quinta-feira, janeiro 24, 2013

A História e os cheiros - CORA RÓNAI

O GLOBO - 24/01


Fui para a Índia bastante preocupada com os cheiros que encontraria; pois me preocupei à toa

Tenho algumas perguntas que nunca serão respondidas. Gostaria de saber, por exemplo, qual era o gosto da comida na Idade Média. Posso ler mil descrições, mas nenhuma jamais corresponderá à garfada que me esclareceria essa dúvida. Tenho certeza de que eu detestaria praticamente qualquer prato, já que sutileza não era uma marca registrada da época. Já participei de alguns jantares “medievais” na Europa, em que cozinheiros criativos tentaram recriar antigas receitas, mas faltava-lhes metade dos ingredientes e, imagino, boa parte da coragem para carregar nos temperos.

Tenho também muita curiosidade em relação ao cheiro do mundo. Quando passeio por encantadoras cidades antigas, em que tudo parece cenário de filme de época, nunca esqueço que, no tempo em que viveram seu auge, as noções de higiene eram bem diferentes das nossas. As ruazinhas estreitas que tanto me encantam eram melequentas e imundas. Bichos de todos os tipos circulavam entre as pessoas, de bodes e vacas a ratos e insetos; ninguém tomava banho; havia esgotos a céu aberto. Cavalos, bois e burros ocupavam as ruas, montados ou puxando carroças, e deixavam por toda a parte o rastro da sua presença. Queimava-se incenso nas igrejas não por motivos sagrados, mas para dar um trato no bodum de tanta gente junta: havia quem acreditasse que a fumaça afastava doenças.

Tive dois momentos de grande percepção histórico-olfativa, digamos assim. O primeiro aconteceu na Turquia quando, circulando pelo interior, fui parar numa aldeia minúscula que pouco tinha mudado com os séculos. As casas eram construídas em dois pisos. No térreo ficavam os armazéns e os animais; no andar superior, as pessoas. Entrei em várias delas e, embora estivessem limpas, o aroma era — para usar um termo diplomático — intenso. Estávamos no começo da primavera, o que significava portas e janelas abertas e espaços arejados. Não tive imaginação suficiente para fazer ideia de como seria no inverno.

O outro momento aconteceu em Delhi. Fui para a Índia bastante preocupada com os cheiros que encontraria; pois me preocupei à toa. Não cheirei nada no país que já não tivesse cheirado, e bem pior, depois da passagem de um bloco pelas ruas do Rio. A exceção foi na Jama Masjid, a grande mesquita. Em frente ao magnífico edifício havia uma muvuca completa, em que se misturavam no ar os cheiros dos perfumes usados pelos indianos, das frituras preparadas pelos vendedores de comida, dos animais que seriam sacrificados no dia seguinte (estávamos às vésperas do Eid) e de um esgoto nauseabundo. Fiquei em estado de choque nasal — e devo ter ficado também meio esverdeada, pois logo um rapaz me ofereceu um frasco minúsculo com um cheiro suficientemente forte para encobrir os demais pela módica quantia de cinquenta rúpias. Mal sabia ele que eu teria dado qualquer coisa por aquilo!

Ali, de frasquinho nas ventas, tive plena consciência de que estava o mais perto possível do cheiro com que a Humanidade conviveu, universalmente, até descobrir as primeiras noções de higiene, há meros 200 anos.

Na sequência eu ia a Varanasi, antiquíssima cidade à beira do Ganges, onde, além de todos os cheiros já descritos, me esperava, ainda, a fumaça das piras de cremação. Pelo sim, pelo não, comprei mais um vidrinho de sais aromáticos do vendedor, que estava tendo um ótimo dia com os firangs. Cheguei a pensar em cancelar a viagem, o que teria sido um grave erro. Varanasi é a cidade mais impressionante que já visitei. É linda, está suspensa no tempo e cheira predominantemente a incenso e especiarias. Tem sua cota de ruas mal cheirosas, mas nada que se compare ao que encontrei em Delhi.

Quanto às piras funerárias, não cheiravam nem fediam. Os indianos dizem que isso se deve a Krishna; já eu acho que se deve à brisa. Só vim a descobrir qual é o cheiro que temos quando nos cremam em Pashupatinath, na área sagrada de Kathmandu, onde Krishna e o vento não trabalham, e onde não há incenso que dê jeito no ar. Muitos ocidentais mais sensíveis passam mal, mas eu estava curiosa demais para me dar a esse luxo.

Mas se o fedor do passado me interessa, mais ainda me interessa o perfume. Adoro incensos e gosto de imaginar que nos acompanham desde tempos imemoriais. Daria tudo para saber com que cheiro ficava Cleópatra depois dos seus famosos banhos e quais eram os perfumes favoritos dos egípcios e dos romanos. Podemos ter uma vaga ideia disso indo às perfumarias orientais que ainda trabalham com óleos essenciais naturais. Os cheiros de origem animal, como o ambar gris e o musk, ou os extraídos de flores, de especiarias e de madeiras, continuam basicamente iguais.

Durante séculos e séculos tivemos uma paleta de fragrâncias mais ou menos imutável. Só começamos a cheirar de acordo com os nossos tempos em 1889, ano em que a Torre Eiffel foi erguida em Paris e em que um jovem perfumista chamado Aimé Guerlain inventou de usar moléculas sintéticas.

Mas isso já é outra história.

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