quarta-feira, janeiro 27, 2016

Governo de algemas - ROSANGELA BITTAR

Valor Econômico - 27.01

Lula acha que não há uma alma mais honesta que ele nessa terra brasilis, e a terra acha que não há uma alma brasileira feliz, neste momento, com sua vida financeira, profissional, social, ética, política.
Nem o Carnaval é capaz de melhorar esse estado de espírito. O desconforto é diversificado, pode-se fazer a pesquisa em diferentes universos que ora irão cravar o desemprego como o maior problema do país, outro momento será o da corrupção, ora é a saúde que, em qualquer nível, esfera administrativa ou partido na gestão é o que arrefece o entusiasmo com a vida de todo cidadão responsável. Há enquetes que mostram grupos numerosos preocupados com transporte, outras revelam terror com a ausência das obras de infraestrutura que poderiam conter os desastres naturais mas as providência para evitá-los não aparecem antes. E como a presença do governo na vida do cidadão é por aqui sufocante, a responsabilidade por todos os males, omissão e ação, é mesmo do governo. No caso do governo Dilma, omissão, pois a paralisia é total.
O governo está no segundo ano do segundo mandato e não começa. A presidente é movida por um festival de negações, de sustos, de respostas vazias quando resolve fornecê-las, de lugares comuns, sentenças carentes de sentido. Passa a maior parte do tempo enfurnada. De vez em quando, tocada por uma ameaça forte de ser defenestrada, reúne grupos, mobiliza, discursa, viaja. Mas na maior parte do tempo se preserva. Se explode, é internamente, nem isso se vê. O problema é sempre o outro, ou não há problema.
O professor Delfim Netto fez uma boa síntese em entrevista à jornalista Claudia Safatle, publicada no Valor de segunda-feira: não existe presidencialismo sem presidente. Já havia ele próprio, em manifestações anteriores, destacado a falta de protagonismo de Dilma Rousseff. Eufemismos. Aconselhou-a a assumir sua responsabilidade, mas o fez por vias tortas. Sugeriu que ela coloque o Congresso contra a parede exigindo que aprove reformas de fundo ou assuma a culpa pelo caos.
Jogar a responsabilidade de governo sobre o Congresso é só o que este governo tem feito, desde sempre. Embora esteja com o principal partido da aliança que o sustenta, o PT, o confronto das ideias de reforma sugeridas por Delfim. Pode ser a técnica da psicologia de dizer a ela para agir mesmo que seja para por peso nas costas do próximo.
A presidente passou pelo espasmo das providências com relação ao desastre ambiental que atingiu várias cidades de Minas, passou pelo espasmo das providências de combate ao Aedes aegypti, a maior vergonha nacional e o maior risco à população no momento, e agora se prepara para enfrentar outro espasmo de ação, o da ressurreição do Conselhão, de cuja eficácia o Brasil está livre desde sua gênese. Como um conselho de 80 pessoas nada resolve, já se pode prever, por exemplo, o resultado de sua primeira reunião, na quinta-feira. Dilma encontrou-se com oito ministros de Estado, ontem, para preparar medidas a serem anunciadas aos ilustres integrantes do grupo, entre elas a retomada do crédito como motor do crescimento. De novo. Além de outras que também acha o governo que vale a pena reiterar, reiterar, reiterar.
Em contrapartida espera ouvir dos conselheiros o apoio ao governo na sua campanha para aprovar a CPMF no Congresso e levar adiante a reforma da Previdência. Dilma não tem demonstrado força nem criatividade para sair do redemoinho.
Sabe que o impeachment acabou, mas no lugar da guerra que travava para se manter no cargo a presidente não tem o que colocar.
Não há também mais a disputa Nelson Barbosa versus ministro da Fazenda, vez que ele assumiu o posto de seu próprio freguês de contendas. Então, em lugar de apresentar novas armas, será mais um para voltar seus mísseis ao Congresso.
No meio desse nevoeiro, a presidente está sempre perplexa: com o FMI, com a corrupção, com seus assessores diretos envolvidos em suspeita de irregularidades nos processos correntes, com o desleixo do governo, com a falta de iniciativas que tirem o país do ciclo de calamidades.
Agora deve estar estarrecida, um estágio mais avançado do que perplexa, com seu ministro da Saúde, de uma franqueza desconcertante, que diz, como a OMS, que estamos perdendo a guerra para o mosquito Aedes aegypti, e numa nova versão do dito malufista "estupra mas não mata", disse que torce para que as mulheres peguem a doença que provoca microcefalia antes de engravidar.
Esse ministro da Saúde, porém, é o de menos. Ele entrou em outubro para a história do Brasil, ao ingressar no governo quando a dengue, a zika e a chikungunya já eram epidemia. Nos governos Lula e Dilma o PT colocou na Saúde seus ministros politicamente mais fortes. Alexandre Padilha de lá saiu para disputar o governo de São Paulo; Humberto Costa foi enfrentar Eduardo Campos em Pernambuco, e hoje é senador que volta e meia assume a liderança dos interesses do governo; e o último, Arthur Chioro, o mais enraizado no partido, que ampliou os tentáculos petistas pelo ministério inteiro, fazendo uma administração por conferências e assembleias, foi provavelmente o mais inerte.
Se for possível deixar o pensamento dar um voo daqui para trás, não é possível deter a atenção em uma única providência inovadora, séria, competente para resolver o dramático problema da saúde. Para um único Mais Médicos, há centenas de redes falidas de atendimento à saúde como a do Rio e a de Brasília.
O futuro que se vem desenhando também não é atraente. Procura-se uma ideia de Ciro Gomes, por exemplo, o último candidato a presidente lançado esta semana, um único plano ou medida para o governo do Brasil, e não se acha; procura-se um caminho apontado por Dilma para a Petrobras, em que é especialista, sair do buraco onde a jogaram, e não se vê; procura-se uma fonte de recursos para o governo meter a mão que não seja o FGTS, uma espécie de fundo de pensão dos novos tempos a sofrer sangria, não há. Passado, presente e futuro sem perspectiva.
Encurralado pelas denúncias e suspeitas, processos e delações, Lula resolveu cuidar da vida, da sobrevivência política, das campanhas eleitorais, e deve parar de ficar tutelando Dilma a cada nova rodada de crise. Só Dilma pode libertar seu governo das algemas.

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