quinta-feira, janeiro 24, 2013

Calcanhar ou ponta dos pés? - FERNANDO REINACH

O ESTADÃO - 24/01


Conta a lenda que perguntaram a um ancião com uma longa barba se, ao deitar, ele colocava a barba por baixo ou por cima do lençol. Ele não soube responder, mas dizem que nunca mais o ancião dormiu direito, preocupado com a posição de sua barba.

Fenômeno semelhante vem ocorrendo com praticantes de corridas de longa distância desde 2010. Um estudo relatado nesta coluna em 26 de fevereiro de 2010 (O tênis e o problema da evolução do pé) demonstrou que os grandes corredores de longa distância do Quênia, os kalenjin, que treinam descalços, correm pousando sobre a parte anterior dos pés e assim evitam o forte impacto do calcanhar no solo. Já os corredores ocidentais, que usam calçados especializados, pousam sobre o calcanhar e dependem do amortecedor dos sapatos para minimizar o impacto.

Qual a maneira correta de correr? Seria a supostamente usada por nossos ancestrais, que evita as lesões tão comuns entre corredores? Paranoicos de plantão suspeitaram de uma conspiração internacional cujo objetivo era promover a corrida com o calcanhar para induzir lesões e assim vender tênis cada vez mais caros e sofisticados. Agora um novo estudo analisou a maneira de correr de outra tribo do Quênia, os daasanach, e a história ficou mais complicada.

Nós e nossos ancestrais corremos faz mais de 2 milhões de anos. Pegadas fossilizadas descobertas no Quênia registram os passos descalços de nossos ancestrais há 1,5 milhão de anos. Pegadas mais recentes, de 20 mil anos, mostram homens correndo descalços na Austrália. Os sapatos mais antigos são de 8,3 mil anos atrás, criados pelos habitantes da região central dos EUA. Só por volta de 1970 que sapatos para corredores de longa distância foram desenvolvidos e ficou confortável correr com o calcanhar. Sem dúvida fomos selecionadas para correr descalços, mas utilizando qual dos métodos? Como é impossível descobrir o método dos nossos ancestrais, sobra descobrir como nossos contemporâneos que não usam sapatos correm.

Para responder a essa pergunta, cientistas foram a uma das aldeias dos daasanach, instalaram uma espécie de tapete capaz de medir o impacto dos pés no solo e filmou 19 homens e 19 mulheres correndo descalços. As pessoas foram instruídas a correr na velocidade necessária para longas distâncias (cada um podia escolher a velocidade que julgasse mais confortável). Depois, o teste foi repetido, mas as pessoas deviam correr o mais rápido possível. Analisando o filme, os cientistas calcularam a velocidade de cada corredor e como ele pousava o pé a cada passada. Analisando os dados gerados pelo tapete, puderam avaliar o impacto dos pés sobre o solo.

Os resultados demonstram que cerca de 80% dos daasanach, quando correm em ritmo de longa distância (2 a 3 metros por segundo) pousam - espanto geral - com o calcanhar. Metade desses mesmos corredores, quando correm mais rápido (6 a 7 metros por segundo), passa a usar a ponta dos pés para pousar. Os 20% que correm em baixa velocidade pousando com a ponta dos pés mantêm o mesmo comportamento em altas velocidades.

Esses resultados demonstram que os dois métodos de corrida são usados nessa tribo e que a preferência por um ou outro depende da velocidade em que os daasanach correm. As medidas de impacto sobre o solo confirmam os resultados anteriores: ele é muito maior quando as pessoas pousam com o calcanhar. Também foi observado que, à medida que a velocidade aumenta, o impacto aumenta nas duas formas de correr, o que já era esperado.

Os cientistas acreditam que esses resultados são mais representativos de como corriam nossos ancestrais. De certa forma, esses novos dados podem ser conciliados com os dados de 2010 - afinal, os corredores kalenjin são atletas profissionais ou praticantes assíduos de corridas e é natural que usem a ponta dos pés.

E você, caro leitor, como deve correr, agora que sabe tudo isso? Com tênis e usando os calcanhares em baixas velocidades e descalço ou com um tênis fino quando corre mais rápido? Será que surgirão tênis autoajustáveis, que aumentam ou diminuem a altura e o amortecimento do calcanhar dependendo da velocidade do corredor? Mas o que é alta e baixa velocidade para um trabalhador de escritório que corre algumas vezes por semana?

Tudo indica que, com essas novas descobertas, os corredores terão o mesmo problema de nosso ancião. A mim só resta pedir desculpas por destruir parte do seu prazer de correr.

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