quinta-feira, novembro 29, 2012

Estado laico e liberdade religiosa - FLÁVIA PIOVESAN

O GLOBO - 29/11

Os grupos religiosos têm o direito de constituir suas identidades em torno de seus princípios e valores, mas não o de pretender serem hegemônicos



Em 12 de novembro último, o Ministério Público Federal ajuizou ação objetivando à retirada da expressão religiosa “Deus seja louvado” das cédulas do real. O argumento é a ofensa ao princípio do Estado laico, além da exclusão de minorias, ao promover uma religião em detrimento de outras. Outros instigantes debates a respeito do alcance da laicidade estatal e da liberdade religiosa têm chegado à Justiça, como o questionamento acerca do uso de símbolos religiosos (como crucifixos) em espaços públicos; de leis que autorizam excepcionalmente o sacrifício de animais em religiões de matriz africana; da realização de exames (como o Enem) em datas alternativas ao Shabat (dia sagrado para o judaísmo); da natureza do ensino religioso em escolas da rede pública, entre outros.

Ainda que a Constituição, em seu preâmbulo, faça expressa alusão a Deus (a Carta é promulgada “sob a proteção de Deus”), o mesmo texto constitucional veda à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança (...)” (artigo 19, I da Constituição). É daí que se extrai o princípio do Estado laico: a necessária e desejável separação entre Estado e religião no marco do estado democrático de direito.

De um lado, o princípio do Estado laico proíbe a fusão entre Estado e religião (como ocorrem nas teocracias), de modo a proteger a liberdade religiosa. Por outro, requer a atuação positiva do Estado no sentido de assegurar uma arena livre, pluralista e democrática em que toda e qualquer religião mereça igual consideração e respeito. A laicidade estatal demanda tanto a liberdade religiosa, como a igualdade no tratamento conferido pelo Estado às mais diversas religiões.

Isto porque confundir Estado com religião implica a adoção oficial de dogmas incontestáveis, que, ao impor uma moral única, inviabiliza qualquer projeto de sociedade aberta, pluralista e democrática. A ordem jurídica em um estado democrático de direito não pode se converter na voz exclusiva da moral de qualquer religião. Os grupos religiosos têm o direito de constituir suas identidades em torno de seus princípios e valores, pois são parte de uma sociedade democrática. Mas não têm o direito a pretender hegemonizar a cultura de um Estado constitucionalmente laico.

Na história constitucional brasileira, a primeira Constituição, de 1824, consagrava a religião católica apostólica romana como a religião oficial do Império. Às demais religiões apenas era permitido o culto doméstico, ou particular, em casa, sem forma alguma exterior de templo. Foi com a Constituição Republicana de 1891 que se avançou com a adoção do princípio do Estado laico.

Na atualidade, o direito à liberdade religiosa compreende três dimensões: 1) o direito de ter uma religião ou crença de sua escolha (sendo proibida qualquer medida coercitiva que possa restringir tal liberdade); 2) o direito de mudar de religião; e 3) o direito de não ter qualquer religião. A liberdade religiosa ainda abrange o direito de manifestar a religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela celebração de ritos, individual ou coletivamente, em público ou em particular (a chamada “liberdade de culto”). Também é vedado utilizar a religião como fator de discriminação, como enuncia a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Religiosa, a combater o perverso uso da religião para violar e negar direitos.

O Brasil é considerado o maior país católico do mundo em números absolutos. Em 2000, os católicos representavam 74% da população (IBGE, Censo 2000). Em 2009, o universo de católicos correspondia a 68,5% da população brasileira (FGV, Novo Mapa das Religiões, 2011).

Neste contexto, iniciativas como a do Ministério Público Federal constituem uma importante estratégia para consolidar o princípio do Estado laico, endossando o dever do Estado de garantir condições de igual liberdade religiosa. Inspirado pela razão pública e secular, o estado democrático de direito não pode ser refém de dogmas religiosos do sagrado, mas deve garantir a diversidade de doutrinas religiosas, filosóficas e morais como condição da própria cultura pública democrática.

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