“A pediatra fez o que pôde. O chefe do plantão não conseguiu a transferência. O sistema de regulação falhou. O SUS não agiu em rede. O cirurgião substituto chegou tarde demais. O Congresso não aprovou o aumento das verbas da saúde que o governo ameaçou vetar”
É inegável que o Brasil avançou desde os anos 1990 na superação da pobreza. Mas ainda estamos a léguas de distância de um país justo, que garanta à sua população os direitos humanos fundamentais.
O universo das elites guarda uma distância abissal do cotidiano do povo simples que habita a periferia das cidades e do interior do país. De um lado, mensalões, CPIs, “crises institucionais”, “Rosegates”, “Chateaus Petrus”, jatos particulares, carros importados, transações bilionárias. De outro, moradia inadequada, falta de saneamento básico, coabitação com o crime organizado, educação sem qualidade, acesso precário aos serviços de saúde. Em vez de análises ufanistas, seja de que lado vier, é preciso lembrar a permanência de uma inaceitável iniquidade social a nos desafiar. A indignação é o combustível da esperança. A esperança é o motor da ação transformadora.
Adrielly dos Santos Vieira tinha apenas 10 anos. Morava no morro do Urubuzinho, Zona Norte do Rio. Na véspera do Natal, provavelmente só esperava ganhar (ou não) uma boneca de presente. Encontrou em seu caminho uma bala perdida, figura já banalizada, diante de tantas balas perdidas, como se vivêssemos num verdadeiro faroeste sem lei. Em vez da ceia em casa com a família, foi levada, com a bala incrustada em sua cabeça, onde abrigava os sonhos infantis típicos de uma criança pobre da periferia das grandes cidades, para o Hospital Municipal Salgado Filho.
Esperou oito horas pela cirurgia. O dr. Adão Orlando Crespo Gonçalves, neurocirurgião de plantão, não estava lá. Pior, não ia lá há um mês por discordar da estrutura oferecida. Teria avisado isso ao diretor do hospital. Pediu demissão depois que Adrielly teve morte cerebral. É pouco, muito pouco. Por que não se afastou antes? Por que não compareceu ao plantão? E o diretor? Por que não o demitiu e providenciou sua substituição? Ah, sim, o mercado de trabalho, a dificuldade de conseguir especialistas, os salários baixos, o trabalho sem dúvida penoso. Tudo fica pequeno diante da morte da menina de 10 anos, que não escolheu estar no caminho de uma bala perdida, na véspera do Natal, onde provavelmente sonhava com a boneca que ganharia ou não.
A pediatra fez o que pôde. O chefe do plantão não conseguiu a transferência. O sistema de regulação falhou. O SUS não agiu em rede. O cirurgião substituto chegou tarde demais. O Congresso não aprovou o aumento das verbas da saúde que o governo ameaçou vetar. A sociedade cobra qualidade e resultados, mas não se mobiliza para que haja mais verbas e melhor gestão. Onde está a culpa? Quem apertou o gatilho? Que cumplicidade deplorável é esta? Tudo fica pequeno diante da morte de uma criança inocente.
A morte de Adrielly é mais um alerta às elites brasileiras. Há um mundo paralelo e distante onde desfila o cotidiano do povo brasileiro. A nós, homens públicos, é preciso lembrar sempre: é para cuidar das Adriellys espalhadas pelo país que fomos eleitos.