Ganhei na loteria jurídica de Nova York. Ou perdi? Para mim, é um prêmio. Fui sorteado pelo Judiciário estadual e lá fui eu para o imenso teatro da Justiça de Manhattan. Centenas de peças, todas de verdade. E de graça.
Às 9 da manha, somos entre 200 e 300 pessoas em um salão para receber instruções, ao vivo e com vídeos, sobre a importância de servir num júri. Esta abertura é um xarope.
Outros sorteios dividem o grupão em grupinhos e lá vou eu, com outros 20, para a corte do juiz Fitzgerald.
Que sala! Se os dramas jurídicos não durassem tanto tempo, seriam imbatíveis. O cenário do juiz Fitzgerald é maior do que uma quadra de basquete, com pé-direito de 10 metros, paredes com madeira nobre, escura, reluzente, linda. Da Amazônia, aposto.
Despojamento e bom gosto. Os 22 bancos imensos são de madeira clara. Na frente, a mesa do juiz parece um altar. Atrás dela, um imenso mármore branco, do chão ao teto, com a frase "In God we Trust" ("em Deus confiamos"). Nenhum papel ou pasta à vista. O decoro combina disciplina militar com missa de cardeal.
Há quatro guardas assistentes, a promotora, uma estenógrafa e um funcionário que conduz os procedimentos e juramenta as testemunhas. Como o réu é de origem latina, tem direito a intérprete, mas, nos explicam, fala inglês fluente. Ou seja, o time da legalidade, incluindo o juiz, pago pelo contribuinte, inclusive o Lucas aqui, tem nove pessoas.
Quanto custa uma diária nesta corte? Um advogado me disse que custa de US$25 mil a US$30 mil. Acho barato. Um ambiente digno para julgar chefe da Máfia, de terroristas, de mensaleiros. Se um dia for condenado na Justiça, gostaria que fosse nesta sala.
Todos os fios do topete do juiz Fitzgerald, cinquentão, estão no lugar certo. Galão de novela mexicana. Com sua voz grave e pausada, nos dá uma preliminar do caso que vai ser julgado. O réu, Rafael Jimenez, é acusado de estar com dois cartões de crédito que não eram dele quando foi preso por dois policiais à paisana, por volta de uma da manhã, no East Village.
Ele não usou os cartões, mas a lei diz que se você é preso com algo de valor que não te pertence e não sabe dar explicações, é crime. Rafael nem é acusado de ter roubado os cartões. A promotoria só terá de provar que ele estava com os cartões que não eram dele. Um crime.
Inacreditável! Este vasto e magnífico aparato jurídico, neste imenso templo da democracia, vai passar os próximos dois, três ou até quatro dias ouvindo várias testemunhas, advogado e promotor para condenar ou absolver o "hermano" Rafael Jimenez, de 29 anos, simpático, em um blazer beige, novo, cabeça raspadíssima.
Putz, que pilantra! Em segundos, sem ouvir ninguém, decidi que ele era culpado.
As formalidades legais prosseguem. Dos 20 selecionados, sorteiam doze para sentar nos dois bancos do júri. Ninguém dá um pio. Em um tribunal de Manhattan, por lei, todos nos, os jurados, somos residentes da ilha. Depois do juramento, respondemos a 15 perguntas invasivas sobre trabalho, família, prazeres e conexões. Conto que sou jornalista e escrevo uma coluna para a BBC Brasil.
"Você cobre o judiciário?"
"Escrevo sobre tudo. Poderia até escrever sobre este julgamento."
Nós, jurados, refletimos a diversidade de Nova York. Cinco homens, sete mulheres. Três nascidos em Nova York, três latinos, duas chinesas, uma indiana. Os outros nasceram em Nova Jersey, Califórnia e Colorado.
Três jogam tênis. Há jurados com doutorados e cargos executivos, a maioria é solteira e autônoma, um está desempregado. Cada um de nós vai receber US$ 40 por dia de serviço para pagar o transporte e o almoço. Uma diária decente.
Depois do interrogatório, nós, jurados, saímos da sala enquanto advogados e promotores eliminam os indesejáveis. Alguém não gosta de jornalista. Lá fui eu, com mais dois, expulsos do júri.
Saí decepcionado, mas não perdi o interesse. Enquanto aguardava uma nova convocação no salão dos jurados, ia e voltava até a corte do juiz Fitzgerald.
Os cartões de crédito roubados pertenciam à "hermana" Fabiola Delgado, ex-jogadora professional de futebol. Agora técnica, estava numa clínica com mais de 20 crianças em um campo de futebol, às 3 da tarde do dia 28 de setembro de 2011. Ela guardou a carteira com US$ 30 e dois cartões em uma sacola que ficou em cima do banco.
Às 5, quando foi pegar o cartão do metrô, a carteira não estava lá. Ligou para o banco e cancelou os cartões. O depoimento dela foi firme, sem contradições. Não viu quem roubou os cartões.
Oito horas depois, a poucos quarteirões, dois policiais à paisana, em um carro sem identificação, viram um homem tentando tirar dinheiro de uma máquina. Fracassou e saiu. O policial Mullenbeck, de 33 anos, seguiu o homem e deu voz de prisão. O suspeito jogou dois cartões de crédito na rua, apreendidos pelo policial.
Rafael Jimenez chorou. Não sei se perdi testemunhas importantes. A última foi de um dos responsáveis pela segurança dos cartões de crédito do Citibank que tinham sido roubados da sacola e estavam com Rafael Jimenez quando foi preso. Depoimento longo, técnico e chato.
Quando cheguei em casa, entrei, como sempre faço, na minha conta no Citibank. Alguém fazia uma farra com meu cartão de crédito do Citi que estava no meu bolso. Só num restaurante gastou US$ 371. Naquele instante me pareceu justificado o imenso teatro para combater um crime tão banal.
Voltei hoje à tarde à corte do juiz Fitzgerald. O juiz dava instruções ao júri sobre como interpretar os depoimentos, o que era importante, o que era lixo. Quando terminei esta coluna, os jurados não tinham um veredito.
É democracia? E os milhares de imigrantes presos em condições brutais no outro lado do rio Hudson? Guantánamo?
É complicado. Na sua próxima viagem a Nova York, entre nas cortes da Center Street, número 111. Fica a menos de dez minutos das torres destruídas. É o melhor drama de Nova York, pelo melhor preço.