O Estado de S.Paulo - 08/11
Há poucos dias visitei uma casa na rua Saldanha Marinho, no centro de Manaus, que é também o centro da minha infância e, portanto, da minha memória.
Vi a mesma biblioteca com livros brasileiros, portugueses e franceses, a escrivaninha de cedro, os lustres antigos, os vitrais coloridos em forma de ogiva. Atravessei o longo corredor lateral que dá acesso aos quartos e à cozinha e termina num pátio cheio de vasos com avencas e tajás. No fim desse corredor, sentada numa austríaca, vi dona Maria Luiza Freitas Pinto, a professora que me alfabetizou.
Aos 97 anos, com uma lucidez invejável, ela relembrou cenas de um passado remoto. Disse que eu sentava num banquinho feito por índios da Colômbia e conversava com Anna Telles, mãe de dona Maria Luiza.
"Tu também gostavas de ver meu pai limpar discos com o rabo de um macaco barrigudo."
Olhou para mim, viajando no tempo, e prosseguiu, orgulhosa:
"O grupo escolar Barão do Rio Branco ainda está de pé".
De fato, o edifício antigo resistiu à barbárie que usurpou a memória urbana de Manaus. Comparado com a atual arquitetura da cidade, o estilo neoclássico do grupo escolar esbanja refinamento. Parece que os arquitetos se esqueceram do clima do equador. Mais fácil é projetar caixotes vedados, banindo varandas e janelões.
Disse à professora que o jambeiro ainda sombreia o pátio do grupo escolar, que, hoje, é uma escola estadual; nos meses de inverno, o chão ficará coberto de flores vermelhas, os leões de pedra da entrada vão perder sua cor de açafrão, os pilares serão manchados de limo.
"Naquela época", ela disse, folheando o livro de crônicas que lhe ofereci, "havia respeito mútuo... E uma boa biblioteca em cada escola".
Ela mencionou o prestígio do corpo docente, os exercícios em sala de aula - ditados, leituras, tabuadas e redações -, o mapa colorido do Brasil, com seus Estados e capitais, que os alunos deviam nomear.
Mas ao lado desse mapa pendurado na parede, havia uma palmatória, eu disse.
"Sim", ela concordou. "Quando eu olhava para a palmatória, os alunos mais endiabrados se acalmavam. E tu não eras um santo. Naquele tempo, a disciplina... Mas havia educação doméstica, a disciplina começava em casa. Tudo isso acabou. E já não há mais amor na aprendizagem."
Recordei alguns amigos do Barão do Rio Branco: os mais pobres moravam em palafitas na beira dos Igarapés de Manaus e dos Educandos; arregalavam os olhos quando viam a merenda dos que moravam em terra firme: banana frita, tapioquinha, queijo-coalho, suco de graviola, guaraná Tuchaua. Eu invejava a caligrafia caprichosa de Paulo Tarso, e imaginava que ele tinha uma maquininha na mão direita.
"A caligrafia era um exercício necessário", disse a professora. "Hoje em dia, poucos jovens usam um lápis ou uma caneta... O mais importante é saber ler e escrever. Saber pensar..."
Foi uma visita breve: não queria interromper a sesta da professora. Antes de sair da casa verde, prometi a dona Maria Luiza que voltaria a Manaus sem muita demora.
"Guardaste a redação?"
Claro, eu disse.
A professora referia-se à primeira redação que escrevi no Barão do Rio Branco. Ela me entregara a folha amarelada em 1989, quando lancei em Manaus meu primeiro romance. O texto descreve uma viagem ao Careiro e é ilustrado por um desenho de uma fazendola.
Numa viagem recente a uma comunidade rural do Amazonas, visitei uma escola pública, cujo estado era lamentável. Parecia um chiqueiro.
Pensei nas crianças humildes dessas comunidades ribeirinhas, crianças e jovens sem qualquer futuro, ou proibidas de sonhar com o futuro. Mais de 10% da população do Amazonas é analfabeta. Enquanto me distanciava da casa da professora, pensava nas armadilhas do "progresso", nas contradições entre a economia dinâmica da zona franca de Manaus e as desastrosas e ineficientes políticas públicas. Pensava nesse impasse, andando na rua sem sombra, porque na cidade equatorial, tão briosa de seu crescimento exuberante, não há calçadas nem árvores.
Esta falta de conforto natural, obtido por sombras de árvores e outras medidas inteligentes, não vem de encontro a interesses de que a população fique refém das "tecnologias"?
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