sexta-feira, setembro 21, 2012

No interior do Paraná, saltimbancos que somos - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO


O Estado de S.Paulo - 21/09



GUARAPUAVA, PR - Cinco da manhã, Marina Colasanti, pontualíssima, apesar da hora, desceu do seu apartamento no hotel, o motorista levou sua mala para o carro. Atravessamos a cidade deserta. Por que as cores dos semáforos parecem mais vivas no vazio da madrugada? Durante uma hora viajaríamos no escuro, até que as sombras se retirassem. Na noite anterior tínhamos ido dormir quase à meia-noite, após uma conversa inesquecível no Sesc local. Ao final, fomos rodeados por estudantes e professores para os inevitáveis autógrafos e fotografias que pipocam na rede social minutos depois.

Passei uma semana como um homem privilegiado. Porque enquanto a plateia se sentava distante para ouvir Marina, fiquei ao lado dela. Sua fala é precisa, exata. Não desperdiça palavras e cada momento vem cheio de poesia, informação, visão de mundo. Se o mediador conduz para o feminismo, ela traz intensa bagagem. Se fala de contos de fadas, crônica, poesia, ensaio, ela surfa equilibradíssima sobre a onda. Escreve e ilustra os próprios textos, o que significa domínio total.

Não tínhamos muito tempo para jantar em restaurante após os debates. No entanto, experientes em viagens pelo Brasil, saíamos à tarde, procurando uma padaria. Marina é assim. Está à vontade, seja num restaurante parisiense como o Chez René, onde estivemos juntos em maio (Lembram-se da crônica Os Primeiros Aspargos da Primavera?), seja na padaria Real, em Umuarama, deliciando-se com um beirute saboroso, num pão sírio delicado. Nós é que fazemos o momento. Em Maringá, escritores locais, da Academia, nos ofereceram um jantar. Mas em Umuarama, Paranavaí, Campo Mourão e Guarapuava, fomos a padarias e lanchonetes, porque preferimos comer lanches rápidos, misto-quente, pingado de café com leite, antes das palestras, para dormir leve, uma vez que a cada dia saíamos cedo de uma cidade para outra, saltimbancos que somos.

Três horas de Maringá a Umuarama. Duas e meia de Umuarama a Paranavaí. Duas e meia até Campo Mourão. Anos atrás, demorei a saber de onde tinha vindo uma empregada nossa. Ela dizia: Camorã. Até que descobrimos, era Campo Mourão. Duas horas e meia até Guarapuava, sempre rodando numa van. Incrível como o Paraná, Estado agrícola que depende do tráfego de caminhões, possua estradas que parecem vicinais, pistas únicas. Tudo se torna lento. Entre Maringá e Umuarama, a certa altura, havia um desvio por causa de um acidente. O congestionamento se estendeu. Contei 113 caminhões enfileirados formando uma muralha como a da China.

Entre os dias 10 e 14 deste mês, autores como Marina, João Gilberto Noll, Luiz Henrique Pellanda, Luiz Andrioli, Nivaldo Kruger, Angela Ruski, Norbert Heinz, e eu, levados pelo Sesc, atravessaram o interior do Paraná, cruzando-se em algumas cidades. Uns na direção inversa dos outros, conversando com o público sobre o tema Reinventar-se em Busca do Leitor. Fazia anos que não penetrava no interior do Paraná. As cidades mais novas - novas, mas com 75 anos - trazem ruas e avenidas largas e praças imensas, os pioneiros tiveram o bom senso de ampliar o espaço público. E muita vegetação, árvores e mais árvores, ainda que as araucárias sejam raras. A seca castiga e o que se vê entre Maringá e Campo Mourão são campos de cana, pastos, e silos, silos. Totens gigantescos de cor prateada. Depois, entre Campo Mourão e Guarapuava e em seguida na direção de Curitiba, a paisagem muda, torna-se mais colorida, estendendo-se em plantações de soja, ora verdes, ora douradas. Ou, tendo os grãos já sido colhidos, resta a terra revirada e seca. Colinas e serras, a rodovia enrola-se em curvas e nas manhãs há neblina e orvalho brilhando sobre as folhas.

Há escritores difíceis, há escritores complicados para se conviver, trabalhar ou viajar juntos. Há escritores que se acham. Fazem exigências de hotel, condução, comida, camarim, como se fossem primas-donas. Mas há escritores que proporcionam prazer e alegria de estar ao lado. Como Marina, cujo nome atrai plateias ansiosas, seduzidas pelo seu texto e sua simplicidade, pela sua doçura e seu envolvimento. Ao falar, ela provoca, mexe com as cabeças, embala as pessoas. Contadora de histórias, seu tom de voz se alterna entre o musical e a dureza de uma afirmação contundente, principalmente sobre a condição da mulher brasileira. Estar ao lado dela é sentir-se estimulado a trabalhar bem.

O último encontro em Guarapuava, para mim, teve dos mais belos finais entre todas as mesas de que participei em muitos anos. Com uma memória e um conto. Realidade e ficção. Para fechar, contei uma história sobre meu avô, lembrança que é tema de meu próximo livro, Os Olhos Cegos dos Cavalos Loucos. Gira em torno de uma caixinha vermelha, envernizada, na qual meu avô José guardou, por décadas, preciosas bolinhas coloridas de vidro, que tinham imenso significado em sua vida. Um dia, as bolinhas sumiram, porque surrupiei todas e as perdi nas calçadas, e ele ficou muito mal.

Marina narrou o conto de uma princesa que, a cada aniversário, ganhava do rei, seu pai, uma pedra preciosa que guardava numa caixinha. Aos 15 anos, ele iria montar para a princesa o mais belo colar do mundo. No entanto, a princesa tinha dado, pedra a pedra, a um pássaro faminto que chegava em sua janela, em cada aniversário. A caixinha esvaziou, assim como esvaziou a caixa de bolinhas coloridas de meu avô. Sem que um soubesse do outro, porque esses encontros são improvisação constante e neles as conversas tomam rumo próprio, colocamos no palco duas caixas que mexeram com a imaginação e a emoção da plateia, provocando lágrimas e aplausos.

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