domingo, fevereiro 11, 2018

Caravanas de Chico, 32 anos atrasada - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 11/02

Não foi a raiva da elite branca que expulsou as classes C e D dos voos, mas a crise econômica


No verão de 1984, o governo do Rio --sob a liderança do governador Leonel Brizola e o planejamento urbano aos cuidados do arquiteto e urbanista e então secretário dos Transportes Jaime Lerner-- franqueou o túnel Rebouças, principal ligação entre as zonas norte e sul da cidade, aos ônibus. Até aquele momento só carros transitavam pelo Rebouças.

Uma pesquisa na internet no arquivo do "JB" documenta que inicialmente o encontro dos banhistas da zona norte com os frequentadores das belas praias da zona sul não foi muito harmonioso.

A "Coluna do Zózimo" de 27 de novembro de 1984 noticiava que se "criou uma palavra perfeita para definir a horda que invade as areias de Ipanema nos fins de semana ensolarados, despejados pelas amplas portas dos ônibus Padron, que fazem a ligação non-stop zona norte-zona sul. É a turma da galhofa. Galinha com farofa".

Não faltou sugestão para que a circulação no túnel fosse pedagiada ou que os ônibus somente circulassem nos dias úteis.

O sucesso do rock nacional "Nós Vamos Invadir sua Praia", da banda Ultraje a Rigor, lançado em 1985, ecoava esse encontro.

No fim de 2017, nosso maior artista popular em atividade, Chico Buarque, lançou o CD "Caravanas". Na belíssima faixa "As Caravanas", Chico descreve o desconforto dos ricos e brancos com os pobres e pretos nas praias da zona sul do Rio.

"Caravanas" está 32 anos atrasada.

Por que o atraso? Há uma narrativa construída pela esquerda segundo a qual nossa crise econômica --perda de 9% de PIB per capita entre 2014 e 2016 (a segunda pior dos últimos 120 anos) e a maior taxa de desemprego da história-- é fruto da crise política. Esta, por sua vez, resulta de a parte mais rica da população não suportar o convívio nos mesmos espaços sociais com a parte mais pobre, resultado dos avanços sociais da era Lula. Uma das ideias emblemáticas desse discurso é que a elite branca não tolera conviver com pobres e pretos em aeroportos.

Segundo essa visão, todos os erros de política econômica do governo petista --do abortamento do ajuste fiscal em 2005, "pois gasto social é vida", e o ajuste era "rudimentar", à nova matriz econômica-- nada têm a ver com a crise.

A dificuldade com a ideia da sabotagem dos ricos à ascensão social dos pobres é que dela não se encontra nenhuma comprovação. No caso dos aeroportos no período petista, por exemplo, a mesma busca nos jornais, que encontrou inúmeras referências a desconforto com a invasão das praias em 1984, não consegue achar nada equivalente. O que se encontra, por outro lado, é muita gente de esquerda afirmando que a elite branca não aceita dividir os aeroportos com a nova classe C. Mas não há relatos concretos que comprovem essa percepção.

O que houve, na verdade, foi desconforto com a baixa qualidade da infraestrutura em geral, o que inclui aeroportos. Aliás, essa foi a motivação das manifestações de junho de 2013. Uma das frases que circularam com destaque na época foi que "em país rico as pessoas vão ao trabalho de transporte coletivo, e não de carro".

Mesmo no evento bem lamentável das praias cariocas em 1984, a pesquisa na imprensa do Rio à época mostra que os maiores problemas foram resolvidos quando o poder público se fez presente. O "JB" do dia 1º de janeiro de 1985 noticiou que os afogamentos e os roubos se reduziram com a melhora do policiamento e do serviço de salva-vidas.

No caso presente, nem foi preciso esperar a infraestrutura aeroportuária melhorar. As classes C e D foram expulsas dos aeroportos pela crise.

Diferentemente da sugestão de "Caravanas", não foi a raiva da elite branca que expulsou a população dos voos. A incompetência da gestão econômica petista fechou o túnel Rebouças da ascensão social.

2 comentários:

  1. A esquerda, em geral, e o Chico, em particular, não estão nem aí para a verdade. A verdade é apenas o que serve à Causa.

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  2. Marco3:45 PM

    Exatamente Alexandre. É o dilema da fé: acredito porque existe ou existe porque acredito? Fé e ideologia se sustentam na segunda parte.

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