domingo, fevereiro 10, 2013

Salomão e Cascadura - CAETANO VELOSO

O GLOBO - 10/02

Um dos melhores discos de rock brasileiro de sempre é o novo do Cascadura


Faz duas semanas, comentando aqui o “Gonzaga” de Breno Silveira, escrevi que o show “Luiz Gonzaga volta pra curtir” talvez tivesse sido dirigido por Waly Salomão. Não foi. O diretor foi Jorge Salomão. Waly, segundo o próprio Jorge, só criou o título, que ele logo aprovou. O show foi coisa que ficou marcada na minha cabeça como a oficialização do reconhecimento de Gonzaga por parte da juventude de então. Disse que senti falta de uma referência a isso no filme, como senti falta de Ivan Lins e do Som Livre Exportação. Ao afirmar que a ausência de referências ao tropicalismo não me incomodava, eu não estava renegando. Mal pensei no papel do tropicalismo nesse episódio. Lembro-me de ouvir jovens contraculturais dizerem que os Beatles iam gravar “Asa branca”. Essa lenda revela muito do clima mental da época. O ressurgimento de sons rurais que veio com o rock (e que Ruy Castro deplora em seu livro sobre a bossa nova, por considerar parte do assassinato da grande canção urbana dos anos 1930 e 40) levava a moçada a fantasiar que o campo brasileiro entraria no repertório do topo do pop-rock anglo-saxão.

Faz pouco tempo David Byrne finalmente gravou esse clássico nosso, realizando, com décadas de atraso, o sonho dos malucos de 1968. David pertence ao topo do pop-rock anglo-saxão e, atendendo a convite de Mauro Refosco (que, aliás, está participando de um projeto extra-Radiohead de Thom Yorke, chamado Atoms for Peace), gravou “Asa branca”. Em inglês, como os desbundados dos sixties imaginavam que os Beatles fariam. O delírio dos malucos se realizou. Esse delírio tinha ligações com o tropicalismo.

Gil sempre foi apaixonado por Luiz Gonzaga, não tendo feito sequer uma suspensão desse amor durante a fase heroica da bossa nova, coisa por que eu, um amante de Gonzaga aos 8 anos, tinha passado quando cheguei aos 17. Não que eu desconsiderasse a força de Gonzaga, mas eu a situava num terreno infantil, esquemático e ingênuo. Assim eu o via — sem pensar muito nele — no período bossa nova da minha vida. O tropicalismo trouxe o velho Lua de volta ao meu coração. Sua invenção pop do combo sanfona-zabumba-triângulo tinha tudo a ver com o “Se manda” de Jorge Ben e, portanto, com o que a gente planejava alcançar em nossas criações.

Não estou seguro de que o sonho acalentado pela rapaziada do final dos anos 1960 de que os Beatles teriam gravado “Asa branca” não tenha sido uma das motivações da minha decisão de gravar essa música quando fiz meu primeiro disco londrino. Cantei-a em português exageradamente pernambucano e só com meu violão de náilon, contrastando fortemente com a fantasia dos desbundados. Claro que a razão primeira era a situação de exilado em que me encontrava: a letra com esperança de volta dizia tudo o que eu queria dizer.

A definição da atitude tropicalista teve muitos elementos pernambucanos. Não apenas o amor de Gil por Gonzaga e sua repetidas vezes referida passagem pelo Recife logo antes da virada pop na produção de canções no Brasil. Havia também (e isso sobretudo para mim) a arrebatadora invenção do trio elétrico — e esta não se entende sem a passagem do bloco Vassourinhas por Salvador em 1949: o frevo-hino dessa agremiação recifense virou hino eterno do carnaval baiano. O carnaval eletrificado da Bahia era uma força avassaladora só conhecida dos habitantes de Salvador. Enconrajou-nos a eletrificar nossa música e nos ajudou a chegar perto do rock por caminho muito nosso. E o rock entrou no carnaval, com os trios soando entre heavy metal e progressivo a partir dos anos 1970. A história do rock na Bahia é intensa e rica — e, embora roqueiros precisem opôr-se ao carnaval, ela não existe sem reconhecer-se nele. Não apenas Raul, Marcelo Nova e Pitty sairam para o mundo gritando o rock soteropolitano: o rock já tinha entrado na circulação sanguínea do próprio carnaval.

Quero ser justo: um dos melhores discos de rock brasileiro de sempre é o novo do Cascadura, “Aleluia”. Fico profundamente feliz: Zeca (ainda pequeno) e eu ouvíamos apaixonados o CD dessa banda resistente quando eles gravaram “Nicarágua”. Eles nunca esmoreceram. Agora trazem um trabalho extenso e denso, com rítmica complexa, timbres ricos e interpretações espetaculares de Fábio. É um disco de responsa, que todos os amantes de rock deveriam ouvir. Não deixa de ser significativo que eu o tenha ouvido logo depois de ver Luiz Caldas encerrar noite quente no Fantoches com “Vassourinhas”. O Baiana System também falou da história da guitarra baiana, olhando para o futuro. Há referências ao carnaval em “Aleluia”. Vou ouvir mais. E falar mais. Eu me perco: é que quero ser justo como Salomão.

O enredo de 2013 - DENISE ROTHENBURG

CORREIO BRAZILIENSE - 10/02

A “Acadêmicos de Dilma” abriu o desfile com a redução da tarifa de energia, mas o preço da gasolina abaixou a nota. Nas arquibancadas, o povo está apático. Nos camarotes, políticos não escondem o ar de desânimo


Uma escola de samba, para ter sucesso, precisa agradar no conjunto e em vários aspectos e detalhes. O mesmo ocorre com um governo. Na semana passada, um integrante da base governista proclamava numa roda que a presidente Dilma Rousseff só chegará inteira ao fim deste desfile, leia-se 2014, se sua popularidade não ficar abaixo daquela desfrutada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Se descer, avisam alguns, será sinal de que ela poderá ter problemas, com risco de queda. Dentro do PT, alguns levantam o leque de fatores capazes de levar a esse “cruzamento declinante” nas “arquibancadas”, onde está o povo; ou nos “camarotes”, onde se instalam os políticos.

O desencanto da turma dos camarotes com a “Acadêmicos de Dilma” é visível a olho nu. Nos últimos dois anos, Dilma segurou os cargos de segundo escalão, afastou indicados do PMDB, do PR, e até do PT. Para completar, o rol de pessoas que ela costuma consultar nos mais diversos setores (em linguagem carnavalesca, seria dar lugar de destaque) não inclui um só nome dos partidos aliados. Nem os petistas têm muito espaço nos carros alegóricos. Dilma é ela, rainha da bateria, porta-bandeira. E Lula é ele, vai de puxador do samba e mestre-sala. E não é de dar muita “ousadia” aos políticos, salvo as exceções em que percebe alguma profundidade de ordem técnica.

Esse estilo mais fechado — somado à sensação dos políticos de que isso não vai mudar — agrega outro fator que liga o pisca-alerta palaciano: a mudança de eixo do Congresso Nacional. Vamos começar pela presidência da Câmara. Por mais que o gaúcho Marco Maia fosse visto no Palácio como alguém capaz de travar alguns carros alegóricos da “Acadêmicos de Dilma”, ele pertence ao PT, que compõe a bateria e a velha guarda da escola. Portanto, até os arroubos eram meio que contidos, para não afetar o partido.

Durante a gestão de Marco Maia, o líder do PMDB, Henrique Eduardo Alves, tinha planos de virar presidente da Câmara, uma espécie de ritmista. Nessa posição, não brigava com a direção da escola para, assim, garantir o apoio do PT.

Eduardo Cunha, o novo líder do PMDB, e o próprio Henrique Eduardo hoje têm outro “eixo”. Cunha pretende se firmar dentro da bancada como um nome capaz de conviver na luz dos holofotes sem se queimar e ainda ser elogiado por seu partido. Para obter o apoio da família peemedebista, sambará de acordo com o que o partido deseja, quer agrade ou não ao Planalto. Henrique Eduardo Alves, por sua vez, pretende se firmar no cargo de presidente ressaltando o parlamento, ou seja, analisando os vetos e o que mais chegar.

Certamente, num ano sem eleições, a Câmara tende a ficar bem acima das 44 votações nominais abertas realizadas em 2012, metade do que foi votado em 2011 (obviamente, a razão principal da queda no ano passado, mais do que infidelidade dos partidos, residiu nas eleições, como bem demonstrou o levantamento da Consultoria Arko Advice). O problema, entretanto, não é o número, e sim a qualidade dos projetos que estão por vir, a maioria considerada indigesta pelo governo. Lá vêm os royalties, a regulamentação da Emenda 29 e a onda de temas que o Planalto passou dois anos tentando evitar, seja com vetos ou, simplesmente, manobrando para tirar do plenário.

No Senado, não será diferente. O novo presidente, Renan Calheiros, começa a desfilar focado em se estabilizar no cargo. Se essa estabilidde estiver associada a ser cordial com o Poder Executivo, ele o fará. Caso contrário, o lema de Renan, segundo alguns, será o da “farinha pouca, meu pirão primeiro”. E Dilma que se cuide para não ser atropelada como Lula foi em 2007 na votação da CPMF, a grande derrota do governo entre os senadores. Naquela época, há quem diga que o Senado estava tão entretido com Renan que não percebeu a falta de votos. Agora, todo o cuidado é pouco para evitar que situações como aquela se repitam. 

Enquanto isso, na arquibancada…
Tudo o que foi dito acima tende a se resolver, entretanto, se a arquibancada aplaudir efusivamente a “Acadêmicos de Dilma” no fim de 2013, quando as escolas começam os ensaios para o ano seguinte, no caso, as eleições presidenciais. E, para isso, avaliam alguns, basta que ela consiga manter a sensação de que a crise, apesar dos pesares, não levou embora aquele sentimento de sobreviventes e vencedores que muitos brasileiros têm hoje quando conseguem adquirir algo com que sonharam a vida inteira, ou, simplesmente, ver o filho numa posição melhor do que a sua própria. A queda da conta de luz foi apenas o início do desfile, que quase não começa por conta do aumento da gasolina e seus reflexos. Mas essa é outra história. Ainda tem muito carnaval para a “Acadêmicos de Dilma”. Esse, na quarta-feira, estará apenas começando.

Samba, suor e lágrimas - AGAMEMON

O GLOBO - 10/02

‘O carnaval é uma festa pagã: só pagando mesmo pra comer aquelas mulheres maravilhosas que saem nas escolas de samba’


Todos os meus 17 leitores e meio (não esqueçam do anão) sabem que aqui em casa, durante o carnaval, eu e a Isaura, a minha patroa, seguimos a Lei de Muricy (Ramalho): cada um cuida de si. Eu vou cair na folia e a Isaura, como já é tradicional, aproveita o Tríduo Momesco para fazer um retiro de fundo espiritual com um pessoal que ela conheceu num clube de swing.

Desde os tempos de Oscar Niemeyer, o carnaval é uma festa pagã: só pagando mesmo pra comer aquelas mulheres maravilhosas que saem nas escolas de samba. No carnaval vale tudo! O carnaval é uma espécie de MMA com penetração. O carnaval é epopeia orgásmica da luxúria, da lascívia e da bandalheira. São três dias de fodia, que dizer, de folia e brincadeira, onde vale tudo, ninguém é de ninguém e o país todo se transforma num grande Congresso Nacional!

Se a cerimônia do Oscar é a Marquês de Sapucaí dos americanos, a nossa Marquês de Sapucaí é a Marquês de Sapucaí mesmo. E hoje à noite, é claro, estarei marcando presença no animado Camarote da Brahma, onde pretendo bater algumas carteiras das celebridades VIP (Very Impotent People) e comer umas Devassas.

Porém, antes de encarar a boca livre dos camarotes, faço questão de sair em muitos blocos, emporcalhando vários pontos do Rio de Janeiro. Por conta da minha famosa incontinência urinária, vou fazer xixi no tradicional bloco Cacique Mijamos, no Cordão das Bolas Pretas, além, é claro, da Banda de Xixipanema, do Uremia é Quase Amor, do Sujaço do Cristo e do bloco Me Urina que Eu Sou Cineasta.

PLANTÃO DE CARNAVAL COM Dr JacintHo Leite Aquino Rêgo, MD

Dr. Jacintho Leite Aquino Rêgo, sou sua fã e faço questão de ler a sua coluna aos domingos todos os dias. O meu pobrema é que sou madrinha de bateria e todo ano exibo generosamente o meu pavilhão reto-furicular na Sapucaí.

No entanto, para minha decepção, no ano passado alguns jurados me deram notas baixas e a minha região lombo-lortal caiu para o Grupo de Acesso. O que devo de fazer?

Prezada Rainha da Bateria, os traumas psicoproctológicos podem trazer dolorosas sequelas que podem durar muitos anos. Com trocadilho, por favor. É difícil fazer um diagnóstico preciso sem realizar, in loco, um exame mais acurado da sua região lombo-lortal. Mas já que o seu Viradouro caiu, é hora de levantar a moral da região reto-furicular. Neste caso, o que tem dado certo com os meus pacientes é realizar uma cirurgia plástica reparadora. Só assim vão voltar a reparar na sua comissão de frente, que dizer, de fundos. E, se você caiu mesmo pro Grupo de Acesso, preste muita atenção ao grupo que tem acesso à sua região lombo-lortal posterior.


3D na favela - ANCELMO GOIS


O GLOBO - 10/02

A Cidade de Deus vai ganhar uma sala de cinema 3D. Terá poltronas confortáveis e ar-condicionado. O projeto foi idealizado pelo ator Paulo Betti, em parceria com o secretário de Cultura do Rio, Sérgio Sá Leitão. Na semana passada, eles visitaram terrenos na comunidade.

Pensando bem
Não é só na previsão da morte do jornal em papel que alguns futurólogos apressadinhos quebram, até agora, a cara. Em relação ao futuro do cinema também. Mesmo com a concorrência destas novas tecnologias, o mercado de cinema no Brasil dobrou o faturamento nos últimos sete anos. Passou de R$ 750 milhões em 2008 para R$ 1,5 bilhão no ano passado.

Segue...
Paulo Sérgio Almeida, diretor da Filme B, empresa especializada em análise do mercado cinematográfico, vê três motivos para isso. Primeiro, o crescimento do número de salas (cerca de 200 novas a cada ano). Depois, o aparecimento do 3D e, finalmente, a entrada da classe C como consumidora de cinema.

Não há almoço grátis
O patrocínio privado de eventos de magistrados não é, claro, o único tropeço ético no Judiciário. Em 2007, uma semana antes de ser preso na Operação Hurricane, o desembargador José Eduardo Carreira Alvim deu uma palestra para advogados do Bradesco, no quarto andar de um prédio na Rua Senador Dantas, no Rio.

Aliás...
Em Frei Paulo, isto se chama conflito de interesse. 

O DOMINGO É..
... de carnaval e de Cris Vianna, 35 anos, a linda paulista de 1,75m de pura formosura, que encanta o Rio e foi escolhida Mulata do Gois 2013. A atriz posa aqui e na página ao lado em um ensaio exclusivo com produção da superestilista 1sabela Capeto. Juntas, veja aqui, as duas botaram para quebrar. O ensaio continua no blog e no Facebook (AncelmoGoisOGlobo) da turma da coluna 

Presidente danadinho
A Objetiva lança em março o livro "Uma vez um segredo', no qual uma estagiária relata detalhes do seu romance com o presidente dos EUA. Quem pensou em Monica Lewinsky e Bill Clinton errou. O namorador era John Kennedy. A autora é Mimi Alford, que aos 18 anos estagiou na Casa Branca.

Não falei de flores
Esta foto do governador Negrão de Lima cumprimentando Elis Regina e outros artistas do III Festival da Canção Popular, em 1968, estará no livro sobre o antigo estado da Guanabara, que existiu entre 1960 e 1975. No total, são 120 imagens, todas do acervo do Arquivo Público do Rio.

Em tempo...
Tom Jobim e Chico Buarque venceram o III Festival da Canção com "Sabiá'. Superaram "Pra não dizer que não falei das flores', de Geraldo Vandré, hino da luta contra a ditadura militar. Mas aí é outra história.

Crê no teatro
José Wilker irá dirigir uma versão teatral do filme "Rain man', que rendeu um Oscar de melhor ator a Dustin Hoffmann. No Brasil, o papel caberá ao ator Marcelo Serrado.

História da TV
A rádio corredor diz que o tema da Beija-Flor para 2014 deverá ser José Bonifácio de Oliveira, o Boni.

Ela voltou
Depois de dois anos, Patrícia Pillar reassume o posto de apresentadora do "Som Brasil'. Vai substituir Camila Pitanga.

Idiana Jones
O ator Harrison Ford, 70 anos, desembarca no Rio depois do carnaval, no domingo.

`O SAMBA ME EMOCIONA'
Ainda menina, ela viajou o mundo como modelo. Mais tarde, em 2005, encantou os brasileiros com a sua beleza na TV como a Drica na novela "América", de Glória Perez, na TV Globo. Agora, para alegria dos cariocas, ela mostra seus encantos no carnaval da Sapucaí. Corinthiana de coração e apaixonada pela escola de samba paulista Vai-vai, para felicidade da turma da coluna, a mulata-maravilha agora é nossa!

A paulista Cris Vianna, como se sabe, vai ser rainha de bateria da Imperatriz Leopoldinense, agremiação que desfila amanhã no Sambódromo:

— No carnaval, eu sou a Cris. Quando desfilo não tem personagem. Eu fico numa emoção imensa. Tem hora que me dá muita vontade de chorar. O mestre Noca, às vezes, manda eu sair do meio da bateria e ir para a frente porque eu me emociono.

Devota de Nossa Senhora Aparecida desde criança — "ela é a minha pretinha favorita" —, Cris recorreu à santa para o seu primeiro papel na TV, na novela de Glória Perez, em 2005. Como deu tudo certo, ela foi até Aparecida do Norte, de carro, sozinha, para pagar a sua promessa. Hoje, antes de entrar em cena, na Sapucaí ou em qualquer compromisso importante, a atriz faz uma linda oração pedindo para que a sua santinha esteja com ela. É simplesmente assim que Cris encara o estúdio ao interpretar

Julinha, sua personagem em "Salve Jorge!". Fã de Glória Perez, Cris Vianna diz que é uma honra estar na trama:

— Acho que é uma novela que trata de um tema importantíssimo, o tráfico de mulheres.

Aliás, Cris é fã de mulheres que considera fortes: Michele Obama, Dilma Rousseff, Glória Perez.

Reservada, não gosta de falar muito sobre o seu namoro com o preparador físico de vôlei de praia, Luiz Roque: "Estou feliz".

Sua filosofia de vida vem de uma frase que a mãe repetia desde que Cris era pequenininha: "Cris, se não der certo, você começa de novo."

Que seja feliz.

Ana Cláudia Guimarães Produção: Isabela Capeto Maquiagem: Valéria Campanharo
abelo: Juliano Nunes e Josilene Carvalho, do Werner Coiffeur
Agradecimentos: Arezzo, Schutz e Fiszpan

Oito perguntas para Cris

Você já sofreu algum preconceito?
A raça já sofreu muito. É muito deselegante ter preconceito. Não existe feio, bonito, magro, gordo, baixo, alto. O julgamento é feio, apesar de sermos julgados o tempo todo. O importante é a inteligência, é quanto a pessoa batalhou para estar onde chegou. Assim, a gente dá um passo à frente.

Onde você estudou artes cênicas?
Estudei durante cinco anos em São Paulo. Depois, entrei para uma escola de atores no Rio e fui convidada para fazer TV. Tive que passar por uma bateria de testes até fazer a novela "América", de Glória Perez, em 2005.

Pensa em fazer teatro?
Eu digo sempre que não sou nem 30% da atriz que pretendo ser. Sou uma pessoa determinada. Meu sonho é fazer uma peça de teatro. Mas agora não dá tempo por causa do meu comprometimento com a novela.

Alguém da sua família seguiu carreira artística?
Ninguém. Mas desde adolescência eu tinha esse desejo. Eu não sou de sonhar com o impossível. Vou aos poucos, e o que vai vir depois do primeiro passo é consequência.

Você tem medos? Não. Medo te poda, te amarra.

Como você aprendeu a sambar?
Sambar foi como andar de bicicleta. Não tô me achando não, hein! (brinca).

Como mantém o seu corpo?
É um equilíbrio. Não consigo fazer tudo o que gostaria, mas faço musculação, balé, pi-lates. Exercício também é terapêutico.

O que você faz nas horas vagas?
Namoro, passeio no Jardim Botânico, ando de bicicleta, faço comida, lavo roupa, limpo casa, vou ao teatro e ao cinema. Vida normal.

Será arte? - FERREIRA GULLAR

FOLHA DE SP - 10/02


Pode ser que me engane, mas estou convencido de que a pessoa nasce poeta, ou pintor ou cozinheiro


ESCREVER UM poema, pintar um quadro, fazer um filme, uma peça de teatro, uma composição musical, enfim, fazer o que se conhece como obra de arte, sempre requer do autor o domínio de um "métier", de uma linguagem própria a cada um desses gêneros artísticos, além, é claro, do talento, sem o qual aquelas outras condições não adiantam de nada.

Pode ser que me engane, mas estou convencido de que a pessoa nasce poeta, ou pintor ou cozinheiro.

Sem o domínio do ofício, ninguém vai adiante, mas o que torna aquele saber fazer uma obra de arte é o talento, que não se aprende no colégio. Mas o talento não está por sua vez desligado dos recursos técnicos que tornam possível a realização da obra.

Noutras palavras, quem nasceu com a vocação de pintor logo se identifica com o primeiro belo quadro que vê. Não apenas o acha belo: deseja criar algo dentro daquele universo; as cores, as formas, a expressão nascida delas são algo que o fascina e atrai.

Não estou inventando nada. Da Vinci, Goya, Caravaggio, Monet, Picasso, todos eles, ainda meninos, desenhavam e sonhavam em se tornar pintores. O mesmo se dirá de tantos outros artistas dos mais diversos gêneros.

Enfim, o que pretendo afirmar aqui é que o artista é artista em função da linguagem estética com que se identifica e que decide assimilar, dominar, reinventar. Sem linguagem não há obras de arte. Por isso mesmo, a arte se manifesta por meio de diversas linguagens, que são intraduzíveis uma na outra: o que a pintura diz, a música não diz, o que a poesia diz, a pintura não diz. Os significados existem nas linguagens, nascem delas, são elas.

Cabe então perguntar: pode existir arte sem linguagem? Esta é a questão que se coloca em face do que se chama hoje de arte contemporânea, caracterizada precisamente por não ter linguagem, isto é, neste caso a obra não nasce da elaboração de signos e formas constitutivos de um universo expressivo, dentro do qual o artista cria. Não, nesse novo tipo de arte, um mesmo artista poderia propor, como obra sua, casais nus num museu, urubus numa gaiola ou um tubarão cortado ao meio.

Como não foi ele quem fez os casais, nem os urubus nem o tubarão, a sua obra consiste apenas em uma ideia que lhe ocorreu. Daí também a designação de arte conceitual (o que, aliás, é o contrário da natureza das artes, seja música, pintura, escultura, intraduzíveis conceitualmente).

Pelo fato mesmo de não surgir da elaboração de uma linguagem, esse tipo de manifestação pode se valer de toda e qualquer coisa para realizar-se. Tornou-se conhecida uma tal "obra perecível" de um artista latino-americano, que consistiu em prender um cão numa galeria de arte e deixá-lo morrer de fome e sede.

Mas, muito antes e depois dele, outras manifestações se tornaram conhecidas, feitas todas com o propósito de chocar o espectador. É certamente difícil admitir como criação artística uma mulher que se deixa filmar enquanto alguém faz incisões em seu clitóris.

Citei estes exemplos mais radicais porque são representativos de uma atitude que desconhece toda e qualquer norma ou limite. Parecem pretender ilustrar a célebre boutade de Marcel Duchamp "será arte tudo o que eu disser que é arte".

Certamente, pode alguém, sem ater-se a normas consagradas da arte, criar obra de grande beleza e expressividade. No entanto, esse exemplo mesmo comprova que, para alcançar tal nível expressivo, necessita possuir qualidades que a distingam do comum das coisas.

Aquela frase de Duchamp é uma boutade antiarte, uma vez que em nenhum outro campo da atividade humana tal afirmação seria admitida como verdadeira, já que tudo o que o homem realiza se distingue por suas qualidades específicas.

Ninguém aceitará, como verdadeira, a afirmação de que "será grande craque de futebol quem eu disser que é grande craque", nem tampouco que "será poesia tudo o que eu disser que é poesia", "será ciência tudo o que eu disser que é ciência".

Não obstante, no terreno das artes plásticas, aquela frase dita para chocar -visando negar o convencionalismo que sufocava a arte- tornou-se uma máxima que justificaria a negação dos valores estéticos.

Olegário - LUIS FERNANDO VERÍSSIMO

O ESTADÃO - 10/02

Não se via mais homem fantasiado de mulher no Carnaval. Não tinha mais graça.

O nome do bloco é Os Safados, e existe há 50 anos. Na sua formação inicial tinha 36 componentes, todos amigos, que saíam vestidos de mulher. Como haviam combinado jamais aceitar gente nova no bloco, e como a vida é o que é, depois de 50 anos sobravam apenas 13 do grupo original. Só 13 se não contassem, claro, o Olegário, que ainda vivia, mas mal podia andar e morava numa clinica.

– Com 13 não dá.

– Dá é azar.

– Vamos convidar alguém pra sair conosco. Pra completar 14.

– Nunca. Onde fica a nossa tradição? Tem que ser do grupo original.

Só havia uma solução. Convencer o Olegário a sair com o bloco. Foi uma comissão falar com ele, na clínica. Todos o cumprimentaram com entusiasmo.

– E aí, Lelé?

– Você parece ótimo!

– Está até rosado!

Olegário sempre respondia da mesma maneira.

– Que nada. Com um sopro eu me vou.

Olegário nem quis ouvir a proposta de sair com o bloco.

– Eu, desfilar numa cadeira de rodas? Esqueçam.

Não adiantou insistirem. Não adiantou lembrarem o passado e as tradições dos Safados. Nem como o Olegário era sempre o mais animado do grupo, o que passava meses planejando a sua fantasia.Mais ou menos justa, com seios falsos e decote ou sem decote...

– Pô, Lelé!

– Esqueçam.

– Mas você está tão bem!

– Que nada. Com um sopro eu me vou.

Decepcionado, o grupo se reuniu para discutir o que fazer. Desfilar só com 13 mesmo. Ou não desfilar, pela primeira vez em 50 anos. Já eram um anacronismo. Não se via mais homem fantasiado de mulher no Carnaval. Não tinha mais graça. Se continuassem, seria só pela tradição do bloco. Mas com 13?

Foi quando o Nestor teve uma ideia.

– Eu resolvo isso.

Não foi fácil convencer sua mulher.

– Mas Nestor, é o meu melhor vestido. O do batizado da Amelinha!

– Eu sei. Mas é por uma boa causa.

Voltaram à clinica do Olegário, levando o vestido. O Nestor não disse nada, só estendeu o vestido preto cravejado com brilhantes no colo do Olegário, cujo rosto se iluminou.

Depois, a única coisa que o Olegário disse foi:

– Onde nós vamos nos reunir?

O baile do outro lado da galáxia - MARCELO GLEISER

FOLHA DE SP - 10/02

Como não pensar no que pode estar ocorrendo neste exato momento em outro canto do Universo?


Enquanto no Brasil a folia só cresce em meio ao calor e ao suor tropical, aqui no norte da Nova Inglaterra (EUA) acabamos de passar por uma gigantesca tempestade de neve que soterrou carros e plantas sob um espesso manto branco.

"Coitados", dizem vocês, bebendo cerveja, seminus na praia ou na avenida, festejando esse hedonismo tão nosso. Ledo engano, digo eu e diriam muitos aqui se soubessem desse outro mundo que existe ao sul do Equador. Não sabem mesmo. São mundos paralelos, separados por uma enorme barreira cultural e outra, maior ainda, geográfica.

A internet vai longe, mas não deixa ninguém tocar na neve. "Coitados" não, pois a beleza e o jeito de viver adotam várias formas, e supor que uma é melhor do que outra é, no mínimo, presunção.

As aulas aqui foram canceladas porque os ônibus escolares não conseguem atravessar as ruas já cobertas de neve. Para as crianças, nada mais paradisíaco do que passar o dia construindo bonecos de neve com os amigos da vizinhança e inventando batalhas contra monstros invisíveis. Depois, é se aconchegar em frente à lareira tomando chocolate quente com marshmallow. Os risos são os mesmos lá e cá. Qual criança ou adulto não gosta disso?

E do outro lado da galáxia, o que anda acontecendo? Será que as crianças estão no baile, fantasiadas de alienígenas? Ou na neve, fazendo monstros com dois braços, duas pernas e uma cabeça? Imagine que horror, seres bípedes em vez de rastejantes feito elas. Os monstros de uns são os ídolos de outros.

São cerca de 200 bilhões de estrelas na Via Láctea, dos quais pelo menos 20% têm planetas girando à sua volta, feito o nosso Sol. Se existem planetas, existem também luas, provavelmente em número ainda maior. Pense que só Júpiter tem mais de 60. Imagine a noite por lá, com um monte de luas no céu.

Quando vemos a diversidade da vida na Terra e a diversidade cultural da nossa própria espécie, adaptada a climas e situações geográficas tão diferentes, como não pensar no que pode estar ocorrendo neste momento em outro canto do Cosmo? Vendo tudo isso aqui, como imaginar que a vida é rara e, a vida inteligente, mais rara ainda?

O mais razoável é imaginar o oposto, que a vida, tal como ocorre por aqui, está por toda parte: no fundo do mar, sob quilômetros de gelo, no alto das montanhas, no ar. Junte-se a isso o fato de as leis da física e da química serem as mesmas pelo Universo afora e fica difícil achar que somos exceção e não a regra. No entanto, muito provavelmente, somos, sim, a exceção.

Ao contrário do que muitos de meus colegas pregam, mais por preconceito do que por evidência, o Universo não abriga a vida de braços abertos. Basta olhar para os outros planetas e luas à nossa volta para constatar que são mundos inóspitos, onde a vida não tem chance.

Se houver alguma forma de vida, quem sabe no subsolo marciano ou nos oceanos gelados de Europa, será primitiva, longe da sofisticação que vemos aqui. Se existem outros seres inteligentes na galáxia, nada sabemos deles. Ficamos nós aqui neste oásis, quente no sul e gelado no norte, com crianças pulando nos bailes ou na neve, celebrando nossa raridade. No calor ou no frio, a festa é de todos nós.

Democracias: uma sobe, outra desce - GAUDÊNCIO TORQUATO

O ESTADÃO - 10/02

A democracia representativa desce, a democracia direta sobe. A observação pode servir para emoldurar a agitação social nos mais diferentes espaços do mundo: os protestos contra o sistema financeiro, em plena Wall Street, em Nova Iorque; contra o governo grego nas ruas de Atenas ou contra o presidente do Egito, na praça Tahrir, no centro do Cairo. Entre nós, explica o descrédito da sociedade na instituição política. A bateria crítica que se detonou, nos últimos meses, contra figurantes políticos, dentre os quais os envolvidos na Ação Penal 470, coroando com denúncias atingindo os novos presidentes do Senado e da Câmara, fere também a imagem do Congresso Nacional. Afinal, as pessoas acabam associando as partes ao todo. O fato é que o conceito da representação política está no fundo do poço. Nunca se viu massa tão densa de críticas, expandidas por mídia de grande audiência e com repercussão nas redes sociais eletrônicas. A par de situações envolvendo atores políticos, parcela da polêmica se volta para as prerrogativas dos três Poderes da República, eis que entram no foro de discussão questões como a perda de mandato parlamentar (quem tem a última palavra, Legislativo ou Judiciário?) e a restrição às famigeradas Medidas Provisórias (Executivo admite perder poder?).

A baixa avaliação da democracia representativa, aqui e alhures, tem fundamento histórico. A crise que a corrói se adensa desde a queda do muro de Berlim, no final de 1989. A derrubada daquela muralha, construída em 1961 no auge da Guerra Fria para separar a Alemanha Oriental da Alemanha Ocidental e dividir um povo irmão, arrebentou fronteiras ideológicas, amalgamou doutrinas, aproximou fronteiras, globalizou economias, mimetizou costumes. Hoje, em todos os quadrantes do planeta, o que se vê no tabuleiro do poder é um jogo político embaciado em função da pasteurização de partidos, declínio das oposições, enfraquecimento dos Parlamentos, desânimo de participantes e aderentes, espetacularização do Estado, ascensão das burocracias no seio de governos e relações frequentemente obscuras com os círculos de negócios. Nesse cenário, a política refunde-se e se redistribui pela cadeia de entidades que promovem a intermediação social, como associações, sindicatos, federações, grupos de defesa de categorias profissionais. Esses novos circuitos de representação acabam minando os polos tradicionais da política - partidos, Parlamento, ideologias - e criando bolsões corporativistas por todos os lados.

Ao arrefecimento da política tradicional soma-se a decepção com a democracia, por não ter cumprido as promessas feitas, como lembra Bobbio em seu clássico O Futuro da Democracia: o acesso de todos à justiça, o combate ao poder invisível e a segurança coletiva, a educação para a cidadania, a igualdade de oportunidades. Explica-se, assim, o vácuo criado entre a esfera política e o universo social. O espaço vazio é preenchido por organizações não governamentais, que se multiplicam, ora para representar setores, categorias e gêneros, ora para mobilizar as massas e energizar as ruas. Frustrações sociais acumuladas, a perda de bens materiais, a ameaça de desemprego e o pânico que se forma no bojo da deterioração das economias mundiais deflagram os mecanismos de uma nova disposição: a agitação, o desenvolvimento do espírito de corpo, a busca de referências e bandeiras, o personalismo na política e as ações táticas, como ocupações de espaços, prédios, praças e ruas. Essa é a engrenagem que explica a tomada de Wall Street, as ruas de Atenas e os movimentos que culminaram na Primavera Árabe.

Voltemos ao Brasil. O nosso federalismo, inspirado no norte-americano, é farto de incongruências. Parte das competências do governo central foi distribuída aos Estados-membros. O pacto federativo é sinônimo de desigualdade. Municípios vivem em estado vegetativo. E Estados esmolam de pires na mão junto ao governo federal, engalfinhando-se na guerra fiscal. Repactuar a Federação: eis o primeiro desafio da representação política. Meta plausível? Difícil. O dono da flauta é a União, que apita todas as gaitas, particularmente as de caráter pecuniário. Além disso, a balança dos Poderes pende para o Executivo, em dessintonia com a modelagem do barão de Montesquieu, que criou a estrutura de pesos e contrapesos. Veja-se o Orçamento de 2013, a ser votado dia 19 próximo. Recursos destinados por emendas parlamentares aos municípios, como se sabe, só são liberados com o aval da presidente. Por que o Parlamento não substitui o Orçamento Autorizativo pelo Impositivo e, assim, dispensando a chancela presidencial? Porque o nosso presidencialismo tem caráter imperial. São razões que explicam o Poder Legislativo como refém do Poder Executivo.

Não por acaso, a representação parlamentar é a que detém a pior imagem na esfera da política. Ora, a falta de autonomia para garantir o pleno exercício de suas funções está por trás da má avaliação. Criticam-se os atores políticos por desvios, atos de corrupção e atitudes imorais. De que adianta condenar figurantes se as práticas políticas não são mudadas? Os 513 deputados federais e 81 senadores desenvolvem uma ação sob o mesmo ordenamento, a saber: regras eleitorais obsoletas; sistema de voto ultrapassado; coligações proporcionais que geram injustiças; pedidos de liberação de verbas para as bases; facilidade para criação de partidos; a figura do senador suplente sem voto; doações de recursos privados para campanhas eleitorais; e excesso de Medidas Provisórias. Essa é a matéria prima sobre a qual deveria se debruçar a representação política. Sem reforma política, a radiografia congressual continuará borrada. E o Brasil, a cada nova legislatura, que sempre se abre às vésperas da folia de Momo, estará desfilando os motivos que o caracterizam como "o país do Eterno Retorno". Sob as barbas do profeta Zaratustra.


O que será o amanhã? - MAURO LAVIOLA

O GLOBO - 10/02

A reunião de suposto congraçamento entre a Comunidade dos Estados Latino-america­nos e Caribenhos (Celac, ver­são latina da Organização dos Estados Americanos sem os EUA e o Canadá) e a União Européia, ocorrida em Santia­go do Chile no fim de janeiro, revelou o velho anacronismo existente em boa parte dos países da região dirigidos sob uma visão terceiromundista.

Inútil encontro porque restou apenas a constatação de que a "estratégica associação transatlântica" pretendida ja­mais se solidificará frente à existência da brecha político-ideológica que se­para países latino-americanos com visões planetárias da outra metade que ainda cultuam gestões político-econô­micas do passado.

O pior da história é que o Brasil parece situar-se no lado errado, ainda preso à "Doutrina Garcia" (esplendidamente destrinchada em magistral artigo do sociólogo Demétrio Magnoli). Como prin­cipal conselheiro presidencial para assuntos externos, suas opiniões conduzi­ram a política externa brasileira nos últi­mos dez anos a um estrondoso fracasso. Logrou destronar o Ministério das Rela­ções Exteriores de seu encargo constitu­cional ao induzir os dirigentes do país a seguir os ditames "lulopetistas" "chavistas" e "kirchneristas" de integração regio­nal e aversão aos países capitalistas. Não é por outra razão que o Brasil, suposta­mente o líder econômico continental, aceita e até apoia toda sorte de sub­versões comerciais prati­cadas pela Ar­gentina no último decênio. Outro feito im­portante da dita "doutrina" foi orientar o governo a par­ticipar do co­nhecido plano para ingressar a Venezuela no Mercosul pela janela.

Em matéria de relaciona­mento extrarregional, o bloco dispõe apenas de dois insípidos acordos vigentes com a índia e Israel e três outros com a União Aduaneira da África Austral (Sacu, na sigla em inglês), Egito e Palestina à espera de aprovações parlamentares.

Os (des)entendimentos com a União Européia estão próximos de completar vinte anos e, a julgar pela Argentina, ja­mais serão finalizados enquanto perdurar a atual postura Kirchner, en­quanto o Brasil, preso às amarras da Decisão do Conselho do Mercado Co­mum do Mercosul 32/00, não tem ou­tro papel a não ser ir dourando a pílula.

Enquanto isso, os países da Aliança Atlântica (Colômbia, Chile, Peru e Mé­xico) — contando com crescentes ob­servadores (Panamá, Costa Rica, Uru­guai e mais recentemente o Paraguai) — estão voando à velocidade do som para recuperar décadas perdidas de atrasos e demagogias.

E nós? Como estamos no período de carnaval, só nos resta cantar o conhecido samba-enredo da União da Ilha:

"O que será o amanhã?

Descubra quem puder

O que irá me acontecer?

O meu destino será o que Deus quiser..."


A fita infinita - YOANI SÁNCHEZ

O ESTADO DE S. PAULO - 10/02
Juntando as duas extremidades de uma tira de papel, depois de torcer uma delas, obtemos uma figura peculiar.É a chamada Fita de Moebius, em homenagem ao matemático alemão que a descobriu. Mas, além de uma brincadeira ou de uma homenagem à ciência, ela é um desafio à nossa compreensão das formas e do espaço. Se deslizarmos a ponta de um dedo sobre um dos lados do papel, verificaremos que não existe uma face externa ou interna, mas que a fita tem um único lado. Percorrê-lo nos levará ao mesmo lugar, e nos fará recomeçar invariavelmente desde o início de um caminho idêntico.

O filme Uma Noite, da diretora britânica Lucy Mulloy, reproduz o que acontece nesta estranha figura geométrica. Ele começa inspirado numa história real, em seguida salta para a tela grande, e se conclui saindo dela, provocando uma realidade semelhante à do início. Os jovens de carne e osso,cujas experiências o filme narra, foram interpretados por dois atores estreantes que acabam realizando o sonho dos protagonistas reais.

O ponto de partida desta peculiar Fita de Moebius foi a emigração. O desejo de fugir de Cuba que, embora frustrado para os personagens, pode se concretizar no caso de seus intérpretes. Quando Anailín de la Rua e Javier Nuñez decidem não ira o Tribeca Film Festival e ficarem Miami,amparando-se na Leide Ajuste Cubano,naquele dia eles unem as extremidades de duas dimensões bem diferentes: a ficção e a realidade. Convertendo-as, desse modo, em um mesmo lado contínuo de suas próprias vidas.

Apesar da ausência de parte do elenco, Uma Noite saiu deste festival com três prêmios: melhor diretor estreante, melhor ator dividido entre os dois protagonistas masculinos e também melhor fotografia.

Este último extremamente merecido, pelo retrato verídico dos interiores e exteriores que servem de contexto à narração, com a crueza e a miséria de uma Havana, muito pouco parecida com a cidade alardeada pelas agências de turismo, que exibe invariavelmente o Capitólio, o belo edifício Focsa ou a imensa Praça da Revolução. O que se vê é a decadência arquitetônica e urbanística dos bairros pobres, esquecidos pelos programas de restauração e pelos circuitos frequentados pelos visitantes estrangeiros.

As locações foram escolhidas para constituir uma parte integrante da fatalidade da história, tornando o cenário o seu protagonista essencial. Alguns personagens secundários chegam a ficar em segundo plano dada a força do ambiente que os cerca. Entre eles, o homem que vende remédios ilegais e esconde seu valioso tesouro de medicamentos numa cama falsa; ou o travesti de roupa colante que espera em um dos portais habaneros onde só há poeira e esquecimento.Ou mesmo a mulher que sofre de aids cuja casa agoniza, juntamente com ela. Nada é propositalmente exagerado, nenhuma parede foi desbotada intencionalmente, ou os utensílios ensebados colocados diante da câmera. Trata-se de uma decrepitude autêntica, que dói quando a tocamos.

Desse modo, o ambiente físico vai acrescentando esta atmosfera opressiva que leva os protagonistas a fugir.Em dado momento, também o espectador sente o impulso de lançar-se ao mar numa balsa improvisada a fim de não mais testemunhar esta depauperação física e moral. Não é possível ficar na poltrona do cinema sem reagir, pois a história contada por Uma Noite é como as tragédias gregas nas quais se pode pressentir, desde o início, o drama que eclodirá mais tarde; uma infelicidade para a qual os personagens principais são arrastados quase sem nenhuma opção,enredados pelas circunstâncias que os impelem.

Desde o primeiro minuto, Uma Noite é um filme sem rodeios, centrado particularmente numa geração.A mesma geração que diariamente repetia a saudação matutina com o lema: "Pioneiros pelo Comunismo! Seremos como Che!", mas hoje procura desesperadamente alguma coisa em que acreditar. É justamente entre esses jovens,com menos de 30 anos que acabaram vivendo em Cuba em meio à deterioração ética, que o ideal mais compartilhado é emigrar. A película distingue-se assim de boa parte da filmografia rodada por realizadores estrangeiros na ilha, porque não procura a gargalhada fácil nem se enquadra nos estereótipos do rum, da salsa e das mulatas.

Tudo isso, de uma maneira ou de outra, está na história,mas com uma carga dramática, trágica,mais como mecanismos de alienação do que de fruição, embora possamos dizer que tampouco é possível evadir de todos os esquemas.Como o do músico que improvisa na rua enquanto um grupo de pessoas dança ao seu lado, uma imagem demasiado próxima da visão que os estrangeiros têm da ilha.

O amor tratado como um alívio, como a balsa à qual nos agarramos em alto mar. Coitos fugazes, a traição na forma de seios ou de pênis, a mentira escondida em baixo da roupa e as alusões sexuais como parte inseparável da linguagem urbana. Uma forma descarnada de representar a luxúria nacional, muito distante da mescla de potência e romantismo na qual tantas vezes se tentou definir a paixão dos cubanos. E também a insinuação do afeto terno, que mal passa de um beijo, quase impossível, dado nas circunstâncias mais adversas nas quais se movem os personagens.

A vida de várias famílias se entrecruza em seus integrantes mais jovens, nos seus rebentos. Seres que se movimentam o tempo todo entre a legalidade e a ilegalidade. A excelente atuação de Daniel Arrechada no papel de Raúl confirma que a escola cubana de interpretação continua dando ao mundo um sem número de talentos. O espectador agradece também o uso de rostos praticamente desconhecidos para a tela, pois nas produções nacionais há uma repetição excessiva dos mesmos nomes. Os realizadores fugiram dos lugares comuns também na seleção das músicas.

Os espectadores têm o privilégio de ouvir uma variedade de gêneros, canções que vão do hip hop e o reggaeton até os mais tradicionais; ritmos mais modernos que servem de partitura para muitas cenas.

A diretora britânica assegura que sua intenção não é transmitir uma mensagem política, mas "contar uma história sobre as emoções".

Mas, em Cuba, narrar a realidade, retratar a vida atual é pior do que gritar uma palavra de ordem de contestação ou redigir centenas de documentos oposicionistas. Portanto, Uma Noite é um golpe duríssimo na ilusão, nestes vestígios de um paraíso localizado no Caribe que permanecem gravados na mente de muitos que não o precisam viver. E um golpe mortal na esperança. Não por acaso poderíamos interpretar o final da história como uma nova oportunidade para recomeçar, embora pouco tenha mudado.

Cento e quarenta e cinco quilômetros separam Cuba da Flórida. Tão perto e, no entanto, tão longe. Tão fácil, quando se imagina poder percorrê-los numa embarcação rústica, mas tão suicida quando se tenta fazê- lo. Tudo isso parecem dizer as ondas que percorrem a faixa de mar entre Cuba e os EUA. Um mar que instiga e assusta e no filme está presente desde a primeira cena. A ponto de nos créditos finais este mar aparecer novamente irrompendo numa praça, talvez para enfatizar a viagem de regresso ao ponto de partida. O círculo que se fecha, a fita de Moebius que nos devolve ao mesmo lugar, a uma ilha que nos atrai como um ímã fatídico./ TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

Trincadura da alma - CARLOS AYRES BRITTO

ZERO HORA - 10/02

Esta fase do gerenciamento das perdas afetivas é a mais difícil, até por uma questão de cultura



A tragédia atual de Santa Maria, Rio Grande do Sul, traz à tona uma expressão antiga: "há crimes que clamam aos céus e pedem a Deus castigo". O brado de indignação é tanto mais compartilhado quanto proferido por essa dimensão do ser humano a que chamamos de cidadania. No caso, cidadania que submete as coisas à lupa da razão mais dedutiva ou cartesiana para escancarar a desrazão dos causadores da hecatombe em que se traduz a morte de quase duas centenas e meia de seres humanos.
Cidadania é isso mesmo: qualidade do cidadão. E cidadão é o habitante da cidade. Mas o habitante orgânico da "cidade-estado", a se interessar por tudo que é de todos. E é claro que o habitante assim orgânico, assim militante, assim envolvido com o dia-a-dia dos seus concidadãos é o que se predispõe a chancelar as ações altruísticas, de um lado, e, de outro, a condenar aquelas socialmente danosas. Tem o direito e o dever de tudo apurar criticamente - civismo é isso - para fazer escolhas ou tomar decisões por modo consciente. No caso de Santa Maria, é o cidadão que infatigavelmente se mobiliza e mobiliza os outros para a necessária responsabilização penal, civil e administrativa de quem detonou o gatilho da tragédia. Ou por qualquer forma concorreu para essa aterradora detonação. Responsabilização que, uma vez exemplarmente efetivada, opera como uma espécie de repouso do guerreiro que não é outro senão ele mesmo, cidadão.
Não é bem assim o que sucede com o indivíduo, essa outra dimensão do ser humano. Indivíduo que, ao contrário do cidadão, é simplesmente ilha. Não arquipélago. No limite das situações mais traumáticas, só tem os próprios botões para conversar. No vórtice de uma dor que lhe trinca até o osso da alma - como a resultante da definitiva perda física das pessoas que mais lhe alentavam a própria existência -, não sabe onde buscar forças sequer para continuar a viver. Quanto mais para revolver céus e terras e assim responsabilizar terceiros! Situações de transe em que já não se vê como cidadão ou parte de um todo, mas como um todo à parte. Um atônito microcosmo psicofísico e anímico, com sua personalíssima cota de sentimentos, pensamentos e consciência. Indivíduo que certamente inspirou o compositor popular Tom Zé a dizer que "O homem é sozinho a casa da humanidade". E de quem Protágoras se referiu como "a medida de todas as coisas". E que porta consigo "todos os sonhos do mundo", como se lê em "Tabacaria", de Fernando Pessoa. Por isso mesmo, indivíduo que não se satisfaz totalmente com as respostas que lhe são dadas nem pela sua dimensão cidadã nem pela sua porção mental exclusivamente lógica a que, em desespero, passa a recorrer.
É para essa porção-indivíduo de nós mesmos, porção que simultaneamente é uma totalidade íntegra, que direciono estas mal traçadas linhas. Isso para lembrar que os parentes e amigos mais chegados das pessoas que foram mortalmente vitimadas no terrífico episódio da boate Kiss não podem deixar de se ver como seres humanos que, para muito além de suas perdas como cidadãos, se sentem abrupta e violentamente apartados de si mesmos. Destroçados em suas mais profundas raízes afetivas. São pais e mães, avós, irmãos e irmãs, esposos e esposas, namorados e namoradas, amigos e amigas de fé e companheiros das mais personalizadas experiências. Gente de carne e osso para quem já não há compensação possível, pois não tem sequer como descansar no conforto da responsabilização dos culpados pelo morticínio. Ainda que tal responsabilização se faça pela maneira mais cidadã, que só pode ser a de caráter tão rigoroso quanto desestimulante de recidivas.
Enfim, o que tenciono dizer é que esta fase do gerenciamento das perdas afetivas é a mais difícil, até por uma questão de cultura. Falta-nos a boa prática da fuga da mente racional ou tão-somente lógica para nos entregar de corpo e alma, silenciosa e confiantemente, aos cuidados da própria Existência. Existência ou Vida ou Universo ou Cosmos, com seu infinito cortejo de instantes tão objetivos quanto originais em conteúdos, desafios e respostas. Por isso que aptas a substituir o nosso igualmente infinito estoque de pré-compreensões e assim nos abrir os olhos para a verdade de que, se cada momento existencial é essencialmente novo, como gerenciá-lo com velhos padrões resolutórios? Que os familiares e amigos íntimos das vítimas fatais se façam esta pergunta e passem, quem sabe, à adoção da postura que é própria dos artistas e místicos: a suspensão de toda subjetividade para dar à Vida a chance de provar que ela sabe muito mais dos homens que os homens sabem de si próprios e dela também. Ela, a Vida, a concretamente demonstrar que há momentos de profunda inquietação e perplexidade em que devemos cessar todas as perguntas. Todas! Pois esse absoluto não-perguntar é que pode abrir espaço em nós para a chegada das mais adequadas respostas.


A última palavra - MARCO AURÉLIO MELLO

FOLHA DE SP - 10/02


O sistema não fecha se admitido o tratamento diferenciado. A decisão não se mostra condicionada ao endosso de outro Poder


A ordem natural das coisas possui força insuplantável, norteando a vida em sociedade. Prevalecente o bom senso, conclui-se que servidor ou agente condenado por formação de quadrilha, corrupção, peculato ou lavagem de dinheiro há de ser afastado da administração pública.

Em um Estado democrático de Direito, imperam as normas legais, a que todos, indistintamente, submetem-se. O Código Penal versa os efeitos da condenação, estando prevista, em certas situações, a perda do cargo, função pública ou mandato eletivo -artigo 92. Isso ocorre quando aplicada pena restritiva da liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados em violação de dever para com a administração pública. Os direitos políticos ficam suspensos ante condenação criminal, enquanto durarem seus efeitos -artigo 15, inciso I, da Constituição Federal.

Considerando o sistema como um grande todo e o primado do Judiciário, fica afastada a possibilidade de quem quer que seja desconhecer ou mesmo flexibilizar decisão condenatória. É comum dizer-se que o teor não se discute. Deve apenas ser cumprido.

O Supremo, no julgamento da ação penal nº 470, concluiu no sentido da perda dos mandatos dos parlamentares condenados -e estes o foram, repita-se, por formação de quadrilha, corrupção passiva, peculato ou lavagem de dinheiro-, declarando-os inabilitados para o exercício de função pública. Entre as interpretações possíveis, incumbe relativizar a verbal, a gramatical, que, conduzindo à visão primeira, seduz.

A sistemática e o objetivo das normas são inafastáveis. Por isso, o artigo 55 da Carta de 1988, mais precisamente o § 2º nele contido, ao revelar que, nos casos de inobservância às proibições versadas no artigo anterior, de procedimento incompatível com o decoro parlamentar e de condenação criminal, a perda do mandato pressupõe votação secreta e maioria absoluta assim definindo, não pode ser levado às últimas consequências, mesmo porque o parágrafo que se segue, a alcançar perda do mandato assentada pela Justiça Eleitoral, versa não a deliberação, mas a simples declaração pela Mesa da Casa respectiva.

O sistema não fecha se admitido o tratamento diferenciado. Depois de selada a culpa de parlamentares condenados, com imposição da perda dos mandatos, quando não mais for possível a interposição de recurso contra o pronunciamento do Supremo -respeitando-se, nesse meio-tempo, o princípio constitucional da não culpabilidade-, o efeito será único: o afastamento definitivo do exercício dos mandatos.

A toda evidência, a decisão proferida não se mostra, sob o ângulo da eficácia, condicionada ao endosso de órgão de outro Poder. Alfim, o Supremo, guarda maior da cidadania, da Constituição da República, o qual possui a última palavra sobre o direito posto, limitou-se a observar a ordem jurídica.

No mais, os ares democráticos direcionaram ao pleno funcionamento das instituições, sendo impensável a resistência ao conteúdo de título executivo criminal condenatório. Cientificada a Câmara dos Deputados do denominado trânsito em julgado da decisão -do não cabimento de qualquer recurso-, a providência natural situa-se no campo da forma: a declaração da perda dos mandatos, convocando-se, para as cadeiras vagas, os substitutos diplomados pela Justiça Eleitoral.

Exame da OAB: controle de qualidade? - CARLOS EDUARDO DIPP SCHOEMBAKLA

GAZETA DO POVO - PR - 10/02

Algum tempo atrás, uma notícia estampou praticamente todos os jornais do país: “Primeira fase do Exame de Ordem registra pior resultado desde 2010”. Tal fato provoca nos acadêmicos de Direito um grande temor quanto ao exame, e eles deixam de acreditar em si mesmos, na bagagem acadêmica que adquiriram durante o curso e, claro, nos estudos que realizaram e que devem realizar constantemente. Mas tal notícia, além de temor, também suscita raiva em alguns, dúvidas em outros, e sempre um mesmo questionamento: qual a necessidade do exame aplicado pela Ordem dos Advogados do Brasil? Por que para outras profissões não existe tal exame?

Severas críticas também são realizadas todos os dias sobre o “real” motivo da exigência de tal prova: financeiro, reserva de mercado, manutenção dos cursinhos. Existem até movimentos formados por um passivo que não consegue obter aprovação, buscando apoio legislativo para sua extinção; hoje são 18 projetos de lei e uma Proposta de Emenda Constitucional tentando alterar essa obrigatoriedade.

No entanto, as pessoas que criticam a necessidade do Exame de Ordem parecem não compreender que o problema não é exatamente a prova; é de muito maior complexidade. Segundo o Guia do Estudante Abril, o país hoje conta com muitos cursos da área jurídica. Pesquisas inclusive demonstram que 50% dos cursos de Direito do mundo estão no Brasil. De acordo com as regras do MEC, todos deveriam apresentar boa qualidade, cumprindo exigências mínimas para funcionar, que incluem corpo docente bem qualificado, boas bibliotecas, além de outros suportes acadêmicos.

Entretanto, como são poucas as instituições públicas oferecendo vagas, o alunado precisa procurar instituições particulares, nas quais, embora exista a possibilidade governamental de acesso às bolsas de estudo ou financiamento (em número ainda incipiente para a demanda), a baixa renda brasileira provoca uma luta desenfreada por alunos. Isso permite mais matrículas nas instituições de ensino superior de menor valor de mensalidade, e não naquelas de melhor estrutura e qualidade do corpo docente, atendendo às regras de nosso mundo capitalista, o que é alarmante se considerarmos que 10% dos universitários no Brasil são acadêmicos da área jurídica.

Não parece crível imaginar, diante desses dados, que acabar com o Exame de Ordem seja a solução. O ideal seria garantir efetiva qualidade de formação, o que tem se revelado difícil de conseguir e fiscalizar. As diferenças regionais e de concepções educativas, além da maior ou menor facilidade de acesso aos professores qualificados, provocam imensa disparidade na qualidade dos egressos.

Lamentavelmente, em que pese o próprio Exame, hoje, na advocacia – como em todas as outras atividades laborais –, existem os bons e os maus profissionais. Acabar com o Exame de Ordem seria o mesmo que acrescentar uma nova categoria de trabalhadores, os não aptos, para exercer a profissão, o que poderia piorar ainda mais o exercício nas ocupações relacionadas à área, que são muitas, e das quais dependem fortemente os mais desvalidos da população quando buscam dignidade e justiça. A excelência da advocacia ainda depende do Exame de Ordem.

Futebol guerreiro - TOSTÃO

FOLHA DE SP - 10/02


Felipão terá de decidir entre o estilo das grandes equipes do mundo ou o guerreiro, truncado


NA DERROTA para a Inglaterra, muitos disseram que Felipão não foi Felipão, porque contrariou seu estilo, ao escalar dois volantes que avançam. Ocorreu o contrário, ao colocar Ramires e Paulinho muito atrás, estáticos, sem marcar por pressão, o que os dois fizeram muito bem, com Mano Menezes.

Um dos assuntos mais comentados na semana, que tem a ver com a maneira de jogar do futebol brasileiro, foi o vídeo mostrado pelo Botafogo, em que o zagueiro Bolívar, conhecido por suas cacetadas, gritava: "Vamos deixar cicatrizes nesses caras".

O sereno Oswaldo de Oliveira, irado, completava: "Vai, peita, mete a mão na cara, como eles têm feito".

Uma das justificativas para o clube mostrar esse vídeo seria mudar a imagem de que Oswaldo é um treinador sem vibração, pacato, e que o Botafogo não é um time chororô, de coitadinhos, bonzinhos, azarados.

A maioria das pessoas achou que deram muita importância a um fato corriqueiro, que o vídeo foi feito para motivar os jogadores, e que todos os treinadores fazem o mesmo.

Os que criticaram foram chamados de politicamente corretos e de puritanos.

Esse tipo de palestra, usada por todos os técnicos brasileiros, não tem intenção de incentivar a violência, mas incentiva, no contexto atual. Ela tem a ver com o estilo truculento, tumultuado, de se jogar hoje no Brasil, com excesso de faltas, pontapés, ofensas e discussões.

A violência nos gramados é a continuação da violência na sociedade, no trajeto para o estádio, nas arquibancadas, e segue após a partida. Os jogadores entram em campo como se fossem para uma guerra, tensos, pressionados para vencer de qualquer jeito e incentivados por palestras, algumas ridículas. Esse ambiente bélico dificulta o jogo coletivo, a formação de talentos, e facilita o jogo violento, tumultuado.

Treinadores, jogadores e parte da imprensa adoram dizer que futebol é esporte de contato. É óbvio que é, mas não de violência. Além disso, quem sabe jogar foge do contato. Jogador guerreiro é o que se prepara muito bem para a competição, que tem talento individual e coletivo (sabe as necessidades do companheiro) e que cresce na adversidade. Não é o que dá trombada.

Contra a Inglaterra, o Brasil não teve identidade. Não jogou no estilo técnico, coletivo, com muita troca de passes, no padrão das melhores equipes do mundo, nem fez o jogo pegado, "guerreiro", estilo vapt-vupt, em que a bola vai e volta rapidamente, comum no Brasil.

Na Copa, em casa, pressionado e apoiado pelo torcedor, com a obrigação de vencer, como disseram Felipão e Parreira, o que implica, tacitamente, que vale tudo, deverá predominar o estilo truncado.

Se vencer, será uma grande festa, um culto ao utilitarismo. Cada um escolhe sua opção.

Nem verde nem amarelo - PAULO VINÍCIUS COELHO

FOLHA DE SP - 10/02


A difícil mistura entre jovens e veteranos gera profecias do apocalipse no futebol brasileiro


O TÉCNICO da seleção é empossado e admite estar fora de seu tempo. "Estou desatualizado!" A frase não é de Felipão, mas de Telê Santana em seu retorno ao comando, em fevereiro de 1986.

Otávio Pinto Guimarães, recém-eleito presidente da CBF, não precisava argumentar a favor de Telê, aprovado pela opinião pública. Mas insistia: "Vamos precisar de Telê, porque nosso projeto depende do ânimo do nosso povo!"

Qualquer semelhança não é mera coincidência. A dupla Otávio Pinto Guimarães/Nabi Abi Chedid comandava a CBF. Marin e Del Nero já estavam por perto e rezavam pela cartilha do populismo.

Sempre que alguém deseja profetizar o apocalipse do futebol brasileiro fala sobre 1966, quando também havia uma difícil mistura entre garotos, como Tostão, e veteranos como Bellini. Pela similaridade, os profetas transitavam naquele tempo, antes da segunda Copa do México. Em 1986, o Brasil era campeão mundial sub-20, como hoje.

Tinha jovens promissores, como Muller, Silas, o zagueiro Júlio César e Romário, a quem Telê não chamou. Também tinha gênios consagrados e decadentes -ou machucados- como Sócrates, Falcão, Cerezo e Zico. Os jovens eram verdes, os velhos, carcomidos.

Não estamos nem estávamos às portas do fim. Há e havia problemas. Desde 2009, o Brasil perdeu de Holanda, Alemanha, Inglaterra, França, Argentina... Não há profecias, mas ponderações. Uma delas, sobre a mudança de estilo das seleções de Mano Menezes x Felipão.

Com Mano, as linhas estavam mais juntas, compactas, como se joga na Europa. Com Felipão, o time se espalha mais, Ronaldinho arrisca passes longos -e erra!

Estamos desatualizados.

Sim, estamos, como dizia Telê. Felipão tem raízes no futebol do interior gaúcho... bico pro mato!

Em setembro de 2001, o Brasil perdeu da Argentina de Marcelo Bielsa. A Argentina era moderna, o Brasil arcaico. Em 2002, a Argentina foi eliminada na primeira fase da Copa, o Brasil foi campeão.

Existe um problema maior do que a atualização tática da seleção: ter ou não ter craques.

Em 1986, Telê não se atualizou. Arriscou, tentativa e erro, até montar um time-Frankenstein, meio adolescente, meio caduco. "Ele terá de usar a base de 82, ou essa base modificada", disse o cronista gaúcho Ruy Carlos Ostermann sobre Telê à revista "Placar", março de 1986.

Telê mesclou e não foi suficiente.

Em 2002, o Brasil ganhou com o mais puro Felipão. Não era moderno. Era bom!

Daqui até a Copa, o Brasil não vai praticar o futebol mais atualizado. Não é algo que se peça a Felipão. Pede-se que o atraso tático seja menos importante do que a escolha dos jogadores. Que os jovens não sejam tão verdes, os velhos não estejam amarelados.

Parou por quê? - ILIMAR FRANCO

O GLOBO - 10/02

COM SIMONE IGLESIAS (INTERINA)

Ao aconselhar a presidente Dilma a descentralizar as decisões, o ex-presidente Lula demonstrou preocupação com o seu legado. Citou como exemplo a Transposição do São Francisco, obra que priorizou no segundo mandato e que, agora, está parada por falta de decisão política. Lula avalia que não podem dar margem ao estigma de que ele começou uma obra e ela parou.

No detalhe
É consenso na Esplanada que a presidente Dilma se preocupa com detalhes desnecessários que poderiam ser resolvidos pelos auxiliares. Em recente reunião no Planalto, com uma dezena de ministros, envolveu-se em briga com Marta Suplicy (Cultura) sobre o nome de um programa. A ministra apresentou Céu das Artes, mas Dilma não gostou porque bate com o CEU (Centro Educacional Unificado), criado quando prefeita. Em outra reunião, checou a apresentação de cada ministro para um evento do governo. Raramente, deixa nas mãos deles a batida de martelo. A maioria não tem coragem de contestá-la.

Tomada de assalto
O petista Nilmário Miranda deve presidir a Comissão de Direitos Humanos da Câmara administrando a chegada de conservadores, que se armaram para integrar o órgão e barrar mudanças ligadas à religião e orientação sexual.

“Deputados vestem a fantasia depois do carnaval: defensores de mensaleiros querem entrar no Conselho de Ética, e de
fundamentalistas religiosos na Comissão de Direitos Humanos”
Chico Alencar
Deputado federal PSOL-RJ

Estágio obrigatório
Ganha corpo no governo a ideia de aumentar o tempo de formação dos médicos. O modelo discutido é semelhante ao inglês: além dos seis anos de faculdade, os médicos teriam de passar mais dois anos fazendo atendimento básico nos postos de saúde. A proposta tem a simpatia do ministro da Saúde, Alexandre Padilha.

"Poker Face"
A Polícia Legislativa está de olho no carteado dos motoristas dos deputados. Eles se reúnem na garagem do Anexo IV, enquanto esperam os chefes, e a jogatina rola solta. A dinheiro.

Previdência vai mal
Acendeu a luz amarela na Previdência. Problemas das longas filas e das perícias, que tinham sido resolvidos na gestão do PT no ministério, voltaram e preocupam o Planalto, mas Garibaldi Alves Filho, por ora, não corre risco. A presidente Dilma determinou que os problemas sejam solucionados o mais rapidamente possível.

#prontofalei
O deputado Newton Cardoso (MG) reclamou que os ministros do PMDB não recebem partidários. O deputado Francisco Escórcio (MA) se ofereceu para levá-lo a Edison Lobão. "Ele é ministro do (José) Sarney, não ajuda a bancada", respondeu.

Molho de tomate
O peemedebista Geddel Vieira Lima criticou, no Twitter, a alta do preço dos tomates. Um amigo disse esperar que Geddel não jogasse o produto no governador Jaques Wagner (PT-BA). Ao que ele respondeu: "Divirjo, mas não agrido."

A PRESIDENTE DILMA abrirá as portas do Palácio do Planalto para as centrais sindicais dia 6 de março


Um sonho a mais - VERA MAGALHÃES - PAINEL


FOLHA DE SP - 10/02


Em gestação, o novo partido de Marina Silva recorrerá a agressiva estratégia de mobilização virtual para arregimentar as 500 mil assinaturas necessárias ao reconhecimento da sigla pela Justiça Eleitoral até outubro. Grupo da ex-ministra que coordena a coleta de adesões desenvolve página na internet cujo destaque é a área na qual simpatizantes poderão baixar as fichas de apoio, imprimi-las e copiá-las. Os sonháticos serão instados a remetê-las a endereços divulgados no site.

Biodiversidade 
A despeito das regras que Marina pretende estabelecer para filiações, como a identificação com as propostas de sustentabilidade da nascitura sigla, o processo de coleta de adesões será irrestrito. Qualquer cidadão poderá subscrever o pedido de criação da sigla.

Pente-fino 
Quatro especialistas em direito eleitoral estudam, em Brasília, as regras para validação de assinaturas. Isso porque o TSE tem se mostrado rigoroso ao legitimar nome e identificação de eleitores que subscrevem a fundação de legendas.

Trending topics 
Um dos nomes debatidos pelos marineiros para identificar o novo partido é uma hashtag: "#rede". A ideia é que a expressão sirva como convocação de adeptos via Twitter e Facebook a partir de sábado.

Está escrito 
A possível candidatura de Michel Temer ao governo paulista, colocada à mesa por Lula, é vista com ceticismo pelo PMDB-SP. Em deliberação de dezembro passado, os peemedebistas referendaram como prioridade do vice-presidente sua manutenção na chapa reeleitoral de Dilma Rousseff.

Pirâmide 
O PT produzirá diagnóstico atualizado dos estratos sociais para embasar a revisão programática que norteará congresso em 2014. O objetivo é calibrar o discurso eleitoral aos anseios da "nova classe C". Ex-Ipea, Márcio Pochmann coordena o estudo, cujo lema é "o povo como protagonista".

Selo 
Após editar portaria vetando a vinculação do Minha Casa, Minha Vida a programas estaduais, o governo federal estuda agora normatizar eventos de lançamento de unidades habitacionais.

Como assim? 
Auxiliares da presidente Dilma Rousseff relatam que, a despeito do investimento federal, governadores enviam convites à Esplanada como se o programa fosse patrocinado com recursos dos próprios Estados.

Copyright 
O governo prepara também novas campanhas publicitárias para promover o Minha Casa, Minha Vida, de olho na vitrine eleitoral para o ano que vem.

Novas... 
Renan Calheiros (PMDB-AL) nomeou para a chefia de gabinete da Presidência do Senado Luiz Fernando Bandeira de Mello, advogado-geral da Casa na época do escândalo dos atos secretos, em 2009, e consultor legislativo quando o atual presidente enfrentou processo no Conselho de Ética.

... alianças 
Bandeira de Mello, que havia sido nomeado para a Advocacia-Geral por Garibaldi Alves (PMDB-RN) para fazer cumprir na Casa a súmula antinepotismo do STF, atuava agora como chefe de gabinete do hoje ministro da Previdência.

Santo de casa 
O Centro de Convenções Ulysses Guimarães, local onde ocorreu o encontro de Dilma com prefeitos na semana passada, não tem alvará de licença de funcionamento. No evento, a presidente chegou a pedir um minuto de silêncio pela tragédia de Santa Maria (RS).

Outro lado 
A assessoria do centro confirmou que faltam seis itens dos 100 pedidos pelo Corpo de Bombeiros, todos "relativos aos corrimãos e suas espessuras".

com FÁBIO ZAMBELI e ANDRÉIA SADI

tiroteio
"É oportunismo fazer discurso de oposição perante a opinião pública tendo cargos e ocupando ministério no governo Dilma."
DO DEPUTADO MARCUS PESTANA (PSDB-MG), para quem o governador Eduardo Campos (PSB-PE) teve postura ''ambígua'' na eleição das Mesas do Congresso.

contraponto


Folia sem fronteiras

Assim que assumiu a liderança do PSB no Senado, Rodrigo Rollemberg (DF) se reuniu nesta semana com o presidente do partido, Eduardo Campos, em Brasília. Após discutirem os trabalhos no Congresso, o senador foi convidado pelo governador de Pernambuco para participar da tradicional festa do Galo da Madrugada, em Recife.

Rollemberg agradeceu dizendo que tinha outros compromissos na capital federal.

E emendou, brincando:

-Vou ficar para representá-lo na filial daqui, o Galinho de Brasília!


Poeta de campos e espaços - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 10/02


Eduardo Campos surfa no vazio político e voa graças ao vazio de sua pré-pré-candidatura a presidente


NOS MESES de férias do Congresso, a escassez de fofoca costuma dar vida a cadáveres, a notícias-zumbi, tais como a da reforma política, que vagabundeia pelas páginas de jornais até desaparecer num bloco de sujos da Quarta-feira de Cinzas.

Neste ano, a eleição repulsiva no Congresso bastou para preencher quase todo o vácuo das férias. Quase. O resto vem da inflação de notícias sobre Eduardo Campos, governador de Pernambuco, PSB.

Caso jamais venha a ser presidente da República, Campos terá como ganhar a vida como empresário de mídia & marketing, tal sua capacidade de encher e soltar nos céus zepelins de propaganda.

Ninguém sabe se o governador será candidato em 2014, nem ele mesmo, mas o preço do seu passe não para de subir. Verdade ou não, foi a única figura mais ou menos nacional a aparecer como mentor de um movimento organizado contra a eleição repulsiva no Congresso.

O período de baixa das ações de Dilma Rousseff (entre a elite) contribui para a valorização de Campos. O desempenho mofino de Aécio Neves, senador, PSDB, induz gente que não engole o PT a considerar a hipótese Campos.

O governador vendeu a imagem de "pragmático" (esperto, pé no chão e que não tem ou apresenta ideias que ofendam alguém). É popular. Teve habilidade política para articular a engorda eleitoral de seu partido. Não tem ficha na polícia, ao que se saiba.

Fez média bastante com Lula e o PT; está num partido chamado "socialista", o que o diferencia da "direita" ogra, lugar que o PSDB se reservou por incompetência e, claro, também por tolerar a multiplicação de ogros de direita no partido. Mas não há risco de que Campos tenha ideias de esquerda. Pode ser comprado por freguesia variada.

Campos é um personagem à procura de um autor. Tem embalagem, campanha de marketing, logo, nome fantasia. Mas não tem gosto de nada. Que as candidaturas tenham substância talvez seja uma expectativa anacrônica nos dias de hoje, vide as "novas lideranças" brasileiras. Ainda assim, onde Campos vai encostar seu burrinho quando tiver de recolher apoios reais para um eventual governo?

Vai fazer média com a banca? Com a vasta clientela do BNDES, "industriais desenvolvimentistas"? Quem serão seus pensadores, quem serão seus economistas? O que fará do Estado de Bem-Estar Tropical, dos gastos em transferências sociais que não muito em breve não poderão crescer mais? Que tipo de pacto fará com o povo miúdo, se fizer reforma nessa área?

Vai manter o Estado neste tamanho latifundiário, para ter pasto suficiente para PMDBs? Tal como tantos governos brasileiros terá desprezo pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, tal como Lula e, agora, Dilma, que chegou ao extremo terminal de cogitar Gabriel Chalita para o posto?

Ou vai realocar a ação do Estado, fazer uma revolução na pesquisa e outra na educação (para o que terá de desmontar partes do Estado e comprar brigas federativas)?

A vida de Eduardo Campos está muito fácil. Está surfando na onda da mediocridade de figuras políticas; ninguém faz uma pergunta séria ao candidato a candidato, que portanto pode fazer média com todo mundo.

Pátria e morte - DORRIT HARAZIM

O GLOBO - 10/02

Chris Kyle matou, sozinho, comprovadamente, mais de 160 iraquianos (pelas contas dos colegas foram 255). E morreu sem entender nada da guerra, em que acreditava ter triunfado



Nestes tempos de drones, como são chamados os aviões não tripulados capazes de matar à distância e anonimamente, sobra menos espaço para a glorificação individual de atiradores que se notabilizam pelo número de inimigos eliminados.

O texano Chris Kyle tem lugar garantido na história militar dos Estados Unidos. Como franco-atirador da tropa de elite Seal, da Marinha ( a mesma que desentocou e executou Osama Bin-Laden dois anos atrás), ele serviu quatro turnos na guerra do Iraque. Cumpriu como ninguém a missão para a qual fora treinado: garantir a proteção de seus companheiros na fase mais sangrenta dos combates. Matou, sozinho, comprovadamente, mais de 160 iraquianos (pelas contas dos colegas foram 255) e teve a cabeça colocada a prêmio de 20.000 dólares pelas milícias locais. Ao retornar para casa, em 2009, trazia no peito dezesseis condecorações — entre elas 2 Purple Hearts, 2 Estrelas de Prata, 5 Estrelas de Bronze.

Kyle foi a resposta americana à atuação de um inimigo mítico conhecido como “Juba”, cuja ubiquidade e pontaria haviam se transformado em assombração para os soldados yankees em Bagdá. Vídeos de propaganda islâmica postados na internet mostravam “Juba” eliminando soldados americanos, um a um, noite ou dia, em grupo ou sozinhos. Ninguém sabia quem era esse temido atirador islâmico que, além de matar, ainda narrava e filmava cada cena. Dependendo da fonte, seria um mercenário europeu ou um jihadista sírio. À época, a rede de notícias CNN chegou a submeter os vídeos a peritos, que concluíram não tratar-se de montagem. Fosse quem fosse, “Juba”, portanto, existia, e, à falta de sua eliminação física, sua lenda, pelo menos, precisava ser contida.

Os estragos que um franco-atirador é capaz de causar na moral de tropas inimigas são conhecidos e povoam a narrativa patriótica de vários países. Na Finlândia, há mais de meio século o nome Simo Häyhä é pronunciado com orgulho de geração a geração. Fazendeiro desconhecido quando a União Soviética invadiu seu país, em 1939, Häyhä, sozinho, eliminou uma unidade inteira de russos — mais precisamente 542, em menos de 100 dias. Entrou para a história com o apelido de “Morte Branca” por usar uma pelerine alvíssima que o camuflava na neve.

O americano Chris Kyle não alcançou os píncaros do finlandês matador, mas recebeu dos insurgentes o apelido de “Demônio” pelos estragos que provocou nas fileiras islâmicas na cidade de Ramadi. A destreza com que manuseava seu fuzil municiado de cartuchos .300 Winchester Magnum lhe rendeu feitos memoráveis. Gaba-se de ter acertado um alvo a 1,9 km de distância, em 2008, antes de o insurgente disparar um lançador de foguete que visava a um comboio americano.

Tudo isso e muito mais Kyle conta em suas memórias, “Atirador americano: a autobriografia do atirador mais letal da história dos Estados Unidos”, publicadas um ano atrás. Elas são preocupantes no tom e no conteúdo.

“Não sou muito fã de política”, diz ele no livro, “gosto de guerra”. Seu mundo se divide entre “bons” e “maus”, sem nuances ou espaço para dúvidas. Os americanos são “do bem” pelo simples fato de serem americanos, enquanto os muçulmanos são “do mal” por quererem matar os americanos. “Odeio esses selvagens”, acrescenta, referindo-se aos iraquianos. Ao testemunhar perante uma comissão militar de inquérito, acusado da morte de civis, esclareceu: “Não atiro em quem tem um Corão na mão, mas bem que gostaria.”

Uma semana atrás, na tarde de um sábado ensolarado em Stephenville, Texas, Kyle foi morto a tiros pelo fuzileiro naval Eddie Rough, de 25 anos. Rough voltara da guerra com claros sinais de estresse pós-traumático e havia sido colocado sob vigilância por ter ameaçado explodir a cabeça do pai. Procurando ajudar o filho, a mãe de Rough buscou apoio na fundação Fitco Cares, montada por Chris Kyle ao retornar do Iraque e que proporciona assistência a veteranos com distúrbios decorrentes da guerra.

O atirador nº 1 da América morreu aos 38 anos, alvejado num campo de treinamento de tiro do Texas. Não foi abatido por “Juba” nem por nenhum dos “iraquianos selvagens” que combateu. Foi derrubado em solo pátrio por um americano.

Em entrevista concedida por ocasião do lançamento de seu livro declarara não sentir arrependimento por nenhuma das mortes de sua folha corrida. Assegurou também não sentir qualquer desajuste decorrente da brutalidade de tantos anos de combate. “Nenhum dos problemas que tenho deriva das pessoas que matei”, garantiu.

Chris Kyle morreu sem entender nada da guerra em que acredita ter triunfado.