segunda-feira, julho 28, 2014

Antes, era a Arena. Agora, o PT - TITO COSTA

O ESTADÃO - 28/07


Quando os militares assumiram o poder em março de 1964, puseram de lado a Constituição e passaram a legislar por meio de Atos Institucionais, criação da mente privilegiada de Francisco Campos, o Chico Ciência. O Ato Institucional nº 1 aboliu garantias constitucionais, especialmente o habeas corpus, autorizou a cassação de mandatos eletivos e de direitos políticos, entre tantas outras restrições. O AI nº 2 extinguiu os partidos políticos então existentes, e eram muitos, tal como hoje. Necessitando de um instrumento político para governar, ainda que garroteado, e salvando as aparências, permitiu o governo militar, por esse AI-2, a criação de duas entidades com finalidade de partidos políticos, mas sem o nome de partido: surgiram a ARENA – Aliança Renovadora Nacional (de apoio ao governo) e MDB – Movimento Democrático Brasileiro (acolhendo as oposições).

A ARENA dominou a cena política elegendo, nas poucas eleições então permitidas, grande maioria de representantes seus em diversos postos do poder executivo (menos o federal, claro) e nos legislativos. Essa hegemonia perdurou nos dez primeiros anos da instalação do governo castrense. Em 1974, já aflorando os primeiros sinais de cansaço natural em relação a um poder opressivo, houve clara reação popular, com manifestação nas urnas que apontavam para o rumo, digamos, de renovação. Então, o MDB elegeu governadores, prefeitos, parlamentares em expressivas maiorias, sinalizando o desejo de mudança de uma sociedade já meio desiludida em relação aos excessos do poder dominante, com perseguições, prisões, tortura nos dissidentes, e o clamor público, embora contido, expressando seu inconformismo pela via do silêncio das urnas.

Surgiu então, por volta do final dos anos setenta, inicio dos anos oitenta, meio que no apagar das luzes dos governos militares, quando já circulavam promessas de abertura, lenta e gradual, um movimento nascido no ABC paulista gerado por greves ruidosas sob o comando daquele que, liderando-as, viria a ser, mais adiante, o principal fundador do PT, o Partido dos Trabalhadores. Chegava Lula empolgando multidões não apenas de trabalhadores, mas também da sociedade em geral, a intelectualidade e o meio artístico deslumbrados com o despontar carismático do líder operário.

Abro aqui um parêntese para destacar fatos que marcaram esse tempo de violência e incertezas, como os ocorridos a partir do dia 23 de março de 1979, em que se deu a intervenção no Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de São Bernardo pelo Ministro do Trabalho Murilo Macedo. O ato intervencionista ocorreu na madrugada dessa sexta-feira e encontrou Lula em vigília na sede do Sindicato, onde passara toda a noite, de plantão, em companhia do então deputado e escritor Fernando Moraes. Na véspera do dia da intervenção, prevenido por certo de que ela ocorreria, pediu-me Lula, por telefone, ajuda para remoção da sede do Sindicato, de alimentos ali estocados, aguardando pelo pior que poderia ocorrer, como de fato ocorreu. Mandei-lhe caminhões da prefeitura para retirar dalí a carga preciosa, que foi levada para uma igreja cedida especialmente para o seu garantido resguardo. Expliquei-lhe que não poderia acolher esse material em dependências da prefeitura. Despertado por telefonema dele, nessa madrugada, dirigi-me imediatamente à Delegacia de Polícia local onde já se encontravam presos alguns trabalhadores. Na companhia do Delegado do DOPS, o simpático e saudoso bragantino Dr. Nivaldo, dirigimo-nos à sede do Sindicato totalmente cercada por tropas militares. Ali encontramos Lula e o Fernando Moraes naturalmente surpresos e assustados. Dali voltamos à Delegacia onde havia detidos. Mais tarde, à boa moda brasileira, resgatados, Lula foi levado para esconderijo numa igreja no subdistrito do Riacho Grande.

Nesse mesmo 23 de março de 1979, à tarde, na praça em frente ao Paço Municipal onde se realizava uma assembléia do Sindicato, houve violenta intervenção militar com a natural reação dos participantes do evento. Registre-se que a reunião ali ocorria pelo fato de o Estádio de Vila Euclides, cedido pela prefeitura para as reuniões dos grevistas, havia sido interditado por ordem do então governador Paulo Maluf, nomeado pelo governo militar. Almoçando em meu apartamento com alguns jornalistas, por volta das treze horas, fui chamado às pressas para o local da assembléia e aí, enfrentando o tumulto, procurei o comandante da operação e me ofereci, como prefeito, para impedir que prosseguisse, com as possíveis consequências de feridos ou até mesmo mortos, que não houve. E então, sem nenhuma intenção de assumir a prática de improvisado ato de bravura, e com a devida permissão do então comandante da operação repressiva, o coronel Walterdimas Rigonato, subi na capota de seu veículo oficial, ali a serviço, e com o microfone por ele cedido, busquei conter a multidão, o que foi conseguido com a ajuda do então Bispo de Santo André, dom Claudio Hummes , chegado, providencialmente, ao local naquele momento. O fato está registrado pela mídia que lhe deu o devido destaque nos dias que se seguiram. Nesse mesmo ano de 1979, por ocasião do Natal, fiz visita ao coronel Rigonato em seu quartel e, então, já refeitos do susto, brincou ele dizendo que iria cobrar da prefeitura de São Bernardo os estragos feitos na lataria do veículo pelo pisar dos meus sapatos.

Foi assim que, como prefeito de São Bernardo, participei, juntamente com lideranças da Igreja e de destacados políticos do MDB, de tratativas com o poder dominante no sentido, principalmente, de evitar consequências mais graves das que já vinham ocorrendo em razão do inconformismo dos grevistas e dos evidentes excessos , comuns na época, na atuação de autoridades, tanto civis, quanto militares.

Mais adiante, acompanhei, à distância, o nascimento do PT, na década de 80, assumindo posição ao lado dos trabalhadores e, não sem os riscos naturais do enfrentamento do status quo reinante, sem a ele filiar-me.

Feita essa digressão, necessária para registro de fatos que fazem parte da história de nossos dias, e de um tempo importante na abertura política que viria mais t arde, volto o foco ao PT que, já atuante em busca do poder, com apoio de sua expressiva militância (atualmente com deserções e muitos desapontamentos). Como é sabido, após duas ou três tentativas nas urnas, agora com as liberdades à solta, a partir de 1985, e depois sob o manto da Constituição Cidadã de 1988 (Ulysses Guimarães), chega o ano de 2002. Vem a mudança de governo pelo voto popular, Lula e PT anunciando representar o novo, assumem o buscado poder e ele se torna presidente da República, para continuar em 2006, reeleito. Em 2010, com a tônica da continuidade de um governo popular, como “nunca antes, na história deste país”, prosseguiu o PT no governo central, elegendo a sucessora imposta por Lula ao partido que acolheu a candidata “mascando o freio” como se diz no linguajar caboclo.

Estamos agora em 2014. O desgaste petista no poder é evidente: escândalos, processos, mensalão, roubalheiras, prisões, a Petrobrás, empresa orgulho do Brasil, posta na berlinda com as inexplicáveis compras bilionárias de usinas nos Estados Unidos, no Japão, e tantos abusos mais, tudo a evidenciar aquilo que na Física se chama resistência e fadiga dos materiais. Nas ruas sente-se claro o desejo de estancar a ladroagem, de conter a inflação, de desmascarar os projetos caríssimos, muitos inacabados do tal PAC, obras incompletas e abandonadas, seus custos superfaturados, com a drenagem criminosa de recursos públicos desviados dos projetos a que se destinariam. A economia à deriva, nosso PIB claudicante, e o povo, impaciente, vem a tudo assistindo, perplexo, impotente, descrente, desiludido. E quer mudança, de preferência sem continuidade do governo atual, revelam aflorados sentimentos e pesquisas.

Reedita-se agora, em situação diversa, mas semelhante, o antigo descontentamento da sociedade em geral com a velha ARENA, no distante ano de 1974. Após dez anos de sua predominância político-administrativa, foi substituída, na eleição e em parte, pelo velho MDB, o legítimo, até então fiel às suas origens e aos seus propósitos. Veio depois o PMDB, agora como partido político, fiel até então ao seu destino, porém antes de sua notória e lamentável deterioração política, depois atrelando-se ao que há de pior nos quadros políticos brasileiros. Claro, com as exceções de sempre.

Há fantasmas agora rondando a combalida fortaleza petista. O movimento pendular da História tende a registrar os limites de exaustão na paciência da sociedade em relação a desmandos, alta inflação, economia em recesso, desenvolvimento em baixa. E assim, esgota-se a capacidade de tolerância de todos e de cada um, nos mais variados segmentos da sociedade, nas urgências dos apelos por respeito e dignidade no trato da coisa pública.

Tal como aconteceu em 1974, dez anos após o advento do poder militar, a ARENA, entidade de sustentação ao governo, esgotada a munição que garantia sua superioridade política, até certo ponto artificial, cedeu a vez ao MDB. Agora é o PT, partido no comando da Nação há doze anos, que protagoniza o desgaste próprio do mau exercício do poder na linha inversa do comando constitucional a exigir da administração pública, direta e indireta, obediência aos princípios da moralidade e transparência, entre outros. Bem por isso, passa a arcar com as consequências de seu negativo desempenho. Ficou, lá atrás, o tempo da todo poderosa ARENA. Esgota-se agora a força petista com seus conhecidos abusos na administração pública e até mesmo certa arrogância impulsionada pela certeza de vitórias ainda a perseguir, como se fosse senhor absoluto de alardeadas virtudes que por momentos procurou ostentar sem praticá-las. Alguns, verdadeiros “aloprados”, como os definiu alhures seu chefe supremo.

Autorizadas vozes de dentro do poder petista reconhecem os desajustes de sua atuação frente aos reclamos da sociedade e registram a necessidade de “um rigor interno ético muito grande” que se destinaria “a mudar o indutor da corrupção”, ainda firme nos mais variados escalões do poder, especialmente o central. Do lado de fóra, nos grandes, médios e pequenos municípios do Brasil, nos táxis, nas feiras, nos trens, nas filas de ônibus, nas estações do Metrô e, durante a Copa de futebol, nas gritas dos estádios, a voz é uma só: o cansaço, a exaustão, a paciência do povo revelando sinais evidentes de esgotamento, de desencanto, e a esperança de mudanças adentrando o pessimismo na economia, o desabrochar de novas ondas de desemprego em escala alarmante, ao ponto de prestigiosas lideranças trabalhistas reclamarem que o PT estaria virando as costas aos trabalhadores. Enfim, avaliações mais negativas que positivas de um eleitorado descrente de tudo aquilo de bom e de mudanças com que lhe acenava o partido em sua chegada ao poder. E, de dentro do poder, com os desentendimentos próprios de grupos que se digladiam, na possível surdina dos gabinetes, afloram preocupantes sinais de uma sempre buscada tentativa de garroteamento dos meios de comunicação, assim como a já decretada instituição de “conselhos” para gerir a administração pública, pela via da inconstitucionalidade. Sempre com a presença deletéria de conhecidos delírios esquerdizantes apostando e insistindo numa adoção cabocla de bolivarismo soprado por ventos advindos de vizinhos nada confiáveis. E nossas conquistas democráticas resistindo até onde seja possível resistir diante da enganação de perseverante marquetagem, a ludibriar incautos e distraídos das ameaças a liberdades duramente conquistadas.

Mas, há tempo para o despertar de uma aparentemente silenciosa indiferença popular. Oportunismos de praxe que se agregam ao poder, seja ele qual for, tangidos por indecorosa e momentânea conveniência política, podem manter-se alheios ao interesse da sociedade, como um todo, indiferentes ao perigo que nos ronda em face da pretendida continuidade de um poder desgastado e desmoralizado. Não será demais apontar a estes as consequências da indiferença, como lembrado nos versos de Eduardo Alves da Costa em seu festejado “No Caminho com Maiacóvski”: “Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor de nosso jardim/E não dizemos nada./Na segunda noite, já não se escondem:pisam as flores, matam nosso cão,/e não dizemos nada./Até que um dia,/ o mais frágil deles/entra sozinho em nossa casa/rouba-nos a luz,e,/conhecendo nosso medo/arranca-nos a voz da garganta./E já não podemos dizer nada”.

No caso ora enfocado, poderíamos substituir a palavra medo do poema por indiferença de alguns. Ou, talvez, egoisticamente, conveniência para outros tantos. Mas o desastre poderá ser inevitável, para todos.

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