futebol e solidão - UGO GIORGETTI

ESTADÃO - 11/02

A TV reduziu cinema e futebol às suas proporções mais exíguas

Cinema e futebol, duas das mais populares formas de entretenimento, padecem hoje dos mesmos problemas. Ou quase. Os dois implicam em que o espectador saia de casa para fruir dos seus espetáculos e esse se tornou o maior de seus problemas. De fato, cinema e futebol vêm lutando desesperadamente para arrancar as pessoas de sua solidão caseira e levá-las às salas e aos estádios. O problema não surgiu hoje. Talvez tenha aparecido quando o primeiro aparelho de televisão foi posto à venda.

Desde o início alarmou profundamente produtores e exibidores de filmes, os mais pessimistas já vendo seus dias contados. Quanto ao futebol, pelo menos no Brasil, levou um pouco mais de tempo para os responsáveis pelo esporte se darem conta do perigo.

Não por outra razão, o futebol, que vinha desde o início transmitindo graciosamente todos os domingos as partidas, tenha sido proibido de fazê-lo, sobretudo grátis. Hoje as coisas se definiram: cinema e futebol são atividades para serem vistas em casa.

A luta das duas modalidades ainda continua, mas é evidente a perda de público tanto de um quanto de outro.

Maracanã e Morumbi, só para lembrar os dois maiores estádios do País, tiveram seus lugares drasticamente diminuídos. Salas de cinema, por sua vez, foram divididas em três salinhas, às vezes quatro, num lugar onde só havia uma. O cinema sempre tentou novidades técnicas para se manter: telas imensas, som cada vez mais espetacular, cinemascope, três dimensões, etc.

O futebol ultimamente também, desesperado, se vale da tecnologia do momento em arenas que se transformam elas mesmas no espetáculo e na maior razão do público frequentá-las para admirar linhas arquitetônicas ultramodernas e conforto de “primeiro mundo”. Nada impede, entretanto, que, como número de espectadores, elas apenas cheguem aos quarenta mil nos jogos importantes. Em décadas passadas, quarenta mil espectadores o Corinthians punha no Pacaembu jogando contra, por exemplo, a Ferroviária numa quarta, num jogo de Estadual.

A luta pela reconquista desse público cativo da televisão necessita de invenções constantes. São novas competições, são aumentos de prêmios em dinheiro por conquistas outrora de relativo valor até simbólico, são novas rivalidades forjadas onde antes não havia nenhuma. E no fundo tudo isso acaba servindo exatamente à televisão, como o cinema, inteiramente subjugado pela TV e suas regras, modalidades de espetáculo e “plataformas”. A tela de TV reduziu cinema e futebol às suas proporções mais exíguas e não estou falando só do tamanho das telas. As ruas estão mais vazias. Contribui com isso o quase deserto em que se transformaram as imediações dos estádios e a frente dos cinemas. Fazia parte do espetáculo as multidões que aguardavam nas calçadas, fora dos estádios e das salas. Elas talvez fossem mais interessantes do que o próprio espetáculo. Aquelas pessoas reunidas sem se conhecerem, todas com uma só coisa em comum que era a ânsia pelo início do que ia começar ocorrer em pouco tempo, olhares um pouco aflitos, expressões de expectativa inquieta. No fundo ninguém se incomodava com filas e aperto nas portas dos cinemas ou estádios.

Era até motivo de quase satisfação, quase endosso do acerto de nossa escolha e da qualidade do que se estava por ver. A saída dos cinemas e estádios mostrava clima sutilmente diferente. Podia-se ler nas expressões quando o filme era bom ou o jogo inesquecível, as marcas da emoção que permanecia rua afora. Os bares se enchiam e horas depois dos jogos e filmes havia gente discutindo atores e craques. Isso é cada vez mais raro, para não dizer que desapareceu. O fato é que estamos acostumados à solidão diante da TV.

Alerta de risco - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO - 11/02

Desta vez, não houve vítimas da queda do viaduto do DF. E na próxima?


Com a queda de um viaduto na área central e mais movimentada de Brasília, a capital da República entrou no rol de bons exemplos do círculo vicioso que ocorre no Brasil: governantes corruptos, administradores relapsos, corporações só empenhadas em se dar bem e o Brasil e os brasileiros que se lixem.

O desastre serve como alerta, um piscar da luz vermelha, porque desta vez não houve mortos e feridos, apesar de ter sido a passos da rodoviária central, a um quilômetro do Congresso e do Planalto, com grande concentração de pessoas e de carros. Para piorar, ocorreu no horário do almoço, em cima de uma churrascaria. Da próxima vez teremos tanta sorte?

Brasília é uma cidade politizada por definição, gerou bons quadros políticos de diferentes partidos e participou ativamente do combate à ditadura, da redemocratização e dos grandes movimentos do País. Mas a coisa foi desandando desde que o então presidente José Sarney destacou seu vizinho de fazenda, Joaquim Roriz, para ser governador nomeado.

Com o golpe de sorte, Roriz invadiu todos os espaços, foi quatro vezes governador, distribuiu lotes a torto e a direito, tornou-se o maior ídolo popular (ou populista) da capital. E a era Roriz deu no que deu, com o próprio Roriz, afundado em denúncias, renunciando a um mandato de senador para não ser cassado.

Depois dele, dois ex-governadores acabaram presos, José Roberto Arruda, do DEM, e Agnelo Queiroz, do PT. Um vice, Tadeu Filippelli, do MDB, também acabou na cadeia, justamente quando ocupava gabinete no Planalto. Sem falar no senador cassado Luiz Estêvão, hoje recolhido à Papuda.

Enquanto isso, as corporações e o forte funcionalismo do DF foram se infiltrando na Câmara Distrital e na administração pública. Os senhores e senhoras distritais vêm de sindicatos e/ou integram a ascendente categoria do “político evangélico”. E a turma é boa de reivindicação e de garantia de privilégios.

Como o DF tem pesadas subvenções da União, Brasília é uma cidade rica e as categorias do funcionalismo estão entre as mais bem pagas do País. Então, com servidores de elite e bem pagos, os serviços são uma maravilha, certo? Há controvérsias. Aparentemente, o dinheiro todo vai para os servidores e pouco sobra para os serviços.

Desde 2006 há alertas e desde 2011 há relatório do Tribunal de Contas pedindo urgência no reparo de viadutos e pontes, mas eles continuaram ruindo, como os hospitais, as escolas, os bens da sociedade. Dinheiro havia, mas ou ele custeava salários e aposentadorias da burocracia, ou escapava pelos ralos da corrupção.

É assim que Brasília chega a 2018 como uma jovem precocemente envelhecida, mas com o estádio mais caro do planeta, construído, novinho em folha, para acolher uns dois ou três jogos da Copa do Mundo. Abriu-se o estádio, a bola rolou, o jogo acabou e fechou-se o estádio. Ficaram a inutilidade, a manutenção, os buracos e as goteiras de um dos muitos elefantes brancos que se espalham do Norte ao Sul.

Nada disso é muito diferente, por exemplo, do que ocorre tristemente, dramaticamente, no Rio e em tantos Estados e cidades do nosso lindo Brasil, tão varonil, onde o casamento de corrupção, descaso, incompetência, promiscuidade público-privado e privilégios corrói o desenvolvimento e solapa o futuro.

O que caiu no centro da capital da República não foi só um viaduto, foi uma ira acumulada em muitos anos, governos e práticas lesivas. Muita ganância, pouco caso com a coisa pública. Que, ao menos, sirva de alerta. Desta vez, tivemos sorte. Talvez não tenhamos tanta nas próximas. E elas virão, com viadutos, pontes e vias vindo abaixo e arrastando, com eles, as nossas esperanças.

Meditando no carnaval - FERNANDO GABEIRA

O GLOBO - 11/02
Se for a única opção, teremos o carnaval apesar de tudo

RIO — Andei por Salvador visitando mosteiros, templos e terreiros para um programa de tevê. Encontrei o carnaval duas vezes, em Ondina e no Rio Vermelho. Entrei na multidão para documentá-lo, mas não podia deixar de refletir. Não sou especialista em carnaval, nem mesmo fui um observador atento da festa nos últimos anos. Meditei um pouco sobre ele não no sentido que os budistas dão à meditação: um processo que esvazia a mente. Aliás, tenho dificuldade de alcançar esse estado de concentração e o mais perto que consigo chegar dele é quando estou boiando de costas. Meditação no meu caso é dar voltas sobre o tema.

Os entendidos dizem que o carnaval libera sentimentos reprimidos durante o ano de trabalho. Pensei: mas o que falta mais ser liberado? Na medida em que os costumes tornam-se mais ousados, o que restará aos foliões nos dias de festa?

Homem vestido de mulher, por exemplo, pode ser considerado um tipo de liberação num tempo em que isto é feito com profissionalismo e sucesso pelos artistas? Já vi poucos homens vestidos de mulher, mas prevejo uma certa decadência dessa fantasia de carnaval. Com o feminismo em ofensiva, as mulheres podem duvidar se certo modo de travestir é mais uma zombaria do que propriamente imitação.

No que me parecia um bem policiado carnaval, com PMs e guardas municipais em movimento entre os foliões, pensei no carnaval do Rio. Um motorista de táxi me disse: um estrangeiro deve achar estranho que num país em crise e o Rio em guerra civil, tanta gente saia para o carnaval. Mas um estrangeiro não sabe da força que impulsiona as pessoas, uma alegria que precisa sobreviver nas mais duras circunstâncias.

Mas há algo que me preocupa no carnaval em nosso esforço de fazer uma grande festa, apesar de tudo. No meio da semana, três vias importantes foram interditadas: Avenida Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela. De repente, minha reação foi pensar que alternativas teria caso tivesse de entrar ou sair da cidade. É assim que a gente começa a se acostumar.

Muitos já consultam o aplicativo Onde tem Tiroteio antes de se deslocar. Certos lugares, certas horas tornam-se proibidos. E a gente se adaptando.

Com o tempo, descobrimos que a vida está mudada e nosso comportamento é o mais ou menos clássico das populações que vivem em longos conflitos: tocar a vida com alguma normalidade apesar do caos em torno.

Há uma sabedoria nisso, mas também uma certa resignação. E se for a única opção, continuamos com o carnaval apesar de tudo, com nossa vida “normal” apesar de tudo, e as coisas podem piorar.

Claro que a situação e os movimentos do governo, o principal responsável pela segurança pública, são desalentadores. Falou-se num plano de segurança no ano passado e até agora não só saiu do papel como sequer o próprio papel saiu. O governador Pezão disse que o recebeu no meio da semana e não teve tempo de lê-lo. É de se esperar pelo menos que o leia nesse feriado de quatro dias.

Tecnicamente, com um método adequado, suponho que seja um tempo suficiente até para se aprender a ler, quanto mais folhear algumas páginas. Apenas uma fração dessa exuberante energia popular no carnaval seria suficiente para forçar os governos a buscar algo menos reativo, a parar de enxugar gelo.

No momento, as autoridades estão meditando em público sobre a crise. O ministro da Defesa, Raul Jungmann, afirma, com razão, que o sistema de segurança está falido. O governador, por sua vez, diz que na Rocinha os policiais são mortos como se mata galinha. O problema é que estão na linha de frente. Quem mói no aspro não fantaseia, dizia Riobaldo, personagem de Guimarães Rosa.

Comentários a gente ouve no rádio, lê nos jornais e na rede. O que se espera deles é ação. O sistema está falido, os policiais são assassinados, e daí? O que vão fazer, o que podemos fazer para ajudá-los?, esse é foco. A lentidão com que o plano de segurança para o Rio andou é um sintoma de que há algo errado. O governo não pode ficar chorando, embora a situação seja mesmo de chorar, sobretudo com a morte de crianças.

Muitas coisas, espero, serão resolvidas nas eleições de 2018. Mas há algumas que não podem esperar. A crise de segurança pública é uma delas. Por favor, um plano, articulação entre as forças de segurança, foco, aliança com a sociedade — essa é a forma um pouco mais elaborada que tenho para escrever SOS.

A situação das Forças Armadas é diferente da do governo do Rio, composto por um partido que arruinou o estado e cujos líderes estão na cadeia.É dela que pode vir um nível de organização maior, aproveitando o que ainda há de combativo na polícia local.

É um abacaxi para quem se preparou para guerras entre países? Talvez. Mas é de onde pode surgir a capacidade de reação. Não se trata nem de achar a solução para o problema, mas trazê-lo apenas a um nível suportável, para que outras dimensões, como a política social, o crescimento econômico e a própria educação entrem com sua parte.

Caravanas de Chico, 32 anos atrasada - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 11/02

Não foi a raiva da elite branca que expulsou as classes C e D dos voos, mas a crise econômica


No verão de 1984, o governo do Rio --sob a liderança do governador Leonel Brizola e o planejamento urbano aos cuidados do arquiteto e urbanista e então secretário dos Transportes Jaime Lerner-- franqueou o túnel Rebouças, principal ligação entre as zonas norte e sul da cidade, aos ônibus. Até aquele momento só carros transitavam pelo Rebouças.

Uma pesquisa na internet no arquivo do "JB" documenta que inicialmente o encontro dos banhistas da zona norte com os frequentadores das belas praias da zona sul não foi muito harmonioso.

A "Coluna do Zózimo" de 27 de novembro de 1984 noticiava que se "criou uma palavra perfeita para definir a horda que invade as areias de Ipanema nos fins de semana ensolarados, despejados pelas amplas portas dos ônibus Padron, que fazem a ligação non-stop zona norte-zona sul. É a turma da galhofa. Galinha com farofa".

Não faltou sugestão para que a circulação no túnel fosse pedagiada ou que os ônibus somente circulassem nos dias úteis.

O sucesso do rock nacional "Nós Vamos Invadir sua Praia", da banda Ultraje a Rigor, lançado em 1985, ecoava esse encontro.

No fim de 2017, nosso maior artista popular em atividade, Chico Buarque, lançou o CD "Caravanas". Na belíssima faixa "As Caravanas", Chico descreve o desconforto dos ricos e brancos com os pobres e pretos nas praias da zona sul do Rio.

"Caravanas" está 32 anos atrasada.

Por que o atraso? Há uma narrativa construída pela esquerda segundo a qual nossa crise econômica --perda de 9% de PIB per capita entre 2014 e 2016 (a segunda pior dos últimos 120 anos) e a maior taxa de desemprego da história-- é fruto da crise política. Esta, por sua vez, resulta de a parte mais rica da população não suportar o convívio nos mesmos espaços sociais com a parte mais pobre, resultado dos avanços sociais da era Lula. Uma das ideias emblemáticas desse discurso é que a elite branca não tolera conviver com pobres e pretos em aeroportos.

Segundo essa visão, todos os erros de política econômica do governo petista --do abortamento do ajuste fiscal em 2005, "pois gasto social é vida", e o ajuste era "rudimentar", à nova matriz econômica-- nada têm a ver com a crise.

A dificuldade com a ideia da sabotagem dos ricos à ascensão social dos pobres é que dela não se encontra nenhuma comprovação. No caso dos aeroportos no período petista, por exemplo, a mesma busca nos jornais, que encontrou inúmeras referências a desconforto com a invasão das praias em 1984, não consegue achar nada equivalente. O que se encontra, por outro lado, é muita gente de esquerda afirmando que a elite branca não aceita dividir os aeroportos com a nova classe C. Mas não há relatos concretos que comprovem essa percepção.

O que houve, na verdade, foi desconforto com a baixa qualidade da infraestrutura em geral, o que inclui aeroportos. Aliás, essa foi a motivação das manifestações de junho de 2013. Uma das frases que circularam com destaque na época foi que "em país rico as pessoas vão ao trabalho de transporte coletivo, e não de carro".

Mesmo no evento bem lamentável das praias cariocas em 1984, a pesquisa na imprensa do Rio à época mostra que os maiores problemas foram resolvidos quando o poder público se fez presente. O "JB" do dia 1º de janeiro de 1985 noticiou que os afogamentos e os roubos se reduziram com a melhora do policiamento e do serviço de salva-vidas.

No caso presente, nem foi preciso esperar a infraestrutura aeroportuária melhorar. As classes C e D foram expulsas dos aeroportos pela crise.

Diferentemente da sugestão de "Caravanas", não foi a raiva da elite branca que expulsou a população dos voos. A incompetência da gestão econômica petista fechou o túnel Rebouças da ascensão social.

Huck, novo FHC e novo tucano - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 11/02

Parte da elite graúda mais ilustrada quer ganhar a eleição e dissolver a política que está aí

TALVEZ tudo se acabe na Quarta-feira de Cinzas. Luciano Huck prometeu dizer ao povo se fica na Globo ou se sai candidato depois do Carnaval. Pode ser então que FHC pare de cristianizar a candidatura de Geraldo Alckmin.

Seja como for, fica uma questão: qual o sentido dessa tentativa de FHC de dissolver o que resta da política partidária, lançando perfume ácido em seu próprio partido? Não se trata de uma pergunta apenas sobre as profundezas da alma política tardia do ex-presidente.

As respostas são óbvias, mas nem todas desinteressantes. Primeiro, acredita-se que Huck tenha mais chance de vitória. Segundo, FHC e seu círculo da elite econômica mais ilustrada e discreta gostariam mesmo de dissolver a política partidária que está aí.

Não é um elogio da estratégia. É a identificação de um sintoma evidente. Além de candidato a animador de um governo tocado por terceiros, Huck tem rosto e alma desses patrocinadores de novos grupos políticos, esses coletivos de ricos e classe média, por assim dizer, vários deles seus cabos eleitorais.

Multiplicaram-se essas ONGs de formação e patrocínio de quadros políticos novos, extrapartidários, também chamadas sintomaticamente de "start-ups" políticas, com ares despolitizados, mas nesse caso liberais e centro-direitistas. Lançarão dezenas de candidatos ao Congresso.

Os mais notórios e organizados desses grupos têm apoio de empresários e financistas graúdos mais ilustrados. Têm traços do tucanato original, diferente desse que ficou com a carantonha de MDB, do que essa elite tem nojinho (FHC não disse que Huck é a cara do PSDB por acaso).

Não deixam de ser movimentos sociais, nome que sempre foi colado a associações de esquerda e populares, um assunto de interesse de FHC. Não perfazem um partido, sem o que não se vai longe em política. Huck não tem grupo político, sem o que também não se faz um partido. Ainda assim, reconheça-se que há gente, de cima a baixo, procurando enfiar cunhas na política que está aí. Quanto à eficácia ou qualidade da investida, é história para outro dia.

Huck não tem garantia de legenda no DEM, que vai decidir uma candidatura mais tarde, e não se sustenta apenas com o PPS, que lhe escancarou as portas. Mesmo assim, o plano Huck ou outro plano B "novo" da centro-direita solapam Alckmin. Logo de cara, o plano B se torna plano A. Se Huck ou equivalente der chabu, o que sobra?

Alckmin já está em maus lençóis. A direita mais xucra que nele poderia votar adere a Jair Bolsonaro, que ganha outdoors de fazendeiros pelo interior do país e aplausos de colaboracionistas na finança paulista. O inefável senador Álvaro Dias (Podemos) ganha votos no Sul. Rodrigo Maia até pode ser candidato.

A variedade de candidatos à direita come pontos do governador paulista nas pesquisas, o que realimenta a descrença em suas possibilidades, um círculo vicioso. Para piorar, Alckmin começa a dar tiros no pé, se metendo em rolos fora da ordem do dia, como a impopular privatização da Petrobras. Em breve, vai apanhar por causa dos anéis largos e dos trilhos compridos da corrupção paulista.

A eleição e o país prosseguem em desordem.

Golias contra Davi, em breve no Planalto Central - BOLÍVAR LAMOUNIER

ESTADÃO - 10/02

Moro será morto e lançado aos cães ou o gigante cairá fulminado pela certeira funda?


“Prova”, no plano da técnica jurídica, é um conceito complexo, daí o extremo cuidado com que todo juiz tem o dever de se conduzir na apreciação das informações que lhe chegam às mãos. Mas é algo perfeitamente compreensível a partir da razão comum que Deus, em sua infinita bondade, repartiu igualmente entre os homens, dela excluindo só os de má vontade e os mentalmente prejudicados. Realmente, só um rematado idiota ou alguém movido por interesse contestará que a história montada pela defesa de Lula acerca do sítio em Atibaia é uma farsa sem tamanho. Quem contasse algo parecido para tentar iludir um cidadão comum – alguém que não tenha ocupado altos cargos políticos ou não possa arcar com os obscenos honorários cobrados por advogados de renome – deveria ser imediatamente levado à delegacia de polícia mais próxima.

A reflexão acima veio-me à mente, como é óbvio, a propósito do inquérito do sítio em Atibaia, cuja propriedade Lula contesta, e da entrada do ex-ministro José Paulo Sepúlveda Pertence na equipe de advogados que defende o ex-presidente.

Tive o privilégio de conviver com o dr. Sepúlveda Pertence nos anos 1985-86, como colega dele na Comissão Afonso Arinos, nomeada pelo presidente José Sarney a fim de elaborar um anteprojeto de Constituição. Vezes sem conta me deslumbrei com a clareza de seu intelecto e a solidez de seus conhecimentos jurídicos. Não menos importante, admirava o rigor de suas convicções republicanas. Discordávamos no tocante ao sistema de governo – ele, presidencialista, eu, parlamentarista –, mas confortava-me sentir que daí não advinha diferença alguma em nossa devoção à democracia representativa.

Faz tempo que não o encontro, mas tenho, infelizmente, a impressão de que nos distanciamos um pouco no entendimento de nossos antigos ideais e valores. Apresso-me a esclarecer que essa afirmação não decorre diretamente de ele ter aceitado integrar a defesa de Lula. Todo acusado tem direito a defesa; argumentando por hipótese, digo que eu mesmo, se fosse advogado, torceria o nariz, mas aceitaria defender o ex-presidente. Tampouco me refiro aos altos honorários que vai receber, a julgar pelo que a imprensa veiculou durante a semana, cujos reais valores não conheço e não tenho interesse em conhecer.

O que me causa estranheza no caso é a natureza da relação que aparentemente se pretende estabelecer entre a acusação e a defesa – ou, para dizê-lo sem rodeios, entre o juiz Sergio Moro e o ministro Sepúlveda Pertence. A relação que começa a se configurar me parece bem distinta da clássica lide forense, na qual as partes até certo ponto se equivalem. Não é simplesmente o fato de que uma estará do lado de cá e a outra do lado de lá, com recursos e prerrogativas semelhantes, salvo, é claro, por uma eventual diferença de qualificação intelectual. Até onde me é dado compreendê-la, o que se tem dito, e me parece plausível, é, em primeiro lugar, o que geralmente se designa como “tráfico de influência”.

Um gigante das letras jurídicas brasileiras, ex-ministro do próprio STF, é contratado para exercer uma influência difusa sobre os integrantes do Egrégio Colegiado, levando um ou outro a mudar sua linha de raciocínio – no limite, até sua convicção – no tocante à prisão após a decisão em segunda instância. Influência decorrente, portanto, de uma posição de elevado status no nível mais elevado da comunidade de magistrados. Há crime nisso? Creio que não, mas, não tendo tido oportunidade de me louvar em matéria jurídica, abstenho-me de perseguir essa linha e volto ao que me parece palpável: o recurso ao status e a singularidade da questão que ora nos ocupa no presente contexto brasileiro.

Pertence, como antecipei, estará “do lado de cá: na defesa”. Do lado de lá, encarnando a prerrogativa acusatória inerente ao Estado, estará Sergio Moro, um juiz federal de primeira instância.

A questão crucial que o STF vai examinar é se Lula deverá ou não ser preso imediatamente. Já condenado em segunda instância, tal exame recairá somente sobre questões técnicas de Direito, não sobre o mérito, já decidido.

Visto por esse ângulo, o recurso de última hora ao status – quero dizer, a clara intenção de contrastar um deus do Olimpo aos dei minori do STF e mais ainda ao pobre diabo de Curitiba que exarou a primeira sentença – parece-me indisfarçavelmente antiética. Mas, como não poderia deixar de ser, admito que estou a exprimir uma opinião, um juízo de valor, uma expressão do que a meu ver deveria ser a ética advocatícia. Afirmo, não obstante, que minha inquirição ética vai muito além da aceitação da tarefa pelo douto ex-ministro Pertence. No cerne dessa celeuma há uma questão relevante para todo o ordenamento jurídico do País e para os valores que pelo menos em tese regem nossa ordem política: a da busca da igualdade republicana.

Não admitir a prisão em segunda instância equivale a deixar livres os criminosos que possam arcar com altos honorários advocatícios e facilitar a prescrição de seus crimes, apontando aos destituídos da terra a imediata reclusão numa das fétidas masmorras mantidas pelo Estado brasileiro. Isso é República? É igualdade de tratamento? De forma alguma. É outorgar a Lula um tratamento diferenciado, mais que isso, o status de monarca absoluto, acima de qualquer norma jurídica ou costumeira, no país que se quer republicano.

Esse aí, em português corrente, o triste papel que José Paulo Sepúlveda Pertence acaba de assinar. Comparado a Moro, homem de estatura média, ele parece um Golias de três metros. O futuro, como sabemos, a Deus pertence. Em algumas semanas saberemos se Moro será morto e lançado aos cães, como queria Golias, ou se o gigante cairá fulminado pela certeira funda de Davi.

*Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor do livro ‘Liberais e Antiliberais’ (Companhia das Letras, 2016)

Brasil sem reação aos sinais de alerta global - ROLF KUNTZ

ESTADÃO - 11/02

Turbulência nas bolsas pode ser um sinal de risco - e o País continua vulnerável a choques


Três sustos em uma semana deveriam ser suficientes para despertar a pergunta: como o Brasil enfrentará um novo choque internacional? A turbulência na Bolsa de Nova York, na segunda-feira, na quinta e na sexta, com impactos em outros mercados, incluído o brasileiro, torna indispensável a interrogação. Outras economias, com alicerces mais firmes, quase certamente aguentarão sem grande estrago um ajuste nos preços de ações, no mercado de crédito e nos fluxos de capitais. Poderão sofrer danos, mas toleráveis. No Brasil, só os muito desinformados ou irresponsáveis podem estar tranquilos. Num país com finanças públicas estouradas, dívida crescente, crédito soberano já rebaixado e em perigo de novo rebaixamento, o cenário de riscos é muito diferente. Contas externas em ordem e reservas em torno de US$ 380 bilhões dão alguma segurança. Mas isso pouco significará no caso de um desastre fiscal iminente, especialmente com uma dívida pública próxima de 80% do produto interno bruto (PIB).

O risco de um ajuste severo nos mercados vem sendo apontado há pelo menos dois anos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e por outras fontes importantes de informação e de análise. O assunto foi mais uma vez discutido na reunião do Fórum Econômico Mundial, no mês passado, em Davos. Os temores e seus fundamentos são bem conhecidos de quem acompanha regularmente a economia global.

O perigo está associado às ações, até agora vitoriosas, de combate à recessão iniciada em 2008. Os bancos centrais aplicaram nos últimos dez anos, no mundo rico, políticas monetárias muito frouxas para estimular a reativação dos negócios e a redução do desemprego. Os juros ficaram muito baixos e volumes enormes de dinheiro foram emitidos.

A estratégia deu certo. A atividade voltou a crescer nas economias avançadas e empregos foram recriados - tudo isso num ambiente de inflação abaixo de 2% ao ano. O desemprego nos Estados Unidos, de 4,1%, é um dos menores de todos os tempos. Mas dinheiro farto, com juros em níveis historicamente muito baixos, propiciou, além do endividamento excessivo de grandes empresas, negócios arriscados, especulação e supervalorização de ativos.

Alguma correção será inevitável, têm advertido analistas de várias instituições. Cotações deverão normalizar-se e, além disso, a reversão das políticas monetárias afetará as condições de financiamento e a formação de preços em vários mercados. A grande dúvida é se o ajuste será gradual e suave ou se a mudança será dolorosa. O Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) foi o primeiro a rever a estratégia. Lentamente, os juros básicos foram elevados da faixa de zero a 0,25% para o intervalo de 1,25% a 1,5%. Na primeira reunião de 2018, o comitê de política do Fed manteve os juros na posição alcançada no fim de 2017. A previsão de três aumentos neste ano é sustentada por uma parte dos analistas, mas apostas em quatro elevações espalharam-se nos últimos dias. A esses temores se somou na semana mais um fator de instabilidade, a forte baixa dos preços do petróleo, acentuada na sexta-feira.

Diante da continuada expansão do emprego nos Estados Unidos e da elevação dos salários, as pressões inflacionárias devem crescer, dizem analistas. Isso poderá estimular as autoridades monetárias a apressar o aumento dos juros e o aperto das condições de crédito, afetando a formação de preços tanto nas bolsas de valores quanto em outros mercados. Brasileiros e outros latino-americanos deveriam dar atenção a um detalhe. Com dinheiro mais caro, sobe o custo de manutenção de estoques. Isso derruba, normalmente, os preços dos produtos agrícolas e dos minérios, grandes fontes de dólares para os países da região.

Por enquanto, a rapidez da alta de juros, a intensidade do aperto no mercado financeiro e as condições de correção dos preços ainda são temas de especulação. Na melhor hipótese, os dirigentes do Fed continuarão agindo com moderação, os ajustes serão suaves e só os muito expostos e muito imprudentes serão afetados. Não há dúvida, no entanto, quanto à mudança das políticas monetárias, à correção de uns tantos preços e ao aperto das condições de financiamento. Também é preciso levar em conta a reversão das políticas do Banco da Inglaterra e do Banco Central Europeu, ainda muito frouxas.

Mesmo na melhor hipótese, as condições ficarão bem menos favoráveis para o Tesouro brasileiro e as empresas com endividamento excessivo. Pânico é dispensável, mas otimismo é um luxo, e qualquer negligência diante da previsível mudança do quadro representará uma combinação de estupidez com irresponsabilidade.

Dirigentes do Banco Central do Brasil têm alertado com insistência para o fim, sem data prevista, do cenário externo até agora descrito como benigno. A advertência foi repetida na quarta-feira, no comunicado sobre o corte dos juros básicos de 7% para 6,75%. Segundo o informe, o ciclo de redução pode ter chegado ao fim. Novo corte na reunião de março dependerá de alguma novidade muito importante.

Essa novidade poderá ser uma boa notícia, hoje improvável, sobre os ajustes e reformas necessários para prevenir um desastre fiscal nos próximos anos, talvez em 2019. A aprovação da reforma da Previdência seria o passo mais importante, nesta altura. Mas até a percepção do problema é duvidosa num Congresso formado em grande parte por figuras com mandato federal combinado com preocupações paroquiais.

Não está claro se restam ao presidente meios de barganha, hoje sinônimo de persuasão, para obter apoio a mais um projeto importante. Ainda preso no atoleiro da nomeação da deputada Cristiane Brasil para o Ministério do Trabalho, o governo precisará de um milagre, ou quase, para mobilizar na Câmara os 308 votos indispensáveis. Sem isso a combinação da crise fiscal com a mudança externa poderá ser mais um capítulo dramático da história da irresponsabilidade nacional.

* JORNALISTA

Senador Eike Batista - ASCÂNIO SELEME

O GLOBO - 11/02
Verdade, Eike pensa em se candidatar ao Senado. Veja o que ele diz sobre seus planos agora e como foram os dias na prisão

Numa conversa de duas horas e meia em seu escritório, no Flamengo, o ex-bilionário Eike Batista disse que estuda propostas para se candidatar ao Senado. Segundo ele, alguns partidos já o procuraram. “Não tenho nenhum impedimento judicial. Não fui sequer julgado em primeira instância”. Perguntei se não estava querendo foro privilegiado. “Não. Eu quero ajudar. Eu preciso me reinventar. Hoje, sou provavelmente a maior fake news do mundo. Ninguém sabe o que eu fiz pelo Brasil. Eu trouxe para o Brasil US$ 40 bilhões em investimentos. Eu vou ajudar a não deixar projetos desnecessários serem construídos.”

Calcula que perdeu US$ 34 bilhões e avisa que agora vai ser consultor. “Posso ganhar muito dinheiro com isso. Vai ser a Eike Batista Consulting. Como não tenho capital, eu posso entrar com suor e o cara me dá um pedaço do negócio. Sempre soube que eu poderia pintar novos quadros”. Em março, ele vai receber um grupo de 30 alunos de Stanford. Diz que eles querem saber o que ele pensa sobre Brasil, mundo e energia. “Estão vindo porque, na cultura dos americanos, fracasso é considerado um aprendizado. E hoje, modéstia à parte, eu sou um empresário melhor ainda”.

Diz que deu dinheiro para campanhas de Sérgio Cabral, mas que nunca recebeu contrapartida por isso. “Nem isenção fiscal ganhei”, jura Eike. “Sérgio Cabral era um pidão. Aquele acidente horroroso na Bahia interrompeu um lado disso. Por causa do acidente, avisei que nunca mais emprestaria meu avião para políticos. E nunca mais emprestei”. Agora nem adianta pedir, ele não tem mais jatinho. (Cabral viajou para a Bahia num avião de Eike; o acidente foi a queda de um helicóptero, com mortes, na sequência daquela viagem.)

Do BNDES pegou R$ 16 bilhões, foram R$ 3 bi para o Porto de Açu, outros R$ 3 bi para o Porto do Sudeste, e R$ 10 bilhões para a Termelétrica do Nordeste. Eike acha pouco, porque investira R$ 120 bilhões. “Todos os empréstimos tinham meu aval pessoal e seguro de bancos privados. E todos estão em pé, com donos fortes como os Moreira Salles, o Fundo Soberano de Abu Dhabi e um fundo gigante dos EUA”. Ele diz que estava enquadrado no padrão de financiamentos do banco. “Se fosse para comprar um frigorífico, estaria totalmente fora. Os meus eram projetos estruturantes”.

Os 90 dias de prisão foram “duros”. No começo houve uma romaria de funcionários do presídio passando em frente de sua cela. “Olhavam para dentro para se certificar que era eu mesmo. Me senti um tigre branco de bengala, um albino”. Depois que a porta se fechou e a curiosidade passou, a vida na cadeia começou a apresentar a conta.

Em Bangu, Eike ficou numa cela de 12 metros quadrados com duas outras pessoas. “Graças a Deus, um deles tinha TOC de limpeza. Toda hora passava álcool nas coisas”. O mais importante na cadeia, segundo ele, é manter a saúde. No dia em que o preso chega, ouve uma recomendação: “Faz de tudo para você não ir para a UPA, porque se você for para a UPA vai pegar tuberculose”. A incidência de tuberculose é alta nos presídios, e as pessoas com a doença são levadas para serem tratadas na UPA, que vira um foco. “Então, regra número um na cadeia, faça de tudo para não ficar doente. Higiene é fundamental”.

Medo de apanhar ele não teve. Diz que, por sorte, ficou na ala dos milicianos. “Eu sempre ajudei muito a polícia do Rio via UPPs. Dei R$ 80 milhões para a polícia pacificadora. Neste caso, parei no lugar certo e num ambiente adequado”. Afirma que não se desesperou porque recebia a visita diária de sua mulher Flávia. “Mas não havia visita íntima. Ela só podia ir todos os dias porque era advogada, e era como advogada que me visitava”.

O pior momento era o do boi. O famoso sanitário sem assento, apenas um buraco no chão, e sem porta, dentro do mesmo ambiente. “Ruim é o cheiro. Mas tem algumas técnicas. O chuveiro está logo em cima, então você pode deixar o chuveiro ligado e fazer as necessidades. Aí a água escorre com tudo muito rapidamente. Some logo e o cheiro some também. Você precisa estar no ângulo certo. Um dos que dividiam a cela comigo, um doleiro grandalhão, tinha dificuldades no boi por causa da sua estatura. Aí a gente ficava ensinando, vai mais pra frente, vai mais pro lado”.

Eike fazia exercícios na cadeia. “Na cela eu fazia muitas flexões. E com o apoio das grades, fazia agachamento para fortalecer as pernas. Na minha hora de pátio, ficava correndo. Só me deixavam ficar num pátio interno pequeno. E eu ficava dando voltas, como um hamster. Dava cem voltas cada vez”.

Você não fica deprimido? Tudo o que você montou hoje está nas mãos de outros? “Não. Eu vou fazer de novo. E eu já sei onde”.

Onde? “No lugar certo”.

Alguns dos executivos que trabalhavam para você estão mais ricos do que você... “Estão, mas não por muito tempo”.

Você faz terapia? “Não. Me considero autorresolvido”.

Robôs na campanha

No julgamento do recurso de Lula no TRF-4, 5,5% das manifestações de apoio ao ex-presidente nas redes sociais vieram de robôs e não de apoiadores de carne e osso. Entre as mensagens de críticas a Lula, 5,1% também foram originadas por máquinas e não por gente. Os dados são da Diretoria de Análise de Políticas Públicas (Dapp) da FGV e projetam uma campanha eleitoral repleta de armadilhas e perigos.

A falta que Côrtes fará

Sérgio Côrtes era considerado um dos presos mais ativos de Benfica. Prestava serviços médicos nas 24 horas do dia. Aquela visita noturna que fez ao Garotinho foi apenas uma de muitas. Seus amigos dizem que ele fazia mais de 20 atendimentos por dia, desde consultas clínicas até curativos de feridas por traumas ou cortes e pequenas cirurgias em abscessos e pés diabéticos. A grita em Benfica é unânime: Volta, Côrtes!

Aperto na família de Cabral

O filho mais velho de Sérgio Cabral, João Pedro, não paga há seis meses a taxa do condomínio do prédio em que mora no Jardim Botânico. Ele é filho de Susana Neves Cabral, primeira mulher do ex-governador. João Pedro mandou uma carta aos condôminos explicando que a situação dele e da família entrou em colapso desde a prisão do pai. Não se sabe como andam as contas de Adriana Ancelmo.

Boa notícia

Financiada exclusivamente com recursos privados, de pessoas físicas e empresas, a Pastoral do Menor do Rio atendeu e beneficiou 10.250 crianças e adolescentes em 2017. Os programas, que vão de cursos de capacitação até atendimento à saúde bucal dos jovens, são todos desenvolvidos em comunidades carentes do Rio. O programa que teve mais participantes no ano passado foi o de inclusão digital, com 3.250 beneficiários.

Cota para talento

Interessantes estes decretos que estabelecem cotas para projetos de filmes feitos por mulheres, negros e índios no pacote de financiamento do Ministério da Cultura. Afinal, é bom quando o dinheiro público ajuda a incluir. E quanto mais democrática sua distribuição, melhor. Tem que ver agora como garantir cota para talento, de modo que os filmes sejam vistos por serem bons. Mas, para burocrata, talento é apenas um detalhe.

Medo na Escola Parque

Além da mudança anunciada de uma de suas unidades na Gávea, a Escola Parque deu outras explicações aos pais de seus alunos sobre segurança. 1) Manterá contato permanente com o Bope para monitorar a segurança local; 2) Pede que pais não busquem seus filhos no momento de algum conflito, é pior; 3) Os confrontos na Rocinha ocorrem do outro lado do morro, sem acesso direto à escola; 4) Tiro reto não alcança a escola, só se for disparado para o alto, que aí não se sabe onde a bala pode cair.

De olho no televisor

O marqueteiro João Santana pediu retificação de nota publicada aqui de que estaria negociando a compra de uma TV na Bahia. Ele diz que, com seus bens bloqueados, não consegue comprar nem um televisor, imagine uma TV. Registrado.

O sucesso da reforma trabalhista - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 11/02

Nova legislação vai sendo consolidada com mais rapidez e menos resistência do que se imaginava


As últimas estatísticas da Justiça do Trabalho, elaboradas com exclusividade para o Estadão/Broadcast, revelam que a entrada em vigor da reforma trabalhista, em 11 de novembro do ano passado, teve dois efeitos esperados. Procurando beneficiar-se da anacrônica legislação herdada da ditadura varguista, vários reclamantes se apressaram para ajuizar ações até a primeira semana de novembro. E como a nova legislação modificou os critérios para o acolhimento de reclamações judiciais, aumentando o rigor no acesso ao Poder Judiciário, a partir de dezembro o número de novos processos caiu drasticamente.

Em média, segundo os números do Tribunal Superior do Trabalho (TST), as Varas Trabalhistas de todo o País receberam no último triênio de 2015 e 2016 cerca de 200 mil novas reclamações por mês. Por causa da reforma trabalhista introduzida pela Lei n.º 13.467, entre setembro e a primeira semana de novembro de 2017 foram protocoladas 289,4 mil. Já no mês de dezembro, foram propostos apenas 84,2 mil novos processos - um volume muito inferior à média. No mesmo período, no Tribunal Regional do Trabalho da 2.ª Região, que é o maior do País, englobando a Grande São Paulo e a Baixada Santista, o número de novas ações caiu para menos de 500 por dia. Antes da reforma, a média diária era superior a 3 mil e, no dia anterior ao da entrada em vigor da lei, chegou a quase 13 mil.

Um dos fatores responsáveis por esse fenômeno é de caráter financeiro. Pela legislação anterior, os custos de propositura de uma ação trabalhista contra empresas, por parte de empregados, eram mínimos. Além disso, no caso de não acolhimento de suas demandas, a parte derrotada não era obrigada a pagar honorários de sucumbência à parte vencedora. Na prática, isso estimulava uma litigância irresponsável, levando muitos empregados a fazer acusações infundadas aos empregadores, pedindo altos valores para negociar na primeira audiência o recebimento de quantias menores.

Para coibir essa prática e desestimular demandas judiciais nas quais as possibilidades de sucesso são remotas, a reforma trabalhista obrigou a parte derrotada a pagar as custas processuais, as perícias e os honorários dos advogados da parte vencedora. Também determinou que os trabalhadores indiquem com precisão, já na petição inicial, os direitos pleiteados e a indenização requerida.

Outro motivo da queda do número de novas ações trabalhistas envolve as incertezas dos advogados e dos reclamantes sobre como as novas regras serão julgadas pelas diferentes instâncias da Justiça do Trabalho. Envolve, igualmente, dúvidas com relação ao alcance que terão as decisões que o Supremo Tribunal Federal (STF) adotar ao julgar as 16 ações diretas de inconstitucionalidade impetradas pela Procuradoria-Geral da República, por entidades sindicais e por associações de juízes contra determinados artigos da Lei n.º 13.467. “Advogados e reclamantes preferiram lidar com o conhecido e evitar o desconhecido. Com a reforma é natural aguardar algum tempo para se ter mais elementos na condução dos novos processos”, diz Estêvão Mallet, professor de Direito do Trabalho da USP.

Para evitar incertezas e acelerar a implementação da reforma trabalhista, o TST prometeu adequar suas súmulas e sua jurisprudência à Lei n.º 13.467. Uma das questões mais importantes é saber se as novas regras podem ser aplicadas às ações protocoladas antes da entrada em vigor desse texto legal. O governo entende que a reforma abrange todos os contratos de trabalho vigentes. Na Corte, porém, há ministros que afirmam que elas só se aplicam aos contratos firmados depois de 11 de novembro.

Ainda que os trabalhos de modernização das súmulas e da jurisprudência do TST possam demorar e o STF não tenha fixado a data do julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade contra artigos da Lei 13.467, o fato é que a reforma trabalhista vai sendo consolidada com mais rapidez e menos resistência do que se imaginava.

Economia 4.0 x políticos 0.0 - CLÓVIS ROSSI

FOLHA DE SP - 11/02

Está em curso uma revolução industrial instigante mas assustadora que não entra na agenda da política


Roubo frase desta semana do presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa: "Não podemos querer uma economia 4.0 com políticos 2.0". Vale para Portugal, vale para a União Europeia (o gancho para o discurso do presidente), vale para o Brasil, talvez ainda mais.

Com uma única ressalva: suspeito que a maioria dos brasileiros acha que os políticos da terra não são nem 2.0. Talvez sejam 0.0.

No discurso do qual roubei a frase, Marcelo falava sobre as implicações do que se costuma chamar de quarta revolução industrial e dizia que não adianta estar sempre a falar de inovação e tecnologia com uma classe política do século passado.

O pior é que, no Brasil, não são apenas os políticos que são século 20 (alguns, até anteriores), mas também a agenda.

Reforma da Previdência, por exemplo, o tema que ocupa o noticiário político nos últimos muitos meses, é um assunto que já deveria ter sido encerrado no século passado.

Mais: por necessária e até indispensável que seja uma reforma previdenciária (a que está na pauta ou alguma outra melhor), o fato é que ela não vai preparar o país para o que o presidente português chamou de economia 4.0.

Essa revolução tem, claro, seu lado luminoso, mas também apresenta perigo, como relatado em "World Post", boletim semanal publicado em parceria por "Washington Post" e Instituto Berggruen: "Na medida em que o desemprego se reduz e a pressão para o aumento salarial sobe na era do capitalismo digital, a automação do trabalho por máquinas inteligentes vai se acelerar. Isso, em contrapartida, reforçará uma tendência já em andamento: o divórcio entre emprego e produtividade e criação de riqueza. A desigualdade então se aprofunda na medida em que a riqueza se concentra entre aqueles que detêm os robôs, por assim dizer, enquanto aqueles que só têm o trabalho para vender crescentemente se esfalfam para conseguir uma renda para viver por meio de bicos precários".

Esse é apenas um dos ângulos da economia 4.0. Eu adoraria que a academia brasileira e os institutos de estudos dos partidos promovessem debates como o que está agendado para terça-feira (13) pelo Royal Institute of International Affairs, mais conhecido como Chatham House, em Londres.

Chama-se "Capitalismo sem capital - A ascensão da economia intangível". O debate girará em torno do que a Chatham House chama de "silenciosa revolução" ocorrida já no início do século: o fato de que as maiores economias desenvolvidas começaram a investir mais em ativos intangíveis --como design, marcas, software e pesquisa e desenvolvimento-- do que em ativos tangíveis, como maquinaria, prédios e computadores.

O título do debate foi tirado de livro recente lançado por Jonathan Haskel e Stian Westlake (os dois debatedores), no qual chamam a atenção para o fato de que a ascensão de ativos intangíveis é "uma das causas pouco analisadas de fenômenos como desigualdade econômica ou estagnação da produtividade".

Nada disso entrou na pauta dos políticos brasileiros. Não merecem portanto nem o rótulo de "políticos 2.0". Vamos ficar mais e mais para trás.

Paralisia (in)decisória? - PEDRO MALAN

ESTADÃO - 11/02

O Brasil falha em se preparar. E crescem os riscos de esperar o carnaval - de 2019...


“Falhar em se preparar é preparar-se para falhar”, escreveu Benjamin Franklin, um dos pais fundadores da democracia norte-americana. A observação vale para indivíduos e organizações, mas também para países que estejam a viver momentos definidores. Como o Brasil nesta transição de 2018 para 2019 e adiante. Para muitos, o “ano da virada” será 2019 - o primeiro de um governo recém-saído das urnas, dotado de legitimidade e capital político, capaz de tomar decisões difíceis e avançar na agenda de reformas com o Congresso.

Na verdade, para que 2019 seja “ano de virada” é fundamental que 2018 também o seja. Quatro episódios de nossa história recente permitem compreendê-lo. Em meados de 1993, a inflação caminhava para mais de 2.000% ao ano e o descalabro das contas públicas era evidente; o Brasil não tinha a opção de esperar as eleições de outubro de 1994 e a posse, no começo de 1995, de um novo governo que então decidisse o que fazer. Assim como não podia, em meados de 1998, esperar o início de 1999 para adotar medidas drásticas de ajuste, anunciar seu programa fiscal para o triênio 1999-2001 e sinalizar a decisão de buscar apoio internacional para esse programa. Em meados de 2002 o Brasil não podia esperar o início de 2003; os riscos eram muito claros desde abril/maio e levaram a uma preparação para não falhar que permitiu transição civilizada entre o governo que saía e o que entrava - que fez muito bem a este último e ao País por vários anos.

O quarto episódio ilustra não um êxito, mas um fracasso. Em 2014 o Brasil falhou em se preparar - ou se preparou para falhar -, apesar dos inúmeros alertas de que a política econômica era insustentável e teria de mudar, qualquer que fosse o resultado das urnas de outubro daquele ano, aí incluída a eventual reeleição de Dilma Rousseff. A mudança veio no mês seguinte às eleições, quando era tarde demais. A recessão, iniciada em abril de 2014, só terminaria em dezembro de 2016 - após quase 10% da queda na renda per capita e 13 milhões de desempregados.

Encontramo-nos desde então em modesta, mas consistente recuperação cíclica, para a qual contribuiu a condução da política econômica. 2018 será um ano melhor que 2017, por sua vez melhor que 2016. Mas está claro que a sustentabilidade dessa recuperação depende fundamentalmente de avanços no processo de mudança e reformas. Este depende, por sua vez, de avanços na percepção da opinião pública, antes das eleições, sobre a natureza dos desafios. Quanto mais as dificuldades forem escamoteadas na campanha eleitoral, mais tortuoso será esse processo.

O risco de falhar em nos prepararmos é especialmente dramático em duas grandes áreas.

A primeira é a das finanças públicas. O equacionamento de sua insustentável situação exige que candidatos a presidente e a governador que se levem a sério se proponham a conhecer o nível e a composição de despesas, receitas e endividamento, respectivamente, do País e de seus Estados. Que mostrem a seus eleitores estar cientes da gravidade do problema e empenhados em enfrentá-lo, sugerindo linhas de ação e demonstrando disposição de buscar pessoas honestas e tecnicamente competentes para a empreitada. Será impossível evitar um debate sério sobre Previdência, a despeito do barulho das corporações.

A segunda grande área é a educação - que constitui o maior desafio na definição de nosso futuro neste século 21. Com foco no que é fundamental: a redução da desigualdade de oportunidades nos anos iniciais de formação. A exemplo do debate sobre finanças públicas, também aqui tem havido progresso no entendimento dos desafios. Mas tem faltado foco no que importa: a redução das desigualdades na distribuição de renda e de riqueza passa, necessariamente, pela redução das desigualdades na distribuição de oportunidades. Aprendizado de qualidade nas idades certas nas áreas de leitura, escrita e noções básicas de matemática e de ciências. Nosso sistema educacional é regressivo do ponto de vista da distribuição de oportunidades; o problema não se resolve no âmbito do ensino superior ou médio, porque então já é demasiado tarde.

Observações importantes de duas pessoas de diferente formação política ilustram as possibilidades de diálogo sobre essa que é uma das tragédias brasileiras. O atual secretário municipal de Educação do Rio de Janeiro, César Benjamin - responsável por 1.530 escolas, 650 mil alunos, 43 mil professores e 25 mil funcionários -, foi direto ao ponto: “Uma criança/adolescente que não aprendeu leitura e escrita e noções básicas de matemática já é um excluído”. Na mesma linha se pronunciou Simon Schwartzman, um de nossos mais respeitados especialistas no tema: “Uma criança que chegar aos 10/11 anos de idade numa escola precária, que não aprendeu a ler nem escrever, não tem futuro”. Ambos se referem, naturalmente, a este mundo em que o vertiginoso processo de “destruição criadora” em tecnologia de informação, robotização e inteligência artificial tende a marginalizar pessoas desprovidas das qualificações mínimas requeridas.

É domingo de carnaval e não quero aborrecer o leitor com números. Basta dizer que as duas observações citadas têm base em amplas evidências empíricas, como a Avaliação Nacional de Alfabetização, que cobre milhares de alunos de 8/9 anos e cerca de 2 mil escolas públicas; e a pesquisa da OCDE (Pisa), que cobre alunos de 15 anos de mais de 60 países do mundo. Têm amparo também em pesquisa oficial recente que compara pais e filhos em termos dos respectivos níveis de educação e renda - e mostram o desastre que é o analfabetismo funcional no Brasil. (Vejam a esse respeito o excelente artigo de João Batista de Oliveira Analfabetismo no Século 21, publicado em 27/1.)

Estamos falhando em nos preparar. Serão crescentes os riscos de esperar o carnaval - de 2019 - chegar. E passar.

* ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FHC.

Não é não (samba do pastor) - GUILHERME FIUZA

O GLOBO - 10/02

Vocês desfilam só para o irmão Crivella, deixando claro que beijo roubado é crime, diferentemente de dinheiro roubado

Está fazendo 30 anos o hit feminista dos cassetas, imortalizado pelo refrão “Mãe é mãe, paca é paca. Mulher, não. Mulher é tudo vaca”.

O brado dos sete rapazes de Liverpool-RJ que “não comiam ninguém” e ostentavam seu fracasso aos quatro ventos provinha de uma dor de corno: Bussunda tinha levado um pé na bunda. Era uma sátira à guerra dos sexos, ao próprio machismo e ao politicamente correto — que já ali, no final dos anos 80, saturava tudo e todos com sua fábrica de dogmas fantasiados de solidariedade. Três décadas depois, o bordão da moda é “Não é não”, contra as cantadas carnavalescas. O “Mãe é mãe”, hoje, levaria ao fuzilamento sumário.

As moças empoderadas com aquele “Não é não” tatuado no peito devem encher o Crivella de paz e esperança. É a mesma galera moderna e descolada que apoia a censura às marchinhas para proteger a cabeleira do Zezé e outras minorias cenográficas. Reacionários são os outros. Vão terminar todos num grande abraço moralista com os pastores eletrônicos.

Esse é hoje o maior bloco do mundo: os heróis reciclados da contracultura (meio século de mofo). Autoritários fantasiados de libertários é muito mais radical que homem vestido de mulher. E eles têm uma tara especial: fingir que vivem num mundo dominado por Crivellas e Bolsonaros, para pular em trincheiras imaginárias com seu kit-revolução de R$ 1,99. Só não é de dar pena porque o mercado está lucrando uma barbaridade com o teatrinho — e você é obrigado a consumir esse lixo no cinema, na TV, no museu, no bar da esquina e, para os menos afortunados, na cama. Para onde você correr tem um patrulheiro idiota com uma lição de vida solene.

Lição boa mesmo, testemunhada pelo mundo inteiro, foi a que Catherine Deneuve ofereceu a Meryl Streep — ensinando como se luta contra o assédio sem oportunismo fashion. Mas aí não tem graça. Se a ideia é justamente vestir um slogan e ficar bem na foto, o que essa francesinha tem que se meter onde não é chamada? Deixe a santa patrulha em paz, desfrutando o sagrado poder de destruir carreiras por um galanteio. Claro que isso não vai resolver o problema real — tabu não se derruba com tabu. Mas quem falou em resolver problema real? Eu, hein.

Se Hollywood não quer distinguir sedução de agressão, imagine o carnaval brasileiro. Mas eis que essa vanguarda walking dead colhe, enfim, a maldição das maldições.

Coroando esses anos dourados de picaretagem intelectual, afetação de bondade com fins lucrativos, defesa de militantes de aluguel (meu reino por um acampamento), complacência com assalto bilionário para forjar verniz de esquerda (eta, verniz caro), vista grossa a massacre de ditador amigo para não arranhar o tal verniz, apoio a transexual no vôlei feminino em detrimento da mulher (mexeu com todas, mexeu com nenhuma) e variações dessa diversidade de butique que invadiu até programas de humor (sistema de cotas?), a vanguarda retrô chega ao seu clímax no carnaval 2018: para a grande festa pagã, emoldurou a mulher com a palavra “não”. O prefeito pastor não faria melhor.

Catherine Deneuve diria que essa gente deve estar usando cinto de castidade mental. Se “não é não” fosse símbolo de afirmação feminina, “vem ni mim que eu sou facinha” (que é até nome de bloco) seria o quê? Desempoderamento? Vulgarização da mulher? Apologia ao assédio? Com esse senso de humor tão fino, vocês ainda vão transformar o carnaval num funeral igual ao do Globo de Ouro (risos... Obrigado, Danuza).

Vamos fazer melhor: vocês desfilam só para o irmão Crivella, deixando claro que beijo roubado é crime — diferentemente de dinheiro roubado, que vocês apoiam e até aplaudem o ladrão, como foi visto outro dia no Teatro Casa Grande. Aliás, os gastos multimilionários dos companheiros bandidos para se manter à solta poderiam ser estendidos ao empoderamento carnavalesco. Um Sepúlveda Pertence para cada foliã, e não se fala mais nisso.

Não é não, hipocrisia é hipocrisia, caretice é caretice. O que Leila Diniz diria disso tudo? Possivelmente lançaria mão do seu português castiço para mandar todos vocês à merda, com todo o respeito, seus chatos.

PS: A “musa” do hino malcriado do Bussunda não só entendeu a piada, como acabou se casando com ele. Mas isso foi muito tempo atrás...

Guilherme Fiuza é jornalista

Sem alívio - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 11//02

Mesmo com o impulso que o fim da recessão pode dar às receitas, governadores precisarão apertar os cintos para equilibrar suas contas

Com salários atrasados, funcionários públicos em greve e sem dinheiro para pagar fornecedores, vários governadores enfrentaram momentos difíceis durante a prolongada recessão que o país atravessou nos últimos anos.

É de esperar que a recuperação da atividade econômica dê algum alívio aos seus cofres, mas a situação da maioria dos Estados parece longe de oferecer conforto.

Levantamento feito por esta Folha indica que a arrecadação cresceu um pouco no ano passado, após dois anos seguidos de perdas, mas mostra que a tênue melhora ocorreu de forma desigual.

Em metade dos Estados, as receitas aumentaram em ritmo inferior ao da baixíssima inflação verificada no último ano —ou seja, em termos reais, elas encolheram.

As despesas estão congeladas em patamar elevado, e pelo menos seis governos informaram que seus gastos com pessoal continuam acima dos limites estabelecidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal --um sinal dos obstáculos que encontram na busca do equilíbrio.

A principal ameaça à saúde financeira estadual é o aumento das suas despesas com aposentados e pensionistas, que há tempos vêm crescendo num passo mais acelerado que o de outros gastos.

Os que lidam com situação financeira mais frágil, como Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, elevaram a contribuição previdenciária recolhida dos servidores. Mas somente reformas mais amplas poderiam frear as despesas.

Parecem cada vez mais duvidosas as chances de aprovação da proposta que o governo federal negociou com o Congresso. Ainda que ela prevaleça, seu impacto será mitigado em virtude de concessões feitas pelo Palácio do Planalto em benefício de policiais e professores, categorias que pesam na folha dos Estados.

Há outros riscos à frente. Governos que se endividaram muito antes da crise e renegociaram o índice de correção de seus débitos com a União terão as parcelas de pagamento reajustadas em breve.

Além disso, por imposição legal, os governadores, que encerrarão seus mandatos neste ano, não poderão pendurar despesas para o ano seguinte, jogando a conta para os sucessores. Isso tornará ainda mais complicada a gestão dos próximos meses.

Mesmo que o fim da recessão dê impulso à arrecadação de impostos, tudo indica que será insuficiente para que os mandatários ponham suas contas em ordem. Políticos que planejam disputar as eleições deste ano nos Estados deveriam se preparar para moderar expectativas e apertar os cintos.

Adiar a reforma é garantir que ela será mais dura - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 11/02
É ilusório achar que o adiamento constante das mudanças e sua atenuação levarão a um ajuste mais leve. Pelo contrário, devido ao agravamento galopante da situação

O sonho do parlamentar populista é só aprovar projetos de alta popularidade, por certo. Infelizmente para ele, a vida real é bem outra, pela impossibilidade física de os governos só distribuírem benesses. É sempre necessário algum ajuste nas contas públicas, para evitar desequilíbrios que resultem em inflação, recessão e desemprego. E em eleitores desiludidos.

Mesmo assim, o viés populista da política brasileira continua ativo, mais ainda em ano eleitoral. As dificuldades nas negociações em torno do projeto da minirreforma da Previdência, surgidas em maio do ano passado na descoberta do envolvimento de Michel Temer com o empresário Joesley Batista, se tornaram maiores.

Faltam lideranças que expliquem a deputados e senadores que quanto mais obtiverem concessões do governo para afrouxar a reforma, apenas estarão adiando apertos na legislação previdenciária que terão de ser mais fortes.

Além disso, as demandas que são apresentadas de mudanças na proposta vêm de conhecidos grupos organizados, representantes, em sua maioria, de castas do funcionalismo. Bem como de segmentos do mundo sindical, com trânsito entre políticos.

Foi assim que um dos primeiros recuos do Planalto ocorreu na aposentadoria rural, em que se voltou atrás em tudo: limite de idade maior e tempo ampliado de contribuição. Políticos nordestinos ganharam a queda de braço, assim como sindicatos rurais, cartórios que distribuem certificados de que o aspirante a aposentado foi de fato agricultor.

Por isso, o déficit na aposentadoria rural passa dos R$ 100 bilhões anuais — mais da metade do déficit total. Cerca de 30% das aposentadorias são obtidas por decisão judicial, e há uma curiosa desproporção entre supostos agricultores aposentados e a população do campo. Basta registrar que o trabalhador rural representa menos de 10% da população economicamente ativa, mas os benefícios são bem mais do que isso no total pago pelo sistema previdenciário. Há evidências fortes de fraudes, o que não interessa a políticos que ordenham votos neste curral. O contribuinte que pague a conta.

O servidor público federal é indiscutivelmente privilegiado na aposentadoria: um milhão deles gera um déficit de R$ 86 bilhões, enquanto 30 milhões de aposentados da iniciativa privada respondem por um rombo de R$ 182 bilhões. A desproporção é nítida. Faz sentido, porque enquanto a aposentadoria média no INSS é de R$ 1.240, no serviço público federal chega a R$ 7.583.

E ainda há lobbies para que o governo faça mais concessões aos servidores. Como no caso daqueles que trabalhavam antes de 2003, quando foi suprimida a integralidade (aposentadoria com o último salário) e a paridade (receber os aumentos concedido aos servidor da ativa). Querem ceder o mínimo, e assim corroem um dos objetivos centrais da reforma: a redução dos desníveis entre os benefícios.

O economista José Márcio Camargo diz que o “plano B” desta reforma é mais duro, porque a degradação das contas previdenciárias — esta despesa já consome mais da metade dos gastos — é galopante. Não há dúvida.

O cansaço do povo - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 11/02

Os brasileiros estão cansados de um Poder Judiciário que criminaliza a política indistintamente e avilta um dos fundamentos da democracia representativa


A ministra Cármen Lúcia fez uma leitura acurada do atual estado de espírito de grande parte da sociedade. Em visita a Goiás para a cerimônia de inauguração de um novo presídio em Formosa, a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) disse que “o cidadão brasileiro está cansado da ineficiência de todos nós (autoridades públicas), cansado inclusive de nós do sistema Judiciário”.

A declaração da ministra é mais surpreendente por vir da chefe de um dos Poderes do que por seu conteúdo, que já havia sido diagnosticado por uma miríade de pesquisas de opinião e pode ser constatado em qualquer roda de conversa País afora.

De fato, os brasileiros estão cansados do Poder Judiciário. Mas de um Judiciário muito particular, não do Poder que foi consagrado pela literatura política como a última linha de defesa na garantia dos direitos sociais, individuais e coletivos. Não há um cidadão sensato que apregoe a prescindibilidade do Poder Judiciário como um dos esteios da República. Se há, não é sensato.

Os brasileiros estão cansados de um Poder Judiciário que criminaliza a política indistintamente e, assim agindo, avilta um dos fundamentos da democracia representativa.

Os brasileiros estão cansados de um Poder Judiciário que usurpa as competências de outros Poderes em nome de uma superioridade moral que não encontra resguardo na Constituição, governando e legislando quando assim lhe apraz sem correr os riscos políticos que correm aqueles que dependem do voto popular para exercer o múnus público.

Os brasileiros estão cansados de um Poder Judiciário que parece ser composto por cidadãos imunes ao alcance da lei, como quaisquer outros, tão somente por terem sido aprovados em um concurso público.

Os brasileiros estão cansados de um Poder Judiciário que “pune” os seus membros que cometem crimes e desvios funcionais com uma polpuda aposentadoria compulsória.

Os brasileiros estão cansados de um Poder Judiciário que concede férias de 60 dias para os seus - sem contar os períodos de recesso judiciário -, enquanto a esmagadora maioria do povo brasileiro nem sequer consegue gozar os 30 dias a que tem direito, não raro tendo de “vender” parte dos dias para reforçar sua renda.

Os brasileiros estão cansados de um Poder Judiciário que não se constrange em ir contra a realidade do País a que serve e concede a seus membros “auxílios” imorais, que nem sequer são tributados, como é a renda de quase todos os brasileiros, e tampouco são contabilizados para efeitos de teto constitucional.

Os brasileiros estão cansados de um Poder Judiciário que não dá à sociedade as respostas que ela demanda em um prazo razoável, deixando de julgar em tempo oportuno ações do mais relevante interesse, como são os casos dos réus e indiciados no âmbito da Operação Lava Jato que ainda não foram julgados pelo STF, onde tramitam processos por conta do foro por prerrogativa de função.

Os brasileiros estão cansados de um Poder Judiciário que, em nome de seus interesses meramente corporativos, boicota projetos fundamentais para o País, como a reforma da Previdência. Como interpretar de outro modo as sucessivas decisões judiciais que suspenderam a veiculação de campanhas informativas do governo a respeito de pontos cruciais da reforma? Não por acaso, pulula nas redes sociais uma infinidade de mentiras a respeito da reforma, enganando a população num tema tão grave como é a Previdência - e disso a Justiça não toma conhecimento.

Os brasileiros estão cansados de um Poder Judiciário que gasta quase sete vezes mais do que a soma dos Poderes Legislativos da União, dos Estados e dos municípios, de acordo com os dados da ONG Transparência Brasil.

A fala da ministra Cármen Lúcia é alvissareira porque, sendo quem ela é e tendo o papel que tem, dá esperança à sociedade de que este tipo de Poder Judiciário do qual ela está cansada pode estar com os dias contados. Que assim seja.