segunda-feira, dezembro 03, 2012

A República da Vassoura, de Erenice a Rosemary - GUILHERME FIUZA

REVISTA ÉPOCA


O Brasil que aprova Dilma Rousseff quis esquecer Erenice Guerra. Quis esquecer a pessoa que Dilma preparou para comandar seu governo - e caiu antes da hora, ao transformar o Ministério da Casa Civil em bazar de interesses particulares. O Brasil quis esquecer que Erenice era braço direito de Dilma, ou mais que isso, era o estilo Dilma de administração pública. De nada adiantou o esquecimento, porque o espírito está em Dilma - e, se não é Erenice, é Rosemary.

Chega a ser patético o sobressalto dos brasileiros com o escândalo na representação da Presidência da República em São Paulo. O gigante adormecido, decididamente, não presta atenção no filme. Rosemary Noronha, chefe de gabinete de Dilma na capital paulista, protegida da presidente, do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva c de José Dirceu, é apanhada com a boca na botija. O que fazia Rosemary? Exatamente o mesmo que Erenice. E também que Dirceu e mensaleiros associados: tráfico de influência. Uso do Palácio para a montagem de negócios privados.

A ficha ainda não caiu. O público continua meio confuso, já querendo aplaudir a presidente pela demissão da delinqüente. Chegará o dia em que Dilma demitirá solenemente a si mesma - e chegará aos 100% de aprovação popular.

Lula criou a representação da Presidência em São Paulo, e Dilma, então ministra-chefe da Casa Civil, nomeou Rosemary como chefe de gabinete. Eleita presidente, Dilma manteve Rosemary no cargo. Alto zelo com a titular de um gabinete que, segundo o líder do governo no Senado, Eduardo Braga, "não é usado". Por que a proteção por tantos anos a uma funcionária de uma repartição que não serve para nada?

Aí está o engano. O tal gabinete era muito útil. Ali se fechavam excelentes negócios particulares. A venda de pareceres das agências reguladoras para empresários ampliou a função desses órgãos técnicos. Como se sabe, eles foram criados no governo Fernando Henrique, para acabar com a interferência política dos ministérios nas decisões sobre infraestrutura. No governo Lula, as agências se tornaram importantíssimas para abrigar companheiros e seus afilhados. Criadas para acabar com a politicagem, elas se tornaram a própria politicagem. Continuaram seguindo estritamente critérios técnicos - a técnica do cabide.

A venda de pareceres - R$ 300 mil um laudo da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) - tornou esses órgãos técnicos ainda mais lucrativos. Por coincidência, Erenice também intermediava bons negócios com a Anac, onde seu filho trabalhara. A filha de Rosemary também estava empregada nessa agência, dirigida por um comparsa da chefe de gabinete da Presidência, segundo a Polícia Federal. Dilma está demitindo todo mundo, horrorizada. Ela nem podia imaginar quantas maldades essa turma andava fazendo. É bem verdade que Rosemary falava quase diariamente com Lula. Mas Dilma nem se lembra direito quem é Lula.

Não se lembra que nomeou Rosemary, nem que a manteve no cargo, assim como o Brasil não se lembra de Erenice. A memória dos brasileiros só alcança o momento em que Dilma resolveu extinguir a representação da Presidência em São Paulo. Afinal, ela não servia para nada mesmo. Quase nada.

No embalo, a faxineira poderia extinguir também a Advocacia-Geral da União, cujo subchefe está entre os suspeitos no caso Rosemary. Quem sabe Dilma não devesse extinguir também o Ministério do Desenvolvimento, cuja principal finalidade hoje é abrigar Fernando Pimentel, o consultor fantasma? Pimentel arrecadou R$ 2 milhões por seus belos olhos de amigo da presidente e estava em reuniões intermediadas por Rosemary no gabinete fantasma. A única coisa palpável entre tantos fantasmas é o lucro privado dos guerrilheiros estatais.

A demissão do diretor da Anac, flagrado no esquema de Rosemary, mostra como o governo Dilma está preparando bem os aeroportos para a Copa do Mundo, daqui a um ano e meio. Pode-se imaginar a festa que foram as concessões para as empresas que administrarão o setor. Dilma não tem nada a ver com isso.

De Erenice a Rosemary, o governo do PT é repleto de parasitas por um acidente natural, uma espécie de Furacão Sandy do fisiologismo. A República só não desmorona porque o Brasil tem Dilma, vassoura, pano de chão e memória de protozoário.

O bonde não para - J. R. GUZZO

REVISTA VEJA


Que sina infeliz é essa que parece perseguir sem descanso o ex-ministro, ex-deputado e ex-todo-poderoso José Dirceu? O homem não tem sossego. Passou a vida inteira numa luta desesperada para chegar ao poder: quando chegou, enfim, não conseguiu ficar lá mais que dois anos, quando foi jogado para fora sem a menor cerimônia pelo ex-presidente Lula, em quem tinha apostado até seu último tostão. Tudo dá errado para ele. Lula, conforme os fatos não param de provar, trouxe para o centro do governo brasileiro, dez anos atrás, uma tropa de batedores de carteira como raramente se viu neste país: qualquer exame de laboratório mostra que está aí, quando se raspa o verniz da propaganda, o DNA de sua passagem pela política nacional. Esse bonde não para. Começou a andar em 2003, antes de se completar o primeiro mês do governo Lula, com a dupla Marcos Valério-Delúbio Soares já funcionando a toda na montagem da coleção de crimes à qual se deu o nome de mensalão. Continua andando até hoje: sua última aparição é neste miserável escândalo dos "bebês de Rosemary" episódio que serve como uma das melhores fotografias jamais tiradas do dia a dia da governança petista, tal como ela é na vida real. Mas a verdade é que vivemos num mundo imperfeito. Lula conserva seus belos 100% de popularidade, já é apontado como o próximo governador de São Paulo e continua sendo considerado por seus admiradores como o homem mais perfeito que o mundo conheceu desde Adão e Eva. Já o seu sócio Dirceu, que não fez nem mais nem menos do que ele, hoje é apenas um cidadão condenado por corrupção ativa e formação de quadrilha, com uma sentença de onze anos de cadeia nas costas. Mal pode sair à rua. Sua prioridade, no momento, é tentar manter-se do lado de fora do sistema penitenciário.

A última coisa de que Dirceu precisava, a esta altura, era mais um caso de ladroagem no governo - mas é justamente o que acaba de lhe acontecer, ao ver seu nome metido logo na cena inicial do escândalo do dia. A Rosemary dessa história é uma certa Rosemary Nóvoa de Noronha, chefe do gabinete da Presidência da República em São Paulo até ser posta na rua dias atrás, e seus bebês são os irmãos Paulo e Rubens Vieira, que encaixou em cargos com alto potencial de rentabilidade no governo e hoje estão no xadrez — todos indiciados pela Polícia Federal por grossas suspeitas de corrupção, tráfico de influência, falsificação e sabe-se lá o que mais ainda. Rosemary, ou Rose, é produto de procedência garantida: trata-se de puro Lula, que a nomeou para o cargo em 2003, levou consigo em trinta viagens internacionais e aceitava suas indicações para empregos gordos na administração pública. Sua traficância não se fazia num subúrbio remoto do poder, mas praticamente dentro do gabinete de Lula e da presidente Dilma Rousseff. Nesses dez anos de bonança, junto com a dupla de irmãos, transformou o escritório paulista da Presidência num bazar de compra e venda onde oferecia à sua clientela uma extensa gama de mercadorias - licenças, pareceres, cargos, senhas de acesso, verbas, documentos falsos e por aí afora, em troca de dinheiro ou de presentes como cirurgias plásticas, camarotes de Carnaval ou cruzeiros marítimos. Era uma operação multimarcas: negociava-se ali com contêineres, celulose, privatização de ilhas, faculdades particulares, terminais portuários. Rose também não se esqueceu, é claro, de socar uma penca de parentes em empregos no governo.

Quem diz Rose diz Lula, mas sobrou, como de costume, para José Dirceu. Mal se falou o nome dessa nova heroína do PT e já vinha junto o carimbo "J.D." — a moça trabalhou doze anos na copa e cozinha de Dirceu, e foi ele o primeiro protetor a quem Rose telefonou quando apareceu a polícia. Desta vez o ex-homem forte nem teve ânimo para fingir que continua forte: disse apenas que não podia ajudar em nada. E Lula? Como sempre acontece nessas horas, ele sumiu do mapa e deixou claro que a amiga deve se virar sozinha: não pediu que Dilma a segurasse na cadeira, e se pediu não foi atendido, nem insistiu. Por que haveria de fazer algo diferente? Vai ficar tudo na conta de Zé Dirceu, ou da "mídia golpista", embora, desta vez, a mídia golpista não tenha tido a menor ideia do que estava acontecendo — foi a própria presidente quem fez o rapa na área, antes que saísse uma única palavra na imprensa. Tanto faz. O que interessa a Lula é uma coisa só: que todos continuem fazendo de conta que ele não tem nada a ver com a usina de corrupção inaugurada no Brasil em janeiro de 2003. É tudo culpa do Zé.

Medíocres distraídos - LYA LUFT

REVISTA VEJA


Leio com tristeza sobre quanto países como Coreia do Sul e outros estimulam o ensino básico, conseguem excelência em professores e escolas, ótimas universidades, num crescimento real, aquele no qual tudo se fundamenta: a educação, a informação, a formação de cada um. Comparados a isso, parecemos treinar para ser medíocres. Como indivíduos, habitantes deste Brasil, estamos conscientes disso, e queremos — ou vivemos sem saber de quase nada? Não vale, para um povo, a desculpa do menino levado que tem a resposta pronta: "Eu não sabia"", "Não foi por querer". Pois. mesmo com a educação — isto é a informação — tão fraquinha e atrasada, temos a imprensa para nos informar. A televisão não traz só telenovelas ou programas de auditório: documentários, reportagens, notícias, nos tornam mais gente: jornais não têm só coluna policial ou fofocas sobre celebridades, mas nos deixam a par e nos integram no que se passa no mundo, no país, na cidade.

Alienação é falta grave: omissão traz burrice, futilidade é um mal. Por omissos votamos errado ou nem votamos, por desinformados não conhecemos os nossos direitos, por fúteis não queremos lucidez, não sabemos da qualidade na escola do filho, da saúde de todo mundo, da segurança em nossas ruas. O real crescimento do país e o bem da população passam ao largo de nossos interesses. Certa vez escrevi um artigo que deu título a um livro: "Pensar é transgredir". Inevitavelmente me perguntam: “Transgredir o quê?”. Transgredir a ordem da mediocridade, o deixa pra lá, o nem quero saber nem me conte, que nos dá a ilusão de sermos livres e leves como na beira do mar, pensamento flutuando, isso é que é vida. Será? Penso que não, porque todos, todos sem exceção, somos prejudicados pelo nosso próprio desinteresse.

Nosso país tem tamanhos problemas que não dá para fingir que está tudo bem, que somos os tais, que somos modelo para os bobos europeus e americanos, que aqui está tudo funcionando bem, e que até crescemos. Na realidade, estamos parados, continuamos burros, doentes, desamparados, ou muito menos burros e doentes e desamparados do que poderíamos estar. Já estivemos em situação pior ? Claro que sim. Já tivemos escravidão, a mortalidade infantil era assustadora, os pobres sem assistência, nas ruas reinava a imundície, não havia atendimento algum aos necessitados (hoje há menos do que deveria, mas existe). Então, de certa forma, muita coisa melhorou. Mas poderiamos estar melhores, só que não parecemos interessados. Queremos, aceitamos, pão e circo, a Copa, a Olimpíada, a balada, o joguinho, o desconto, o prazo maior para nossas dívidas, o não saber de nada sério: a gente não quer se incomodar. Ou pior: nós temos a sensação de que não adianta mesmo.

Mas na verdade temos medo de sair às ruas, nossas casas e edifícios têm porteiro, guarda, alarmes e medo. Nossas escolas são fraquíssimas, as universidades péssimas, e o propósito parece ser o de que isso ainda piore. Pois, em lugar de estimularmos os professores e melhorarmos imensamente a qualidade de ensino de nossas crianças, baixamos o nível das universidades, forçando por vários recursos a entrada dos mais despreparados, que naturalmente vão sofrer ao cair na realidade. Mas a esses mais sem base, porque fizeram uma escola péssima ou ruim, dizem que terão tutores no curso superior para poder se equilibrar e participar com todos. Porque nós não lhes demos condições positivas de fazer uma boa escola, para que pudessem chegar ao ensino superior pela própria capacidade, queremos band-aids ineficientes para fingir que está tudo bem.

Não se deve baixar o nível em coisa alguma, mas elevar o nível em tudo. Todos, de qualquer origem, cor, nível cultural e econômico ou ambiente familiar, têm direito à excelência que não lhes oferecemos, num dos maiores enganos da nossa história. Não precisamos viver sob o melancólico império da mediocridade que parece fácil e inocente, mas trava nossas capacidades, abafa nossa lucidez, e nos deixa tão agradavelmente distraídos.

Eu vs. robô - LULI RADFAHRER

FOLHA DE SP - 03/12


O conflito entre Apple e Google é maior que seus modelos de negócios. É um confronto de paradigmas


Apple é uma fruta. Google é um algarismo. Mordida, a maçã representa o conhecimento, o domínio da vontade humana sobre as forças da natureza. Já o número é quase desconhecido. Em seu nome original -Googol-, ele equivale a um seguido de cem zeros, um valor tão grande que desafia a compreensão.

"I", em inglês, é um pronome pessoal. Representa o ser humano em sua complexidade, mistério, inconstância e criatividade. Android é um robô. Começa grande, impreciso e identificável para, aos poucos, se tornar invisível, certeiro e onipresente.

Enquanto o indivíduo fascina por sua genialidade, o autômato não tem medo de dizer que só sabe que nada sabe, cativando a todos com sua aparente modéstia.

Os produtos da Apple beiram o fetiche. Sua interface, bem-acabada até o último pixel, nasce pronta, resistente a críticas, fechada a colaborações. Como uma fênix, se reinventará se provada errada e voltará triunfante, ignorando o passado. Sua personalidade é tão forte que provoca reações intensas e perenes, que perduram até depois da obsolescência.

O Google, ao contrário, é tão espartano e discreto que beira a invisibilidade. Muitos de seus produtos nascem e morrem em silêncio. Os que sobrevivem sofrem mudanças progressivas, alheias a versões.

As oposições entre as duas filosofias parece não ter fim: um é pessoal, o outro, anônimo. Um privilegia o design, a caligrafia e o detalhe que beira o artesanal, o outro evidencia o cálculo, a análise, as bases de dados relacionais e o processamento paralelo quase instantâneo de inteligências artificiais.

Diferentes até nas semelhanças, ambas as empresas têm sua forma particular de reinventar, valorizar e promover ideias e produtos.

O conflito entre elas, no entanto, é maior e mais significativo do que a comparação de seus modelos de negócios. O embate está mais para confronto de paradigmas, choque entre o artesanal e o industrial, o dominador e o contemplativo, o humano e a máquina.

Mas até que ponto a tecnologia é alheia à nossa espécie? Não seria ela um dos ingredientes mais essenciais do homem, manifestando a eterna irritação e insatisfação que o macaco pelado tem com o estado das coisas a ponto de procurar, sempre, mudá-lo? Não seria ela tão humana quanto as artes, com o benefício adicional de melhorar a qualidade de vida se usada com critério?

Poucos a veem dessa forma. Curiosamente, do mesmo modo que aborígenes tinham medo que as fotografias lhes roubassem as almas, gente moderna e inteligente teme que a dependência da rede ou o uso de uma prótese tecnológica lhes roube a humanidade, deixando-os isolados, lobotomizados, pragmáticos e melancólicos.

O temor não faz sentido. Até porque há nele certa hipocrisia, já que nem o mais lírico dos mortais quer sinceramente voltar ao passado, abrindo mão de energia elétrica, água corrente, zíperes, lycra, velcro, teflon e tantos outros.

Seja encarada como aliada ou inimiga, a tecnologia veio para ficar. Prodígio ou bastarda, ela é nossa filha que cresceu, ganhou identidade e demanda compreensão. Rejeitá-la faz tão pouco sentido quanto adorá-la incondicionalmente. É preciso tratá-la como adulta.

Uma mulher que sabe demais - REVISTA VEJA

REVISTA VEJA 


Quem é e como agia a ex-secretária Rosemary Noronha, cuja intimidade com o ex-presidente Lula lhe rendeu prestígio e um cargo central no governo, que ela usava para bisbilhotar o poder, fazer nomeações e ajudar uma quadrilha especializada em vender pareceres falsos e empresários trambiqueiros. Lula, como sempre, não sabe de nada.

Otávio Cabral, Laura Diniz e Rodrigo Rangel


Quando passou a faixa presidencial a Dilma Rousseff, em 2011. Luiz Inácio Lula da Silva apresentou à sua sucessora o nome de quatro pessoas que ele não gostaria de ver desamparadas: sua secretária pessoal, o chefe da equipe de segurança, o curador do acervo do Palácio do Planalto (esse a pedido da ex-primeira-dama Marisa Letícia) e Rosemary Nóvoa de Noronha. Dos quatro. Rosemary era, de longe, quem mais tinha intimidade com o ex-presidente. Ex-bancária e ex-secretária por ele alçada à chefia do gabinete da Presidência da República em São Paulo em 2003. Rose chamava seu benfeitor de "chefe", mas volta e meia fazia questão de deixar escapar um "Luiz Inácio" diante de colegas e amigos. Nas 28 viagens internacionais que fez ao seu lado, como integrante da comitiva oficial, o acesso irrestrito ao superior incluía visitas à cabine privativa do Aerolula. de onde - conta um colaborador do governo - ela saía toda prosa. "O chefe agora vai descansar. Não quer ser incomodado." Chamada de "madame" pelos muitos desafetos que colecionou ao longo dos dois mandatos de Lula. Rose sempre teve prazer em exibir seu status de protegida do presidente. Em algum momento, decidiu também ganhar dinheiro com ele.

Até onde mostraram as investigações da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, não chegou a fazer fortuna. Rose, 57 anos, foi indiciada na Operação Porto Seguro, que terminou com a prisão de seis pessoas. Entre elas, estão os irmãos Paulo e Rubens Vieira, diretores da Agência Nacional de Águas (ANA) e da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) respectivamente - já libertados. A julgar pelos e-mails e telefonemas interceptados pela PF, ambos chegaram ao cargo por influência de Rose, que pediu as nomeações diretamente a Lula. Ao contrário da ex-secretária - mas com a ajuda dela -. os irmãos não só fizeram fortuna como contribuíram para deixar mais ricos um número não conhecido de empresários trambiqueiros. Por encomenda deles, concluiu a PF, a dupla subornava funcionários públicos para que produzissem pareceres técnicos favoráveis aos seus "negócios". O papel de Rose era facilitar o acesso dos Vieira a políticos e funcionários de interesse da quadrilha. Para isso, ela invocava frequentemente os nomes de Lula, o "PR" (jargão usado no funcionalismo para se referir ao presidente da República), e de José Dirceu, o "JD".

Quando conheceu os dois, nos anos 90, Rose era uma morena de cabelos longos e contornos voluptuosos que, trabalhando como bancária, passou a frequentar o sindicato da categoria em São Paulo. Ex-colegas daquele tempo lembram que ela chegou a participar de plenárias e discussões partidárias, mas nunca se destacou como dirigente. Fazia mais sucesso nas festas que aconteciam nas quadras do sindicato, que ficava ao lado da sede nacional do PT, no centro da cidade. A afinidade entre a categoria e o partido contribuiu para que ela logo chamasse a atenção dos chefes petistas, como o então deputado José Dirceu, de quem se aproximou. Ele a contratou como secretária logo depois. Meses mais tarde, Rose começou a circular em torno de Lula, então candidato derrotado duas vezes em disputas à Presidência. A partir daí, embora oficialmente continuasse a trabalhar para Dirceu, passou a organizar a agenda de Lula e cuidar de suas contas. A proximidade entre os dois se aprofundou ao longo dos anos. Quando Lula chegou ao poder, criou um escritório para a Presidência da República em São Paulo, na esquina da Avenida Paulista com a Rua Augusta, e Rose foi imediatamente encaixada na lista de funcionários. Foi ela a responsável pela reforma do escritório e sua decoração, que inclui um grande mural do petista chutando uma bola com a camisa do Corinthians e, sobre os sofás, almofadas revestidas com reproduções de fotos do ex-presidente. Logo após a reforma. Rose foi promovida a chefe do escritório, com salário de 11.000 reais.

A partir daí, a ex-secretária ascendeu a um novo patamar. Nas viagens internacionais a que Marisa não ia (contam amigos que a ex-primeira-dama não lhe dirige a palavra e a ignora em eventos públicos), era Rose que acompanhava Lula. Embora tenha feito 28 viagens com o ex-presidente, seu nome apareceu no Diário Oficial - como é de praxe entre os funcionários de sua categoria DAS - apenas em uma das primeiras, para Havana em 2003. Foi a única da comitiva a se hospedar na mesma ala de Lula. Nas demais vezes, seu nome foi incluído em uma lista de funcionários de segundo escalão que é enviada ao Itamaraty para homologação coletiva - e anônima - no Diário Oficial.

Foi o auge do prestígio de Rose, e ela se esbaldou nele. "Imagine uma pessoa que passou a vida pendurada no cheque especial e. de repente, recebe uma herança de um tio. Essa é a Rose", descreve um antigo amigo. Frequentemente, convidava-se para almoços com diretores do Banco do Brasil - o gabinete que ela chefiava ficava no mesmo prédio do banco. Nessas ocasiões, sempre sugeria restaurantes como o chique, e caro, Fasano. "Pedia camarão ou lagosta. E um vinho "caro", como gostava de falar. Os almoços nunca saíam por menos de 500 reais", diz um dirigente. Sabia usar informações que obtinha no escritório, onde também despachavam os ministros em viagem a São Paulo. Era comum vê-la servindo pessoalmente café e água nas reuniões com a presença de pessoas importantes. Também gostava de comentar sobre quem entrava e saía do prédio, movimentação que acompanhava de sua sala, equipada para monitorar o circuito interno de TV da segurança.

A sensação de poder foi fazendo com que ela, tida como geniosa, comprasse brigas com gente cada vez mais importante. No início do segundo mandato de Lula, Walfrido Mares Guia, então ministro das Relações Institucionais, comandou uma reunião com empresários no escritório de São Paulo. No final, pediu que a imprensa entrasse. Rose tentou impedir: "O chefe não gosta de jornalistas por aqui". Walfrido estrilou: "O chefe hoje aqui sou eu. Podem entrar os jornalistas". Os dois nunca mais se falaram. Outro com quem ela brigou foi o governador da Bahia, Jaques Wagner, que patrocinou a indicação de um técnico sem filiação ao PT para a diretoria do Banco do Brasil, quando Rose defendia um petista. Wagner levou a melhor. Meses depois, ao chegar ao escritório de São Paulo para uma reunião, ele foi interpelado por Rose: "Como você pode jogar contra o PT? Isso é uma traição ao partido". Wagner colocou-a em seu lugar: "A senhora me respeite, eu sou um governador de estado".

Rose continuou próxima de Lula depois que ele deixou o poder. É o que mostram conversas que ela teve com Paulo Vieira sobre a saúde do ex-presidente, que se recuperava do tratamento de câncer na laringe. " É, eu já falei para ele. Ele tem de parar de se expor em público enquanto aquela perna dele não ficar boa (...) Ele levou um tombo domingo dentro de casa (...) Não sei o que aquela Clara Ant fica fazendo, aquele Paulo Okamotto. que deixam o cara... Ele tá parecendo um velho caquético." Clara Ant põe ordem nas atividades profissionais de Lula e Okamotto é seu braço financeiro. Ambos se dedicam em tempo integral a Lula.

A queda de Rose começou a se desenhar em fevereiro do ano passado, quando Cyonil da Cunha Borges de Faria, à época analista do Tribunal de Contas da União, procurou a PF e o Ministério Publico Federal para dizer que havia recebido de Paulo Vieira uma oferta de 300.000 reais para alterar um parecer em benefício de uma empresa de Santos. A juíza Adriana Zanetti determinou a quebra dos sigilos de telefone e de e-mails de Paulo e seu irmão - e foi aí que Rose acabou flagrada. Embora não tenha tido o telefone nem a correspondência interceptados, o registro das conversas que manteve com os Vieira nos últimos anos mostrou que usava o cargo de chefe da Presidência em São Paulo para cuidar com desvelo de assuntos de seu próprio interesse. Em troca dos "favores" que prestava à quadrilha dos Vieira, a ex- secretária fazia toda sorte de exigência: ingressos para camarotes no Carnaval, cruzeiros no litoral paulista, pagamento de uma cirurgia no ouvido e de parcelas de um apartamento financiado.

A miudeza dos pedidos sugere que Rosemary Noronha era uma "petequeira, como são chamados os corruptos que operam na arraia-miúda. A protegida de Lula no, entanto, mexia com interesses graúdos. Além de indicar ocupantes para cargos de direção em agências reguladoras de cujas decisões dependem negócios bilionários, ela intermediava financiamentos em bancos públicos e facilitava reuniões de empresários com petistas de quatro estrelas para tratar de contratos vultosos no governo. É o caso de um encontro que marcou com Ricardo Flores, então diretor de crédito do Banco do Brasil, para que representantes de uma empresa com atuação no setor portuário pudessem pedir a ampliação do valor de um crédito junto à instituição. A empresa já possuía uma linha de crédito de 85 milhões de reais e pretendia obter mais 48 milhões. Em outra oportunidade, ainda no governo Lula, ela agendou com um alto dirigente da Secretaria de Comunicação da Presidência da República um encontro para que empresários pudessem propor a locação, para o governo, de placas de publicidade nos portos de Santos e do Rio de Janeiro. As portas que Rose conseguia abrir graças à intimidade com Lula também serviram para arrumar negócios para sua própria família. A empresa New Talent que a própria Rose ajudou a criar e que foi registrada no nome do genro dela, conseguiu sem licitação um contrato de 1,2 milhão de reais para "prestação de serviços" a uma subsidiária do Banco do Brasil.

Os Vieira tinham consciência da importância de Rose para os negócios, mas, como em toda quadrilha, tentavam reduzir o naco dela na partilha. "Não fale muitas informações sobre os processos da Bahia com a Rose, pois temos que abafar a "pedição" de dinheiro, pois a amiga é uma máquina de gastar", escreveu Paulo para Rubens ainda em 2009.

Mesmo quando recebeu a visita da PF em sua casa, na sexta-feira da semana retrasada. Rose manteve a empáfia. Aos policiais, disse: "Vou ligar para o chefe de vocês". Telefonou para o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que estava com o celular desligado. Procurou, então, José Dirceu, que disse nada poder fazer para ajudá-la. Lula estava num voo, vindo da Índia. Até agora, o padrinho de duas décadas de Rosemary Noronha, indiciada pela PF por corrupção passiva, tráfico de influência e falsidade ideológica, não veio a público comentar o episódio. Pelo contrário, em discurso feito na semana passada, pareceu desdenhar dele ao dizer que a imprensa "só dá más notícias e esconde as boas".

Embora o desbaratamento de uma quadrilha que usava de suas prerrogativas públicas para auferir vantagens não possa ser considerado uma má notícia é compreensível que a revelação do episódio desagrade a Lula. Ao contrário do que ocorre em outros países, no Brasil, a vida privada dos políticos nunca foi considerada assunto de interesse público. A forma como o ex-presidente distribui o seu afeto, portanto, é uma questão que só diz respeito a ele e seus familiares. A partir do momento, porém, que as conseqüências dessas escolhas transbordam para a esfera pública, ele não tem outra opção a não ser se explicar, talvez a única modalidade de comunicação na qual Lula não seja um mestre.

O último a saber da operação

A presidente Dilma Rousseff soube da Operação Porto Seguro pouco depois das 8 da manhã de sexta-feira por um telefonema de Luís Inácio Adams, advogado-geral da União. Adams havia sido acordado momentos antes por seu número 2, José Weber Holanda, um dos investigados. Dilma pediu para localizar o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, mas ele não atendia aos telefonemas. Já irritada, a presidente só conseguiu falar com o ministro duas horas depois, quando soube que ele não tinha conhecimento de nada.

A operação pegou Cardozo e o chefe da Polícia Federal, Leandro Daiello, de surpresa Já que foi feita pela superintendência da Polícia Federal de São Paulo, sem comunicação a Brasília. Três dias depois, Cardozo não conseguia dizer à chefe com segurança se havia ou não escutas telefônicas envolvendo Rosemary e o ex-presidente Lula, como chegou a ser noticiado. Só na manhã de terça-feira o ministro confirmou que não houve quebra de sigilo nas comunicações de Rose. Dilma fez duras criticas à atuação do ministro. Chegou a pensar em demiti-lo - desistiu por temer passara imagem de que não aceita que a PF investigue seu governo.

Por mais incômoda que possa ter sido para Lula e para setores do governo, a operação foi conduzida dentro das normas da PF. Uma mudança na estrutura da autarquia feita na gestão de Tarso Genro (2007- 2010) descentralizou as grandes operações. As superintendências regionais ganharam competência para promover ações sem avisar Brasília. Sob Márcio Thomaz Bastos (2003- 2007), os trabalhos eram centralizados. O então diretor do órgão, Paulo Lacerda, tinha um responsável pela inteligência e um pela atuação. As ações deviam ser autorizadas por um dos dois e sempre saíam de Brasília - o governo era avisado na véspera. De início, a descentralização foi considerada positiva. Mas ela veio acompanhada de uma restrição orçamentária que praticamente engessou a PF No governo, a Operação Porto Seguro foi interpretada como um "recado" da PF paulista, que não gosta do gaúcho Daiello (considerado um interventor e criticado pela rigidez com que comandou a superintendência paulista entre 2008 e 2010) nem de Cardozo (que deixou a segurança da Olimpíada e da Copa para as Forças Armadas). Questionado por emissários do governo, o superintendente da PF em São Paulo, Roberto Troncon, negou que a operação tenha tido motivação política.

O Brasil tem dono? - ROBERTO DaMATTA

REVISTA ÉPOCA 


Como os carros, os sapatos e os cachorros, países também podem ter donos. As antigas aristocracias, feitas de reis, rainhas, papas, prín­cipes encantados, bispos e barões - esses aparen­tados dos deuses cujo sangue deveria ser azul -, eram donas de seus países. Quando um rei era bom, tudo ia bem; quando era mau, esperava-se sua morte. Tudo estava plenamente estabelecido e era impossível trocar de lugar. Você não virava rei, você nascia e morria nobre, lacaio ou escravo; e, se fosse muito azarado, negro.

O regime aristocrático foi rompido, na Ingla­terra, pelo republicanismo da Revolução Gloriosa (em 1688) e, com muito mais radicalismo, pela Francesa (em 1789). Mas um outro tipo de gover­no restritivo da liberdade e de igualdade foi esta­belecido na era moderna pelos nazifascismos de Franco, Salazar, Mussolini e Hitler, a oeste; e pelo coletivismo comunista de Lênin e Stálin, a leste. Depois de 1945, o comunismo foi dono de China e Coreia do Norte, onde continua mandando até hoje. A partir do início de 1960, fidelizou Cuba. No comunismo, o domínio não era mais exercido por dinastias ou casas, como acontecia nas antigas aristocracias, mas por um partido político com sua implacável lógica de decidir em assembleias algo que já estava resolvido por seu micro comité cen­tral- que, como estamos testemunhando no caso chinês, pode incluir famílias e amigos.

O antídoto contra esse tipo de mandonismo tem sido, como ensina pioneiramente Alexis de Tocqueville em seu clássico A democracia na Amé­rica, aquilo que mais o espantou quando ele, em 1831, chegou aos Estados Unidos: a igualdade de condições de seus habitantes. Nesse caso, o país não é propriedade de nenhuma classe, família, pessoa ou partido, mas de seus cidadãos, que se ordenam por meio da liberdade e da igualdade. A liberdade inventa o jornal e a opinião pública. A igualdade reinventa uma justiça voltada para todos.

Se fizermos um inquérito, meu palpite é que uma grande maioria dirá, sem hesitações, que o Brasil tem dono. Seu dono é o governo. O go­verno de Fulano ou Sicrano, pois todo mundo sabe que é o governo quem - como um patrão ou dono - manda, ordena, decide, faz, dá, vende, desmancha, desperdiça ou destrói. Se o mundo é uma bola, como diz o ditado, essa bola tem dono. Temos dificuldade de lidar com aquilo que, sendo público, é de todos.

O Brasil sempre se viu como possuído por alguém de um modo pessoal, e até mesmo apaixonado e amoroso. JK amou o Brasil como um homem ama uma mulher. Jânio Quadros o rene­gou, divorciando-se dele sem motivos. A ditadu­ra personalista de Vargas é vista como um longo casamento, como foi o de Dom Pedro II, nosso último Imperador. Mesmo na ditadura militar e no mais recente péríodo democrático, alguns pre­sidentes são vistos como mais ou menos apaixo­nados e donos do país.

Talvez essas entregas sejam resultado incons­ciente do abandono que o Brasil sofreu após sua "descoberta", em 1500. Um abandono de quase 100 anos, só retomado depois de ter sido quase perdido pelos namoros um tanto violentos - há quem fale em estupro ou violação - com os ho­landeses, em Pernambuco, e os
franceses, que conquistaram O Rio de Janeiro sem romantis­mo nem etiqueta. Finalmente assumido por Portugal, o Bra­sil teve seus primeiros patrões na forma de uma alta centra­lização personificada nos go­vernadores gerais.

Nosso momento mais glorioso e feliz ocorreu em 1808, quando a Família Real e a Corte vieram para o Brasil. Tínhamos agora um Rei que dava, em pessoa, as bênçãos e a mão delicada e branca para os beijinhos e as genuflexões de puxa-saquis­mo que tanto apreciamos. Ríamos quando ele ria. Ficávamos tristes quando ele chorava. Latíamos e rosnávamos quando ele ficava enfezado. Uivá­vamos quando ele ficava deprimido ou sofria de acessos de fúria. O dono do Brasil era um ser humano como outro qualquer - mas, por ter um lado Divino, era o dono sacrossanto do Brasil. Como o Brasil é abençoado por Deus e Deus é brasileiro, esse patrão era a fonte de todo bem. Pois para nós, brasileiros, o Rei, o Dono e o Patrão - o Cara - não têm culpa de nada e sempre desejam nosso bem-estar. De tal modo que, quando algo mau acontece, não é sua culpa. Pois é inconcebível que ele, em sua bondade ou com sua imensa vontade de cuidar do Brasil, possa ter culpa ou responsa­bilidade por alguma falcatrua ou malandragem. O mandão, por pior e mais demagógico que possa ser, é, por definição, um inocente de tudo o que ocorre a seu redor. Ele é dono do mundo, mas nada tem a ver com o que dá errado nele.

Aos poucos, um modelo de democracia basea­do na competição eleitoral e na opinião se estabe­leceu entre nós. Aos poucos, ficamos intolerantes com partidos políticos donos da verdade que se­riam, por tabela, donos do Brasil. Nossa intolerância se estende a ministros e políticos que compravam seus pares com o objetivo de permanecer para sempre no poder. Hoje, está mais claro que todos devem se submeter à lei e que não se pode mais usar a desculpa da ficção biográfica para justificar crimes cometidos contra as instituições republicanas que são de todos. Na economia, a era FHC fixou um padrão, com o Plano Real, e o STF julgou o mensalão de­baixo do crivo impecável dessa igualdade.

O resultado é que a pergunta "O Brasil tem dono?" pode ter muitas respostas. Sim, seu dono é o governo. Sim, seu dono é o grande capitalis­mo global. Sim, seu dono é o agronegócio. Sim, seu dono é o partido do governo. Mas o Brasil é também seu e meu, leitor. Ele é também do povo, esse novo patrão que veio para ficar.

Agências reguladoras: herança maldita - GUSTAVO LOYOLA

VALOR ECONÔMICO - 03/12


A recente divulgação de mais um escândalo de corrupção e tráfico de influência, desvendado pela Polícia Federal, não deixa qualquer dúvida. A presidente Dilma recebeu uma herança maldita de seu antecessor: o loteamento político e o aparelhamento das agências reguladoras. Pergunta-se: com esse tipo de gestão, como pode o governo federal pretender que empresários privados sérios venham a investir em setores de infraestrutura sujeitos à regulação estatal?

No artigo publicado neste espaço em 14/11, assinalei que a crescente incerteza sobre as regras de jogo estão prejudicando os investimentos no Brasil, notadamente em setores de infraestrutura que dependem da existência de segurança jurídica e de adequado ambiente regulatório. As agências reguladoras - possuindo autonomia e corpo técnico qualificado - são um elemento institucional essencial para assegurar o cumprimento das regras do jogo, levando em consideração de maneira equilibrada os interesses dos usuários dos serviços, do governo e das empresas reguladas.

Como se sabe, é por meio das agências reguladoras que o Estado exerce a regulação econômica para combater imperfeições de mercado, tais como monopólios naturais, assimetrias de informação, externalidades negativas, etc. Nesse contexto, desempenham importante papel no "nivelamento do campo de jogo" entre os participantes do mercado. Por outro lado, para evitar o risco de "captura" do regulador pelos entes regulados, as agências devem ter autonomia técnica e financeira, sendo também indispensável que seus dirigentes possuam mandatos fixos e capacidade técnica e estejam ao abrigo da influência político-partidária. Por óbvio, tal autonomia não significa independência absoluta, sendo fundamentais as questões de transparência e de "accountability" dessas instituições.

Episódio recente parece uma boa oportunidade para a presidente parar o processo de desprestígio dessas instituições

Criadas no Brasil no governo FHC, a partir da privatização das empresas concessionárias de serviços públicos, as agências proliferam-se desde então, sendo também estruturadas nas esferas estadual e municipal. Ocorre que tal tendência, longe de ser positiva, refletiu um continuado processo de banalização dessas instituições que, a partir do governo Lula, tiveram diminuída sua autonomia, ao mesmo tempo em que seus cargos de direção passaram a ser loteados para atender interesses do PT e dos demais partidos da base aliada.

Nesse sentido, não é nenhum exagero dizer que Lula patrocinou um esforço deliberado de esvaziamento das agências. Em consequência, o que se verifica hoje é que, em muitos casos, as agências tornaram-se meras "repartições" dos ministérios, sendo frequentemente atropeladas em suas funções, ao mesmo tempo em que se observa a perda de transparência em suas funções regulatórias e o surgimento de indícios de "captura" em algumas agências. Ademais, seus cargos de direção se tornaram prebendas políticas, quando deveriam ser preenchidos por profissionais com conhecimento e formação profissional compatíveis com a função.

A propósito, em relatório de 2011, o próprio TCU afirmou que "a subjetividade dos critérios possibilita a indicação de diretores que não possuem os conhecimentos imprescindíveis para o exercício de cargo de natureza técnica." Para exemplificar as escolhas bizarras frequentemente patrocinadas pelo governo, basta mencionar o conspícuo caso de um indicado por um partido da base do governo para diretor da ANTT que, ao ter seu parco currículo questionado pela imprensa, admitiu candidamente que sua experiência no setor de transportes limitava-se apenas à de "usuário"!

O lastimável episódio envolvendo dois diretores de distintas e importantes agências reguladoras, ambos indicados por uma poderosa funcionária de terceiro escalão, parece uma boa oportunidade para a presidente Dilma interromper o processo de desprestígio dessas instituições. Cabe reafirmar sua autonomia, dotá-las dos meios necessários ao desempenho de suas funções e, principalmente, recrutar seus diretores com base em seu mérito pessoal e profissional e não com base em indicações extravagantes, como se vê hoje com alguma frequência.

O fortalecimento das agências reguladoras, isoladamente, não terá o condão de assegurar um fluxo suficiente de recursos privados para áreas de infraestrutura como, portos, aeroportos, energia e telecomunicações. Porém, o bom funcionamento de tais instituições se afigura condição necessária para que os investidores se animem a empreender naqueles setores, sem as muletas proporcionadas por abundantes subsídios creditícios e/ou a garantia da proximidade com os detentores do poder.

A propósito, vale lembrar que as sucessivas frustrações das previsões do governo sobre o crescimento do PIB são mais um alerta de que o Brasil precisa urgentemente de políticas que fortaleçam de forma perene as instituições necessárias ao funcionamento de uma economia de mercado.

Do veto ao pacto - PAULO GUEDES

O GLOBO - 03/12

A presidente Dilma vetou corajosamente o projeto de lei que iria consagrar o canibalismo federativo na divisão dos royalties do petróleo. As verdadeiras leis em um estado de direito devem observar certos atributos.
Um dos mais importantes é que as leis sejam sempre prospectivas, nunca retrospectivas em seus efeitos. A sábia decisão do Executivo impede a lambança de um Congresso que se propôs a legislar de forma imprópria ao mérito da matéria, atropelando direitos constitucionais estabelecidos e provocando irresponsáveis efeitos retroativos sobre as finanças dos estados produtores. Tudo isso por meio de um desprezível oportunismo, pelo qual os legítimos interesses pela descentralização dos recursos em uma democracia emergente acabaram degenerando em um ato de canibalismo federativo contra os estados produtores. Superado pela ação decisiva de Dilma, esse verdadeiro atentado antirrepublicano desloca-se então para o ambiente adequado à questão fundamental de um novo pacto federativo , descentralizando e redistribuindo recursos e atribuições entre os diversos níveis da administração pública. Prefeitos, governadores e suas bancadas de deputados e senadores terão de se debruçar sobre os novos critérios para a distribuição dos recursos dos fundos de participação dos estados e municípios. O Congresso tem prazo até 31 de dezembro de 2012 para aprovar uma lei estabelecendo esses novos critérios para as transferências de receita entre os entes federativos . A disputa dos royalties foi apenas a versão rudimentar de uma potencial guerra federativa. A execução descentralizada das políticas públicas é uma ferramenta democrática a exigir a re-forma fiscal. Os estados e municípios são, afinal, os novos eixos para modernização administrativa e a descentralização operacional do Estado brasileiro. A presidente e o Congresso devem conduzir as negociações da redistribuição dos recursos dos fundos de participação de acordo com os princípios de uma desejável e tardia reforma fiscal. A descentralização administrativa da ação social do Estado ampliaria a interlocução política da presidente. Daria também legitimidade à necessária reforma administrativa no governo federal, permitindo combater a corrupção e a ineficiência que grassam nos quase 40 ministérios.

Frutas de cemitério - JOSÉ DE SOUZA MARTINS


O Estado de S.Paulo - 03/12


De quem são as frutas de cemitério? Você chuparia uma laranja de uma laranjeira que há no Cemitério São Paulo? Pois, eu não! E uma pitanga da pitangueira que frutifica todos os anos sobre um dos túmulos do Cemitério dos Protestantes, anexo ao Cemitério da Consolação? Eu, nem pensando! E uma amora de uma amoreira do Araçá? Nem morto! No São Paulo, os coveiros, hoje denominados, se não me engano, técnicos de sepultamento, quando podem, colhem as frutas e as dão a moradores de rua, que sempre os há ali por perto.

Historicamente, os pobres, em nossa sociedade, são herdeiros do que sobrou dos defuntos. E isso não é apenas por caridade. De um lado, é por repulsa e medo. De outro lado, para demonstrar ao Juiz Supremo, que o falecido "era assim com os pobres", "era um pai da pobreza", testemunho em favor do alívio dos pecados cometidos. Vai, que pega.

Esta sociedade tem altíssimo preconceito contra tudo que foi de defunto. Menos seu dinheiro ou o que de seu em dinheiro possa ser convertido. É compreensível que se queira descartar tudo aquilo que lhe esteve ligado ao corpo, principalmente roupas e calçados. Às vezes, outros objetos relacionados com o corpo do defunto são estigmatizados. Já me tocou dormir, num convento em que era hóspede, em Goiânia, na mesma cama em que dormira, na noite anterior, um padre ali residente e que naquele dia falecera em desastre de automóvel. Tudo porque os parentes, vindos do interior para o velório na capela da casa e para o enterro, se recusaram a dormir no mesmo leito em que dormira tão recentemente o falecido. Ora, o defunto era deles, não meu! Pois, mudaram-me para lá, quase à força, sob argumento de que fora ele, durante a vida, um santo homem, o que eu não duvido. Mas, por sim ou por não, dormi de luz acesa e com um olho aberto. Nunca se sabe. Vai que ele voltasse para reclamar a cama que fora dele? Eu, hein?

O que era do morto ao morto pertence, já ouvi um coveiro dizer à beira de um túmulo, numa disputa para saber se a morta podia ou não levar para a cova o rosário que lhe enrolaram nas mãos. Há tribos indígenas, no Brasil, que ainda hoje sepultam com o morto tudo que foi dele, até máquina de costura. O que era do morto se torna intocável para evitar a contaminação da morte: a morte chama a morte, dizem os entendidos.

Os pomares de cemitério são formados pelos pássaros, que distribuem indiscriminadamente as sementes das frutas que comeram por aí, regenerando, em proveito próprio, espontâneas plantações frutíferas. Intocáveis, as frutas de cemitério pertencem, na verdade, aos passarinhos. No Cemitério do Redemptor, protestante, em frente ao Araçá, não só fruteiras, mas também bebedouros estão espalhados pelas árvores para atrair os pássaros e restabelecer um nexo de alegria entre quem foi e quem ficou.

A adúltera de Deus - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 03/12


Deus ama as infelizes e as elege como suas conselheiras. Qual o segredo da infelicidade?


O Deus de Israel sempre amou as adúlteras. Jesus também dispensou cuidados especiais para com elas, e para com as prostitutas, os ladrões e os desgraçados de todos os tipos. Deus parece não resistir à sinceridade do pecador, assim como a filosofia parece amar a verdade do melancólico.

Na Bíblia hebraica, Raquel, a segunda esposa de Jacó (depois chamado de Israel), por muitos anos uma mulher estéril e idólatra por raiva de Deus, enterrada fora do "cemitério da família" por ter sido uma vergonha para esta mesma família, será escolhida por Deus como consoladora do povo eleito no sofrimento.

Raquel é a "mater misericordiae" do judaísmo. Quando Israel sofre, é o nome dela que deve ser lembrado. Deus ama as infelizes e as elege como suas conselheiras. Qual o segredo da infelicidade?

Não se trata de brincadeiras teológicas "progressistas" que erram achando que ninguém é pecador. A pastoral de hoje, vide as igrejas que crescem por toda parte (o judaísmo não escapa tampouco desse vício), cada vez mais se assemelha a grandes workshops de autoajuda ou treinamentos motivacionais. Nada menos cristão do que um Jesus consultor de sucesso. Ninguém quer ser pecador, só santo.

Mas aí reside o erro para com a teologia cristã mais sofisticada: nela, o grande pecador é o mais próximo do santo. A beleza da antropologia do cristianismo está neste sofisticado e denso vínculo dramatúrgico: quando o corpo se põe de joelhos, pelo peso do pecado, o espírito se ergue. Não se trata de dolorismo, mas, sim, da mais fina psicologia moral.

A santidade reside mais na alma do pecador do que na autoestima do "santinho".

Aliás, devo dizer que minha crítica à religião é diametralmente oposta àquela de tradição epicurista ou marxista. Esta, grosso modo, critica a religião porque ela faz do homem um alienado covarde, e que se vende a Deus para ser um alienado feliz. Eu me alinho mais ao pensamento do teólogo Karl Barth (século 20), para quem a religião torna tudo um mistério maior e traz à tona um sofrimento maior, mas que, por isso mesmo, amplia a consciência de nossa condição humana. Sofro, por isso penso, e logo, existo.

Recuso as religiões institucionais não porque elas fazem do homem um medroso, alienando-o de sua felicidade e autonomia (como creem Epicuro e Marx), mas sim porque as religiões fazem do homem um feliz, alienando-o de sua própria agonia. Quando a religião vira marketing, é melhor caminhar só pelo vale das sombras.

Revi recentemente o maravilhoso "Fim de Caso" (filme de 1999, dirigido por Neil Jordan), com a deusa Julianne Moore e Ralph Fiennes. O filme é uma adaptação do romance de Graham Greene e narra a "sua conversão". Trata-se de um fino tratado de teologia, melhor do que grande parte dos livros que afirmam sê-lo.

No filme, a compreensão da íntima relação entre pecado e graça é avassaladora. Nada mais forte do que a graça para iluminar a agonia do pecador para si mesmo: o santo não é um santinho.

A personagem de Julianne Moore é uma adúltera, que ao longo do filme apresentará traços claros de santidade, chegando a realizar um milagre. A adúltera, infiel ao seu marido, destruidora da fé no casamento e no amor que organiza a vida e a sociedade, o tipo mais vil de mulher, é aquela que mais fundo toca Deus em sua paixão pela agonia humana. No cristianismo, Deus leva a agonia humana tão a sério que resolveu Ele mesmo passar por ela, na figura da Paixão de Cristo.

Um musical a estrear, baseado na obra de Victor Hugo (século 19), "Os Miseráveis", com Hugh Jackman no papel de Jean Valjean, fugitivo da cadeia, e Russell Crowe no papel de seu perseguidor implacável Jabert, traz uma das maiores cenas da teologia cristã já representada na arte. Jean Valjean, após ter roubado os castiçais da casa de um padre, e ser pego pela polícia, é perdoado pelo padre que confirma para a polícia a mentira contada por Valjean: "Sim, eu dei os castiçais para ele".

Este ato transforma Valjean. O encontro entre a misericórdia e o pecador é uma das maiores afirmações do sentido da vida.


QUEM INCOMODA? - MÔNICA BERGAMO


FOLHA DE SP - 03/12

O Procon-SP conseguiu liminar na Justiça para que as operadoras Nextel, Vivo, TIM, Claro, Embratel, Oi e GVT forneçam o número de telefone que seus centros de telemarketing utilizam para ligar para os consumidores e vender seus produtos. As empresas faziam chamadas não identificadas ou usavam várias linhas diferentes para dificultar o rastreamento por parte do cliente.

QUEM INCOMODA 2

As operadoras não forneciam os dados ao Procon-SP alegando ter de preservar o sigilo das chamadas. Isso impedia que o órgão averiguasse denúncias de quem não quer ser incomodado com os telefonemas. Não eram poupados nem os clientes cadastrados no serviço de bloqueio de telemarketing.

QUEM INCOMODA 3

As operadoras têm dez dias após notificadas para prestar informações ao Procon. A multa é de R$ 100 mil.

PORTO FELIZ

Doze funcionários da Secretaria de Portos da Presidência da República passaram três dias em visita ao porto de Santos no encerramento de um MBA de gestão na semana passada. A viagem ocorreu bem no momento em que a pasta finalizava o pacote de concessões dos portos, cujo anúncio deve ser feito pela presidente Dilma na próxima quinta.

PORTO FELIZ 2

Os graduandos no curso de formação, ministrado por videoconferência, correspondem a quase 10% do quadro da secretaria. Estiveram ausentes de Brasília na semana em que o secretário Mário Lima Júnior viu seu nome associado à Operação Porto Seguro da PF.

DIETA JÁ

A alimentação é fator determinante para câncer de intestino e cólon. "Mais até do que o tabagismo", afirma Samuel Aguiar Junior, diretor da Escola de Cancerologia do hospital A.C. Camargo, de SP. Segundo o médico, 90% dos tumores são ligados a fatores ambientais.

VILÕES

Hoje, Aguiar Junior e o colega Felipe Coimbra fazem palestra no hospital sobre a importância de moderar o consumo de carne vermelha, defumados e alimentos com muita gordura, sal e conservantes. Explicam que tomar chás e chimarrão muito quentes também aumenta risco de câncer de esôfago.

MEUS MENINOS

Um dia antes de a presidente Dilma Rousseff assinar a MP que assegurava à educação 100% dos royalties dos novos campos de petróleo, membros da União Nacional dos Estudantes conseguiram chegar até ela em solenidade no Planalto. O presidente da UNE, Daniel Iliescu, 28, entregou uma carta. "Dilma pegou no meu ombro e disse: 'Tá certo, meninos, amanhã vou me pronunciar sobre os royalties'", conta ele.

PEDRAS ROLARAM

O jornal inglês "Daily Mail" publicou retratação por declarar que Luciana Gimenez tinha contrato com Mick Jagger, pelo qual o roqueiro teria lhe dado dinheiro após os dois se separarem. O acordo saiu na quinta. "Vou agora atrás do escritor [Christopher Andersen, autor de biografia de Jagger]. Ele também disse coisas que nunca existiram", diz ela.

Ê, SÃO PAULO

Neymar, que procurava apartamento na capital paulista em Moema, comprou um imóvel no Brooklin, próximo à avenida Berrini.

TOP MÃE

Luciana Curtis, 35, está grávida do segundo filho. A modelo é casada com o fotógrafo Henrique Gendre.

MAIS PELADAS

A "Playboy" deste mês, com as gêmeas Débora e Denise Tubino, terá cem fotos nuas extras. O encarte é pago pela cerveja Itaipava e bolado pela agência Y&R.

PREGÃO POP
No próximo dia 10, no hotel Unique, o leiloeiro José Roberto Bortoletto (foto) colocará à venda 123 itens ligados a alguns dos maiores artistas pop.

Discos de platina dos Rolling Stones e de Michael Jackson terão lance inicial de R$ 27 mil cada um. O retrato com a assinatura do casal de cantores Johnny Cash e June Carter custa a partir de R$ 5.000.

"É o acervo de uma empresa da Costa Rica. Nunca houve um leilão assim na América Latina", diz Bortoletto. As peças ficarão expostas ao público na Cia. Paulista de Leilões, na rua Oscar Freire, durante esta semana.

A ARTE, A VIRTUDE

Débora Duboc e Fernando Fecchio estão no elenco da peça "O Homem, a Besta, a Virtude". A atriz Luna Martinelli foi ao Sesc Bom Retiro para a estreia, na semana passada.

CASA ABERTA

A instalação "Casaleria", curada por João Pedrosa, foi aberta na quinta. A fotógrafa Simone Monte e o arquiteto Rene Fernandes foram à galeria Berenice Arvani, nos Jardins, para conferir.

Curto-circuito
O projeto Satisfeito, do Instituto Alana, será lançado hoje, às 19h, no Kaá.

A estilista Diane von Furstenberg conversa sobre moda em sua loja do shopping JK Iguatemi, às 15h.

Serpui Marie faz happy hour de Natal, hoje, às 18h, em sua loja.

O Memorial da América Latina abre hoje convocação para artistas participarem do 1º Laboratório de Artes Combinadas.

Victor Belfort participa de aula de luta na academia Bodytech Eldorado, a partir das 17h30.

Dinheiro para quem já tem - EDITORIAL O ESTADÃO


O Estado de S.Paulo - 03/12


O Itaú Cultural, instituto privado ligado ao Itaú Unibanco, recebeu permissão do Ministério da Cultura para captar R$ 29.898.227,71 por meio da Lei Rouanet, que concede incentivos fiscais para empresas que investem em cultura. O valor é um dos maiores da lista de 2012 e chama a atenção pelo fato de envolver o banco mais lucrativo do Brasil. Ou seja: uma entidade cultural ligada a um grupo privado com formidável poder financeiro conseguiu generoso aval para obter o dinheiro necessário para seus projetos em 2013, oferecendo a parceiros igualmente poderosos - alguns deles integrantes do próprio Itaú - o direito de abater do Imposto de Renda parte de seu investimento. Não se trata de condenar o Itaú Cultural nem seus eventuais sócios, porque eles estão agindo estritamente dentro da lei. O problema é, justamente, a lei, cujas óbvias distorções demandam urgente reforma. Prometida reiteradas vezes pelo governo nos últimos anos, essa reformulação ainda repousa nos escaninhos do Congresso.

Ainda que tenha falhas, a Lei Rouanet, de 1991, trouxe benefícios evidentes e tornou-se o principal meio de incentivo cultural no Brasil, graças à quase inexistência de mecenato e à esqualidez orçamentária do Ministério da Cultura. Para medir esse sucesso, basta observar os números: em 2003, foram movimentados R$ 430 milhões; no ano passado, os recursos atingiram R$ 1,3 bilhão. Mas voltando às falhas, para começar, mais de 70% dos produtores culturais que se candidatam ao benefício são deixados de fora do bolo - muitos por evidente limitação artística, mas outros porque são incapazes de competir, em condição de igualdade, com organizações culturais fortes e conhecidas do mercado.

Assim, o sistema criado pela Lei Rouanet favorece quem teria condições de obter recursos de outra maneira. Um caso notável ocorreu em 2006, quando a trupe canadense Cirque du Soleil fez uma temporada no Brasil parcialmente financiada com recursos públicos oriundos de renúncia fiscal - a promotora do espetáculo, a mexicana Companhia Interamericana de Entretenimento, foi autorizada pelo Ministério da Cultura a captar R$ 9,4 milhões. É difícil aceitar como razoável que um grupo artístico mundialmente famoso, que cobra até R$ 370 por ingresso, tenha necessidade de se financiar com o dinheiro do contribuinte brasileiro. Exemplos como esse se multiplicam.

Outra distorção importante da Lei Rouanet é que as empresas que aceitam investir nesses projetos culturais, muitas vezes financiando fundações privadas, não só abatem integralmente o valor do Imposto de Renda, como também podem associar sua marca ao evento, sem que o uso de recursos públicos fique suficientemente claro para a plateia. Trata-se de marketing gratuito, geralmente com grande visibilidade, uma vez que boa parte dos projetos aprovados é protagonizada por artistas renomados e por grandes produções.

Uma proposta de reforma da lei, que tramita na Câmara, prevê justamente que projetos considerados "viáveis" do ponto de vista comercial, isto é, que possam obter recursos e atrair público sem a necessidade de incentivos fiscais, sejam excluídos do mecanismo de fomento cultural. A decisão sobre essa viabilidade seria tomada pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, entidade do Ministério da Cultura responsável atualmente por aprovar os projetos encaminhados.

É um começo, pois o cerne do problema é a dependência que a Lei Rouanet parece ter criado no universo cultural brasileiro - isto é, só existe investimento em arte se as empresas tiverem abatimento fiscal de 100% e, de preferência, se houver garantia de sucesso de bilheteria. Especialistas preveem que, caso o benefício seja reduzido para 30% ou 50%, como prevê o texto da reforma, haverá queda drástica dos recursos investidos, demonstrando que o interesse cultural é, em muitos casos, limitado à perspectiva do ganho financeiro. Logo, os mecanismos de incentivo à cultura, embora vigentes há duas décadas, ainda não construíram laços efetivos e duradouros entre a produção artística e os "mecenas".

Promiscuidade - PAULO BROSSARD

ZERO HORA - 03/12


Recentemente foi divulgado algo inédito na crônica administrativa do país envolvendo atos indicativos de corrupção e tráfico de influência. A singularidade reside no envolvimento de chefe do escritório de representação da Presidência da República em São Paulo, e também do número 2 da Advocacia-Geral da União. Em consequência, 18 pessoas foram detidas. O fato é de tal gravidade, que só recorrendo a um lugar-comum para conferir-lhe a adequada intensidade, dizendo que "é muito grave"! Não foi sem motivo que a senhora presidente da República afastou, demitiu e determinou investigações.

Pelo menos algumas das pessoas agora identificadas, pelas alturas burocráticas que ocupavam, só as tinham pela confiança que gozavam do ex-presidente. Só quem desfrutasse de absoluta confiança poderia ocupar patamares superiores da administração e praticar atos como os que foram revelados.

Ocorre que, dia a dia, fatos e mais fatos surgiram, todos a envolver altos servidores, sem que nenhuma das autoridades mencionadas articulasse qualquer impugnação quanto à sua veracidade. É tanto mais significativo o silêncio quando a chefe de gabinete do escritório da Presidência da República em São Paulo, ao mesmo tempo em que era afastada do cargo que ocupava desde a presidência anterior, declarou, sem meias palavras, e a imprensa publicou, a partir da primeira página, que "não cairia só", o que, é de convir-se, era um desafio claro e inequívoco; ninguém pode dizer que não entendeu.

Virando a página, a oposição anunciou convocar alguém para falar a respeito desses fatos, e foi um deus nos acuda; por exclusão, a escolha recaiu no ilustre ministro da Justiça. Em verdade, porém, a ideia fixa era impedir a convocação de quem quer que fosse, a menos que fosse mudo. Ora, não é preciso ser nenhum gênio para, na soma de todos esses dados, não concluir que coisas da maior gravidade tinham de ser abafadas, sepultadas. Enquanto isto, ninguém falou no desafio da exonerada ao assoalhar que não cairia só. O silêncio foi geral e total, como o das tumbas e das múmias.

Fatos graves aconteceram no escritório da Presidência da República em São Paulo. Dir-se-á que a situação vem do tempo do ex-presidente Luiz Inácio, mas desde que a senhora presidente não a extirpou em quase dois anos, quando podia fazê-lo, seja qual for ou tenha sido a causa da omissão, o fato é que não escapa de um vínculo inevitável, e não pode escusar-se do ônus que lhe cabe, sendo de lembrar-se que a primeira magistrada deve ter uma conduta branca como a neve, ou transparente como o cristal.

Mas o pior ainda estava por acontecer. Fatos novos vêm sendo divulgados, comentados e analisados por jornalistas de alto conceito, e o silêncio oficial continua, ainda que os fatos, sempre os fatos, cuja promiscuidade lembra os desvarios na decadência do império romano.

Afastando apontar conclusões, insisto em ficar nos fatos, e se é verdade que a senhora presidente não mostra particular simpatia pela chefe do escritório da Presidência em São Paulo, já o mesmo não se pode dizer a respeito do ex-presidente, que deu demonstrações do apreço que tem pela secretária Rosemary, ou Rose, para os íntimos, dado que foi graças a solicitação dele que ela foi mantida pela senhora presidente. E mais, a agora demitida o acompanhou em caravanas presidenciais ao Exterior, sendo portadora de passaporte diplomático, emitido pelo Itamaraty.

Esses dados são realçados, uma vez que pessoas hoje detidas foram nomeadas a instâncias da chefe do escritório paulista, a exemplo de seu ex-marido e de uma filha. Mas há aí um pormenor: é que, segundo agora foi divulgado, o ex-marido carecia de um título de nível superior, o que não foi dificuldade, porque um diploma frio (fato publicado na primeira página da Folha de S. Paulo de 30 de novembro) não custou a ser providenciado e autenticado pelo MEC. Esses fatos teriam de ser explicados, menos à oposição do que à nação brasileira. Não é pedir muito.


Matando os mensageiros - LÚCIA GUIMARÃES


O Estado de S.Paulo - 03/12


A indignação é a pior inspiração para leis. Quem não sentiu o sangue ferver diante da crueldade dos repórteres a serviço de Rupert Murdoch, quando o jornal britânico The Guardian revelou que eles haviam hackeado o celular de Milly Dowler, de 13 anos, morta por um assassino serial? O escândalo que explodiu em julho de 2011 provocou o fechamento de um dos jornais de Murdoch, o News of the World, a formação de comissões de inquérito, o indiciamento de dezenas de pessoas, e teve um desfecho condizente com o país de Shakespeare no dramático relatório da Comissão Levenson, divulgado quinta-feira passada.

A Comissão pediu um órgão independente para patrulhar os excessos da imprensa britânica. Não usou a sigla PIG, partido da imprensa golpista, não porque seja formada por pessoas com senso de ridículo. Não há ideologia em jogo e sim o DNA do que outrora se chamava jornalismo marrom, um elenco de escroques competindo por manchetes.

Um dos condenados pelo esquema do mensalão reagiu propondo restrições à imprensa brasileira e suponho que uma boa oportunidade se oferece para lembrar o seguinte: o que aconteceu na Grã-Bretanha não é abuso de imprensa, mas pura e simplesmente crime. Quando um detetive particular está na folha de pagamento de Murdoch, incumbido de vigiar residências e grampear telefones de vítimas de crime ou suspeitos de adultério, não estamos falando de jornalismo e sim de gangsterismo. A lei que pune crimes dá conta do recado.

Quando jornalistas se afastam da atividade de recolher informação e se comportam como o Tony Soprano, não há necessidade de uma lei de imprensa para reinar sobre o comportamento execrável. E, como vivemos na era da celebridade sábia, o ator Hugh Grant, uma vítima legítima dos tabloides, se manifestou sobre a covardia dos políticos que, segundo ele, não têm coragem de cortar as asas da imprensa porque querem se reeleger. Elegeu a covardia errada. A covardia nesse caso, me parece, se refere à falta de coragem para defender a liberdade de imprensa, apesar dos excessos cometidos por tantos em nome de empresas jornalísticas. Sim, o clichê da citação de Thomas Jefferson - "melhor ter jornais sem governo do que governo sem jornais" - cai como uma luva sobre essas crises, seja o escândalo do hacking de celulares na Inglaterra ou o papel da imprensa na investigação do mensalão.

Na década de 90, fui convidada a falar numa aula da New York University. Parte da aula consistia em revelar como a ditadura brasileira influenciou minha liberdade de noticiar o mundo como editora de Internacional da TV Globo. Como não tinha nenhum episódio de censura para contar, notei que decepcionei os alunos. Eles me queriam oprimida e eu não tinha como relacionar minha rotina editorial à ditadura evidente. A censura afetava principalmente o noticiário nacional e minha editoria escapava, mais ou menos, das garras dos censores. A expectativa de opressão e de ser vítima diante da realidade mais complexa me chamou a atenção em outras situações. Enfrentei uma cerimônia do Prêmio Cabot, da Universidade de Colúmbia, em que um ou outro jornalista nomeado, ao Sul do México, servia como símbolo para um governo repressor quando, de fato, estava mais preocupada com repórteres americanos enfrentando a ira de corporações com tentáculos poderosos em Washington.

Na nossa jovem democracia, muitos soltam fogos de artifício se um jornalista é condenado a pagar X reais por ter insultado a sensibilidade de Y. Alguns litígios refletem uma nova sensibilidade democrática, outros refletem puro oportunismo. Mas, antes de comemorar vitórias de Pirro, é bom levar em conta o admirável mundo novo do legalês, em que a informação pasteurizada por relações públicas quer ditar o registro da realidade.

Arranha-céus - MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

FOLHA DE SP - 03/12


Construir "espigões" passou a ser politicamente incorreto. Igual plantar eucalipto


Faz um dia radioso e aqui estou eu, no alto do edifício Martinelli, esquina da rua Libero Badaró com a velha ladeira de São João, sobre a colina que se ergue entre os vales do Anhangabaú e Tamanduateí -o coração de São Paulo. São Bento, rua 15, rua Direita, sente-se neste belo pedaço de cidade a espessura histórica da vila dos jesuítas que se transformou em capital do café, metrópole industrial e centro financeiro.

Foi ali que um imigrante italiano, Giuseppe Martinelli, deu início, em 1924, à construção do arranha-céu, idealizado para ser o primeiro do Brasil e o "maior da América do Sul" -como diziam os jornais à época.

O prédio, projetado pelo arquiteto húngaro William Fillinger, da Academia de Belas Artes de Viena, foi concluído em 1929. Naquela época tocava-se no Rio um empreendimento semelhante, o edifício A Noite, na região portuária -obra do francês Joseph Gire e do brasileiro Elisiário da Cunha Bahiana. O arranha-céu carioca, que vai ser restaurado, apareceu recentemente na imprensa como "o primeiro da América Latina". Fiquei surpreso. O Martinelli, então, teria vindo depois?

Eis que, coincidentemente, encontro em São Paulo, o artista plástico Robero Cabot, na galeria Nara Roesler, onde ele participa de uma mostra inspirada na "op art", com curadoria de Vik Muniz. Muito boa, por sinal. Meu caro Cabot é bisneto de Gire e coordena o projeto de um livro sobre a obra do arquiteto no contexto arquitetônico da época.

Ele me diz que o arranha-céu carioca foi, na realidade, inaugurado depois do paulistano. "Tudo indica que foi em 1930. Pelo menos em 1929, não foi. Tenho cartas de meu avô, de 29, reclamando do andamento das obras".

Consta que Martinelli e Gire competiram ao longo da construção e que o italiano teria mandado fazer sua casa na cobertura do prédio para torná-lo o mais alto do país, suplantando o rival do Rio.

Ano a mais, ano a menos, andar a mais, andar a menos, o fato é que o Martinelli e o A Noite são marcos arquitetônicos do nascente processo de verticalização pelo qual passariam as duas grandes cidades nos anos seguintes, a exemplo do que já ocorria em outros lugares do mundo, a começar pelos Estados Unidos, os inventores do "skycraper".

Curiosamente, de décadas para cá, foi-se consagrando a ideia de que a verticalização é um mal. Construir "espigões" passou a ser politicamente incorreto. Igual plantar eucalipto. Não há dúvida de que a anarquia e a truculência da especulação imobiliária estimularam essa reação, no fundo sentimental e nostálgica.

Está claro, hoje, que é preciso verticalizar de maneira planejada. Como aproveitar a infraestrutura do centro expandido para ampliar oferta de moradia? O movimento de empurrar populações de baixa renda para as periferias tem que ser invertido, e isso não vai acontecer com a construção de casinhas. Avenidas como a Rio Branco, por exemplo, poderiam ser mais verticalizadas.

São Paulo está mudando. A metrópole fabril dá lugar à de serviços e as ruínas da industrialização são a base para construção da nova cidade. Há boa oportunidade para propostas inteligentes e ambiciosas, que pensem no entorno, na oferta de comércio e na convivência de pessoas de renda e classes diferentes.

A boa notícia é que esses projetos já existem e são grandes as chances de que venham a ser implantados nos próximos anos.

A largada de 2013 - DENISE ROTHENBURG


CORREIO BRAZILIENSE - 03/12


O ano sem eleição desponta daqui alguns dias e com ele a hora em que os atores da política se atacam uns aos outros no sentido de levar a vantagem logo ali na frente, leia-se na próxima eleição. Ocorre que, em meio à Operação Porto Seguro, o ano não-eleitoral chegou mais cedo. Não que a operação da Polícia Federal seja política. Mas ela dá instrumentos para que a oposição coloque sobre a mesa dúvidas sobre a capacidade de a presidente Dilma Rousseff identificar os malfeitos.

A operação, que tem como personagem mais ilustre a ex-chefe do escritório da Presidência da República em São Paulo Rosemary Noronha domina o noticiário há uma semana. Até o final do julgamento do mensalão saiu das manchetes para dar lugar a Rose e seus apadrinhados, acusados de tráfico de influência e corrupção passiva. Passada a primeira semana, a oposição se refere aos tentáculos de Rosemary como fruto da incapacidade da presidente Dilma Rousseff em coibir os malfeitos.

Quem teve o cuidado de ler o artigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ontem nos jornais obteve uma pílula do que vem pela frente nesse contexto. Para aqueles que leram, peço licença para relembrar aos demais alguns aspectos do texto de FHC. Sob o título “Melancolia e revolta”, o ex-presidente discorre sobre os últimos escândalos dizendo que não falará deles. Em seguida, numa série de interrogações, discorre sobre projetos e ações do atual governo com uma ironia sem par.

Fernando Henrique diz, por exemplo, que calará sobre os efeitos da redução do IPI dos automóveis, “os prefeitos que cuidem de aumentar ruas e avenidas para dar cabida a tanto bem-estar… e os moradores das grandes cidades que se munam ainda mais paciência para enfrentar mais congestionamentos”.

O ex-presidente é enfático ao dizer que a iniciativa para redução de energia elétrica, a discussão do momento entre os senadores, teve como resultado imediato a perda de valor das ações das empresas. Fala ainda do trem-bala, um mega projeto que ainda não saiu do papel, cita a brigalhada dentro do novo sistema de exploração do pré-sal que até agora só produziu confusão e riqueza que é bom, nada.

Por falar em ênfase…

Fernando Henrique é incisivo ao dizer que a maioria do Congresso “prefere calar e se submeter docilmente ao Poder Executivo”. Nas entrelinhas, acusa o governo Dilma de não mostrar indignação com os malfeitos, tampouco fazer carga para apurá-los. Ora, para bons entendedores, e o governo está cheio deles, Fernando Henrique Cardoso faz um ensaio geral do que será lembrado dia e noite pelos oposicionistas ao longo do próximo ano.

A largada de 2013 vem no sentido de desconstruir a imagem de Dilma como gestora. E os elementos não precisam ser tirados da cartola ou inventados. Basta relacionar a paralisia de obras do governo federal que a presidente ainda não conseguiu agilizar.

Junto com as críticas à gestão por parte dos oposicionistas, vem pela frente ainda as reclamações, revestidas no quesito “sugestões”do PSB. O ex-governador de Pernambuco, Eduardo Campos, tem dito que a redução do IPI a alguns setores, como o de automóveis, não trouxe o reflexo esperado no crescimento. Sugeriu recentemente que se inclua aí o setor de alimentos e aqueles que gerem mais empregos. Em 2013, os socialistas devem colocar esses pedidos no megafone, até porque, o PIB ainda não mostrou essa recuperação toda que o governo esperava. Ou seja, o jogo de empurra vem quente e por vários ângulos. Dilma que se cuide.

Enquanto isso, em 2012…

Para as próximas três semanas de trabalho do Parlamento, a ordem do governo é não tomar mais gols. Portanto, a estratégia é segurar as investidas para votar a derrubada do fator previdenciário e mudanças radicais no texto que trata da rgulamentação do setor elétrico. E, de quebra, evitar a análise de vetos. No Planalto, há quem diga que se Dilma chegar ao final do ano sem mais marolas nessa área já estará de bom tamanho. Ali, para muitos, já bastam as punhaladas que Lula disse ter recebido e que vão tomar o noticiário nos próximos dias. Não por acaso, Fernando Henrique começa a bater em Dilma. Afinal, enquanto todos tratam da vida de Lula, ela segue livre para o ataque. Não é à toa que FHC cuidou de colocá-la no centro do ringue.

Narrativas - DENIS LERRER ROSENFIELD


O GLOBO - 03/12


Um fato é frequentemente sua narrativa, ou melhor, suas diferentes narrativas, em suas sintonias, dissonâncias e mesmo contradições. Nosso olhar do mundo é moldado por visões perpassadas por versões que suscitam adesões e posições, simpatias e antipatias, conceitos e preconceitos. Eis por que em situações de conflito a disputa pela opinião pública é de tanto valor, pois nela se tecem e articulam alianças e oposições que são da maior relevância não somente para a compreensão dos fatos, mas também para a orientação das ações.

O recente conflito de Israel com o grupo radical Hamas é muito bom exemplo de como versões atropelaram claramente os fatos, dando lugar a manifestações de simpatia ou antipatia, em que preconceitos vieram facilmente à tona. Supostas análise e reportagens que se apresentavam como "neutras" deram vazões a preconceitos bem arraigados. Alguns analistas deveriam fazer análise, psicanaliticamente falando.

O conflito foi, em certas versões, apresentado como uma agressão israelense que teria "assassinado" o comandante militar do Hamas, Ahmed Jabari. Seria, nessa perspectiva, uma iniciativa israelense. Ora, o Hamas vinha bombardeando com foguetes o Estado de Israel, não dando trégua a seus cidadãos. O que era esperado? A inércia e a renúncia à autodefesa? O que faria qualquer cidadão que tivesse tiros diários contra a sua casa? Deveria simplesmente resignar-se, dormir num subterrâneo?

A ação israelense foi apresentada como um "assassinato", e não como a morte de um inimigo com mãos manchadas de sangue. Era público e notório que Jabari fora responsável por uma série de assassinatos - dos quais, aliás, jamais negou sua responsabilidade. Logo, o responsável por assassinatos foi "assassinado". Aliás, o próprio Estado de Israel postou um vídeo mostrando a explosão de seu veículo, como alvo propriamente militar.

Outro fato particularmente notório é a insistência com que se repete, continuamente, o número de mortes de civis do lado palestino. É como se esse fosse o critério dirimente para a discriminação dos "justos" e "injustos". Nesse sentido, o Hamas tem sabido manipular a mídia por meio de jornalistas coniventes.

Uma tática militar usada pelo Hamas consiste na utilização de escudos humanos, de modo que um alvo militar termine atingindo civis. As Forças Armadas de Israel não têm como alvos os civis, mas os militares, onde quer que se escondam. E eles se escondem em residências civis, em zonas altamente urbanizadas, lá armazenando armas e munições, com o objetivo de que civis sejam mortos para que apareçam midiaticamente como "vítimas". Diz-se que o quartel-general do Hamas se encontra nos subterrâneos de um hospital, o que fala por si mesmo de sua preocupação com os "civis". Por outro lado, os foguetes lançados contra Israel têm como alvo os civis, precisamente.

Na contabilidade de mortes civis, as fontes do Hamas não só omitem esses dados, como, por si sós, não têm nenhuma credibilidade. No último confronto em Gaza, a própria ONU foi conivente com a mentira. Foi noticiado com estardalhaço que as Forças Armadas israelenses haviam bombardeado sua sede local. Isso foi repetido à exaustão. Quando o desmentido foi feito pela própria ONU, um mês depois, a antipatia pela ação israelense já estava arraigada. Alguns jornais, após terem publicado manchetes sobre a "destruição da sede da ONU por forças israelenses", relegaram a páginas interiores minúsculos espaços de restabelecimento da verdade dos fatos.

Qual seria, pois, a diferença entre as fontes noticiosas israelenses e do Hamas? A credibilidade advinda de uma democracia, contrastando com um regime político de tendências teocráticas. Informações podem ser verificadas ou não. Israelenses podem manifestar-se livremente contra suas Forças Armadas, criticar, por exemplo, a condução militar contra Gaza ou discordar da inércia das autoridades de seu país, caminhando para um verdadeiro acordo com os palestinos. Nada disso é possível nos territórios controlados pelo Hamas.

Dado particularmente significativo foi a barbárie divulgada em foto por militantes do Hamas contra supostos colaboradores israelenses. Assassinados na rua, com a maior crueldade, foram depois mostrados sendo arrastados por motos, como um exemplo. Ora, exemplo de quê? De crueldade? Se fossem mesmo espiões, deveriam ser julgados, com direito à defesa.

Particularmente gritante é a simpatia pela Turquia, cujas manifestações anti-Israel são acolhidas acriticamente. Ela fala de "massacre", "limpeza étnica", etc. Trata-se de um caso particularmente patológico, exemplo de esquizofrenia profunda. Limpeza étnica fez o Estado turco contra os armênios, assassinando milhões deles, num genocídio inaugural do século 20. Até hoje a Turquia se recusa a reconhecer tal fato. Ademais, a Turquia não reconhece internamente a sua minoria curda, recusando-lhe um Estado autônomo. Os curdos não possuem Estado e são sistematicamente agredidos. Os ataques não respeitam nem as fronteiras dos países vizinhos, com incursões militares e bombardeios, no Iraque e na Síria, contras as populações curdas. E agora se arvora em representante dos palestinos. Por que não reconhece o Estado curdo? Por que não interrompe seus assassinatos, bombardeios e incursões militares?

Convém não esquecer que o Hamas, ao contrário do governo palestino da Cisjordânia, liderado por Mahmoud Abbas, não reconhece o Estado de Israel e prega sua destruição pela violência. A convivência entre israelenses e palestinos, baseada em dois Estados independentes, não se poderá concretizar senão sob a forma de reconhecimento mútuo, o que passa, evidentemente, pelo abandono dos preconceitos recíprocos de ambas as partes.

Não é denegrindo o Estado de Israel nem apregoando a sua extinção que se chegará lá. O antissionismo é uma forma recente de antissemitismo politicamente correto. Não é com ele que se alcançará a paz.

Carências Sociais - AÉCIO NEVES

FOLHA DE SP - 03/12


A "Síntese de Indicadores Sociais 2012" (SIS), publicada pelo IBGE, ajuda a entender o tamanho dos desafios do Brasil do nosso tempo. No estudo, um amplo conjunto de informações demonstra que a pobreza não pode continuar sendo definida apenas pelo valor da renda dos brasileiros, como a dimensionamos nos últimos anos e ainda hoje.

O país permanece com um quadro grave de carências diversas. Uma delas é o acesso aos serviços básicos de esgoto, coleta de lixo, iluminação elétrica e água tratada. Em 2011, a proporção de pessoas sem acesso aos serviços básicos era de 32%, ou seja, um em cada três brasileiros.

A população com atraso educacional é de 31%, e sem acesso à seguridade social, de 21%. Cerca de sete milhões de pessoas ainda vivem em domicílio precário. Nas regiões menos desenvolvidas, a situação piora muito: 65% dos moradores do Norte e 48% do Nordeste têm carência de serviços básicos.

Considerando-se todas as carências avaliadas, verificou-se que 58% dos brasileiros apresentaram ao menos uma delas.

O grande mérito dessa pesquisa é chamar a atenção para a pobreza sob a perspectiva dos direitos e garantias indispensáveis para o exercício da dignidade humana.

Dentre os fatores que melhoraram a renda na última década, a SIS 2012 coloca a expansão das ações de transferência direta para os mais pobres, como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), cujas bases e início ocorreram sob a gestão reformadora do ex-presidente Fernando Henrique.

São iniciativas fundamentais na nossa realidade, mas está demonstrado que são insuficientes para fazer a travessia dos brasileiros para um novo patamar. Elas precisam ser mantidas e ampliadas, mas também somarem-se a outras políticas de Estado que enfrentem os problemas estruturais.

O estudo traz argumentos que apoiam as reflexões propostas pela oposição nos últimos anos: a pobreza precisa ser compreendida também na sua dimensão de privação de oportunidades, direitos e serviços.

O país precisa de políticas sociais que garantam à população atendida o direito de se emancipar. Não podemos nos contentar apenas com a perpetuação da tutela do Estado, que tem prevalecido no atual ciclo de governo. Em respeito a esses brasileiros, precisamos avançar além do processo de gestão diária da pobreza.

As informações do IBGE reforçam, portanto, àqueles que há muito tempo propõem novo dimensionamento, com o necessário realismo, do que precisa ser feito para superação da desigualdade e da pobreza.

Como se constata, a questão não se reduz ao mero enfrentamento político ou a peça de combate da oposição. É o Brasil real, que não frequenta a propaganda e o ufanismo oficial.

A PPP de Lula - MELCHIADES FILHO

FOLHA DE SP - 03/12


BRASÍLIA - É ao mesmo tempo irônico e acintoso que a Agência Nacional de Águas seja colhida por um escândalo de distribuição de propinas enquanto o Nordeste enfrenta a pior seca em 50 anos.

Ou que a Agência Nacional de Transportes Aquaviários vire alvo de ridicularias justamente quando o Planalto retoca licitações e metas de desempenho para o setor portuário, um dos mais dramáticos gargalos de infraestrutura do país.

Ou que a Agência Nacional de Aviação Civil seja exposta como um cabidão de empregos no momento em que as companhias aéreas catapultam tarifas, extinguem linhas populares e demitem centenas de funcionários -e o governo redige os termos da concessão de dois aeroportos e completa a migração para a iniciativa privada de outros três.

Ou que fique patente a vulnerabilidade do MEC em pleno processo de aperfeiçoamento de cadastros e regulação universitária.

Ou, ainda, que a cúpula da Advocacia-Geral da União enfrente denúncias de corrupção logo quando era requisitada para sanar impasses de enorme impacto nacional, como a divisão dos royalties do petróleo.

A quadrilha desbaratada pela Polícia Federal impressiona, primeiro, pelos danos que causou e/ou pretendia causar ao erário. Uma única negociata no porto de Santos envolvia R$ 2 bilhões.

Impressiona, também, pelo apetite: além dos órgãos já citados, o grupo conseguiu se intrometer no Tribunal de Contas da União, na Secretaria do Patrimônio, no Banco do Brasil, na Brasilprev, nos Correios...

Mas impressiona, sobretudo, que toda essa rapinagem só tenha prosperado porque o governo se pôs de joelhos para atender o desejo de Lula. Rosemary Noronha virou chefe de gabinete apenas por (e para) privar da intimidade do presidente. É errado culpá-la sozinha pela mistura de agendas nessa lamentável parceria público-privada.

Adiado para 2013 - GEORGE VIDOR

O GLOBO - 03/12

Uma série de investimentos vai maturar, mas há dúvidas se conseguirão turbinar o PIB no ano que vem

Nem os mais pessimistas em suas estimativas chegaram próximos aos resultados apurados pelo IBGE sobre a trajetória da economia brasileira este ano. E agora os palpites são que os números do quarto trimestre também poderão surpreender, só que desta vez positivamente. De qualquer modo, a discussão que está no ar é se o país caiu mesmo numa rota de baixo crescimento ou se os eventos internacionais previstos poderão turbinar a trajetória do Produto Interno Bruto (PIB). É fato que no ano que vem alguns investimentos, especialmente em infraestrutura, começam a maturar. Dois novos terminais de contêineres estarão prontos em Santos em 2013, quase que duplicando a atual capacidade do porto (resta saber se até lá o canal estará com profundidade adequada para que as maiores embarcações cheguem a todos esses atracadouros). A ferrovia finalmente atenderá aos produtores de soja da região de Rondonópolis (Mato Grosso), a Refinaria Abreu e Lima (em Suape) produzirá óleo diesel, cinco grandes plataformas para as Bacias de Campos e Santos serão entregues, turbinas das hidrelétricas de Santo Antonio e Jirau entrarão em funcionamento, o porto Sudeste (MMX) passará a embarcar minério de ferro em Itaguaí, haverá mais trens de passageiros circulando no Rio e em São Paulo, estádios de futebol ficarão prontos. A dúvida é se esse aumento de capacidade de produção vai ou não se configurar em um crescimento mais vigoroso no PIB em 2013. Por via das dúvidas, as apostas estão sendo revistas, e já vêm girando em torno de uma expansão de 3%.

Saindo do papel

Barra do Furado tende mesmo a se tornar uma nova base de apoio naval para as plataformas de petróleo no litoral do Estado do Rio. Já há seis empresas com projetos para compor o complexo logístico e industrial e uma delas tem conversado com a Petrobras (há poucos dias técnicos da estatal visitaram o local). A base de Macaé está saturada e a frota de embarcações de apoio aumentará de 430 para 720 navios em oito anos. A Baía de Guanabara é também usada, tanto para a Bacia de Campos quanto para a Bacia de Santos. A Baía da Ilha Grande seria uma opção, mas enfrenta restrições ambientais. Barra do Furado tinha um problema que era o assoreamento da entrada do Canal das Flechas. A solução encontrada foi inspirada na Austrália. Um píer está sendo construído (a última estaca será assentada este mês) para instalação de um equipamento que fará uma movimentação da areia capaz de evitar o assoreamento. O enrocamento na entrada do canal será feito com uma tecnologia holandesa que, em vez de pedras, utilizará areia encapsulada em uma membrana especial (o que poupará as pequenas estradas da região do movimento de caminhões muito pesados). As prefeituras de Quissamã e Campos - cada margem da Barra do Furado fica em cada um dos municípios - estão criando uma organização, com as empresas envolvidas no complexo, para definir governança e a parte de cada um ($$$) na futura manutenção do Canal das Flechas.

Não faltam interessados

A conclusão dos operadores de terminais portuários é que o governo não precisa reinventar a roda na atração de mais investimentos ao setor. Para testar o apetite do mercado, o governo poderia pôr em licitação terminais de carga geral (contêineres) em portos públicos, um em cada região do país, com algumas exigências de investimento. O palpite é que apareceria uma fila de interessados.

O Brasil já conta com terminais portuários de carga geral ágeis e bem equipados, auxiliados por sofisticados sistemas de informática. O que antes levava dias agora é feito em horas. Os acessos, marítimos e terrestres, é que continuam sendo um grande gargalo para os portos, fora a burocracia que os envolve, pois trata-se de um setor que todo tipo de autoridade gosta de interferir.

Nas discussões e consultas que antecederam a etapa de formulação das mudanças que o governo pretende anunciar, operadores portuários e empreiteiras (algumas das quais candidatas a futuras operadoras) ficaram em posições bem distintas.

Arroz no contêiner

Pelo terminal de contêineres do porto de Rio Grande passam muitos produtos industrializados, e o principal, até recentemente, era o frango congelado. Mas a segunda carga já é o arroz produzido nessa região do Rio Grande do Sul (e até do Uruguai). Um equipamento especial injeta o arroz dentro do contêiner. Na cidade de desembarque, outra máquina retira o grão por sucção.