quarta-feira, outubro 24, 2012

O mandarim e o plutocrata - MONICA BAUMGARTEN DE BOLLE

FOLHA DE SP - 24/10


Romney ameaça a China. Mas medidas protecionistas nos EUA seriam revidadas. Uma guerra comercial prejudicaria o mundo inteiro, e não haveria hora pior



Em 1880, Eça de Queirós escreveu um conto que destoa completamente do estilo realista que marcou a sua obra. A história envolve o diabo, um homem ambicioso e um poderoso mandarim, um alto funcionário público da antiga China.

Um dia, Teodoro, um funcionário público de baixo escalão, indivíduo avarento e propenso ao alpinismo social, descobre num sebo um livro com uma lenda. O livro dizia que o simples toque de um sinete, em uma determinada hora, mataria o dito mandarim e faria do assassino o herdeiro de seus milhões.

Depois da descoberta, Teodoro tem uma visão. Nela, o demônio o visita. Ele o tenta com o toque da campainha. O protagonista não resiste. O tilintar do sinete põe em marcha uma série de acontecimentos que mudarão para sempre a vida de Teodoro. Teodoro fica rico, mas passa a ter uma vida de traição e culpa.

A coisa não acaba bem. Teodoro implora ao diabo que leve a fortuna e faça tudo voltar a ser como era antes.

O candidato republicano à presidência dos EUA, Mitt Romney, não é um "funcionário público" -ainda- e tampouco tem salário de classe média, como o personagem de Eça. Contudo, ao que indicam suas declarações mais recentes, está indócil.

Ele quer tocar a campainha: deseja declarar formalmente que a China manipula a sua moeda, iniciando uma cascata de eventos que pode ser extremamente prejudicial para a recuperação global.

Romney disse, nos debates de campanha, que este será o seu primeiro ato como presidente, se eleito. O momento não poderia ser pior.

A China passa, hoje, por um processo de abertura política e de transformação econômica extremamente importante, tanto internamente quanto para os rumos da economia global. Em reconhecimento a isso, o Nobel de Literatura, tradicionalmente com forte viés geopolítico, foi concedido a um escritor chinês, membro do establishment cultural local.

A transição de poder ineditamente transparente da liderança do Partido Comunista em novembro e a mudança de eixo de crescimento -do investimento e do setor externo para o consumo- são fundamentais para que a China enalteça o seu status geopolítico e consolide a sua posição de potência econômica, reduzindo os riscos de desequilíbrios macroeconômicos provenientes da manutenção de taxas de crescimento excessivamente altas.

É o mandarim global, o conselheiro de alto escalão, se apresentando ao mundo. Mas Mitt Romney quer agredir o mandarim.

Suas ameaças não são mera retórica de campanha, uma forma simples e barata de bajular o eleitorado americano, preocupado com os seus empregos, com a influência crescente do país asiático e com a perda de status dos EUA.

Ele parece realmente acreditar no que diz. Suas ameaças com relação à China, aliás, são mais críveis do que os temores sobre a possibilidade de um governo republicano (ou democrata sem suporte no legislativo) não renovar os benefícios que têm sustentado a renda da classe média americana. Afinal, uma vez eleito, nenhum governo quer correr o risco de antagonizar com a classe média. Já antagonizar com a China... bem, isso é outra história.

A provocação de Romney, caso se concretizasse, traria inúmeros riscos para a economia mundial.

Caso a China fosse formalmente acusada de manipular a sua moeda, os lobbies de diversos setores industriais nos EUA ganhariam força para pedir ao Congresso medidas protecionistas. A China decerto retaliaria, o que teria consequências nefastas sobre a atividade e os empregos nos EUA, uma vez que o país asiático é um dos principais destinos das exportações americanas.

Deflagrar-se-ia uma verdadeira guerra comercial entre as duas maiores potências econômicas globais, com reflexos funestos sobre o crescimento e a inflação.

Neste contexto, o Brasil enfrentaria um quadro muito diferente do "cenário externo de baixo crescimento prolongado e desinflacionário" que sustenta a estratégia do governo brasileiro em relação aos juros, ao câmbio e ao controle da inflação.

Resta-nos, pois, refletir sobre as palavras finais de Teodoro, ao agonizar em seu leito de morte: "E a vós, homens, lego-vos apenas, sem comentários, estas palavras: só bem sabe o pão que dia a dia ganham as nossas mãos, nunca mates o mandarim!".

Infelizmente, o plutocrata não parece ser um leitor de Eça de Queirós.

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