O GLOBO - 06/11
Dilma e Lula sabiam de tudo sobre o escândalo de corrupção na Petrobras, teria declarado o doleiro Alberto Youssef na moldura da delação premiada. A notícia bombástica, publicada por Veja na antevéspera do segundo turno, não apareceu nos telejornais da Globo daquela sexta, mas ganhou manchete da Folha de S.Paulo no dia seguinte. Você pode interpretar as diferenças de comportamento entre os três veículos sob as lentes da disputa partidária, mas apenas se apreciar teorias conspiratórias ou estiver a serviço de uma agenda política.
Na Folha, um jornalista enveredou pela trilha minada, atribuindo o silêncio da Globo ao “medo” do governo. A resposta, assinada por Ali Kamel, diretor de Jornalismo da emissora, transferiu a polêmica para o campo da ética jornalística: “A Globo (...) não faz política, faz jornalismo. (...) só repercute denúncias de outros veículos se puder confirmá-las por meios próprios”. O princípio parece ter orientado a própria Folha quando publicou a denúncia de Youssef junto com a explicação de que a confirmara com suas fontes. A revista e o jornal não estavam noticiando que Dilma e Lula sabiam do desvio de somas astronômicas da estatal para o PT, o PMDB e o PP. Contudo, empenhavam a sua reputação na informação de que Youssef declarara isso às autoridades judiciais. Fizeram jornalismo ou política?
Naquele sábado, véspera da eleição, militantes da União da Juventude Socialista (UJS), um tentáculo do PCdoB, promoveram atos de vandalismo diante da sede da Editora Abril, acusando a revista de conspirar contra a candidatura de Dilma Rousseff. À noite, os telejornais da Globo noticiaram o evento e o contextualizaram. “O ataque ao prédio da Editora Abril, um ataque à liberdade de imprensa, não poderia ser ignorado”, argumentou Kamel, para concluir: “E, ao ser noticiado, era preciso explicar que ele fora motivado por uma reportagem, sem endossá-la”. Na celebração da vitória de Dilma, militantes petistas entoaram palavras de ordem contra a Globo. Dias depois, Lula qualificou a edição de Vejacomo “um panfleto da campanha do Aécio”, mas não se referiu à Folha. É política contra política ou política contra jornalismo?
A expressão “guerra midiática” alcançou estatuto oficial na Venezuela de Hugo Chávez. O ex-presidente “bolivariano” chegou a promover um encontro latino-americano destinado a consagrar a tese de que a imprensa é um instrumento de potências estrangeiras ou de elites nacionais contra governos “populares”. Na Argentina, no Equador e na Bolívia, a tese sustenta campanhas estatais contra a liberdade de imprensa. No Brasil, desde o escândalo do mensalão, foi abraçada por setores do PT e encampada por Franklin Martins, que trocou a posição de comentarista político da Globo pela de ministro das Comunicações de Lula. Em seu primeiro mandato, Dilma afastou-se do rumo esboçado nos anos anteriores, congelando as propostas de “controle social da mídia” que se articulavam sob o comando do ministro. Hoje, contudo, no rastro dos vazamentos do escândalo na Petrobras, multiplicam-se os indícios de ressurreição do projeto engavetado. O tácito respaldo de Lula às arruaças da UJS não é um raio no céu claro.
O colunista Janio de Freitas, da Folha, definiu a reportagem de Veja (e, talvez, a confirmação da mesma Folha...) como uma “investida originada na imprensa para interferir na disputa eleitoral”, sugerindo paralelos entre a publicação da denúncia e o golpe militar de 1964. A senha do “golpismo midiático”, utilizada pelo PT na hora do mensalão, disseminou-se pela rede de blogueiros patrocinados pelas estatais. Mas as acusações à revista revelaram-se inconsistentes. O depoimento de Youssef aconteceu na terça, apenas três dias antes da sua publicação: era notícia nova. Veja não operava segundo um critério partidário: como em eleições anteriores, a revista organizara com larga antecedência um programa de circulação antecipada. A imprensa não tem o direito ético de sonegar informações relevantes em função do calendário eleitoral. Nem o de julgar o interesse público de uma notícia na balança de suas hipotéticas consequências políticas.
Segundo a tese chavista, a “mídia” é uma entidade monolítica, que opera como “partido da burguesia”. O cenário descortinado a partir da reportagem de Veja não se encaixa nessa interpretação caricatural. Na sua réplica ao jornalista da Folha, Kamel esclareceu que, “na sexta”, a Globo “não confirmou com suas fontes o sentido do que fora publicado por Veja” e, ainda, que as fontes da emissora “classificaram de distorcida” a manchete da edição de sábado da Folha”. O “não confirmou” não significa que as fontes da Globo desmentiram as da Veja, mas a palavra “distorcida” sugere algo mais. À primeira vista, a apuração da Globo indicaria que as fontes da emissora interpretam como de segunda mão as informações da Veja e da Folha. A revista e o jornal teriam se baseado em fontes com acesso às gravações, mas não nas próprias gravações.
O jornalismo livre não produz discursos monocórdicos, como fazem as agências estatais e as assessorias de imprensa. Veja e Folha arriscaram sua credibilidade, pois acreditam nas suas fontes. A Globo, que também acredita nas suas, diferentes, preferiu adotar postura mais cética. Nenhum dos veículos, porém, questionou o princípio jornalístico de que a missão da imprensa é dar notícias de interesse público, mesmo se oriundas de vazamentos judiciais: nas democracias, a proteção do segredo de Justiça não é responsabilidade de jornalistas, mas de policiais e juízes.
Sob o influxo da tentação autoritária de “controle social da mídia”, o episódio converteu-se em nova plataforma de ataque contra os princípios do jornalismo. Não fosse isso, estaríamos discutindo o que, de fato, interessa: a excessiva amplitude do instituto do segredo de Justiça no sistema judicial brasileiro