domingo, julho 01, 2012

Marcha da insensatez - J.R. GUZZO

REVISTA VEJA

O advogado paulista Márcio Thomaz Bastos encontra-se, aos 76 anos de idade, numa posição que qualquer profissional sonha­ria ocupar. Ao longo de 54 anos de carrei­ra, tomou-se, talvez, o criminalista de maior prestígio em todo o Brasil, foi ministro da Justi­ça no primeiro mandato do presidente Luiz Iná­cio Lula da Silva e seus honorários situam-se hoje entre os mais altos do mercado — está co­brando 15 milhões de reais, por exemplo, do empresário de jogos de azar Carlinhos Cachoei­ra, o mais notório de seus últimos clientes. Num país que tem mais de 800000 advogados em ati­vidade, chegou ao topo do topo entre seus pares. É tratado com grande respeito nos meios jurídi­cos, consultado regularmente pelos políticos mais graúdos de Brasília e procurado por todo tipo de milionário com contas a acertar perante o Código Penal. Bastos é provavelmente o advo­gado brasileiro com maior acesso aos meios de comunicação. Aparece em capas de revista. Pu­blica artigos nos principais veículos do país. Aparece na televisão, fala no rádio e dá entrevis­tas. Trata-se, em suma, do retrato acabado do homem influente. É especialmente perturbador, por isso tudo, que diga em voz alta as coisas que vem dizendo ultimamente. A mais extraordiná­ria delas é que a imprensa “tomou partido” con­tra os réus do mensalão, a ser julgado em breve no Supremo Tribunal Federal, publica um noti­ciário “opressivo” sobre eles e, com isso, des­respeita o seu direito de receber justiça.

Se fosse apenas mais uma na produção em série de boçalidades que os políticos a serviço do governo não param de despejar sobre o país, tudo bem; o PT e seus aliados são assim mesmo. Mas temos, nesse caso, um problema sério: Márcio Thomaz Bastos não é um boçal. Muito ao contrário, construiu uma reputação de pessoa razoável, serena e avessa a jogar combustível em fogueiras; é visto como um adversário de con­frontos incertos e cético quanto a soluções to­madas na base do grito. É aí, justamente, que se pode perceber com clareza toda a malignidade daquilo que vem fazendo, ao emprestar um dis­farce de seriedade e bom-senso a ações que se alimentam do pensamento totalitário e levam à perversão da justiça. Por trás do que ele preten­de vender como um esforço generoso em favor do direito de defesa, o que realmente existe é o desejo oculto de agredir a liberdade de expres­são e manter intacta a impunidade que há anos transformou numa piada o sistema judiciário do Brasil. Age, nesses sermões contra a imprensa e pró-mensalâo, como um sósia de Lula ou de um brucutu qualquer do PT; mas é o doutor Márcio Thomaz Bastos quem está falando — e se quem está falando é um crânio como o doutor Márcio, homem de sabedoria jurídica comparável à do rei Salomão, muita gente boa se sente obrigada a ouvir com o máximo de respeito o que ele diz.

O advogado Bastos sustenta, em público, que gosta da liberdade de im­prensa. Pode ser — mas do que ele certamente não gosta, em particular, é das suas consequências. Uma delas, que o incomoda muito neste momento, é que jornais e revistas, emissoras de rádio e de televisão falam demais, segundo ele, do mensalão, e dizem coi­sas pesadas a respeito de diversos réus do pro­cesso. Mas a lei não estabelece quanto espaço ou tempo os meios de comunicação podem dedicar a esse ou aquele assunto, nem os obriga a ser im­parciais, justos ou equilibrados; diz, apenas, que devem ser livres. O que o criminalista número 1 do Brasil sugere que se faça? Não pode, é claro, propor um tabelamento de centímetros ou minu­tos a ser obedecido pelos veículos no seu noticiá­rio sobre casos em andamento nos tribunais — nem a formação de um conselho de justos que só autorizaria a publicação de material que consi­derasse neutro em relação aos réus. Os órgãos de imprensa podem, com certeza, ter efeito so­bre as opiniões do público, mas também aqui não há como satisfazer as objeções levantadas pelo advogado Bastos. O público não julga na­da; este é um trabalho exclusivo dos juizes, e os juizes dão ás suas sentenças com base naquilo que leem nos autos, e não no que leem em jor­nais. Será que o ex-ministro da Justiça gostaria, para cercar a coisa pelos quatro lados, que a im­prensa parasse de publicar qualquer comentário sobre o mensalão um ano antes do julgamento, por exemplo? Dois anos, talvez? Não é uma op­ção prática — mesmo porque jamais se soube quando o caso iria ser julgado.

A verdade é que a pregação de Márcio Thomaz Bastos ignora os fatos, ofende a lógica e deseduca o público. De onde ele foi tirar a ideia de que os réus do mensalão estão tendo seus direi­tos negados por causa da imprensa? O julgamen­to vai se realizar sete anos após os fatos de que eles são acusados.— achar que alguém possa es­tar sendo prejudicado depois de todo esse tempo para organizar sua defesa é simplesmente incom­preensível. Os réus gastaram milhões de reais contratando as bancas de advocacia mais festeja­das do Brasil. Dos onze ministros do STF que vão julgá-los, seis foram indicados por Lula, seu maior aliado, e outros dois pela presidente Dilma Rousseff. Um deles, José Antonio Toffoli, foi praticamente um funcionário do PT entre 1995 e 2009, quando ganhou sua cadeira na corte de Justiçamais alta do país, aos 41 anos de idade e sem ter nenhum mérito conhecido para tanto; foi reprovado duas vezes ao prestar concurso para juiz, e esteve metido, na condição de réu, em dois processos no Amapá, por recebimento ilíci­to de dinheiro público. Sua entrada no STF, é verdade, foi mas os senadores aprovariam do mesmo jeito se Lula tivesse indicado para o car­go um tamanduá-bandeira. O próprio ex-presidente, enfim, vem interferindo diretamente em favor dos réus — como acaba de acusar o minis­troGilmar Mendes, com quem teve uma conver­sa em particular muito próxima da pura e simples ilegalidade. Mas o advogado Bastos, apesar dis­so tudo, acha que os acusados não estão tendo direito a se defender de forma adequada.

Há uma face escura e angustiante na escola de pensamento liderada por Bastos, em sua tese não declarada, mas muito clara, segundo a qual a liberdade de expressão se opõe ao direito de de­fesa. Ela pode ser percebida na comparação que fez entre o mensalão e o julgamento do casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, con­denados em 2010 por assassinarem a- filha dele de 5 anos de idade, em 2008, atirando a menina pela janela do seu apartamento em São Paulo — crime de uma selvageria capaz de causar indig­nação até dentro das penitenciárias. Bastos ad­verte sobre o perigo, em seu modo de ver as coi­sas, de que os réus do mensalão possam ter o mesmo destino do casal Nardoni; tratou-se, se­gundo ele, de um caso típico de “julgamento que não houve”, pois os meios de comunicação “insuflaram de tal maneira” os ânimos que acabou havendo “um justiçamento” e seu julgamento se tomou “uma farsa”. De novo, aqui, não há uma verdadeira ideia; o que há é a negação dos fatos. Os Nardoni tiveram direito a todos os exames técnicos, laudos e perícias que quiseram. Foram atendidos em todos os seus pedidos para adiar ao máximo o julgamento. Contrataram para defen- dê-los um dos advogados mais caros e influentes de São Paulo, Roberto Podval — tão caro que pôde pagar as despesas de hospedagem, em hotel cinco-estrelas, de 200 amigos que convidou para o seu casamento na ilha de Capri, em 2011, e tão influente que um deles foi o ministro Toffoli. (Eis o homem aqui, outra vez.)

Ao sustentar que o casal Nardoni foi vítima de um “justiçamento”, Bastos ignora o trabalho em prol de do promotor Francisco Cembranelli, cuja peça deacusação é considerada, por consenso, um clássico em matéria de competência e rigor jurídico. Dá a entender que os sete membros do júri foramincapazes de decidir por vontade própria. Mais que tudo, ao sustentar que os assassinos fo­ram condenados pelo noticiário, omite a única caüsa real da sentença que receberam—o fato de terem matado com as próprias mãos uma criança de 5 anos. Enfim, como fecho de sua visão do mundo, Bastos louvou, num artigo para a Folha de S.Paulo, a máxima segundo a qual “ó acusado é sempre um oprimido”. Tais propósitos são ape­nas um despropósito. Infelizmente, são também admirados e reproduzidos, cada vez mais, por ju­ristas, astros do ambiente universitário, intelectuais, artistas, legisladores, lideranças políticas e por aí afora. Suas ações, somadas, colocaram o país numa marcha da insensatez — ao construí­rem ano após ano, tijolo por tijolo, o triunfo da impunidade na sociedade brasileira de hoje.

O Brasil é um dos poucos países em que ho­micidas confessos são deixados em liberdade. O jornalista Antonio Pimenta, por exemplo, matou a tiros sua ex-namorada Sandra Gomide, em 2000, e admitiu o crime desde o primeiro mo­mento; só foi para a cadeia onze anos depois, num caso que a defesa conseguiu ir adiando, sem o apoio de um único fato ou motivo lógico, até chegar ao Supremo Tribunal Federal. Homicidas, quando condenados, podem ter o direito de cum­prir apenas um sexto da pena. Se não forem pre­sos em flagrante, podem responder em liberdade a seus processos. Autores dos crimes mais cruéis têm direito a cumprir suas penas em prisão aberta ou “liberdade assistida”. Se tiverem menos de 18 anos, criminosos perfeitamente cons­cientes do que fazem podem matar quantas vezes quiserem, sem receber punição alguma; qualquer sugestão de reduzir esse limite é prontamente denunciada como fascista ou retrógrada pelo pensamento jurídico que se tornou predominante no país. O resultado fi­nal dessa convicção de que só poderá haver justiça se houver cada vez mais barreiras entre os criminosos e a cadeia 3 está à vista de todos. O Brasil registra s 50000 homicídios por ano — e menos de 10% chegam a ser julgados um dia.

Nosso ex-ministro da Justiça, po­lirém, acha irrelevante essa aberração. O problema, para ele, não está na impuni­dade dos criminosos, e sim na imprensa — que fica falando muito do assunto e acaba criando um “clamor popular” contra os réus. Esse clamor po­pular, naturalmente, tem dois rostos. É bom quando vai a favor das posições defendidas por Bastos e por quem pensa como ele; é chamado, nesse caso, de “opinião pública”. É ruim quando vai contra; é chamado, então, de “linchamento moral”. A impunidade para crimes descritos co­mo “comuns”, e que vão superando fronteiras cada vez mais avançadas em termos de perversi­dade, é, enfim, só uma parte dessa tragédia. A outra é a impunidade de quem manda no país. Não poderia haver uma ilustração mais chocante dessa realidade do que a cena, há duas semanas, em que a maior liderança política do Brasil, o ex-presidente Lula, se submete a um beija-mão em público perante seu novo herói, o deputado Paulo Maluf — um homem que só pode viver fora da cadeia no Brasil, pois no resto do planeta está sujeito a um mandado internacional de pri­são a ser cumprido pela Interpol. É, em suma, o desvario civilizado — tanto mais perigoso por ser camuflado com palavras suaves, apelos por uma “justiça moderna” e desculpas de que a “causa popular” vale mais que a moral comum. Um dos maiores criminalistas que já passaram pelo foro de São Paulo, hoje falecido, costumava dizer que o direito penal oferece apenas duas opções a um advogado. Na primeira, ele se obriga: a só aceitar a defesa de um cliente se estiver honestamente convencido de sua inocência. Na segunda, torna- se coautor de crimes. O resto, resumia ele, é ape­nas filosofia hipócrita para justificar o recebi­mento de honorários. Há um abismo entre a pos­tura desse velho advogado e a do doutor Márcio. Fica o leitor convidado, aqui, a ecolher qual das duas lhe parece mais correta.

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