quarta-feira, outubro 24, 2012

Dúvidas na Dinamarca - MARCELO COELHO

FOLHA DE SP - 24/10


A inação e as famosas dúvidas do protagonista se despem, nessa montagem, de adereços existenciais



Uma peça que termina com a morte de seus principais personagens, sem contar a ocorrência de um suicídio e dois assassinatos no meio da história, certamente parece pouco indicada para o público infantil.
Mas "O Príncipe da Dinamarca", em cartaz no teatro Eva Herz, consegue total adesão das crianças, adaptando a trama de "Hamlet" à linguagem circense.
Ofélia fica sabendo que seu pai, Polônio, foi apunhalado pelo príncipe. Sofre, ademais, com a indiferença e a loucura do seu noivo.
É então que saem de seus olhos lágrimas de esguicho, molhando anarquicamente quem se senta nas primeiras filas da plateia. A palhaçada é regida pelos dois coveiros, que aparecem bem no início da peça para contar a história.
Evitam-se, assim, choques emocionais: todas as mortes já foram anunciadas, e não há ator que não seja um "clown", mal ajambrado numa fantasia de esqueleto feita para não assustar ninguém.
Hamlet, remoendo a morte de seu pai, ganha uma cabeleira de "emo", tornando-se objeto da gozação geral. Quanto ao rei Cláudio, que usurpou o trono, não há dúvidas quanto à sua vilania, e cada mentira que ele conta é denunciada pelos seus próprios gestos de fantoche.
Com bastante sabedoria psicológica, o texto de Ângelo Brandini (que também dirige o espetáculo) elimina da história a rainha Gertrudes.
Qualquer suspeita de relação edipiana entre Hamlet e sua mãe seria, com efeito, mais imprópria para as crianças do que os muitos assassinatos de brincadeira ocorridos no palco.
Imagino que a morte, propriamente dita, não seja o que mais assuste quando se tem seis ou sete anos. Lembro-me de ter muito medo de que meus pais morressem; só que esse tipo de medo não tinha relação muito clara com o que me assustava de verdade.
Eu me debatia com outra ordem de coisas: o sinistro, o monstruoso, o sobrenatural. A morte, entendida como ocorrência física, poderia não ser mais do que a queda cômica de um precipício, o tiro de festim, a bomba que cobre de fuligem o rosto do coiote.
O medo provém menos dos fatos que das ameaças, das suspeitas.
Este, com efeito, é o âmbito em que transcorre o verdadeiro "Hamlet", a peça original para adultos, de que há também uma boa montagem estreando em São Paulo, com Thiago Lacerda no papel principal.
Escrevo "verdadeiro Hamlet", mas não está certo. Mesmo uma montagem bem traduzida e fiel, como é o caso do espetáculo no Tuca, será sempre uma adaptação a esta altura do campeonato.
Os toques de "atualidade" na direção de Ron Daniels parecem forçados em alguns momentos. Para lembrar os prisioneiros de Guantánamo ou Abu Ghraib, o príncipe é submetido à tortura do afogamento até que revele o paradeiro do corpo de Polônio.
Mas se, nessa cena, o rei Cláudio se identifica com os interrogadores americanos, por que razão Fortimbrás, afinal o salvador da Dinamarca, aparece também como se fosse o chefe de uma tropa de intervenção americana, à frente do que parece ser um tanque de guerra?
E por que razão as cadeiras da corte de Elsinore parecem importadas de uma lanchonete dos tempos de Elvis Presley? Quanto ao fantasma do velho rei (a que Antonio Petrin empresta a melhor dicção do elenco), seu terno de linho branco o identifica mais a um bicheiro umbandista ou dono de "plantation" do que a um monarca assassinado.
Detalhes "contemporâneos" meio deslocados, numa encenação que apesar disso acerta ao destacar um ponto atualíssimo na trama.
É a questão da "verdade". A própria palavra, como sublinha o programa da peça, ganhou relevo na elocução dos atores.
Não é apenas Hamlet quem precisa confirmar, com novos estratagemas, a denúncia que ouviu dos lábios do fantasma. Também Cláudio e Polônio querem saber se é verdadeira ou fingida a loucura do príncipe. Rosencrantz e Guildenstern manipulam mal o jogo das versões.
A inação e as famosas dúvidas do protagonista se despem, nessa montagem, de adereços existenciais. Como agir, quando faltam peças no quebra-cabeça? Temos assim tanta certeza sobre o "conjunto probatório" em pauta, para falar como os juízes do mensalão?
O que aconteceu de fato em Guantánamo? O que aconteceu de fato em Wall Street? Os jovens se reúnem em protesto pelo mundo, que está visivelmente "fora dos eixos", como dizia Hamlet -mas suas certezas vacilam bastante.

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