segunda-feira, dezembro 03, 2012

O Brasil tem dono? - ROBERTO DaMATTA

REVISTA ÉPOCA 


Como os carros, os sapatos e os cachorros, países também podem ter donos. As antigas aristocracias, feitas de reis, rainhas, papas, prín­cipes encantados, bispos e barões - esses aparen­tados dos deuses cujo sangue deveria ser azul -, eram donas de seus países. Quando um rei era bom, tudo ia bem; quando era mau, esperava-se sua morte. Tudo estava plenamente estabelecido e era impossível trocar de lugar. Você não virava rei, você nascia e morria nobre, lacaio ou escravo; e, se fosse muito azarado, negro.

O regime aristocrático foi rompido, na Ingla­terra, pelo republicanismo da Revolução Gloriosa (em 1688) e, com muito mais radicalismo, pela Francesa (em 1789). Mas um outro tipo de gover­no restritivo da liberdade e de igualdade foi esta­belecido na era moderna pelos nazifascismos de Franco, Salazar, Mussolini e Hitler, a oeste; e pelo coletivismo comunista de Lênin e Stálin, a leste. Depois de 1945, o comunismo foi dono de China e Coreia do Norte, onde continua mandando até hoje. A partir do início de 1960, fidelizou Cuba. No comunismo, o domínio não era mais exercido por dinastias ou casas, como acontecia nas antigas aristocracias, mas por um partido político com sua implacável lógica de decidir em assembleias algo que já estava resolvido por seu micro comité cen­tral- que, como estamos testemunhando no caso chinês, pode incluir famílias e amigos.

O antídoto contra esse tipo de mandonismo tem sido, como ensina pioneiramente Alexis de Tocqueville em seu clássico A democracia na Amé­rica, aquilo que mais o espantou quando ele, em 1831, chegou aos Estados Unidos: a igualdade de condições de seus habitantes. Nesse caso, o país não é propriedade de nenhuma classe, família, pessoa ou partido, mas de seus cidadãos, que se ordenam por meio da liberdade e da igualdade. A liberdade inventa o jornal e a opinião pública. A igualdade reinventa uma justiça voltada para todos.

Se fizermos um inquérito, meu palpite é que uma grande maioria dirá, sem hesitações, que o Brasil tem dono. Seu dono é o governo. O go­verno de Fulano ou Sicrano, pois todo mundo sabe que é o governo quem - como um patrão ou dono - manda, ordena, decide, faz, dá, vende, desmancha, desperdiça ou destrói. Se o mundo é uma bola, como diz o ditado, essa bola tem dono. Temos dificuldade de lidar com aquilo que, sendo público, é de todos.

O Brasil sempre se viu como possuído por alguém de um modo pessoal, e até mesmo apaixonado e amoroso. JK amou o Brasil como um homem ama uma mulher. Jânio Quadros o rene­gou, divorciando-se dele sem motivos. A ditadu­ra personalista de Vargas é vista como um longo casamento, como foi o de Dom Pedro II, nosso último Imperador. Mesmo na ditadura militar e no mais recente péríodo democrático, alguns pre­sidentes são vistos como mais ou menos apaixo­nados e donos do país.

Talvez essas entregas sejam resultado incons­ciente do abandono que o Brasil sofreu após sua "descoberta", em 1500. Um abandono de quase 100 anos, só retomado depois de ter sido quase perdido pelos namoros um tanto violentos - há quem fale em estupro ou violação - com os ho­landeses, em Pernambuco, e os
franceses, que conquistaram O Rio de Janeiro sem romantis­mo nem etiqueta. Finalmente assumido por Portugal, o Bra­sil teve seus primeiros patrões na forma de uma alta centra­lização personificada nos go­vernadores gerais.

Nosso momento mais glorioso e feliz ocorreu em 1808, quando a Família Real e a Corte vieram para o Brasil. Tínhamos agora um Rei que dava, em pessoa, as bênçãos e a mão delicada e branca para os beijinhos e as genuflexões de puxa-saquis­mo que tanto apreciamos. Ríamos quando ele ria. Ficávamos tristes quando ele chorava. Latíamos e rosnávamos quando ele ficava enfezado. Uivá­vamos quando ele ficava deprimido ou sofria de acessos de fúria. O dono do Brasil era um ser humano como outro qualquer - mas, por ter um lado Divino, era o dono sacrossanto do Brasil. Como o Brasil é abençoado por Deus e Deus é brasileiro, esse patrão era a fonte de todo bem. Pois para nós, brasileiros, o Rei, o Dono e o Patrão - o Cara - não têm culpa de nada e sempre desejam nosso bem-estar. De tal modo que, quando algo mau acontece, não é sua culpa. Pois é inconcebível que ele, em sua bondade ou com sua imensa vontade de cuidar do Brasil, possa ter culpa ou responsa­bilidade por alguma falcatrua ou malandragem. O mandão, por pior e mais demagógico que possa ser, é, por definição, um inocente de tudo o que ocorre a seu redor. Ele é dono do mundo, mas nada tem a ver com o que dá errado nele.

Aos poucos, um modelo de democracia basea­do na competição eleitoral e na opinião se estabe­leceu entre nós. Aos poucos, ficamos intolerantes com partidos políticos donos da verdade que se­riam, por tabela, donos do Brasil. Nossa intolerância se estende a ministros e políticos que compravam seus pares com o objetivo de permanecer para sempre no poder. Hoje, está mais claro que todos devem se submeter à lei e que não se pode mais usar a desculpa da ficção biográfica para justificar crimes cometidos contra as instituições republicanas que são de todos. Na economia, a era FHC fixou um padrão, com o Plano Real, e o STF julgou o mensalão de­baixo do crivo impecável dessa igualdade.

O resultado é que a pergunta "O Brasil tem dono?" pode ter muitas respostas. Sim, seu dono é o governo. Sim, seu dono é o grande capitalis­mo global. Sim, seu dono é o agronegócio. Sim, seu dono é o partido do governo. Mas o Brasil é também seu e meu, leitor. Ele é também do povo, esse novo patrão que veio para ficar.

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